DO CONTEXTO DE APROVAÇÃO DA LEI DO SUPERENDIVIDAMENTO
O mês de junho deste ano [1] registrou o maior percentual de famílias endividadas no Brasil desde 2010, segundo a Pesquisa de Endividamento e Inadimplência do Consumidor (Peic), realizada pela Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC).
O 1º semestre do ano acabou com 69,7% das famílias brasileiras endividadas, alta de 1,7% em relação a maio e de 2,5% em comparação a junho de 2020. Pela segunda vez seguida, houve também alta na inadimplência. Concessões de empréstimos bancários e juros médios recuam em maio, revela Banco Central.
Os dados coletados ainda revelam que a porcentagem das famílias que recebem até dez salários mínimos e não possuem condições de pagar suas dívidas sem comprometer sua subsistência chegou a 13% do total.
Entre as causas de endividamento, as despesas contraídas com cartão de crédito chegaram a 81,8%, número muito superior a outras operações de crédito tradicionais, como carnês (17,5%), financiamento de carro (11,9%) e financiamento de imóvel (9,1%).
É preciso consignar que os problemas econômicos acima relatados ganharam contornos dramáticos diante dos efeitos econômicos adversos trazidos pela pandemia da covid-19, principalmente com a perda de emprego e renda por considerável parcela da população, afetando a aquisição de bens e serviços e de todo modo as relações de consumo.
Do ponto de vista moral, uma pessoa com elevado grau de endividamento acaba, em geral, comprometendo sua qualidade de vida e de sua família, muitas vezes desestruturando o núcleo familiar.
Em 2016, a USP realizou[2] uma pesquisa com pessoas que tinham dívidas pendentes. O resultado mostrou que 80% dos entrevistados sofriam com ansiedade e depressão por causa de dívidas. Se o país tem cerca de 63 milhões de endividados, praticamente 50 milhões de pessoas sofrem com a doença e isso se reflete em uma série de problemas no dia a dia.
O Brasil não tinha qualquer legislação que disciplinasse as relações de pessoa fisica em condição de superendividamento, entretanto, em boa hora no dia 01.07 de 2021 o Presidente Jair Bolsonaro, sancionou a Lei do Superendividamento (Lei nº 14.181/2021 que altera a Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990 (Código de Defesa do Consumidor), e a Lei nº 10.741, de 1º de outubro de 2003 (Estatuto do Idoso), para aperfeiçoar a disciplina do crédito ao consumidor e dispor sobre a prevenção e o tratamento do superendividamento.)
A referida proposta legislativa nasceu no Senado como Projeto de Lei do Senado (PLS) nº 283, de 2013, fruto dos trabalhos da Comissão Temporária de Modernização do Código de Defesa do Consumidor, após seguiu para a Câmara dos Deputados como Projeto de Lei (PL) nº 3.514/2015, retornando ao Senado como Projeto de Lei (PL) nº 1.805, de 2021 (Substitutivo).
Em linhas gerais, no que tange ao superendividamento, prevê o normativo aprovado no seu art. 5º, VI e VII e art. 6º, XI a instituição de mecanismos de prevenção e tratamento extrajudicial e judicial do superendividamento e a proteção do consumidor, visando a garantir o mínimo existencial e a preservação da dignidade humana.
Prevê também a garantia de práticas de crédito responsável e de educação financeira de prevenção e tratamento dos consumidores superendividados, por meio da repactuação de dívidas, dentre outras medidas.
DO CONCEITO DO SUPERENDIVIDAMENTO
Imperioso demonstrar que o uso do crédito como forma de adquirir bens de consumo não pressupõe dizer que o consumidor é irresponsável ou inconsequente.
O crédito faz parte da vida moderna em sociedade sendo necessário para gestão dos compromissos básicos como catalisador do desenvolvimento social e econômico do país.
Na sociedade de consumo atual é frequente o excessivo fornecimento de crédito ao consumidor, ato que se mostra muitas vezes como uma das formas de prover as suas necessidades mais básicas. Contudo, tal fornecimento ocorre de forma desregrada, fazendo aumentar cada vez mais o número de consumidores endividados.
O superendividamento é um problema que está intimamente relacionado à sociedade de consumo e à oferta excessiva de crédito e por esta razão sempre serão necessários meios para o tratamento daqueles que se encontram nesta situação.
A definição do que é superendividamento vem do Código de Consumo da França, de 1993, como explica a advogada, escritora, pós-doutora pela Universidade de Heidelberg (Alemanha) e professora titular na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Cláudia Lima Marques[3]:
"Ele é definido como a impossibilidade do consumidor de boa-fé fazer frente ao conjunto de suas dívidas já vencidas e que irão vencer. Sem prejudicar o mínimo existencial".
O referido fenômeno, ainda no entendimento da ilustre doutrinadora, se materializa de duas formas:
i) Superendividamento ativo: o consumidor se endivida voluntariamente, em virtude de má gestão do orçamento familiar, contraindo dívidas maiores do que ele pode pagar, por mero impulso ou apelo comercial. Subdivide-se em ativo consciente e ativo inconsciente; ii) Ativo consciente: o consumidor age de má-fé, pois sabe que não tem recursos para adimplir e sua intenção é não pagá-las, visando ludibriar o credor. este não receberá proteção do Estado para recuperar-se, pelo simples fato da ausência da boa-fé, que é requisito essencial; iii) Ativo inconsciente: age de forma irresponsável e impulsiva, deixando de controlar seus gastos. Pode ser chamado também de pródigo, pois se deixa seduzir pelo mercado, adquirindo produtos supérfluos. Nesse caso, o Estado o auxilia pelo fato de haver onerosidade e vulnerabilidade;
iv) Superendividamento passivo: ocorre quando o devedor fica nessa situação por motivos externos e imprevistos, os chamados “acidentes da vida”. Não age de má-fé e não ocorre má gestão. Somente encontra-se nesta situação por motivos alheios, tornando-se vulnerável. Por isso, o Estado tem desejo de ajuda-lo, dando maior dignidade à sua vida.
Em resumo o superendividamento ocorre quando o consumidor é pessoa física, esteja de boa-fé, não consegue honrar com o pagamento da totalidade de suas dívidas de consumo que estão vencidas e vincendas sem comprometer o mínimo existencial.
Então, este instrumento legislativo veio como grande importância principalmente frente a essa crise econômica ocasionada pela pandemia que assolou o mundo afetando principalmente na sociedade de consumo.
Nesta linha de raciocínio, com a edição da nova lei, os compromissos financeiros assumidos em decorrência de relações de consumo, inclusive operações de crédito, compras a prazo e serviços de prestação continuada não poderão comprometer a existência digna do consumidor.
A nova lei dispôs que tais dívidas englobam "quaisquer compromissos financeiros assumidos decorrentes de relação de consumo, inclusive operações de crédito, compras a prazo e serviços de prestação continuada" (art. 54-A, § 2º).
Todavia, o conceito de superendividamento não se aplica ao consumidor cujas dívidas: (i) tenham sido contraídas mediante fraude ou má-fé; (ii) sejam oriundas de contratos celebrados dolosamente (com a intenção de não pagar); ou (iii) que decorram da aquisição ou contratação de produtos/serviços de luxo de alto valor (CDC, art. 54-A, § 3º).
DO PRINCÍPIO DO MÍNIMO EXISTENCIAL
O consumidor superendividado é considerado um morto civil, pois, sem crédito e sem margem está no ostracismo, uma vez que, não consegue adquirir bens e nem contratar serviços a prazo e ainda de montar negócios apresentando inclusive severas dificuldades na inserção no mercado de trabalho.
A Lei nº 14.181/2021 acrescentou dois incisos:
Art. 4º A Política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo, atendidos os seguintes princípios:
(...)
IX - fomento de ações direcionadas à educação financeira e ambiental dos consumidores;
X - prevenção e tratamento do superendividamento como forma de evitar a exclusão social do consumidor.
Apesar da autonomia privada que regula as relações contratuais, as regras contratuais são mitigadas para preservar o mínimo suficiente à sobrevivência do indivíduo.
Mínimo existencial é o conjunto básico de direitos fundamentais que assegura a cada pessoa uma vida digna, com saúde, alimentação e educação. As dívidas não podem exceder a sobrevivência dos indivíduos.
A Lei nº 14.181/2021 inseriu no art. 6º que são direitos básicos do consumidor:(...)
XII- a preservação do mínimo existencial, nos termos da regulamentação, na repactuação de dívidas e na concessão de crédito;
XII- a preservação do mínimo existencial, nos termos da regulamentação, na repactuação de dívidas e na concessão de crédito;
Assim, em atenção aos princípios da dignidade da pessoa humana e do mínimo existencial deve o Estado atuar de modo a garantir ao devedor os meios essenciais a sua sobrevivência, considerando o total de suas dívidas e uma renda suficiente a lhe garantir uma vida digna.
Então inovação como direito básico é extremamente salutar no sentido de possibilitar que aquele consumidor superendividado possa ter condições de resgate da sua dignidade sem afetar as condições mínimas de sobrevivência.
DO PROCEDIMENTO JUDICIAL DE REPACTUAÇÃO DE DÍVIDAS
Conforme conceitos acima explicitados aquele consumidor pessoa física que se encontrar na condição de superendividamento poderá acionar o Poder Judiciário no sentido de apresentar um plano de repactuação de dívidas.
O aludido procedimento tem como marco inicial a designação de audiência conciliatória, que deverá contar com a presença de todos os credores das dívidas que originaram o superendividamento nos moldes preconizados do art. 54-A, do CDC.
Na referida audiência, o consumidor deverá apresentar proposta de plano de pagamento, com prazo máximo de cinco anos, resguardando-se sempre o mínimo existencial, bem como as garantias e as formas de pagamento originalmente pactuadas.
Neste plano de pagamento deverá necessariamente constar: (i) referência à suspensão ou à extinção das ações judiciais em curso; (ii) data a partir da qual será providenciada a exclusão do consumidor de bancos de dados e de cadastros de inadimplentes; (iii) condicionamento dos efeitos do plano à abstenção, pelo consumidor, de condutas que importem no agravamento de sua situação de superendividamento; e (iv) medidas de dilação dos prazos de pagamento e de redução dos encargos da dívida ou da remuneração do fornecedor, entre outras medidas destinadas a facilitar o pagamento do débito (CDC, art. 104-A, § 4º).
Estão excluídas do referido plano aquelas dívidas decorrentes de contratos de crédito com garantia real (garantidos por penhor, anticrese e hipoteca, nos termos do art. 1.419 do Código Civil), financiamento imobiliário e crédito rural, bem como as dívidas contraídas dolosamente com a intenção de não pagar.
Na audiência de repactuação é obrigatório o comparecimento dos credores (ou de procuradores com poderes especiais e plenos para transigir), entretanto, o credor que se ausentar e também não enviar procurador com poderes especiais em seu lugar, será penalizado com a suspensão da exigibilidade de seu crédito, implicando também na interrupção dos encargos de mora devendo o pagamento a esse credor ser estipulado para ocorrer apenas após o pagamento aos credores presentes à audiência conciliatória.
Na hipótese do consumidor obter conciliação com qualquer um dos credores (ou com todos), o juiz sentenciará o processo, homologando-se o acordo obtido entre as partes, a sentença homologatória deverá descrever o plano de pagamento da dívida, sendo munida de eficácia de título executivo e força de coisa julgada material (CDC, art. 104-A, § 3º).
Frustrada - total ou parcialmente - a audiência de conciliação, na hipótese de um ou mais credores não concordem com o plano de pagamento apresentado pelo consumidor, o juiz após o pedido do consumidor poderá instaurar o processo por superendividamento (CDC, art. 104-B), cuja finalidade é a revisão e integração dos contratos, bem como a repactuação das dívidas remanescentes.
Assim todos aqueles credores que não tenham realizado acordo durante a audiência de conciliação deverão ser citados na forma do artigo 238 do CPC, para no prazo de 15 dias úteis possam apresentar motivos justificáveis, documentos e outras provas pelas quais não concordam com o plano voluntário apresentado pelo consumidor.
Diante da grande complexidade de cálculos e procedimentos no tocante a repactuação da dívida e desde que não seja oneroso para as partes, o juiz poderá designar administrador judicial, o qual, no prazo de 30 dias úteis contados a partir do cumprimento das diligências eventualmente necessárias, apresentará plano de pagamento judicial que contemple medidas de temporização ou de atenuação dos encargos.
Deverá constar do plano judicial compulsório e trará uma garantia aos credores, no mínimo o valor do principal, corrigido monetariamente por índices oficiais de preço, sendo que, primeira parcela do plano judicial será devida no prazo máximo de 180 dias, contados da homologação judicial, e o restante do saldo devedor deverá ser quitado em parcelas mensais, sucessivas e de igual valor.
Por fim, o pedido do consumidor não importará em declaração de insolvência civil e poderá ser repetido somente após decorrido o prazo de 2 (dois) anos, contado da liquidação das obrigações previstas no plano de pagamento homologado, sem prejuízo de eventual repactuação.
CONCILIAÇÃO ADMNISTRATIVA
Conforme previsão contida no novo art. 104-C do CDC poderá através dos órgãos do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor (Ministério Público, Defensoria Pública, Procons e entidades civis de defesa do consumidor), existir a conciliação administrativa daqueles superendividados.
Na verdade, o comando legislativo traz que é concorrente e facultativamente a inserção dos órgãos públicos integrantes do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor a fase conciliatória e preventiva do processo de repactuação de dívidas.
Em caso de conciliação administrativa para prevenir o superendividamento do consumidor pessoa natural, os órgãos públicos poderão promover, nas reclamações individuais, audiência global de conciliação com todos os credores e, em todos os casos, facilitar a elaboração de plano de pagamento, preservado o mínimo existencial, nos termos da regulamentação, sob a supervisão desses órgãos, sem prejuízo das demais atividades de reeducação financeira cabíveis.
Prevê ainda que, o acordo firmado perante os órgãos públicos de defesa do consumidor, em caso de superendividamento do consumidor pessoa natural, incluirá a data a partir da qual será providenciada a exclusão do consumidor de bancos de dados e de cadastros de inadimplentes, bem como o condicionamento de seus efeitos à abstenção, pelo consumidor, de condutas que importem no agravamento de sua situação de superendividamento, especialmente a de contrair novas dívidas.
Entretanto, embora louvável a inserção legislativa não se criou um procedimento padronizado o que de certa forma deixa muito vaga a atuação da defesa do consumidor na seara administrativa.
Na prática há muitas lacunas ainda a serem respondidas e solucionadas como serão a implementação dos mecanismos de prevenção e resolução do problema dos superendividados.
DAS DEMAIS INOVAÇÕES NA RELAÇÃO DE CONSUMO DECORRENTES DA LEI
A nova lei prevê ainda as seguintes medidas:
Como política pública em prol do consumidor o fomento de ações direcionadas à educação financeira e ambiental dos consumidores; prevenção e tratamento do superendividamento como forma de evitar a exclusão social do consumidor.
Assim, cabe ao Poder Público formular políticas públicas destinadas a promover a educação financeira do consumidor e a prevenir situações de superendividamento.
E ainda, a instituição de mecanismos de prevenção e tratamento extrajudicial e judicial do superendividamento e de proteção do consumidor pessoa natural, bem como instituição de núcleos de conciliação e mediação de conflitos oriundos de superendividamento. ( Art. 4º, IX e X, art. 5º, Vi e Vii, do CDC)
Torna direito básico do consumidor a garantia de práticas de crédito responsável (consciente), de educação financeira e de prevenção e tratamento de situações de superendividamento, preservado o mínimo existencial (Art. 6º, XI, XII, XIII, CDC);
Torna nula cláusulas contratuais de produtos ou serviços que limitem o acesso ao Poder Judiciário ou impeçam o restabelecimento integral dos direitos do consumidor e de seus meios de pagamento depois da quitação de juros de mora ou de acordo com os credores (Art. 51, XVII, XVIII, CDC);
Obriga bancos, financiadoras e empresas que vendem a prazo a informar ao consumidor o custo efetivo total, a taxa mensal efetiva de juros e os encargos por atraso, o total de prestações e o direito de antecipar o pagamento da dívida ou parcelamento sem novos encargos.
As ofertas de empréstimo ou de venda a prazo deverão informar ainda a soma total a pagar, com e sem financiamento (ART. 54-B, 54-D, CDC);
Proíbe o assédio ou a pressão sobre consumidor para contratar o fornecimento de produto, serviço ou crédito, principalmente em caso de idosos, analfabetos, doentes ou em estado de vulnerabilidade (ART. 54-C, CDC);
Permite que o consumidor informe à administradora do cartão crédito, com dez dias de antecedência do vencimento da fatura, sobre parcela que está em disputa com o fornecedor. O valor não poderá ser cobrado enquanto não houver uma solução para a disputa. (ART. 54-G, CDC)
O legislador inseriu como norma o entendimento que já era pacificado na jurisprudência positivando que o contrato original de fornecimento de produto e o contrato de crédito são coligados ou interdependentes quando o fornecedor de crédito recorrer aos serviços do fornecedor de produto ou serviço para a preparação ou a conclusão do contrato de crédito; ou oferecer o crédito no local da atividade empresarial do fornecedor de produto ou serviço financiado ou onde o contrato principal for celebrado. (ART. 54-F, CDC)
Por fim, a lei 14.181/21 acrescentou o parágrafo 3º ao artigo 96 do Estatuto do Idoso (lei 10.741/2003), dispondo que "não constitui crime a negativa de crédito motivada por superendividamento do idoso".
VETOS
A lei foi publicada na edição no Diário Oficial da União com cinco vetos.
Dos cinco vetos do presidente Bolsonaro à matéria, o principal refere-se ao artigo 54-E, inserido pelo projeto no CDC.
O trecho determinava que, nos contratos para pagamento da dívida com autorização prévia do consumidor para consignação em folha de pagamento, a soma das parcelas reservadas a esse pagamento não poderia ser superior a 30% de sua remuneração mensal, como definido em legislação especial.
O artigo fixava ainda que esse percentual poderia ser acrescido de 5%, destinados exclusivamente à amortização de despesas contraídas por meio de cartão de crédito ou a saque por meio de cartão de crédito.
O descumprimento daria causa imediata à revisão ou renegociação do contrato.
Além disso, o consumidor poderia desistir da contratação de crédito no prazo de sete dias, contados da data da celebração ou do recebimento de cópia do contrato, a partir da disponibilização de formulário de fácil preenchimento pelo consumidor, em meio físico ou eletrônico, anexo ao contrato.
Por fim, não seria devida pelo fornecedor a devolução de eventuais tarifas pagas pelo consumidor em razão dos serviços prestados.
Em justificativa ao veto, o presidente da República expressou que o artigo:
“contrariaria interesse público ao restringir de forma geral a 30% o limite da margem de crédito já anteriormente definida pela Lei 14.131, de 2021, que estabeleceu o percentual máximo de consignação em 40%, dos quais 5% seriam destinados exclusivamente para amortização de despesas contraídas por meio de cartão de crédito ou de utilização com finalidade de saque por meio do cartão de crédito, para até 31 de dezembro de 2021, conforme hipóteses previstas em vários dispositivos legais”.
Também argumenta que o crédito consignado é uma das modalidades mais baratas e acessíveis.
Assim, a restrição generalizada do limite de margem do crédito consignado reduziria a capacidade de o beneficiário acessar modalidade de crédito, cujas taxas de juros são, devido à robustez da garantia, inferiores a outras modalidades.
A restrição acabaria, assim, por forçar o consumidor a assumir dívidas mais custosas e de maior dificuldade de pagamento.
O presidente Jair Bolsonaro vetou ainda a inserção do inciso XIX do artigo 51 do CDC, que estabelece que seriam nulas de pleno direito as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de serviços e produtos que previssem a aplicação de lei estrangeira que limitasse, total ou parcialmente, a proteção assegurada pelo código.
Também foi vetado um inciso que previa a vedação expressa ou implícita, na oferta de crédito ao consumidor, a referências sobre crédito “sem juros”, “gratuito”, “sem acréscimo” ou com “taxa zero” ou qualquer expressão semelhante.
É lamentável os vetos dos dispositivos acima, pois, foram inseridos com a finalidade de coibir abusos diários nas relações de consumo esperamos que o parlamento brasileiro reveja.
VIGÊNCIA E RETROATIVIDADE (ART. 3º E ART. 4º DA LEI DO SUPERENDIVIDAMENTO)
A Lei nº 14.181/2021 entrou em vigor na data de sua publicação (02/07/2021).
No tocante a vigência e retroatividade o comando normativo assim prevê:
Art. 3º A validade dos negócios e dos demais atos jurídicos de crédito em curso constituídos antes da entrada em vigor desta Lei obedece ao disposto em lei anterior, mas os efeitos produzidos após a entrada em vigor desta Lei subordinam-se aos seus preceitos.
Quanto à validade, Lei nova não se aplica para os negócios e atos ocorridos antes da sua vigência a redação é clara nesse sentido, entretanto, a lei nova já rege os efeitos produzidos após a sua entrada em vigor.
DA ATUAÇÃO DA DEFENSORIA PÚBLICA NA DEFESA DO SUPERENDIVIDADO
Antes de tudo, impende esclarecer que à Defensoria Pública, consoante a Constituição Federal de 1988, cabe a assistência jurídica integral e gratuita às pessoas necessitadas (art. 5º, LXXIV, c/c art. 134).
Não se deve mais limitar o alcance da norma constitucional da Defensoria Pública a uma atuação meramente individualista e judiciária, vertentes tradicionais e históricas da instituição. É evidente que essas funções ainda sobrevivem e continuarão sendo exercidas no cotidiano, não apenas da Defensoria Pública.
Há pouco, a Defensoria Pública era não mera instituição estatal para patrocínio de pessoas que não podiam pagar por um advogado, de modo a prestar assistência judiciária individual gratuita nas demandas sociais mais comuns.
Atualmente são debatidos novos institutos jurídicos, como custos vulnerabilis – intervenção constitucional como guardiã dos vulneráveis.
Neste contexto, a cidadania e a dignidade da pessoa humana são fundamentos do Estado Democrático de Direito no qual se constitui a República Federativa do Brasil.
A Constituição Federal também estabelece que os objetivos fundamentais dessa República são a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, a erradicação da pobreza e da marginalização, a redução das desigualdades sociais e regionais e a promoção do bem de todos, sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação
Direitos do Consumidor são as normas que devem proteger os consumidores nas relações de consumo que mantiverem em seu cotidiano.
No Brasil a Lei nº 8.078, de 11.09.1990, conhecida como Código de Defesa do Consumidor, Título I – Dos Direitos do Consumidor, esclarece que o Código estabelece normas de ordem pública e de interesse social de proteção e defesa do consumidor a partir do que determinas as normas constitucionais dos artigos 5º, XXXII, 170, V e artigo 48 das Disposições Transitórias.
O caput do artigo 5º da Constituição Federal determina que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, á segurança e à propriedade, nos termos que seguem.
O inciso XXXII, por sua vez, determina que o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor.
O artigo 170, da Constituição Federal estabelece que a ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os princípios da soberania nacional, da propriedade privada, da função social da propriedade, da livre concorrência e da defesa do consumidor.
Nesta seara, a Defensoria Pública é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe, como expressão e instrumento do regime democrático, fundamentalmente, a orientação jurídica, a promoção dos direitos humanos e a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos necessitados, assim considerados na forma do inciso LXXIV do art. 5º da Constituição Federal.
A Lei Orgânica Nacional da Defensoria Pública nº 80/1994, em seu artigo 3º que são objetivos da Defensoria Pública dentre outros, a primazia da dignidade da pessoa humana e a redução das desigualdades sociais.
Consta ainda que são funções institucionais da Defensoria Pública, dentre outras, a previsão de exercer a defesa dos direitos e interesses individuais, difusos, coletivos e individuais homogêneos e dos direitos do consumidor, na forma do inciso LXXIV do art. 5º da Constituição Federal e ainda exercer a defesa dos interesses individuais e coletivos da criança e do adolescente, do idoso, da pessoa portadora de necessidades especiais, da mulher vítima de violência doméstica e familiar e de outros grupos sociais vulneráveis que mereçam proteção especial do Estado, neste particular se enquandrando o superendividado.
Desigualdade social e acesso à Justiça por poucas pessoas não condizem com o Estado Democrático de Direito e são combatidos pela possibilidade da Defensoria Pública suprir a falta de serviços estatais de assistência judiciária.
Nessa perspectiva, a Defensoria Pública por missão constitucional, é encarregada de velar pelas relações de consumo e proteger o consumidor superendividado, tanto na seara individual quanto na coletiva.
Portanto, a Defensoria Pública de modo algum visa garantir apenas o direito de acesso à assistência judiciária. Almeja ainda contribuir, na medida do possível, para a emancipação social, inclusive por meio de atuação extra-judicial.
E no conexto da aprovação da lei do superendividamento a Defensoria Pública, terá uma papel de coadjuvante no auxílio dos consumidores que se encontram na condição de superendividados.
REFERÊNCIAS
https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2021/07/02/sancionada-com-vetos-lei-que-define-regras-para-prevenir-superendividamento
GAGLIANO, Pablo Stolze; OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias de. Comentários à Lei do Superendividamento (Lei nº 14.181, de 1º de julho de 2021) e o princípio do crédito responsável. Uma primeira análise. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 26, n. 6575, 2 jul. 2021. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/91675. Acesso em: 20 jul. 2021.
https://www.migalhas.com.br/depeso/348562/inovacoes-implementadas-pela-lei-14-181-21
Uma análise da Lei do Superendividamento Lei nº14.181, de 01/07/2021 Uma análise da Lei do Superendividamento . Lei nº14.181, de 01/07/2021 Olga Câmara Publicado em 07/2021. Elaborado em 07/2021.
https://www.conjur.com.br/2021-jul-15/camparim-lei-superendividamento-consumo-irresponsavel
https://g1.globo.com/economia/noticia/2021/07/01/percentual-de-familias-com-dividas-chega-a-70percent-e-brasil-atinge-o-maior-nivel-em-11-anos-aponta-cnc.ghtml
MARQUES, Claudia Lima; BENJAMIN, Antonio Herman V.; MIRAGEM, Bruno. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor. 3ª ed. São Paulo: RT, 2010, p. 1.051.
https://www.dizerodireito.com.br/2021/07/breves-comentarios-lei-do.html
Vieira, Camila Freitas. A tutela do consumidor superendividado e o mínimo existencial / Camila Freitas Vieira. – Niterói, 2016.
Inovações implementadas pela lei 14.181/21: o processo de repactuação de dívidas e o processo por superendividamento, Heitor José Fidelis Almeida de Souza
[1] https://g1.globo.com/economia/noticia/2021/07/01/percentual-de-familias-com-dividas-chega-a-70percent-e-brasil-atinge-o-maior-nivel-em-11-anos-aponta-cnc.ghtml
[2] https://blog.bcredi.com.br/depressao-por-causa-de-dividas-pode-ter-solucao/
[3] MARQUES, Cláudia Lima. Sugestões para uma lei sobre o tratamento do superendividamento de pessoas físicas em contratos de consumo: proposições com base em pesquisa empírica de 100 casos no Rio Grande do Sul. Revista de Direito do Consumidor. 55/11-52, p. 12, São Paulo, RT, jul-set. 2005