4 O “CARONA” NA ATA DE REGISTRO DE PREÇO
4.1 CONCEITO, CONDIÇÕES E PROCEDIMENTO PARA ADESÃO
Como já devidamente delineado ao longo do presente estudo, o SRP permite que a Administração Pública realize compras e contrate serviços de maneira simplificada e eficiente.
Uma das possibilidades que o SRP traz à Administração Pública é que órgãos e entidades da AP que não participaram do procedimento licitatório, após consulta ao órgão gerenciador e a fornecedor registrado, demonstrando-se a devida vantagem da adesão, possam pegar “carona” na ata do órgão licitante, podendo assim firmar contratos com os fornecedores pelos preços e condições estabelecidos na ata.
O Decreto 7.892/2013 trouxe como inovação em seu art. 2º, inciso V, a definição para órgão não participante (carona), a seguir:
Art. 2º Para os efeitos deste Decreto, são adotadas as seguintes definições: (...)
a) órgão não participante
b) órgão ou entidade da administração pública que, não tendo participado dos procedimentos iniciais da licitação, atendidos os requisitos desta norma, faz adesão à ata de registro de preços.
Marçal Justen Filho[47] define a figura do “carona” da seguinte maneira:
Em síntese, ‘carona’ consiste na contratação fundada num sistema de registro de preços em vigor, mas envolvendo uma entidade estatal dele não participante originalmente, com a peculiaridade de que os quantitativos contratados não serão computados para o exaurimento do limite máximo. (...)
Para Niebuhr[48], “Adesão à ata de registro de preços, apelidada de carona, é o procedimento por meio do qual um órgão ou entidade que não tenha participado da licitação que deu origem à ata de registro de preços adere a ela e vale-se dela como se sua fosse.
A adesão à ata está atualmente regulamentada no artigo 22 do Decreto 7.892/13, in verbis:
Art. 22. Desde que devidamente justificada a vantagem, a ata de registro de preços, durante sua vigência, poderá ser utilizada por qualquer órgão ou entidade da administração pública federal que não tenha participado do certame licitatório, mediante anuência do órgão gerenciador.
§ 1º Os órgãos e entidades que não participaram do registro de preços, quando desejarem fazer uso da ata de registro de preços, deverão consultar o órgão gerenciador da ata para manifestação sobre a possibilidade de adesão.
§ 2º Caberá ao fornecedor beneficiário da ata de registro de preços, observadas as condições nela estabelecidas, optar pela aceitação ou não do fornecimento decorrente de adesão, desde que não prejudique as obrigações presentes e futuras decorrentes da ata, assumidas com o órgão gerenciador e órgãos participantes.
§ 3º As aquisições ou contratações adicionais a que se refere este artigo não poderão exceder, por órgão ou entidade, a cem por cento dos quantitativos dos itens do instrumento convocatório e registrados na ata de registro de preços para o órgão gerenciador e órgãos participantes.
§ 4º O instrumento convocatório deverá prever que o quantitativo decorrente das adesões à ata de registro de preços não poderá exceder, na totalidade, ao quíntuplo do quantitativo de cada item registrado na ata de registro de preços para o órgão gerenciador e órgãos participantes, independente do número de órgãos não participantes que aderirem.
§ 6º Após a autorização do órgão gerenciador, o órgão não participante deverá efetivar a aquisição ou contratação solicitada em até noventa dias, observado o prazo de vigência da ata.
§ 7º Compete ao órgão não participante os atos relativos à cobrança do cumprimento pelo fornecedor das obrigações contratualmente assumidas e a aplicação, observada a ampla defesa e o contraditório, de eventuais penalidades decorrentes do descumprimento de cláusulas contratuais, em relação às suas próprias contratações, informando as ocorrências ao órgão gerenciador.
§ 8º É vedada aos órgãos e entidades da administração pública federal a adesão a ata de registro de preços gerenciada por órgão ou entidade municipal, distrital ou estadual.
§ 9º É facultada aos órgãos ou entidades municipais, distritais ou estaduais a adesão a ata de registro de preços da Administração Pública Federal.
Em análise ao dispositivo acima, infere-se que uma das características mais importantes para a adesão a ata é que o órgão interessado tem o dever de demonstrar a vantagem da carona sobre a realização de um novo processo licitatório, tendo em vista que se tal vantagem não for devidamente justificada, a adesão à ata não será possível.
Nesse sentido, Jacoby Fernandes[49] afirma:
Uma das vigas mestras da possibilidade de ser carona em outro processo licitatório é o dever do órgão interessado em demonstrar a vantagem da adesão sobre o sistema convencional. Logo, aderir como carona implica necessariamente em uma vantagem ainda superior a um novo processo. Essa vantagem se confirma por pesquisa e pode até mesmo ser considerada, quando em igualdade de condições entre o preço registrado e o de mercado, pelo custo indireto da licitação.
Ademais, também é fundamental que o órgão gerenciador seja consultado e anua à adesão, além do próprio fornecedor que também deverá ser consultado e poderá aceitar, ou não, contratar com o órgão interessado.
Outrossim, ao contrário do decreto regulamentador anterior (Decreto 3.931/2001) que só tratava do instituto do “carona” em um único artigo, por sua vez, o art. 8º [50], com três parágrafos, o Decreto 7.892/2013 dedicou o capítulo IX, com um artigo e nove parágrafos, para a “utilização da ata de registro de preços por órgão ou entidades não participantes”, tendo o cuidado de regulamentar questões que geravam polêmica na utilização do “carona” em razão da omissão da norma.
Em relação ao quantitativo, a única restrição trazida pelo Decreto anterior revogado era o limite de cem por cento dos quantitativos registrados na Ata de Registro de Preços para as aquisições ou contratações por órgãos não participantes (art. 8º, § 3º do Decreto 3.139/01), que por sua vez foi mantida pelo §3º do art. 22 do novo Decreto, conforme demonstrado alhures.
Vale destacar que o art. 22, § 4º, do novo decreto traz inovações quanto a regulamentação do quantitativo decorrente das adesões à ata de registro de preços que “não poderá exceder, na totalidade, ao quíntuplo do quantitativo de cada item registrado na ata de registro de preços para o órgão gerenciador e órgãos participantes”.
Neste ponto, frisa-se que o Decreto Federal nº 3.931/01 regovado permitia que órgãos ou entidades que não haviam participado do registro de preços utilizassem a ARP, mediante prévia consulta ao órgão gerenciador e após aceitação do fornecedor, podendo contratar até 100% (cem por cento) do quantitativo consignado na Ata.
No entanto, não previa qualquer limite quanto ao número de adesões que seriam permitidas fazer à ata, de modo que pela ausência de regulamentação, o número de adesões poderia ser, em tese, ilimitado.
Tal situação gerou severas críticas por parte da doutrina contrária à utilização da figura do carona, situação que inclusive, levou o TCU a se manifestar através do Acórdão nº 1.467/2007[51], posicionando-se no sentido de limitar essas contratações:
ACORDAM os Ministros do Tribunal de Contas da União, reunidos em Sessão Plenária, ante das razões expostas pelo Relator, em:
(...)
9.2. determinar ao Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão que: (...)
9.2.2. adote providências com vistas à reavaliação das regras atualmente estabelecidas para o registro de preços no Decreto n.º 3.931/2001, de forma a estabelecer limites para a adesão a registros de preços realizados por outros órgãos e entidades, visando preservar os princípios da competição, da igualdade de condições entre os licitantes e da busca da maior vantagem para a Administração Pública, tendo em vista que as regras atuais permitem a indesejável situação de adesão ilimitada a atas em vigor, desvirtuando as finalidades buscadas por essa sistemática, tal como a hipótese mencionada no Relatório e Voto que fundamentam este Acórdão;
Não obstante a manifestação do TCU, nada foi feito pelo poder executivo que sequer se deu ao trabalho de rever a legislação em relação a mudança da norma.
Sendo assim, mais uma vez, o TCU se manifestou através o Acórdão nº 1.233/201252 no sentido de limitar as contratações, orientando que os órgãos ou entidades, ao realizarem licitação com finalidade de criar Ata de Registro de Preços, “em atenção ao princípio da vinculação ao instrumento convocatório (Lei 8.666/1993, art. 3º, caput), devem gerenciar a ata de forma que a soma dos quantitativos contratados em todos os contratos derivados da ata não supere o quantitativo máximo previsto no edital”.
Portanto, o art. 22, §4º, do Novo Decreto regulamentador do SRP, apesar de não seguir exatamente as mesmas bases do entendimento do TCU, tratou de limitar o quantitativo possível para adesão a ata, consagrando o limite que já existia no art. 102, §3º do decreto 7.581/2011 que regulamenta o Regime Diferenciado de Contratações Públicas - RDC, de que trata a Lei nº 12.462, de 5 de agosto de 2011, in verbis:
Art. 102. O órgão ou entidade pública responsável pela execução das obras ou serviços contemplados no art. 2º que não tenha participado do certame licitatório, poderá aderir à ata de registro de preços, respeitado o seu prazo de vigência.
(...)
§ 3º A quantidade global de bens ou serviços que poderão ser contratados pelos órgãos aderentes não poderá ser superior a cinco vezes a quantidade prevista para cada item.
Com efeito, o Decreto 7.892/2013 também inovou no que tange a vedação aos órgãos e entidades da administração pública federal aderirem a ata de registro de preços gerenciada por órgão ou entidade municipal, distrital ou estadual (art. 22, §8º), que por sua vez já era prevista na Orientação Normativa nº 21/2009 da Advocacia Geral da União, que não permitia que a administração federal aderisse à ARP de ente estadual, distrital ou municipal.
Outra situação inovadora também é a faculdade conferida aos órgãos ou entidades municipais, distritais ou estaduais de aderirem a ata de registro de preços da Administração Pública Federal, prevista no art. 22, §9º do Decreto 7.892/2013.
Por fim, no que se refere ao procedimento de adesão à ata, deve haver previsão, já no edital, da estimativa de quantidades a serem adquiridas por órgãos não participantes (art. 9º, III do Decreto nº 7.892/13).
Assim, cumprida essa condição, o órgão não participante, interessado em aderir à ARP, durante a vigência da ata, verificada a compatibilidade do objeto com suas necessidades, bem como devidamente justificada a vantajosidade da adesão, solicitará a anuência para a adesão ao órgão gerenciador, que terá que ter admitido a possibilidade de adesão já no edital.
Autorizada a adesão, indicará os fornecedores ao “carona”, e os fornecedores, por sua vez, poderão aceitar ou não a contratação decorrente da adesão (art. 22, § 1º e § 2º do Decreto nº 7.892/13).
4.2 O “CARONA” FRENTE AOS PRINCÍPIOS ADMINISTRATIVOS CONSTITUCIONAIS E LICITATÓRIOS
Alguns doutrinadores se posicionam contrariamente à figura do “carona”, defendendo que tal instituto constitui infração aos princípios administrativos constitucionais e licitatórios.
Toshio Mukai[53], crítico do instituto, argumenta que o “carona” está na verdade adquirindo bens ou serviços sem ter participado de qualquer licitação, violando o inciso XXI do art. 37 da Constituição Federal.
Para o Autor:
na verdade, não pode existir essa figura estranha, denominada de ‘carona’, porque, além do mais, é crime dispensar ou inexigir licitação fora das hipóteses previstas em lei, ou deixar de observar as formalidades pertinentes à dispensa ou à inexigibilidade.
(...)
O órgão gestor que permitir que o “carona” se utilize da ata de registro de preços, porque este não participou da licitação, comete o crime previsto no art. 89 da Lei nº 8.666/93.”.
Dessa forma, para Toshio Mukai, o “carona” no registro de preços simplesmente não pode existir.
A realidade é que os críticos à adesão de ata no SRP apontam uma série de outros princípios constitucionais administrativos, dentre os quais destacam-se os princípios da isonomia, da moralidade, da vinculação ao edital, princípio da legalidade, o princípio da impessoalidade e o princípio da economicidade.
Por outro lado, para Niebuhr[54], “o ‘carona’ não vulnera a legalidade em razão do que ele implica ou dispõe, mas porque foi criado de modo inválido, incompatível com o inciso IV do artigo 84 da Constituição Federal”. O Autor explica que “a forma como o ‘carona’ foi criado, valendo-se de mero regulamento administrativo, sem previsão legal, é que fere o princípio da legalidade, não o seu conteúdo ou aquilo que o ‘carona‟ em si representa”.
Jorge Ulisses Jacoby Fernades[55] defende a utilização do “carona”:
O carona no processo de licitação é um órgão que antes de proceder à contratação direta sem licitação ou a licitação verifica já possuir, em outro órgão público, da mesma esfera ou de outra, o produto desejado em condições de vantagem de oferta sobre o mercado já comprovadas. Permite-se ao carona que diante da prévia licitação do objeto semelhante por outros órgãos, com acatamento das mesmas regras que aplicaria em seu procedimento, reduzir os custos operacionais de uma ação seletiva. É precisamente nesse ponto que são olvidados pressupostos fundamentais da licitação enquanto processo: a finalidade não é servir aos licitantes, mas ao interesse público; a observância da isonomia não é para distribuir demandas uniformemente entre os fornecedores, mas para ampliar a competição visando a busca de proposta mais vantajosa.
Como se vê, a figura do “carona” ainda é muito polêmica no âmbito do Direito Público, de modo que uma análise principiológica mais profunda é fundamental para melhor compreensão do tema.
Com efeito, a Constituição Federal, em seu artigo 37, caput, consagra os princípios norteadores da Administração Pública:
Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência.
Já os princípios gerais das licitações públicas são elencados no artigo 3º da Lei nº 8.666/93:
Art. 3º A licitação destina-se a garantir a observância do princípio constitucional da isonomia, a seleção da proposta mais vantajosa para a administração e a promoção do desenvolvimento nacional sustentável e será processada e julgada em estrita conformidade com os princípios básicos da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da igualdade, da publicidade, da probidade administrativa, da vinculação ao instrumento convocatório, do julgamento objetivo e dos que lhes são correlatos.
Diante disso, passamos a análise do instituto do “carona” frente aos princípios constitucionais e licitatórios que seriam violados em razão da utilização desse sistema, senão vejamos.
4.2.1 Princípio da Legalidade
O Princípio da Legalidade é um dos princípios mais importantes da Administração Pública.
De acordo com Hely Lopes Meirelles[56] este princípio pode ser definido da seguinte maneira:
A legalidade, como princípio da administração, significa que o administrador público está, em toda a sua atividade funcional, sujeito aos mandamentos da lei e às exigências do bem comum, e deles não se pode afastar ou desviar, sob pena de praticar ato inválido e expor-se a responsabilidade disciplinar, civil, criminal, conforme o caso.
Como se vê, segundo este princípio, todo e qualquer ato que emane da Administração Pública deve ter prévia determinação legal, sob pena de ser ato ilegítimo.
No que se refere à figura do “carona”, segundo parte da doutrina, este instituto fere o princípio da legalidade, tendo em vista que sua regulamentação aconteceu através de decreto, in casu, através do Decreto nº 7.892/13, artigo 22.
Ocorre que, segundo o entendimento de parte da doutrina, tal regulamentação não possui amparo legal, visto que deveria estar prevista em lei em sentido formal, através de ato proveniente do poder Legislativo, e não ser regulamentada por meio de decreto, que é ato privativo do Chefe do poder executivo.
De acordo com o entendimento de Niebuhr[57]:
(...) é forçoso afirmar que o Presidente da República, ao criar e manter a figura da adesão à ata de registro de preços sem qualquer amparo legal, excedeu as suas competências constitucionais (inciso IV do artigo 84 da Constituição Federal), violando abertamente o princípio da legalidade.
Assim também entende Marçal Justen Filho[58]:
O Direito brasileiro não autoriza que uma contratação seja realizada com base em licitação promovida para outros fins – nem mesmo mediante a invocação da vantajosidade das condições originais. Portanto, a instituição da figura do carona dependeria de uma previsão legislativa, a qual não existe.
Nesse sentido ainda se posiciona Paulo Sérgio Monteiro Reis[59]: “Nosso posicionamento pessoal é no sentido de que o ‘carona’ só poderia ser instituído na ordem legal por expressa disposição da lei”.
Por outro lado, tem-se a argumentação de Jacoby Fernandes (2009, p. 672) no sentido de que a instituição do “carona” não fere o princípio da legalidade, pois o autor ensina que:
Depois de ressalvar os casos de contratação direta e impor, como regra, o princípio da licitação, a Constituição Federal define os limites desse procedimento, mas em nenhum momento obriga a vinculação de cada contrato a uma só licitação ou, ao revés, de uma licitação para cada contrato.
(...)
Desse modo, é juridicamente possível estender a proposta mais vantajosa conquistada pela Administração Pública como amparo a outros contratos.
Sérgio Veríssimo de Oliveira Filho[60], também defende que o “carona” não afronta o princípio da legalidade:
porque a própria Lei n. 8.666/93 conferiu a cada ente federativo a prerrogativa de regulamentar o seu SRP de acordo com as peculiaridades regionais ou locais. E a prática do carona, embora não tenha sido prevista na Lei geral, decorre da dinâmica do procedimento licitatório e da execução da ata de registro de preços, razão pela qual não pode ser considerada inovação indevida por parte do Chefe de Executivo.
Diante disso, demonstra-se há grande divergência doutrina quanto a legalidade da figura do “carona” previsto no SRP, tendo em vista que parte da doutrina acredita que o instituto seria ilegal, posto que dependeria de previsão legislativa, o que não existe já que é regulamentada por decreto, enquanto outra parte entende que em nenhum momento a Lei obriga a vinculação de cada contrato a uma só licitação ou, ao revés, de uma licitação para cada contrato, bem como que a prática do carona, apesar de não ter sido prevista na Lei geral, decorre da dinâmica do procedimento licitatório e da execução da ata de registro de preços, de modo que não poderia ser considerada inovação indevida por parte do Chefe de Executivo.
4.2.2 Princípio da Impessoalidade e da Moralidade
De acordo com Clóvis Martins Ferreira[61]:
O princípio da impessoalidade é intrínseco ao Estado moderno, no sentido de livrar do poder qualquer traço absolutista. O poder é do povo e não pode ser exercido ou considerado como patrimônio do particular que o representa. O seu exercício não pode sofrer influências de ordem subjetiva do gestor, pois não se busca agradá-lo e, sim, a finalidade pública, o interesse público que deve sempre ser perseguido. Por tal razão são execrados por esse princípio qualquer favorecimento ou perseguição.
Nessa mesma linha, o princípio da moralidade não trata da moral da pessoa física, mas sim do proceder com retidão e com a noção de que o público deve ter tratamento cuidadoso, pois o patrimônio envolvido é de toda a comunidade e, por tal razão, não pode haver desperdício ou gestão sem eficiência.
Nesse sentido, observa-se que tais princípios possuem o dever de garantir aos licitantes o tratamento igualitário.
Segundo Hely Lopes Meirelles[62], o princípio da impessoalidade:
Nada mais é que o clássico princípio da finalidade, o qual impõe ao administrador público que só pratique o ato para seu fim legal. E o fim legal é unicamente aquele que a norma de Direito indica expressa ou virtualmente como objetivo do ato, de forma impessoal.
No que se refere à aplicação dos princípios da impessoalidade e moralidade em relação à figura do carona, Niebuhr[63] entende que:
o carona, no mínimo, expõe os princípios da moralidade e da impessoalidade a risco excessivo e despropositado, abrindo as portas da Administração a todo tipo de lobby, tráfico de influência e favorecimento pessoal.
O carona é o júbilo dos lobistas, do tráfico de influência e da corrupção, especialmente num país como o nosso, com instituições e meios de controle tão frágeis. Os lobistas e os corruptores não precisam mais propor o direcionamento de licitação; basta proporem o carona e tudo está resolvido.
Dessa forma, entende-se a adesão à ata não fere os princípios em si, mas que os tornam vulneráveis, vez que a figura do “carona” abre portas para o oferecimento de benefícios do fornecedor para o administrador.
Em contrapartida, Jacoby Fernandes[64] alerta para o fato de que a licitação, por si só, não inibe favoritismos ou contratações superfaturadas:
não é o sistema de licitação um fim em si mesmo; que esse procedimento não tem o condão de tornar o processo de seleção imune a irregularidades; que é um procedimento extremamente oneroso e muitas vezes o custo do desenvolvimento do processo é maior que a vantagem conquistada.
(...)
que nenhum sistema está imune a desvios de finalidade, mas essa possibilidade não pode impedir o desenvolvimento de processos de modernização.
Na mesma linha, disserta Clóvis Martins Ferreira[65]:
No caso do SRP, o decreto não deixou ao alvedrio do gestor sua adesão ou não, é estipulado critérios para resguardar o interesse público, qual seja, deve restar demonstrado a vantagem na adesão. Considerando que o procedimento para tanto deverá ser fundamentado, pelos sistemas de controle interno e externo, poderão ser punidos os gestores que não pautem suas ações de acordo com tais princípios. O carona não ofende os princípios da moralidade e impessoalidade e os riscos à corrupção são os mesmos dos demais procedimentos burocráticos da Administração. A vantagem na adesão deverá restar demonstrada nos autos, o que sujeita a controle os atos que fugirem desse padrão.
Diante disso, observa-se que ainda que haja o entendimento de alguns doutrinadores no sentido de que a figura do “carona” expõe os princípios da impessoalidade e da moralidade à riscos excessivos de oferecimento de propina por parte dos fornecedores à AP, por outro lado, existe o entendimento de que tais riscos são inerentes ao próprio procedimento licitatório, tendo em vista que de um modo geral, os atos da administração são suscetíveis ao risco de corrupção.
4.2.3 Princípio da Isonomia ou Igualdade
O princípio da isonomia ou igualdade está consagrado no caput do art. 5º da Constituição Federal brasileira quando se afirma que todos são iguais perante a lei.
Tal assertiva quer dizer que todos devem ser tratados igualmente quando iguais e desigualmente na medida de suas desigualdades.
No que se refere à licitação, vale dizer que tal princípio significa que a Administração deve oferecer a mesma oportunidade a todos os particulares que com ela almejem contratar na busca da proposta mais vantajosa.
Desta feita não é permitida qualquer diferenciação que implique favorecimentos ou prejudique a competitividade do certame, nesse sentido a lição de Mello[66]:
O princípio da igualdade implica o dever não apenas de tratar isonomicamente todos os que afluírem ao certame, mas também o de ensejar oportunidade de disputá-lo a quaisquer interessados que, desejando dele participar, podem oferecer as indispensáveis condições de garantia.
De acordo com o entendimento de Niebuhr[67] a adesão à ata desobedeceria este princípio porque pressupõe contrato sem licitação, não se enquadrando nas hipóteses de inexigibilidade e de dispensa, o que por sua vez fere a igualdade de condições de quem quer firmar contrato com a Administração Pública, tendo em vista que não proporciona oportunidade aos demais licitantes interessados para o fornecimento dos novos quantitativos oriundos da “carona”.
Conforme ensina Justen Filho[68]:
a contratação indiscriminada e ilimitada com um particular, simplesmente por haver obtido o registro de preços, configura infração ao princípio da isonomia”, pois não assegura “a todos os demais fornecedores tratamento equivalente, eis que o titular do preço registrado não formulara proposta para realizar a contratação que se consumou.
Em contrapartida, Jacoby Fernandes[69], que é um dos grandes defensores da figura do “carona”, entende que não há violação ao princípio da isonomia em razão da adoção do “carona”, pois já houve uma prévia licitação realizada pelo órgão gerenciador na qual já estão comprovadas as condições de vantagem para a Administração Pública, afirmando ainda que “(...) a finalidade não é servir aos licitantes, mas ao interesse público; a observância da isonomia não é para distribuir demandas uniformemente entre fornecedores, mas para ampliar a competição visando a busca de proposta mais vantajosa”.
4.2.4 Princípio da Vinculação ao Instrumento Convocatório
Segundo este princípio a Administração se encontra estritamente vinculada ao instrumento convocatório, com base no disposto nos arts. 3º e 41 da Lei Geral de Licitações.
O cumprimento deste princípio é fundamental para o desenvolvimento dos processos licitatórios e SRP, tendo em vista que é com base nas condições e termos previstos no instrumento convocatório que os licitantes interessados formularão propostas.
Niebuhr[70] defende que “a adesão à ata de registro de preços viola abertamente o princípio da vinculação ao edital porquanto ele dá azo à contratação não prevista no edital”. Segundo o Autor, o “carona” fere este princípio “dado que dele decorre a assinatura de ata de registro de preços e contratação fora do preceituado e previsto no edital de licitação pública.
Embora o Autor tenha tal entendimento, o mesmo não merece prosperar, porquanto o próprio Decreto nº 7.892/13 dispõe que deve constar no edital de licitação a estimativa de quantidades a serem adquiridas pelos “caronas”, e isso no caso de o órgão gerenciador admitir adesões à Ata:
Art. 9. O edital de licitação para registro de preços observará o disposto nas Leis nº 8.666, de 1993, e nº 10.520, de 2002, e contemplará, no mínimo:
(...)
III - estimativa de quantidades a serem adquiridas por órgãos não participantes, observado o disposto no § 4º do art. 22, no caso de o órgão gerenciador admitir adesões;
Além disso, o § 4º, do artigo 22, do Decreto nº 7.892/13, dispõe que:
o instrumento convocatório deverá prever que o quantitativo decorrente das adesões à ata de registro de preços não poderá exceder, na totalidade, ao quíntuplo do quantitativo de cada item registrado na ata de registro de preços para o órgão gerenciador e órgãos participantes, independente do número de órgãos não participantes que aderirem.
Diante disso, resta superada a questão da infração ao princípio da vinculação ao instrumento convocatório, não havendo que se falar em afronta a este, vez que o próprio Decreto regulamentador do “carona” dispõe sobre sua previsão no edital.
4.2.5 Princípio da Economicidade
De acordo com o princípio da Economicidade, a AP sempre deve buscar o menor preço e as melhores condições de contrato, objetivando a contratação da proposta mais vantajosa.
Conforme Niebuhr (2013), quem compra mais paga menos e, com as adesões à ata de registro de preços, não há negociação de valores, não havendo assim a possibilidade de obtenção de melhores preços.
Nessa linha, com a adesão a ata, os valores pagos são referentes às quantidades de contratações inicialmente previstas, nos preços registrados na ARP, de modo que a AP deixa de ganhar na economia de escala que seria possível em razão do quantitativo ao final das adesões que, como se sabe, pode ser até cinco vezes maior que o quantitativo inicial da ata.
Entretanto, Jacoby Fernandes[71] defende:
(...) que depoimentos colhidos de servidores integrantes de órgãos que sistematicamente têm sido carona em registro de preços revelam inclusive que o procedimento serve para desestimular a oferta de preços elevados nas licitações convencionais. De fato, se o órgão decide fazer uma licitação porque não tem certeza de que o Sistema de Registro de Preços de outro órgão é, de fato, a proposta mais vantajosa, a hipótese de poder ser carona inibe a pretensão de sobrevalorização de propostas.
4.2.6 Princípio da Eficiência
O princípio da eficiência se encontra no caput do art. 37 da Constituição Federal, consagrando-se na legislação infraconstitucional através do art. 2º da Lei 9.784, de 29 de janeiro de 1999.
Segundo tal princípio, a atuação do gestor deve se pautar não apenas na legalidade, mas também com excelência e presteza na busca das melhores práticas para alcançar os melhores resultados para a Administração.
De acordo com Di Pietro[72], este princípio tem dois aspectos, um sobre a atuação do agente, do qual se espera a melhor atuação no desenvolvimento de suas atribuições legais e, outro, que se refere à organização e funcionamento da Administração Pública, a fim de se alcançar a máxima eficiência na prestação do serviço público.
Pode-se afirmar, então que o SRP é a consagração do princípio da eficiência, tendo em vista que a Administração Pública realiza um procedimento licitatório que poderá ser aproveitado por outros órgãos, respeitados os limites de quantitativo máximo de contratação, economizando-se assim tempo e, ainda, contribuindo para a redução de gastos públicos.
De acordo com Jacoby Fernandes[73], “o carona no Sistema de Registro de Preços apresenta-se como uma relevante ferramenta (...) consistindo na desnecessidade de repetição de um processo oneroso, lento e desgastante quando já alcançada a proposta mais vantajosa”.
Desse modo, infere-se que com a adesão à ata assinada o carona conhece previamente a qualidade do fornecedor, garantindo-se assim o melhor controle de qualidade possível à Administração.
Diante disso, observa-se que a adesão à ata promove a eficiência e a economicidade na Administração Pública, já que órgãos não participantes do procedimento licitatório poderão se utilizar da mesma ata a realizar contratação.
Portanto, entende-se que a adoção do carona não ofende o princípio da eficiência, ao contrário, o promove, tendo em vista que com a utilização desse instituto a AP evita a repetição de procedimentos licitatórios, o que incorre na economicidade e redução de gastos públicos, além de garantir celeridade às contratações públicas.
4.2.7 Princípio da obrigatoriedade da licitação
O dever de licitar se encontra insculpido no artigo 37, inciso XXI, da Constituição Federal do Brasil.
Sobre a obrigatoriedade de licitar, José Afonso da Silva74 ensina que:
Licitação é um procedimento administrativo destinado a provocar propostas e a escolher proponentes de contratos de execução de obras, serviços, compras ou de alienações do Poder Público. O princípio da licitação significa que essas contratações ficam sujeitas, como regra, ao procedimento de seleção de propostas mais vantajosas para Administração Pública. Constitui um princípio instrumental de realização dos princípios da moralidade administrativa e do tratamento isonômico dos eventuais contratantes com o Poder Público.
A problemática em torno da adesão à ata e este princípio se encontra na existência de entendimentos por diversos doutrinadores de que o procedimento viola dispositivos constitucionais, em especial o dever de licitar.
Marçal Justen Filho75 tem como inválido o procedimento de adesão à ata:
A prática da “carona” é inválida. Frustra o princípio da obrigatoriedade da licitação, configurando dispensa de licitação sem previsão legislativa. Não cabe invocar a existência de uma licitação anterior, eis que tal licitação tinha finalidade e limite definidos no edital.
Dessa forma, para o Autor a figura do carona é inválida, por entender que por meio dela se configura contratação direta, sem licitação.
No entanto, Clóvis Martins Ferreira76 discorda de tal entendimento. Para o Autor:
Discorda-se do entendimento, posto a existência de licitação prévia realizada pelo órgão gerenciador. Como visto, o SRP tem uma dinâmica diferente, onde o fornecedor não tem a garantia da contratação, tão pouco a adjudicação compulsória e o que prevê a Carta Maior é o procedimento licitatório prévio e não a regra de que se deva realizar uma licitação para cada contrato a ser assinado.
Diante disso, entende-se que a figura do carona, não ofende o princípio da obrigatoriedade da licitação, tendo em vista que não se trata de contratação direta, posto que existe procedimento licitatório prévio realizado pelo órgão gerenciador, no qual os licitantes são tratados com isonomia e são obedecidas todas as formalidades.