Transmissão de HIV configura lesão corporal gravíssima

11/09/2021 às 01:54
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O STJ decidiu que o réu que, ciente de sua condição, mantém relação sexual sem a devida proteção com o fim de transmitir doença incurável – HIV – comete os crimes de lesão corporal gravíssima e perigo de contágio venéreo.

NOÇÕES INTRODUTÓRIAS: A (IM)POSSIBILIDADE DE TIPIFICAÇÃO COMO HOMICÍDIO DA TRANSMISSÃO DOLOSA DO VÍRUS HIV

Em todas as decisões a seguir, se analisa a conduta genérica de transmissão do vírus HIV por pessoa que sabia da sua condição de soropositivo. Isso porque não se pode punir o sujeito que desconhece tal fato, por ausência do dolo em virtude da não “consciência” do agente em incorrer nos termos do tipo legal.

O agente, sabendo o agente que era portador do vírus HIV, de pronto se atestava que assumira o risco de produção do resultado “morte” ao colocar a saúde de outrem.

Nos casos em que não sobreveio a morte da vítima – vale ressaltar, a esmagadora maioria – os Tribunais clamavam a aplicação do art. 14, II, do Código Penal, isto é, tipificando a conduta como homicídio tentado, já que o resultado não adveio por circunstâncias alheias à vontade do agente.

Seguindo o conceito-analítico, majoritário da doutrina, crime é toda conduta típica (fato típico), ilícita e culpável, sendo que caso a conduta em exame, se não apresentar um desses elementos, não poderá ser considerada como fato típico e, por conseguinte, não haverá crime.

Define-se conduta, a partir da teoria finalista, como toda ação ou omissão humana consciente e dirigida a determinada finalidade.

O resultado é, pela concepção naturalística, a modificação do mundo exterior promovida pelo comportamento humano voluntário. De um ponto de vista jurídico ou normativo, o resultado é a lesão ou o perigo dela sobre um interesse a ser protegido pela norma penal, isto é, o bem jurídico. É a morte da vítima, no homicídio, ou a deterioração de coisa, no crime de dano, por exemplo. Registre-se que, na tentativa, a ausência de resultado não afeta a tipicidade da ação.

Já a tipicidade, último elemento do fato típico, é a adequação perfeita entre o fato concreto e a respectiva descrição contida na lei.

Homicídio nada mais é do que a eliminação da vida de alguém levada a efeito por outrem, extraindo, neste ponto, que é a vida humana o bem jurídico tutelado por meio da norma penal em estudo, com fulcro no art. 5º, caput, da Constituição Federal.

O homicídio contém somente um verbo e seu objeto: matar alguém, ou seja, retirar a vida de pessoa que não seja o próprio sujeito ativo do delito.

O tipo subjetivo é extraído de análise do animus agendi, que, no caso, converte-se em animus necandi. Trata-se, pois, do dolo de matar, ao qual é necessária a configuração de dois elementos típicos: a consciência e a vontade.

Pelo primeiro deles, a consciência, deverá o agente possuir a previsão de que, praticando o ato, suprimirá a vida de outrem. Tal consciência deverá ser, sobretudo, atual, presente no momento da ação. É insuficiente a potencial consciência das circunstâncias objetivas do tipo, já que nesta se destrói a linha divisória entre dolo e culpa.

A consciência e a vontade, que representam a essência do dolo, também devem estar presentes no dolo eventual. Para que este se configure é insuficiente a mera ciência da probabilidade do resultado morte ou a atuação consciente da possibilidade concreta da produção desse resultado, como sustentam os defensores da teoria da probabilidade. É indispensável determinada relação de vontade entre o resultado e o agente, e é exatamente esse elemento volitivo que distingue o dolo da culpa.

DA RESPONSABILIDADE PENAL PELA TRANSMISSÃO DO VÍRUS  

Depois de instaurada a controvérsia sobre qual delito responde aquele que transmite a AIDS – se por perigo de contágio de moléstia grave ou de lesão corporal de natureza gravíssima – a Jurisprudência já teve a oportunidade de se manifestar em alguns casos pontuais.
 

RECURSO EM HABEAS CORPUS. CRIMES DE LESÃO CORPORAL GRAVÍSSIMA E PERIGO DE CONTÁGIO VENÉREO (ARTS. 129, § 2º, II, C/C O 130, os dois do Código Penal). (…) 

3. A denúncia imputa ao recorrente, na qualidade de parceiro amoroso (namorado), no período de 27 de março de 2012 até aproximadamente junho do mesmo ano, na condição de portador do vírus HIV e ciente de tal condição de saúde, haver mantido relações sexuais com a vítima, sem a devida proteção – preservativo -, o que acarretou a transmissão da doença incurável.

4. A imputação é direta, não se podendo negar a existência de lastro probatório mínimo e firme que evidencie o nexo causal, a conduta típica imputada e a existência de elementos indicativos de que o ora recorrente é seu autor. Há, portanto, elementos bastantes para a instauração da ação penal, com a suficiente descrição da conduta delituosa relativa ao crime imputado, extraindo-se da narrativa dos fatos a perfeita compreensão da acusação. (STJ – RHC: 58563 RJ 2015/0086590-7, Relator: Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, Data de Julgamento: 23/08/2016, T6 – SEXTA TURMA, Data de Publicação: DJe 08/09/2016)

 

TRANSMISSÃO DOLOSA: LESÃO CORPORAL GRAVÍSSIMA

A lesão corporal gravíssima pela contração de enfermidade incurável vem tipificada, em nosso Código Penal, no art. 129, § 2°, inciso II, que dispõe:

Art. 129. Ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem:

Pena - detenção, de três meses a um ano.

[...]

§ 2° Se resulta:

[...]

II - enfermidade incurável;

Em termos gerais, pode-se conceituar lesão corporal a ofensa à integridade corporal ou saúde de outrem – e desde que não haja dolo de matar pelo agente. É, pois, a alteração prejudicial – anatômica ou funcional, física ou psíquica, local ou generalizada – produzida, por qualquer meio no organismo alheio.

O tipo objetivo consiste em ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem. No estudo em tela, configurar-se-ia a lesão à saúde, esta entendida como a alteração de funções fisiológicas do organismo ou perturbação psíquica. Já o tipo subjetivo é o dolo, consistente na vontade livre e consciente de ofender a integridade física ou saúde de outrem (animus laedendi), admitindo-se o dolo eventual.

A tentativa, segundo a doutrina, é plenamente possível, inclusive na lesão corporal de natureza gravíssima. Cabe neste ponto fazer uma ressalva: caso haja dúvida quanto ao dolo do agente ou mesmo quanto à idoneidade do meio empregado, a solução deverá invariavelmente beneficiar o réu, respondendo pelo crime menos grave. É a extensão do raciocínio utilizado no item a respeito da ausência de nexo de causalidade no crime de homicídio, que decorre diretamente do princípio neutralize dubio pro réu.

O crime de lesão corporal gravíssima distingue-se do artigo 132 do Código Penal (perigo para a vida ou saúde de outrem). Neste último o agente expõe a perigo a vida ou a saúde alheia, mas não quer a superveniência do evento lesivo, enquanto na lesão corporal visa o sujeito ativo à efetiva perturbação da integridade corporal ou da saúde de outrem.

Por fim, no que tange à lesão corporal gravíssima – nomenclatura criada pela doutrina e jurisprudência, se configura nos casos elencados no § 2° do art. 129, sendo um deles a contração de enfermidade incurável. Entende-se esta como aquela cuja curabilidade não é conseguida no atual estágio da medicina.

 

COMPARATIVO: “ENFERMIDADE INCURÁVEL” E “MOLÉSTIA GRAVE”

As decisões trazidas ao Judiciário em época recente, após superada a qualificação como homicídio – optaram por se posicionar favoravelmente à tipificação da transmissão do vírus HIV como crime de lesão corporal gravíssima, em virtude da contração de enfermidade incurável.

O argumento empregado por aqueles Tribunais foi o fato de que a AIDS não se trata somente de doença grave, mas sim de enfermidade incurável. Portanto, encontra-se melhor subsumida à hipótese do art. 129, § 2°, inciso II, do Código Penal.

Poderia e deveria a Corte Suprema, portanto, ter expendido maior debate acerca do assunto, de modo a lançar mão, inclusive, de uma abertura da questão à sociedade civil organizada, notadamente as organizações que atuam em prol dos direitos dos soropositivos.

O único argumento pelo STF, após o voto-vista – e ainda de forma sorrateira, como se verá –, foi o de que a AIDS é mais do que moléstia grave, mas sim enfermidade incurável.

Há de se questionar: a problemática da responsabilidade penal pela transmissão do vírus HIV não demanda igual atenção de nossa Suprema Corte?

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No atual estágio da ciência, a enfermidade é incurável, quer dizer, ela não só é grave, nos termos do artigo 131, como também é incurável.

Poderia se falar, portanto, que a enfermidade incurável é, necessariamente, uma extensão do conceito de moléstia grave? Isto é, seria este o argumento adequado para se solucionar a dúvida sobre qual tipo penal incide sobre a hipótese: se o de lesão corporal ou de perigo de contágio?

A primeira incoerência surge no bojo da discussão doutrinária sobre o tema. Lembre-se que os doutrinadores clássicos, ao tratarem do crime do art. 131 do Código Penal, acabaram classificando a AIDS também como moléstia grave, mas, logo após, pugnaram pela tipificação como lesão corporal gravíssima pela contração de enfermidade incurável.

Contudo, “moléstia grave” e “enfermidade incurável” são conceitos divergentes em uma escala lógica e, portanto, não se excluem entre si. Pode uma determinada doença ser qualificada como incurável sem, contudo, ser considerada grave.

A medicina qualifica, por exemplo, como doenças incuráveis as alergias, a enxaqueca, a psoríase, o glaucoma e até mesmo a tensão pré-menstrual (TPM). Obviamente, todas essas doenças não alcançam a gravidade de outras doenças tidas como incuráveis, como a hepatite C, o lúpus e a própria AIDS.

É possível, a partir de tal premissa, formular argumento válido no sentido da tipificação como lesão corporal pela análise do elemento normativo do tipo “enfermidade incurável”.

É que mesmo havendo doenças incuráveis sem maior gravidade, a razão da norma, ou ratio legis, ao imputar maior pena o contágio de enfermidade incurável é, justamente, conferir maior rigor àquelas condutas capazes de produzir um dano maior ao agente.

Portanto, em argumentação lógica, aquele que transmite não só moléstia grave, mas também incurável, merece maior repreensão penal em relação àquele que simplesmente pratica ato capaz de transmitir moléstia grave. A infecção pelo HIV tem maior adequação típica ao elemento normativo “enfermidade incurável” do que “moléstia grave”.

 

CONCLUSÃO

Com o julgamento do HC 98.712 e RHC: 58.563 pelo Supremo Tribunal Federal e Superior Tribunal de Justiça, essa questão restou pacificada na jurisprudência, não podendo mais se falar em tipificação como homicídio.  Assim, qual melhor crime se encaixaria na hipótese em questão, se o do art. 129, §2º, II, do Código Penal: lesão corporal de natureza gravíssima pela contração de enfermidade incurável ou o tipo do art. 131 do Código Penal.

Após a devida conceituação de cada crime em estudo, pode-se concluir que a jurisprudência caminha no sentido correto ao se tipificar a conduta como lesão corporal.
 Isso porque o simples fato de a AIDS ser enfermidade incurável não acarreta o automático afastamento de sua caracterização como moléstia grave. Os dois tipos são adequados à AIDS.

Conclui-se como mais adequada à hipótese a tipificação no crime de lesão corporal de natureza gravíssima pela contração de enfermidade incurável, considerada a intenção clara do agente em transmitir a doença. Nada obstante, e pela inquietude que a controvérsia desperta, é mister se concluir que tal questão deve ser trazida à análise do Judiciário futuramente, para que se possa conferir maior segurança jurídica.

 

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Sobre o autor
Silvio Moreira Alves Júnior

Advogado; Especialista em Direito Digital pela FASG - Faculdade Serra Geral; Especialista em Direito Penal e Processo Penal pela FASG - Faculdade Serra Geral; Especialista em Direito Penal pela Faculminas; Especialista em Compliance pela Faculminas; Especialista em Direito Civil pela Faculminas; Especialista em Direito Público pela Faculminas. Doutorando em Direito pela Universidad de Ciencias Empresariales y Sociales – UCES

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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