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A liberdade de não viver:

direitos fundamentais e bioética por trás da autonomia nos casos de terminalidade da vida

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29/09/2021 às 09:35
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Até qual momento o prolongamento da vida é mais importante do que a sua qualidade?

SUMÁRIO: Introdução. 1.0- Dignidade do Homem e a Constituição Federal de 1988. 2.0- A Bioética e a Autonomia do Homem. 3.0-  Morte Digna e a Questão Legislativa. 3.1 - Eutanásia; 3.2 - Distanásia. 3.3 - Ortotanásia. 3.4 - Suicídio Assistido. 4.0- Profissionais de Saúde e o Testamento Vital. Conclusão. Referências


Introdução

A principal diferença entre os deuses e o homem é a mortalidade, característica genuinamente humana, que possui um valor subjetivo e, na maioria das vezes, não é encarada como um processo natural. Para Nietzsche, existem duas formas de vivenciar a morte, sendo elas, a “morte não livre” e a “liberdade para a morte”. A manifestação da vontade de morrer feita por pacientes terminais no Brasil, na maioria das vezes, é ignorada por não existir uma legislação que ampare esses casos, ferindo diretamente a liberdade e autonomia do indivíduo.

Fazendo um paralelo com a bioética, podemos compreender que os princípios bioéticos são tutelados pela própria Constituição Federal, logo, poderíamos considerá-los essenciais. Com base no Princípio da Autonomia, iremos criar hipóteses do que seja o momento da morte e, ainda, questionar-nos sobre se cada indivíduo pode escolher seu momento de morrer. Métodos como eutanásia e o suicídio assistido possibilitam ao homem uma chance determinar o tempo de sua vida, mas entram em conflito, diretamente, com a qualidade de vida que ele deseja ter.

Baseado nas legislações brasileiras, iremos entender qual o posicionamento dos profissionais de saúde diante do Testamento Vital, tutelado pela Resolução 1.995/12 do Conselho Federal de Medicina (CFM), e da adoção de um procedimento que interrompe a vida ou a negação de algum tratamento que iria prolongar a vida. Assim, tentaremos verificar se a medicina, na medida em que avança, cria um dilema ético e moral com o que seria a qualidade de vida.

Portanto, a dignidade pode ser interpretada de diversas maneiras, sendo modificada por cada indivíduo e a depender de suas crenças. Logo, o Estado deve assegurar a liberdade de escolha pessoal, sem interferência dos profissionais de saúde, e, para isso, deve ser implementada nas legislações brasileiras a possibilidade da escolha de morte digna para aqueles pacientes em estado terminal, sem que haja uma interferência religiosa na criação das mesmas.


1.0- Dignidade do Homem e a Constituição Federal de 1988

O homem, desde suas origens, possui a liberdade como sua principal forma de sobrevivência no meio social. Após sua vivência em sociedade e a dominação da vontade coletiva, a liberdade passou a ser dependente de uma garantia jurídica. Com a promulgação da Carta Magna o Poder Absoluto foi limitado, consolidando o Estado de Direito por meio da supremacia da lei, assim, criando o conceito de direitos.

A construção histórica da ideia de o que é a dignidade da pessoa humana foi definida por Kant, na obra “Fundamentação da Metafísica dos Costumes e Outros Escritos”, como:

“forma que possas usar a humanidade, tanto em sua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca simplesmente como meio”. (KANT, 2008, p. 59).

Esse princípio, construído pela história, tem buscado proteger o ser humano contra qualquer forma de desprezo, garantindo seu tratamento distinto de qualquer outro ser no Estado Democrático de Direito, ou seja, ele tem Direitos e Deveres e cabe ao Estado assegurá-los. Com a promulgação da Constituição Federal de 1988, tivemos o marco do surgimento dos Direitos e Garantias fundamentais, dispostos em seu artigo primeiro:

“Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

III – a dignidade da pessoa humana;”

O direito à saúde possui no ordenamento jurídico-constitucional uma fundamentalidade material e formal, sendo a primeira ligada ao bem jurídico protegido pelo ordenamento (vida), evidenciando a saúde como um pressuposto para a manutenção dela; assim, deve ser entendido como uma maneira de solidificar a vida com dignidade de cada indivíduo. A segunda, decorrente de um Direito Positivo, ou seja, as normas que definem os direitos e garantias fundamentais aplicáveis presentes na Constituição, como o artigo 5°,§ 1°, 2°, CF:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

§ 1º As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata.

§ 2º Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.

Portanto, as interpretações dos outros Princípios Constitucionais e dos Direitos Fundamentais devem ser feitas de acordo com o Princípio da Dignidade da pessoa humana. Conclui-se que “a negação deste princípio implica a negação da própria Constituição” (Marreiro, Cecília. 2013), já que a Dignidade da pessoa humana é a principal influência para a Constituição democrática, pluralística e humanística que temos em vigência.


2.0 - A Bioética e a Autonomia do Homem; 

A bioética, termo utilizado pela primeira vez em 1970, por Van Rensselaer Potter, é a ciência que promove uma discussão sobre a vida e a morte, fazendo com que os indivíduos que lidam com essa situação tenham uma postura que não viole os limites éticos do ser humano. Ela se compõe por três princípios, sendo eles:

(I). Princípio da Beneficência: pode ser compreendido como a obrigação ética de aumentar o benefício e diminuir o prejuízo para a pessoa. Logo, o profissional deve ter a maior convicção técnica que assegurem o ato médico benéfico ao paciente.

(II). Princípio da Não Maleficência: especifica a obrigatoriedade de buscar causar o menor dano possível ao paciente.

(III). Princípio da Justiça e Equidade: é o benefício recebido por um paciente; em razão do princípio da igualdade, determina que seja estendido a outros. Fazendo um panorama do sistema de saúde no Brasil, o SUS utiliza esse princípio para a prioridade no atendimento dos pacientes.

 A morte é compreendida como o estágio final da vida, porém, em casos de doenças terminais, existe um caminho longo até a chegada da morte, desde o momento em que a doença se torna irreversível até o instante que o indivíduo não responde aos tratamentos terapêuticos, assim, caminhando para o fim de sua existência.

O avanço da medicina, ao proporcionar um prolongamento da vida em Unidades de Tratamentos Intensivos com aparelhos que substituem algumas funções essenciais da pessoa humana, envolve, além do paciente, a influência familiar e dos profissionais de saúde, colocando em xeque a verdadeira vontade do paciente. Porém, é possível o questionamento sobre até qual momento o prolongamento da vida é mais importante do que a sua qualidade.

A autonomia é definida por Kant sendo:

“Capacidade da vontade humana de se autodeterminar segundo uma legislação moral por ela mesma estabelecida, livre de qualquer fator estranho ou exógeno com uma influência subjugante, tal como uma paixão ou uma inclinação afetiva incoercível.” (Kant 1724-1804)

Ou seja, é a vontade e o direito de escolher ativamente o que considerar melhor para si. Segundo Fabbro (1999), só se pode mencionar a autonomia quando  é disponibilizada informação pela equipe de saúde ao paciente, de forma acessível, isto é, sem uma linguagem técnica, para que qualquer decisão possa ser tomada.

O Código de Ética Médica classifica o profissional em uma posição de orientador do paciente, observando de uma maneira humanista. Para existir uma boa relação entre eles, o médico deve estar atuando em conjunto ao paciente, garantindo a dignidade durante a vida e no processo de morrer. O código faz restrições à ação do profissional e, em seu quarto capítulo, traz uma regulamentação destinada à proteção dos Direitos Humanos, estabelecendo:

“É vedado ao médico:

Art. 22. Deixar de obter consentimento do paciente ou de seu representante legal após esclarecê-lo sobre o procedimento a ser realizado, salvo em caso de risco iminente de morte.

Art. 24. Deixar de garantir ao paciente o exercício do direito de decidir livremente sobre sua pessoa ou seu bem-estar, bem como exercer sua autoridade para limitá-lo.”

Então, “o fato de ter vontade implica a responsabilidade: pode-se pedir contas ao homem daquilo que faz, porque o faz, querendo. O homem é responsável por suas ações diante dos outros, da lei, da comunidade” (Stork et al., 2005). Ou seja, a vontade consciente é resultado da realização de condutas selecionadas pela pessoa para o exercício de sua vida social e espaço de convivência dos seres humanos implanta regras disciplinares, mas, em determinadas situações, a vontade individual deveria se sobrepor ao interesse ditado pelo corpo social.

Portanto, podemos fazer um paralelo entre dignidade e autonomia, considerando que um princípio é consequência do outro. No momento em que a pessoa escolhe viver uma vida digna, ela escolhe buscar a qualidade da vida e não seu maior tempo de duração, assim, sua liberdade se torna o maior bem jurídico tutelado.


3.0- Morte Digna e a Questão Legislativa

O questionamento sobre o que é a morte pode ser respondido de inúmeras maneiras, variando de acordo com o que seja verdade para quem fala. Mas, independentemente de ideologias, a única preocupação deveria ser a dignidade no processo de morrer, visto que “a única certeza da vida é a morte” e ninguém deixará de passar por ela.

Na maioria das vezes, a busca pela morte é classificada como uma fuga da vida, porém, aos pacientes terminais, ela é buscada para acabar com a dor física e psicológica de quem está fadado a aguentar tratamentos invasivos que garantem mais tempo e menos qualidade de vida, já que nem sempre a morte pode ser poetizada como “um céu que pouco a pouco anoitecesse e a gente nem soubesse que era o fim” (Mario Quintana). Logo, esses pacientes ficam distantes das pessoas que amam, morrem na companhia de tubos e aparelhos, sendo o único refúgio “sonhar acordado, para não sentir dor” (Cazuza, 1985).

O prolongamento da vida (e do sofrimento) da pessoa em estado terminal está totalmente relacionado às crenças e verdades pessoais, logo, ocorre uma objeção de consciência contra a ciência. Assim, a principal consequência dessa negligência é um atraso social e legislativo.

A ideia de morte digna está sendo incorporada nas legislações aos poucos, presente na Lei Estadual de São Paulo n. 10.241/99, em seu segundo artigo, os direitos dos usuários do serviço de Saúde em São Paulo:

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“Artigo 2º - São direitos dos usuários dos serviços de saúde no Estado de São Paulo:

XXIII - recusar tratamentos dolorosos ou extraordinários para tentar prolongar a vida; e

XXIV - optar pelo local de morte.”

Porém, o Código de Ética Médica em seu artigo 41, dispõe:

“Capítulo V: É VEDADO AO MÉDICO

Art. 41. Abreviar a vida do paciente, ainda que a pedido deste ou de seu representante legal.

Parágrafo único. Nos casos de doença incurável e terminal, deve o médico oferecer todos os cuidados paliativos disponíveis sem empreender ações diagnósticas ou terapêuticas inúteis ou obstinadas, levando sempre em consideração a vontade expressa do paciente ou, na sua impossibilidade, a de seu representante legal.”

Assim, podemos considerar que o profissional de saúde pode estar em dois extremos: ferir o princípio da autonomia do paciente, garantido pela Constituição Federal, se não atender seu pedido de morte; ou, ser responsabilizado penalmente pela morte do paciente, se atender ao seu pedido. Logo, podemos entender que ocorre uma divergência entre a Constituição e o Código de Ética Médica.

3.1- Eutanásia

A eutanásia, em seu sentido etimológico, é definida como “boa morte” e remete à ideia de descanso para alguém que esteja em uma situação de enfermidade. Porém, a declaração dada pela Igreja Católica em 1980 entende a eutanásia como “uma ação ou omissão de ação que provoca a morte, com o intuito de eliminar a dor e o sofrimento”.(Congregação para a Doutrina da Fé. Vaticano, 1980)

Essa contradição de ideias promove uma discussão ética entre a moral e a razão. Mesmo com a laicidade do Estado, diariamente enfrentamos situações classificadas entre “certas” ou “erradas” de acordo com um dogma religioso, a principal consequência da interferência está nas legislações. 

A partir do momento em que o paciente escolhe a eutanásia, fica claro que o mesmo já ponderou seus valores sobre sua qualidade de vida e possíveis tratamentos, já que “não existe nada de terrível na vida para quem está perfeitamente convencido de que não há nada de terrível em deixar de viver” (Epicuro, 2002). Sendo assim, a autonomia do paciente deveria ser a única justificativa para eutanásia, logo, não existindo razões para questionar a legitimidade da vontade do paciente.

No Brasil, o sistema normativo não abrange a eutanásia e entende que o fato de auxiliar ou precipitar a morte de outrem é crime, dispostos nos artigos 121 e 122 do Código Penal:

“Art. 121. Matar alguém:

Pena - reclusão, de seis a vinte anos.

§ 1º Se o agente comete o crime impelido por motivo de relevante valor social ou moral, ou sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima, o juiz pode reduzir a pena de um sexto a um terço.

Art. 122. Induzir ou instigar alguém a suicidar-se ou a praticar automutilação ou prestar-lhe auxílio material para que o faça: 

Pena - reclusão, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos.    

§ 2º Se o suicídio se consuma ou se da automutilação resulta morte:”   

Ainda, se praticado por um profissional da saúde, pode configurar o homicídio doloso, crime comissivo por omissão, como disposto no artigo 13, §2º, “a” do CP:

“Art. 13 - O resultado, de que depende a existência do crime, somente é imputável a quem lhe deu causa. Considera-se causa a ação ou omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido.

§ 2º - A omissão é penalmente relevante quando o omitente devia e podia agir para evitar o resultado. O dever de agir incumbe a quem:

a) tenha por lei obrigação de cuidado, proteção ou vigilância;”

Os principais argumentos de pessoas contra a Eutanásia, além de questões morais, de acordo com Maria Julia Kovács, são:

I) A irrenunciabilidade da vida humana.

II) Considerações de ordem prática, como, por exemplo, mudança de ideia por eventual descoberta de um novo tratamento.

III) Necessidade de discussão sobre a relatividade do que se entende como sofrimento intolerável.

VI) Considerações sobre a idoneidade moral e profissional do médico.

Essas questões refletem sua relevância em parâmetro mundial, ao saber que, de cento e noventa e três países, apenas cinco possuem previsão legal para a prática da eutanásia, sendo eles: Holanda, Bélgica, Luxemburgo, Suíça e Canadá. Na Colômbia a prática se tornou legal após decisão do Tribunal Constitucional, mas ainda não há regulamentação.

Em março de 2021, o parlamento da Espanha aprovou a legalização da prática da eutanásia, a proposta levantada primeiro-ministro Pedro Sánchez (partido PSOE), que se exibiu sua preocupação com a autonomia dos indivíduos em seu pronunciamento, considerando que: "Hoje somos um país mais humano, mais justo e mais livre”.

Portanto, podemos considerar que o mundo, aos poucos, ganha avanços sociais e normativos. Ao entender que o alívio do sofrimento pode ser visto como ato de humanidade e justiça, a tendência é que outros países busquem formas para legalizar a sua prática.

3.2- Distanásia

Sendo o oposto à Eutanásia, a Distanásia (do grego, dusthánatos, significa “morte lenta”) é entendida por Maria Helena Diniz como o prolongamento do processo de morte. Portanto, podemos entender que a manutenção da vida é a prioridade, e não a qualidade de vida.

Ainda, é explicada por Carlos Eduardo Martins como prolongamento da “vida do paciente, independentemente do conforto. Faz-se uso de aparelhos e fármacos que contribuam para a longanimidade do paciente, sem levar-se em consideração se este prolongamento está causando-lhe sofrimento ou não ”. (MARTINS, Carlos Eduardo. 2013).

Os principais exemplos de casos de distanásia são os pacientes que estão na condição de “Estado Vegetativo Persistente”, cujas funções do corpo são sustentadas por aparelhos mecânicos. Além disso, são os procedimentos mais utilizados no Brasil, devido à pressão moral e familiar para prolongar a vida do paciente.

Utilizando um caso prático para análise de tal, a decisão proferida pela Vigésima Primeira Câmara Cível do Egrégio Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, na Apelação Cível n. 70042509562, dispõe sobre o caso de Irene Oliveira de Freitas, internada no hospital Ernesto Dornelles (apelante), com quadro de “descompensação secundária e insuficiência renal, e pré-edema agudo de pulmão”.

Ementa: CONSTITUCIONAL. MANTENÇA ARTIFICIAL DE VIDA. DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. PACIENTE, ATUALMENTE, SEM CONDIÇÕES DE MANIFESTAR SUA VONTADE. RESPEITO AO DESEJO ANTES MANIFESTADO. Há de se dar valor ao enunciado constitucional da dignidade humana, que, aliás, sobrepõe-se, até, aos textos normativos, seja qual for sua hierarquia. O desejo de ter a "morte no seu tempo certo", evitados sofrimentos inúteis, não pode ser ignorado, notadamente em face de meros interesses econômicos atrelados a eventual responsabilidade indenizatória. No caso dos autos, a vontade da paciente em não se submeter à hemodiálise, de resultados altamente duvidosos, afora o sofrimento que impõe, traduzida na declaração do filho, há de ser respeitada, notadamente quando a ela se contrapõe à já referida preocupação patrimonial da entidade hospitalar que, assim se colocando, não dispõe nem de legitimação, muito menos de interesse de agir.(Apelação Cível, Nº 70042509562, Vigésima Primeira Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Armínio José Abreu Lima da Rosa, Julgado em: 01-06-2011).

Diante da indicação expressa dos médicos quanto à necessidade de realização de hemodiálise, o filho, Gilberto, não consentia com o tratamento pelos seguintes argumentos:

(I) Decorrência de riscos de vida;

(II) O desejo de sua mãe à não submissão ao procedimento.

O caso, se julgado após 2019, poderia ter um desfecho diferente, devido à I Jornada de Direito de Saúde do CNJ, que aprovou o Enunciado n. 44, pelo qual se entendeu que: “o paciente absolutamente incapaz pode ser submetido a tratamento médico que o beneficie, mesmo contra a vontade de seu representante legal, quando identificada situação em que este não defende o melhor interesse daquele (Redação dada pela III Jornada de Direito da Saúde – 18.03.2019)”.

O enunciado entra em conflito com as hipóteses previstas nos artigos 4º, III e 1767, I, ambos Código Civil (CC/02). Ou seja, aqueles que, por causa transitória ou duradoura, tornam-se incapazes de exprimir a sua vontade, é admitida a incapacidade natural, assim, no caso apresentado, o filho teve a possibilidade de escolher os tratamentos para a mãe.

A vida é considerada um direito fundamental, mas a negação de qualidade de vida a uma pessoa fere diretamente o art. 5º, III, da Constituição Federal, pois o princípio da dignidade humana, decorrente das normas fundamentais dispõe que “ninguém será submetido à tortura nem tratamento desumano ou degradante”. Além disso, a escolha da distanásia não parte de um pedido do paciente, e sim de um avanço tecnológico na medicina que estende a sobrevivência da pessoa, logo, fere a sua autonomia.

Diante desse conflito legislativo, apenas o julgamento de um terceiro imparcial para decidir qual o melhor caminho a seguir não deveria ser suficiente. Assim, poderia ocorrer mudanças na legislação, prevendo a Distanásia como um crime contra a honra e dignidade devido ao sofrimento em que a pessoa é submetida, sem levar em consideração a sua vontade ou a de seus representantes.

3.3- Ortotanásia

A ortotanásia pode ser considerada um ponto de equilíbrio entre a Eutanásia e a Distanásia, pois ela é considerada, em seu sentido etimológico, a “morte correta”. Ou seja, aquela que acontece no seu tempo certo, tendo apenas o acompanhamento médico para garantir o menor sofrimento ao paciente.

A partir da Resolução n. 1.805/2006 do Conselho Federal de Medicina (CFM), a ortotanásia passou a ter um contexto objetivo e legal. De acordo com a resolução:

Art. 1º É permitido ao médico limitar ou suspender procedimentos e tratamentos que prolonguem a vida do doente em fase terminal, de enfermidade grave e incurável, respeitada a vontade da pessoa ou de seu representante legal.

§ 1º O médico tem a obrigação de esclarecer ao doente ou a seu representante legal as modalidades terapêuticas adequadas para cada situação.

§ 2º A decisão referida no caput deve ser fundamentada e registrada no prontuário.

§ 3º É assegurado ao doente ou a seu representante legal o direito de solicitar uma segunda opinião médica.

Logo, é assegurada a efetividade das garantias da dignidade da pessoa humana, dispostas no artigo 1º III CF, além de garantir os princípios bioéticos (autonomia, beneficência, não-maleficência). Portanto, a ortotanásia não pode ser considerada uma conduta praticada por um terceiro, Assim, podemos entender que sua prática visa a evitar o sofrimento dos pacientes terminais, sem submetê-los a tratamentos invasivos, mas não quer acelerar sua morte.

3.4- Suicídio Assistido

O suicídio (do latim sui - auto  e cidium - assassínio) é entendido como a deliberada destruição da própria vida (PRADO, 2010, p. 94). De acordo com a OMS, é uma epidemia global que mata mais de 800 mil pessoas por ano, principalmente em países emergentes. Já o Suicídio Assistido ocorre quando uma pessoa não consegue concretizar sozinha sua intenção de morrer e solicita o auxílio de outrem.

No Direito Penal, lesar a si mesmo não é considerada uma conduta criminalizada, mas é considerado crime o induzimento, instigação ou auxílio ao suicídio, tipificado pelo artigo 122 do Código Penal:

Art. 122. Induzir ou instigar alguém a suicidar-se ou a praticar automutilação ou prestar-lhe auxílio material para que o faça: 

Pena - reclusão, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos

Ou seja, o indivíduo que sobreviver à tentativa não será punido, mas sim quem o auxiliou a provocar a destruição da própria vida, mesmo em razão do desejo e pelo sofrimento manifestado pela pessoa.

Sendo o oposto da Eutanásia que é tipificada como homicídio privilegiado, o suicídio assistido e a Eutanásia se diferem em quem realiza a ação, ou seja, no Suicídio Assistido a morte resulta de uma ação do próprio paciente, enquanto eutanásia, o resultado advém de uma ação ou omissão de terceiro. De acordo com André Herrera, o Suicídio Assistido, para poder ser concebido, deve ocorrer: 

(i) mediante manifestação expressa do paciente, em razão de diagnóstico de grave enfermidade física ou mental, comprovada por três médicos, sendo pelo menos um deles o profissional que efetivamente cuidou do paciente;

(ii) quando a morte for iminente;

(iii) quando houver a orientação ou auxílio conferido por profissionais da; e

(iv) e quando houver total ausência de interesse por parte do médico, que deverá agir apenas por piedade.

Seguindo a mesma ideia do princípio da autonomia, o paciente deveria poder escolher seu momento de morte e ser auxiliado para que não tivesse sofrimento. Logo, o suicídio assistido não é uma prática resultante de algum problema psicológico, e sim uma forma de respeitar a própria integridade e direito de morrer.

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Sobre a autora
Carolina de Souza Malavazi

Estudante de Direito na Pontifícia Universidade Católica de Campinas Monitora em Introdução ao Estudo do Direito I Membro da Produção Acadêmica e Competição do Grupo de Estudos em Medição e Negociação da PUC Campinas - GEMN PUCC

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MALAVAZI, Carolina Souza. A liberdade de não viver:: direitos fundamentais e bioética por trás da autonomia nos casos de terminalidade da vida. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 26, n. 6664, 29 set. 2021. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/93442. Acesso em: 26 abr. 2024.

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