Capa da publicação Saneamento básico: o novo marco legal e o papel da ANA
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O novo marco legal do saneamento básico e o papel regulatório da Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico

Leia nesta página:

O que são normas de referência em saneamento básico? Qual sua força normativa? Quais seus destinatários?

“O esgoto é a consciência da Cidade” (Victor Hugo). [3]

1.  Principiei esta intervenção com esse alerta do genial escritor Victor Hugo, extraída de seu monumental clássico “Os Miseráveis”. Peço-lhes licença para recordar algumas passagens nas quais esse titânico escritor disserta sobre o “esgoto de Paris” no início do século XIX. Victor Hugo também denomina o “esgoto” como o intestino de Leviatã. Para ele, o esgoto é “consciência” e “intestino”. E, também, um “mal-entendido”, pois visa “purificar” a Cidade, mas acaba por “debilitar” a população.

2.  O aludido autor entende que o dinheiro gasto com o esgoto de Paris seria a grande prodigalidade da Cidade. E assinala:

“Paris, essa cidade modelo, padrão das capitais bem construídas da qual cada povo procura ter uma cópia, essa metrópole do ideal, essa pátria augusta da iniciativa, do impulso e da tentativa, esse centro e lugar dos espíritos, essa cidade-nação, colmeia do futuro, composto maravilhoso de Babilônia e Corinto, faria do ponto de vista que acabamos de assinalar, encolher os ombros a um camponês de Fo-Kian.

Imitem Paris, e estarão arruinados.

Um esgoto é um cínico. Ele diz tudo.”

3.  Após discorrer em muitas páginas sobre o esgoto de Paris, sua importância e sua complexidade milenar, o criativo autor faz surgir Jean Valjean carregando o corpo inerme de Mario Pontmercy, visando escapar das forças policiais, e levá-lo para a casa de seu avô o senhor Gillenormand, tudo por meio do escuro e lúgubre esgoto da “Cidade Luz”.

4. A leitura desse monumento literário que vem a ser “Os Miseráveis”, além de ser uma aula sobre os complexos temas da justiça ou da injustiça, da bondade ou maldade, da vingança ou do perdão, do ressentimento ou da misericórdia, da perdição ou da redenção humanas, também nos apresenta, ainda que lateralmente, um tema que diz respeito ao “saneamento básico”, mormente, o esgoto parisiense.

5. Pois bem, como escreveu Victor Hugo, o “esgoto diz tudo”. Com efeito, a partir da análise dos esgotos de uma cidade, é possível analisar uma série de informações sociais relevantes.  Recordo, por exemplo, que a ANA em parceria com outras entidades públicas, tem monitorado o esgoto de algumas cidades a fim de verificar a carga de “Coronavírus”. [4]  E segundo a metodologia adotada, os números oficiais de infectados por esse vírus eram bem inferiores aos números estimados pelo monitoramento.

6. Como exemplo, cito o Boletim de Acompanhamento n. 7, divulgado em julho de 2020, que analisou o esgoto de Belo Horizonte. Enquanto os números oficiais contabilizavam, à época, 7 (sete) mil infectados, a estimativa dos pesquisadores, a partir das análises do esgoto, chegava a quase 500 (quinhentas) mil pessoas infectadas na Cidade. Essa assimetria surpreendeu a todos, inclusive os pesquisadores. [5]

7.A partir do esgoto é possível melhor conhecer uma sociedade e indicar as ações governamentais, medidas administrativas e políticas públicas mais apropriadas para aquela comunidade, com eficácia, efetividade, eficiência, e economicidade.

8. Mas o “saneamento básico” vai muito além do esgoto: não se esgota no esgoto (brinco com as palavras).

9. Nos termos da Lei n. 11.445/2007, que estabelece as diretrizes nacionais e a política federal para o saneamento básico, este consiste em um conjunto de serviços públicos, infraestrutura e instalações operacionais de:

9.1 abastecimento de água potável;

9.2 esgotamento sanitário;

9.3 limpeza urbana e manejo de resíduos sólidos; e

9.4 drenagem e manejo das águas pluviais urbanas.

10. Pois bem. A Lei 9.984/2000, na redação dada pela Lei 14.026/2020, prescreve que a ANA instituirá normas de referência para a regulação dos serviços públicos de saneamento básico por seus titulares e suas entidades reguladoras e fiscalizadoras, observando as diretrizes estabelecidas na aludida Lei 11.445/2007. É de ver que são complexas e desafiantes as atribuições da ANA, pois esta terá que produzir normas com múltiplos conteúdos e para diversos destinatários cuidando dos já citados temas.

11. Como é de sobejo conhecimento, a questão do saneamento básico envolve os interesses políticos de todos os entes federativos da República (União, Estados,  Municípios e Distrito Federal) e de toda a sociedade (famílias, indivíduos, empresas e instituições sem fins lucrativos), razão pela qual é uma das pautas mais relevantes de políticas públicas e de ação social no Brasil. [6][7]

12. Peço licença para recordar algumas passagens de manifestações parlamentares exaradas no curso do processo legislativo que resultou na aprovação da Lei 14.026/2020, atualizadora do marco legal do saneamento básico.

13.  Do Parecer do deputado federal Geninho Zuliani[8] extraio:

“Os números do saneamento básico no Brasil ainda são catastróficos, indicando que uma solução urgente precisa ser buscada para reverter essa situação. Dados do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS) mostram que, no ano 2017, pouco mais de 80% da população brasileira tinham acesso a serviço de abastecimento de água, mas apenas metade dos cidadãos contava com serviço de coleta de esgotamento sanitário em suas casas. O tratamento de esgoto é outro problema sério, pois do total de esgoto coletado, pouco mais de 70% tiveram algum tipo de tratamento antes de serem lançados nos corpos d’água. Os números mostram que o déficit de coleta e tratamento de esgoto no Brasil é maior do que o de países com índices de desenvolvimento humano similares ao nosso.  

....

Sabe-se que o índice de morbidade e mortalidade relacionado ao saneamento básico pode ser ainda maior, visto que os dados apresentados são aqueles em que se pode relacionar a doença diretamente às condições sanitárias, mas se reconhece que o impacto do saneamento vai muito além das causas diretas já apontadas, pois a convivência diária com dejetos e águas contaminadas pode trazer inúmeras enfermidades que se manifestam a longo prazo.

Além do sofrimento pessoal, o impacto das doenças de veiculação hídrica também é direto na economia do País, em razão dos afastamentos do trabalho, gastos com internações, remédios etc. Pesquisa realizada pelo IBGE revelou que, no ano de 2013, houve quase 18 milhões de dias de afastamento do trabalho em decorrência de problemas gastrointestinais, uma grande parte, certamente, relacionada à falta de saneamento básico. Estima-se que o custo com dias pagos e não trabalhados, somado ao custo de internações hospitalares, chegue perto de R$1 bilhão por ano.

...

Para reverter essa situação, o Brasil precisa de investimentos da ordem de R$22 bilhões por ano. Ocorre que esse patamar nunca foi atingido nos últimos anos. De acordo com dados do Governo Federal, de 2011 a 2017, o Brasil investiu, anualmente, pouco mais da metade desse valor, sendo notória a dificuldade do setor público para a captação de recursos para investimentos no setor de saneamento. O alto grau de endividamento das empresas públicas, aliado à pouca capacidade de contrapartida com recursos próprios, inviabiliza a execução da maioria dos projetos de expansão de redes ou de melhoria da qualidade dos serviços prestados.

A falta de recursos para investimento no setor ocasiona também a deterioração da rede, elevando o índice de perdas de água produzida, que chegou a quase 40% no ano de 2017. Apenas para fins de comparação, nos países desenvolvidos esse índice não passa de 15%. Ou seja, além dos recursos necessários para expansão da cobertura dos serviços, é necessário investir também na manutenção das redes de água existentes para minimizar as perdas, que tornam o sistema ineficiente e provocam impacto significativo nas tarifas cobradas do usuário.”

14.  O senador da República Tasso Jereissati[9] assim justificou a sua apresentação do aludido PL 3.261/2019 e dele extraio:

“Conforme defendi no Parecer aprovado pela Comissão Mista da MPV nº 868, de 2019, essa modernização é necessária e urgente. O modelo institucional do setor precisa ser otimizado de modo a superar os graves índices hoje observados no Brasil. Cerca de 35 milhões de brasileiros não têm acesso a água tratada. Metade da população, em torno de 104 milhões de pessoas, não têm acesso aos serviços de coleta de esgoto. Do esgoto coletado, apenas 42% são tratados. São dados graves, que dificultam a melhoria dos índices de desenvolvimento humano (IDH) e trazem sérios prejuízos sociais e econômicos a diversos setores produtivos, retardando o desenvolvimento da nação.

Dados da Organização Mundial da Saúde (OMS) apontam que em torno de 15 mil pessoas morrem no Brasil todos os anos devido a doenças ligadas à precariedade do saneamento. Em duas décadas amanutenção desse quadro pode ceifar a vida de aproximadamente 300 mil brasileiros. Essa mesma precariedade,         ou mesmo a inexistência da atenção em saneamento aos brasileiros provoca 340 mil internações e é motivo da perda de 50 milhões de dias de trabalho e da consequente redução da produtividade e da renda de milhões de brasileiros.

Para alcançar a universalização até 2033, seriam necessários R$ 22 bilhões anuais. Contudo, entre 2010 e 2017, o investimento anual médio no setor foi de apenas R$ 13,6 bilhões. Em 2019, esse valor deve cair para cerca de R$ 10 bilhões. O Ministério da Economia, com base em estudos de consultorias independentes, estima que a universalização da prestação dos serviços de saneamento até 2033, conforme estipulado no Plano Nacional de Saneamento, exija investimentos da ordem de R$ 700 bilhões, que poderão gerar aproximadamente 700 mil empregos.

Segundo o Instituto Trata Brasil, a universalização dos serviços públicos de saneamento básico proporcionaria, em 20 anos, benefícios econômicos e sociais da ordem de R$ 537 bilhões, computando diminuição dos custos com internações e afastamentos do trabalho, aumento da produtividade no trabalho (incluindo melhoria na educação), valorização imobiliária e valorização ambiental para a economia do turismo.

Além da precariedade no atendimento à população, é preciso enfrentar problemas estruturais ligados à operação e manutenção desses serviços. Destacam-se os elevados índices de desperdício de água tratada, que em 2016 alcançaram uma média nacional de 38,1%. Essa perda de água equivale a um desperdício anual de aproximadamente R$ 10 bilhões.

Considerando a importância da universalização e diante da crise fiscal por que passa o Estado brasileiro, é fundamental criar condições para uma maior participação do capital privado no setor para, em conjunto com o poder público, superar o quadro de notória insuficiência dos serviços de saneamento básico no País. Ampliar a concorrência pelos mercados de saneamento induzirá a melhoria da qualidade dos serviços, com claros benefícios para a população. Contudo, para atrair o capital privado, é necessário ampliar a segurança jurídica e a estabilidade regulatória do setor.

As disparidades nas capacidades regulatórias dos diferentes titulares resultam numa multiplicidade de situações e a grande variabilidade de regras regulatórias representa um obstáculo ao desenvolvimento desse setor.

...

No que se refere à regulação, a proposição incorpora novas competências para a ANA, destacando-se a prerrogativa de elaborar normas de referência nacionais para os serviços públicos de saneamento básico, de modo a promover harmonização regulatória. Quanto à titularidade, o projeto busca adequar o marco regulatório do saneamento às disposições do Estatuto da Metrópole e à jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, no que se refere à prestação do serviço de saneamento básico como função pública de interesse comum.”

15. Essas intervenções parlamentares junto com a realidade nacional são bastantes e suficientes para justificar a relevância deste tema.

16. Ante as novas competências e desafios da ANA, surgem algumas dúvidas:

16.1. Qual o sentido da expressão “normas de referência”?

16.2.  Essas “normas de referência” possuem qual “força normativa”?

16.3. Quais os destinatários imediatos e mediatos dessas “normas de referência”?

16.4. Quais conteúdos podem e devem estar nessas “normas de referência”?

16.5. Como a ANA deverá produzir essas “normas de referência”?

16.6. Quais “normas de referência” já foram produzidas e quais estão em via de produção?

17.  Para alcançarmos as respostas adequadas para essas indagações, teremos de revisitar a legislação e a jurisprudência.

18.  No julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 1.842[10], o Supremo Tribunal Federal enfrentou a questão da titularidade do poder concedente dos serviços públicos de saneamento básico. Da ementa do acórdão da aludida ADI 1.842, extraímos algumas passagens normativamente relevantes e diretivas políticas fundamentais para o encaminhamento da questão:

“3. Autonomia municipal e integração metropolitana.

A Constituição Federal conferiu ênfase à autonomia municipal ao mencionar os municípios como integrantes do sistema federativo (art. 1º da CF/1988) e ao fixá-la junto com os estados e o Distrito Federal (art. 18 da CF/1988).

A essência da autonomia municipal contém primordialmente (i) autoadministração, que implica capacidade decisória quanto aos interesses locais, sem delegação ou aprovação hierárquica; e (ii) autogoverno, que determina a eleição do chefe do Poder Executivo e dos representantes no Legislativo.

O interesse comum e a compulsoriedade da integração metropolitana não são incompatíveis com a autonomia municipal. O mencionado interesse comum não é comum apenas aos municípios envolvidos, mas ao Estado e aos municípios do agrupamento urbano. O caráter compulsório da participação deles em regiões metropolitanas, microrregiões e aglomerações urbanas já foi acolhido pelo Pleno do STF (ADI 1841/RJ, Rel. Min. Carlos Velloso, DJ 20.9.2002; ADI 796/ES, Rel. Min. Néri da Silveira, DJ 17.12.1999).

O interesse comum inclui funções públicas e serviços que atendam a mais de um município, assim como os que, restritos ao território de um deles, sejam de algum modo dependentes, concorrentes, confluentes ou integrados de funções públicas, bem como serviços supramunicipais.

4. Aglomerações urbanas e saneamento básico.

O art. 23, IX, da Constituição Federal conferiu competência comum à União, aos estados e aos municípios para promover a melhoria das condições de saneamento básico.

Nada obstante a competência municipal do poder concedente do serviço público de saneamento básico, o alto custo e o monopólio natural do serviço, além da existência de várias etapas – como captação, tratamento, adução, reserva, distribuição de água e o recolhimento, condução e disposição final de esgoto – que comumente ultrapassam os limites territoriais de um município, indicam a existência de interesse comum do serviço de saneamento básico.

A função pública do saneamento básico frequentemente extrapola o interesse local e passa a ter natureza de interesse comum no caso de instituição de regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões, nos termos do art. 25, § 3º, da Constituição Federal.

Para o adequado atendimento do interesse comum, a integração municipal do serviço de saneamento básico pode ocorrer tanto voluntariamente, por meio de gestão associada, empregando convênios de cooperação ou consórcios públicos, consoante o arts. 3º, II, e 24 da Lei Federal 11.445/2007 e o art. 241 da Constituição Federal, como compulsoriamente, nos termos em que prevista na lei complementar estadual que institui as aglomerações urbanas.

A instituição de regiões metropolitanas, aglomerações urbanas ou microrregiões pode vincular a participação de municípios limítrofes, com o objetivo de executar e planejar a função pública do saneamento básico, seja para atender adequadamente às exigências de higiene e saúde pública, seja para dar viabilidade econômica e técnica aos municípios menos favorecidos. Repita-se que este caráter compulsório da integração metropolitana não esvazia a autonomia municipal.

5. Inconstitucionalidade da transferência ao estado-membro do poder concedente de funções e serviços públicos de interesse comum.

O estabelecimento de região metropolitana não significa simples transferência de competências para o estado.

O interesse comum é muito mais que a soma de cada interesse local envolvido, pois a má condução da função de saneamento básico por apenas um município pode colocar em risco todo o esforço do conjunto, além das consequências para a saúde pública de toda a região.

O parâmetro para aferição da constitucionalidade reside no respeito à divisão de responsabilidades entre municípios e estado. É necessário evitar que o poder decisório e o poder concedente se concentrem nas mãos de um único ente para preservação do autogoverno e da autoadministração dos municípios.

Reconhecimento do poder concedente e da titularidade do serviço ao colegiado formado pelos municípios e pelo estado federado. A participação dos entes nesse colegiado não necessita de ser paritária, desde que apta a prevenir a concentração do poder decisório no âmbito de um único ente. A participação de cada Município e do Estado deve ser estipulada em cada região metropolitana de acordo com suas particularidades, sem que se permita que um ente tenha predomínio absoluto.”

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19.  Tendo em perspectiva esse julgado, bem como outras decisões judiciais sobre as múltiplas possibilidades e complexidades dos serviços públicos de saneamento básico, assim como a nova legislação sobre esses serviços públicos, e de modo mais amiúde as novas atribuições da ANA sobre para instituir normas de referência para a regulação dos serviços públicos de saneamento básico, podemos indicar algumas respostas para as indagações que formulamos.

20. Comecemos com a indagação acerca do sentido da expressão “normas de referência”. As normas de referência consistem em um conjunto de preceitos que estabelecem determinadas diretivas e determinadas condições para a consecução de determinados fins ou para a obtenção de determinadas vantagens. As normas de referência estabelecem ônus. E este é uma faculdade cujo exercício é necessário para a realização de um interesse, no rastro do magistério de Eros Roberto Grau.[11]

21. É de ver, portanto, que as normas de referência estão no quadro do chamado “direito premial ou função promocional do direito”, visto que o não cumprimento de suas diretivas não implicam na incidência de uma sanção “punitiva”, mas terá como consequência o não atingimento dos fins buscados.

22.  Eis a força “normativa” das normas de referência: incentivar e estimular que os destinatários se conduzam e se comportam do modo julgado adequado ou tido como o melhor. Assim, não haverá “punição” para o destinatário que não seguir as normas de referência, todavia esse destinatário deixará de usufruir os benefícios a que tem interesse.

23. Os destinatários imediatos das normas de referência da ANA, segundo a legislação, são os titulares do poder concedente dos serviços públicos de saneamento básico, bem como para as suas entidades reguladoras e fiscalizadoras. Já os destinatários mediatos serão todos os demais atores e agentes que gravitam em redor do microssistema do saneamento básico.

24. Há uma especial atenção ao disposto no inciso III do art. 50 da Lei 11.445/2000 no que exige a observância das normas de referência da ANA como condição para o acesso as receitas públicas federais.         

Muito possivelmente os demais agentes financeiros privados também exijam a observância às normas de referência da ANA como condição para o estabelecimento de relações jurídicas institucionais.           

Provavelmente aqui esteja a força cogente e vinculante das “normas de referência”: os outros atores do ecossistema do saneamento básico constrangerão os destinatários imediatos ao acolhimento dessas diretivas, como garantia técnica e ética.

25.  Quanto ao conteúdo regulado por essas normas de referência, nos termos do § 1º do art. 4-A da Lei 9.984/2000, elas versarão sobre:

“I - padrões de qualidade e eficiência na prestação, na manutenção e na operação dos sistemas de saneamento básico;   

II - regulação tarifária dos serviços públicos de saneamento básico, com vistas a promover a prestação adequada, o uso racional de recursos naturais, o equilíbrio econômico-financeiro e a universalização do acesso ao saneamento básico;   

III - padronização dos instrumentos negociais de prestação de serviços públicos de saneamento básico firmados entre o titular do serviço público e o delegatário, os quais contemplarão metas de qualidade, eficiência e ampliação da cobertura dos serviços, bem como especificação da matriz de riscos e dos mecanismos de manutenção do equilíbrio econômico-financeiro das atividades;   

IV - metas de universalização dos serviços públicos de saneamento básico para concessões que considerem, entre outras condições, o nível de cobertura de serviço existente, a viabilidade econômico-financeira da expansão da prestação do serviço e o número de Municípios atendidos;   

V - critérios para a contabilidade regulatória;   

VI - redução progressiva e controle da perda de água; 

VII - metodologia de cálculo de indenizações devidas em razão dos investimentos realizados e ainda não amortizados ou depreciados;   

VIII - governança das entidades reguladoras, conforme princípios estabelecidos no art. 21 da Lei nº 11.445, de 5 de janeiro de 2007;   

IX - reúso dos efluentes sanitários tratados, em conformidade com as normas ambientais e de saúde pública;  

X - parâmetros para determinação de caducidade na prestação dos serviços públicos de saneamento básico;   

XI - normas e metas de substituição do sistema unitário pelo sistema separador absoluto de tratamento de efluentes;   

XII - sistema de avaliação do cumprimento de metas de ampliação e universalização da cobertura dos serviços públicos de saneamento básico;   

XIII - conteúdo mínimo para a prestação universalizada e para a sustentabilidade econômico-financeira dos serviços públicos de saneamento básico”.   

26.  Percebam que o plexo de conteúdos tem exigido esforços substantivos da ANA.  Tenha-se que essas normas de referência deverão contemplar o princípio da universalização do acesso e efetiva prestação dos serviços públicos de saneamento básico e não poderão contrariar os demais princípios estabelecidos na Lei 11.445/2007 e nas legislações pertinentes. A ANA deverá manter um permanente diálogo com outras fontes normativas, sejam nacionais, sejam internacionais.

27. Quanto às finalidades, as normas de referência, estabelece o § 3º do art. 4º-A da Lei 9.984/2000, deverão:

“I - promover a prestação adequada dos serviços, com atendimento pleno aos usuários, observados os princípios da regularidade, da continuidade, da eficiência, da segurança, da atualidade, da generalidade, da cortesia, da modicidade tarifária, da utilização racional dos recursos hídricos e da universalização dos serviços;

II - estimular a livre concorrência, a competitividade, a eficiência e a sustentabilidade econômica na prestação dos serviços;

III - estimular a cooperação entre os entes federativos com vistas à prestação, à contratação e à regulação dos serviços de forma adequada e eficiente, a fim de buscar a universalização dos serviços e a modicidade tarifária;

IV - possibilitar a adoção de métodos, técnicas e processos adequados às peculiaridades locais e regionais;

V - incentivar a regionalização da prestação dos serviços, de modo a contribuir para a viabilidade técnica e econômico-financeira, a criação de ganhos de escala e de eficiência e a universalização dos serviços;

VI - estabelecer parâmetros e periodicidade mínimos para medição do cumprimento das metas de cobertura dos serviços e do atendimento aos indicadores de qualidade e aos padrões de potabilidade, observadas as peculiaridades contratuais e regionais;

VII - estabelecer critérios limitadores da sobreposição de custos administrativos ou gerenciais a serem pagos pelo usuário final, independentemente da configuração de subcontratações ou de subdelegações; e

VIII - assegurar a prestação concomitante dos serviços de abastecimento de água e de esgotamento sanitário.”

28. E um dos aspectos mais relevantes consiste nos procedimentos que a ANA deve adotar para instituir as suas normas de referência. Segundo o § 4º desse art. 4º-A da Lei 9.984/2000, a Agência:

“I - avaliará as melhores práticas regulatórias do setor, ouvidas as entidades encarregadas da regulação e da fiscalização e as entidades representativas dos Municípios;   

II - realizará consultas e audiências públicas, de forma a garantir a transparência e a publicidade dos atos, bem como a possibilitar a análise de impacto regulatório das normas propostas; e  

III - poderá constituir grupos ou comissões de trabalho com a participação das entidades reguladoras e fiscalizadoras e das entidades representativas dos Municípios para auxiliar na elaboração das referidas normas.”   

29.  É fora de toda a dúvida que a licitude e a legitimidade das normas de referência dependerão não apenas dos seus respectivos conteúdos, mas inquestionavelmente dos procedimentos adotados no processo de sua instituição.

30.  A Agência, por meio da Resolução n. 79, de 14 de junho de 2021, aprovou a Norma de Referência n. 1 para a regulação dos serviços públicos de saneamento básico, que versou sobre o regime, a estrutura e parâmetros de cobrança pela prestação do serviço público de manejo de resíduos sólidos urbanos, bem como os procedimentos e prazos de fixação, reajuste e revisões tarifárias. Nessa citada NR1 há um incentivo para que o regime de cobrança seja preferencialmente o tarifário em vez do tributário.     

Tenha-se que no processo de consulta pública, a Agência recebeu mais de 462 contribuições de 50 participantes diferentes. [12]

31. Em 1º.9.2021, a ANA iniciou a Tomada de Subsídios para receber sugestões da sociedade para o processo de elaboração da norma de referência de indenização de ativos para os segmentos de água e esgoto.  E no subsequente dia 2, houve audiência pública para discutir os principais aspectos dos contratos de programa que devem ser aprimorados.

32. A ANA estuda a possibilidade de instituição de NR (norma de referência) sobre padrões de qualidade dos serviços públicos de saneamento básico, mas ainda há que se fechar o relatório de AIR (Análise de Impacto Regulatório), para depois abrir a consulta pública.

33. Finalizo.

34. Saibam que sobre todas as agências regulatórias, não apenas as federais ou as estaduais ou mesmo as municipais, assim como as estrangeiras, pesa uma permanente dúvida e receio de captura: se a Agência será eventualmente capturada pelo Governo ou pelos agentes econômicos privados?

35.  No caso específico dos serviços públicos de saneamento básico, como todos sabemos, os interesses são muitos e os valores envolvidos são estratosféricos, como todos sabemos. Com efeito, há estudos que projetam a necessidade de se investir em torno de R$15 a 20 bilhões de reais por ano, pelos próximos 20 anos, para que as metas sejam alcançadas. Esses investimentos advirão tanto dos respectivos tesouros públicos (federal, estaduais e municipais) quanto da iniciativa privada. Isso significa que além dos interesses sociais e civilizatórios, há muito interesse econômico. E isso não pode ser desprezado.

36.  Afianço, no entanto, que a ANA tem agido como uma instituição de Estado e tem procurado servir à população brasileira. Sabemos dos enormes desafios que o saneamento básico provoca e dos grandes esforços que tem sido feitos e que terão de ser feitos, mas vislumbro na ANA uma instituição de Estado composta por homens e mulheres comprometidos, tecnicamente bem qualificados, moralmente bem intencionados e respeitadores das melhores práticas republicanas.     


Notas

[3] HUGO, Victor-Marie. Os Miseráveis. Volume II. Tradução de Regina Célia de Oliveira. São Paulo: Martin Claret, 2007, p. 426.

[4] BRASIL. Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico. Rede Monitoramento COVID ESGOTOS. Brasília (www.ana.gov.br).

[5] BRASIL. Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico. Boletim de Acompanhamento n. 7. Monitoramento COVID ESGOTOS. Brasília, 2020 (www.ana.gov.br).

[6] ALVES JR., Luís Carlos Martins; FERREIRA, Christianne Dias. A Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico e os novos marcos normativos da Lei n. 14.026/2020: Perspectivas da Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 6.492. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6378, 17 dez. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/87464.

[7] ALVES JR., Luís Carlos Martins; FERREIRA, Christianne Dias. O saneamento básico e o federalismo à brasileira: Uma breve análise acerca da Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 1.842. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6383, 22 dez. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/87319.

[8] ZULIANI, Geninho. Parecer (relatório e voto). Projeto de Lei n. 3.261/2019. Câmara dos Deputados. Brasília, 2019 (www.camara.leg.br).

[9] JEREISSATI, Tasso. Justificação. Projeto de Lei n. 3.261/2019. Senado Federal. Brasília, 2019 (www.senado.leg.br).

[10] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 1.842. Plenário. Redator ministro Gilmar Mendes. Julgamento em 6.3.2013. Acórdão publicado em 13.9.2013. Brasília, 2013 (www.stf.jus.br).

[11] GRAU, Eros Roberto. Notas sobre a distinção entre obrigação, dever e ônus. Revista da Faculdade de Direito. Universidade de São Paulo, 77, pp. 177-183. São Paulo, 1982 (www.revistas.usp.br).

[12] BRASIL. Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico. ANA aprova norma de referência para contribuir para o fim dos lixões. Brasília, 15.6.2021 (www.gov.br).

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Sobre o autor
Luís Carlos Martins Alves Jr.

LUIS CARLOS é piauiense de Campo Maior; bacharel em Direito, Universidade Federal do Piauí - UFPI; orador da Turma "Sexagenária" - Prof. Antônio Martins Filho; doutor em Direito Constitucional, Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG; professor de Direito Constitucional; procurador da Fazenda Nacional; e procurador-geral da Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico - ANA. Exerceu as seguintes funções públicas: assessor-técnico da procuradora-geral do Estado de Minas Gerais; advogado-geral da União adjunto; assessor especial da Subchefia para Assuntos Jurídicos da Presidência da República; chefe-de-gabinete do ministro de Estado dos Direitos Humanos; secretário nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente; e subchefe-adjunto de Assuntos Parlamentares da Presidência da República. Na iniciativa privada foi advogado-chefe do escritório de Brasília da firma Gaia, Silva, Rolim & Associados – Advocacia e Consultoria Jurídica e consultor jurídico da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil - CNBB. No plano acadêmico, foi professor de direito constitucional do curso de Administração Pública da Escola de Governo do Estado de Minas Gerais na Fundação João Pinheiro e dos cursos de Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais - PUC/MG, da Universidade Católica de Brasília - UCB do Instituto de Ensino Superior de Brasília - IESB, do Centro Universitário de Anápolis - UNIEVANGÉLICA, do Centro Universitário de Brasília - CEUB e do Centro Universitário do Distrito Federal - UDF. É autor dos livros "O Supremo Tribunal Federal nas Constituições Brasileiras", "Memória Jurisprudencial - Ministro Evandro Lins", "Direitos Constitucionais Fundamentais", "Direito Constitucional Fazendário", "Constituição, Política & Retórica"; "Tributo, Direito & Retórica"; e "Lições de Direito Constitucional".

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALVES JR., Luís Carlos Martins. O novo marco legal do saneamento básico e o papel regulatório da Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 26, n. 6664, 29 set. 2021. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/93545. Acesso em: 21 nov. 2024.

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Texto baseado em apresentação no Curso “O novo marco legal do saneamento básico”, realizado pelo Centro de Estudos da Procuradoria-Geral do Município do Rio de Janeiro, organizado pelo prof. dr. Rafael Carvalho de Oliveira Rezende. Palestra ministrada no dia 9 de setembro de 2021, transmitida virtualmente.

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