É tormentosa, na doutrina e jurisprudência, a definição do termo inicial da prescrição da petição de herança.
Quando se está diante de filho já reconhecido, que desde logo possui o título sucessório, não há dúvidas: ao momento do indevido apossamento dos bens relativos a sua quota-parte, nasce sua pretensão de reavê-los, correndo o prazo prescricional a partir daí.
Verdadeira celeuma, no entanto, se instaura quando se está diante de filho ainda não reconhecido enquanto tal quando da morte do autor da herança.
Isso porque o reconhecimento formal da condição de herdeiro é pressuposto para reclamar direitos sucessórios.
Dessa forma, quem ainda não ostenta o status de filho – e, portanto, de herdeiro – perante o ordenamento jurídico, não detém legitimidade para ajuizar a ação de petição de herança.
E a pergunta que fica é a seguinte: poderia o prazo prescricional iniciar antes mesmo da possibilidade de exercício da pretensão? É amparada nesse questionamento que a corrente majoritária do Superior Tribunal de Justiça[1] afirma que apenas com o trânsito em julgado da ação de investigação de paternidade é que passa a correr o prazo prescricional da petição de herança para o filho não reconhecido em vida pelo de cujus.
No entanto, tenho que esse entendimento não pode ser aplicado indistintamente, isto é, sem atenção às peculiaridades de cada caso concreto. É que, como se sabe, a ação para declaração de filiação é imprescritível, o que, se contado a partir de seu trânsito em julgado o termo inicial para a prescrição da petição de herança, poderia levar a uma virtual imprescritibilidade desta última. Isso, em determinados contextos, pode causar forte insegurança jurídica, em contrariedade justamente à finalidade do instituto da prescrição. O que aqui se diz, portanto, é que se deve ponderar, sempre à luz das particularidades de cada cenário, os interesses em rota de colisão, verificando aquele que deve prevalecer (direito à herança x segurança jurídica).
Para melhor elucidar a questão, oferece-se, por fim, um exemplo baseado em caso real, em que a segurança jurídica deve prevalecer.
Pense-se na hipótese, mais usual do que o leitor possa imaginar, de uma ação de reconhecimento post mortem cumulada com petição de herança ajuizada 20 (vinte) anos após a morte do ascendente e 10 (dez) anos após a realização da partilha, sendo que o autor sabia que o falecido era seu pai muito antes disso – no caso, a ciência inequívoca decorria do fato de que o genitor esteve presente durante toda sua formação, tendo o requerente, inclusive, frequentado a mesma escola que seus meios-irmãos.
Ponderando os interesses em rota de colisão na hipótese ofertada, tenho por imperativo afirmar que, muito embora não tenham transcorrido 10 anos desde o trânsito em julgado da ação de investigação de paternidade post mortem até o exercício da pretensão de reaver os bens hereditários, a prescrição se operou.
É que, conhecendo sua ascendência desde o início de sua vida, o autor poderia, a contar de seus 18 anos, ingressar com a ação declaratória de filiação. No entanto, esperou 20 anos a partir da morte de seu pai e 10 anos desde a realização da partilha para ajuizar referida ação, cumulando-a com a petição de herança. Desse modo, o caso sob análise conta com a especificidade de que ao momento da abertura da sucessão o autor inequivocamente conhecia sua condição de filho/herdeiro (seja biológico, seja sociafetivo) e, não obstante, optou por não vê-la reconhecida formalmente – e, assim, não exercer seus direitos sucessórios –, permanecendo em profunda inércia durante décadas. Em outras palavras, o autor apenas não reuniu antes os pressupostos para reclamar seus direitos sucessórios por circunstância a ele imputável, o que faz da presente pretensão de reaver os bens da partilha ultimada uma década antes verdadeiro abuso de direito, o que deve levar à sua fulminação.
Do contrário, os réus se verão indevidamente surpreendidos, em ofensa à sua segurança jurídica. É que, com a alongada demora, foram levados a acreditar que o autor não exerceria seu direito à herança. Ou seja, o requerente criou, com seu comportamento, uma legítima expectativa, que deve ser protegida pelo direito sob o manto da boa-fé objetiva, vedando-se a adoção de conduta diversa (venire contra factum proprium).
Dessa forma, em conclusão, a regra é que na hipótese de filho não reconhecido enquanto tal ao momento da abertura da sucessão, o prazo prescricional para a petição de herança tem início apenas com o trânsito em julgado da ação de investigação de paternidade, mas, em casos como o do exemplo ofertado – quando, ao momento da abertura da sucessão, o filho já sabia de sua condição –, há necessidade de excepcionar referido entendimento, ponderando, de outro lado, a segurança jurídica dos demais herdeiros.
[1] RECURSO ESPECIAL. SUCESSÃO. INVENTÁRIO. INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE. RECONHECIMENTO POST MORTEM. PETIÇÃO DE HERANÇA. PRESCRIÇÃO. ART. 205 DO CÓDIGO CIVIL DE 2002. TERMO INICIAL. TRÂNSITO EM JULGADO. TEORIA DA ACTIO NATA. 1. Recurso especial interposto contra acórdão publicado na vigência do Código de Processo Civil de 2015 (Enunciados Administrativos nºs 2 e 3/STJ).
2. A pretensão dos efeitos sucessórios por herdeiro desconhecido é prescritível (art. 205 do CC/2002). 3. O termo inicial para o ajuizamento da ação de petição de herança é a data do trânsito em julgado da ação de investigação de paternidade, à luz da teoria da actio nata. 4. Recurso especial provido. (REsp 1762852/SP, Rel. Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, TERCEIRA TURMA, julgado em 18/05/2021, DJe 25/05/2021)
RECURSO ESPECIAL. DIREITO CIVIL. SUCESSÕES. AÇÃO DE NULIDADE DE DOAÇÃO INOFICIOSA E PARTILHA DE BENS, CUMULADA COM PETIÇÃO DE HERANÇA. FILIAÇÃO RECONHECIDA E DECLARADA APÓS A MORTE DO AUTOR DA HERANÇA. PRAZO PRESCRICIONAL. TERMO INICIAL. TEORIA DA 'ACTIO NATA' EM SEU VIÉS SUBJETIVO. DATA DO TRÂNSITO EM JULGADO DA AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE. [...] Nas hipóteses de reconhecimento ‘post mortem’ da paternidade, o prazo para o herdeiro preterido buscar a nulidade da partilha e reivindicar a sua parte na herança só se inicia a partir do trânsito em julgado da sentença proferida na ação de investigação de paternidade, quando resta confirmada a sua condição de herdeiro. Precedentes específicos desta Terceira Turma do STJ. (REsp 1605483/MG, Rel. Ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO, TERCEIRA TURMA, julgado em 23/02/2021, DJe 01/03/2021)