A população transexual no sistema prisional brasileiro

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Reflexões sobre os direitos das pessoas transgêneros no atual panorama carcerário brasileiro.

RESUMO: A presente pesquisa tem por objetivo trazer as características e regras legais sobre o encarceramento de pessoas transgênero, no âmbito da Lei de Execução Penal, bem como tratar dos impactos e influência das distinções de tratamento entre os transexuais masculinos e femininos, abordando questões concernentes à sua saúde física e mental. Além disso, as prováveis consequências da não observância do princípio da individualização da pena, estabelecido no artigo 5º, inciso XLVI, da Constituição Federal, sem prejuízo à fundamental observância à dignidade da pessoa humana. Trata-se de uma pesquisa exploratória, qualitativa e desenvolvida por meio do método dedutivo, utilizando-se a pesquisa bibliográfica e documental.

PALAVRAS-CHAVE: Transexualidade, Diferenciação, Execução Penal.


INTRODUÇÃO

Apesar de alguns direitos já adquiridos por pessoas transgênero, ainda há muito a ser discutido, frente à realidade de preconceitos e discriminações sofridos e aqui, em especial, nos termos de garantias jurídicas a esta parcela marginalizada da população, principalmente, no que tange à Execução Penal.

Esta análise justifica-se, pois, pela ampliação das discussões acerca das questões de identidade de gênero, concernente às pessoas transexuais e à luta pelo reconhecimento no âmbito jurídico, no que diz respeito às múltiplas identidades inseridas na sociedade. Conforme exposto por (NÓBREGA; SOUSA, 2019, n.p):

No campo sexual, os indivíduos que se manifestavam diferente do tradicionalismo heterossexual foram combatidos por muito tempo. A era da evolução dos direitos intrínsecos à pessoa humana refreou esse ímpeto dominador de minorias e deu voz àqueles que por muito tempo precisaram calar-se.

É salutar repensar a estrutura prisional, com o intuito de preservar direitos básicos a estes cidadãos, uma vez que o aparato jurídico contemporâneo acaba contribuindo para a manutenção de um sistema segregador, especialmente, no tocante aos homens transgêneros. Ao não atender as suas particularidades, as discrepâncias tornam-se mais veladas, podendo ocasionar ainda mais violências e retaliações.

Portanto, pretende-se abordar tais questões relacionadas ao Direito Penal, com enfoque na Execução Penal, visando entender as complexidades que permeiam o cumprimento da pena por homens transgêneros, especificamente quando estão encarcerados, e se o sistema prisional absorve e se adequa às novas demandas de gênero.


MATERIAL E MÉTODOS

Trata-se de uma pesquisa com objetivos exploratórios, de abordagem qualitativa, desenvolvida por meio do método hipotético-dedutivo no qual, tratando-se de uma pesquisa básica de caráter descritivo. Pesquisa descritiva tem como objetivo primordial a descrição das características de determinada população ou fenômeno ou o estabelecimento de relações entre variáveis. (GIL, A. C., 2008, p.28). Através de premissas já existentes, chega-se a uma conclusão, porém, sem apresentar qualquer informação inovadora, apenas utilizando o que estava de forma implícita nas premissas; o método exploratório, onde com análise bibliográfica e documental são reunidas informações sobre o tema para discussão; o método qualitativo, empregado para estudo das relações humanas interpretando através dos dados coletados. Como instrumentos de coleta de dados, destaca-se a pesquisa bibliográfica e a documental.


RESULTADOS E DISCUSSÃO

A pena possui três finalidades: a) a teoria absoluta entende a pena como uma maneira de fazer justiça, não apenas um castigo; b) a teoria relativa, tem a intenção de prevenir novos delitos e impedir a reincidência ao crime; e c) a teoria mista, mesclando as teorias anteriores, busca punir o criminoso e atuar na prevenção de novas condutas delituosas (ROIG, 2021, p. 15).

Foucault, ao investigar as leis penais aplicadas em diversos períodos da história, em cada época distinguiu os modelos de punição e analisou o momento do abandono dos castigos físicos e das mutilações, as quais deram vez a uma nova maneira de aplicação das penas:

A punição vai se tornando, pois, a parte mais velada do processo penal, provocando várias consequências (...) a certeza de ser punido é que deve desviar o homem do crime e não mais o abominável teatro; a mecânica exemplar da punição muda as engrenagens. Por essa razão, a justiça não mais assume publicamente a parte de violência que está ligada a seu exercício. O fato de ela matar ou ferir já não é mais a glorificação de sua força, mas um elemento intrínseco a ela que ela é obrigada a tolerar e muito lhe custa ter que impor. (...) Desde então, o escândalo e a luz serão partilhados de outra forma; é a própria condenação que marcará o delinquente com sinal negativo e unívoco: publicidade, portanto, dos debates da sentença; quanto à execução, ela é como uma vergonha suplementar que a justiça tem vergonha de impor ao condenado(...) (2004, p. 14-15)

Mesmo com o abandono dos castigos físicos, Foucault entende que as novas configurações de poder e punição aplicadas continuam a causar castigos, porém, não mais de maneira estritamente física, entendendo o corpo como uma figura política, padronizando-o de acordo com a aceitação social, entendendo essa prática como docilização de corpos, sendo essa uma característica da intervenção penal moderna, a qual Foucault chamou de tecnologia política do corpo. Nesse sentido:

Trata-se, de alguma maneira, de uma microfísica do poder posta em jogo pelos aparelhos e instituições, mas cujo campo de validade se coloca de algum modo entre esses grandes funcionamentos e os próprios corpos com sua materialidade e suas forças (2004, p. 30).

O cárcere, no período da modernidade, é visto como uma medida disciplinar e de controle, onde as prisões teriam o papel de eliminar aqueles que, de qualquer forma, não se conformam com as normas pré-estabelecidas, na tentativa de domesticar esses sujeitos.

(...) a prisão pode ser vista como uma estrutura preocupada justamente em dar conta das sobras do processo de controle da violência, monopolizando a violência e a lei. Naquele momento, o controle social estava direcionado àquelas pessoas que apresentavam dificuldades de se inserirem no processo produtivo emergente e não se enquadravam nem como trabalhadores, nem como carentes, e precisavam ser, por isso, disciplinadas. A essa sobra da sobra, a prisão passou a ser alternativa (WOLFF; FERREIRA, 2011, p. 48).

A neutralização das classes consideradas perigosas é o objetivo central na contemporaneidade, entretanto, a busca pela reforma do sujeito não foi totalmente abandonada. Assim:

A coexistência entre os modelos disciplinar, biopolítico e de controle é, pois, característica das sociedades ocidentais contemporâneas que têm altas e crescentes taxas de encarceramento aliadas a mecanismos de vigilância a céu aberto. Há também o exercício do poder tanto sobre o corpo individual como sobre a população (ALEIXO, 2012, p. 73).

Sendo as prisões consideradas o meio punitivo e privativo de liberdade aplicado, a Lei de Execução Penal foi criada com a intenção de promover princípios e regras que jurisdicionalizem a execução das penas, no intuito de avalizar direitos e garantias ao sentenciado. Inclusive, dispõe em seu art. 3º, que serão assegurados ao condenado ou internado todos os direitos não atingidos pela sentença ou pela lei (BRASIL, 1984), sem contar que trouxe nova redação ao Código Penal, ao corroborar que são conservados ao preso todos os direitos não atingidos pela perda da liberdade.

Entretanto, essa não é a realidade que se vislumbra nos estabelecimentos prisionais, agravada pelo fato de o Brasil deter um dos maiores índices de encarceramento no mundo. Se o cárcere já evidencia uma série de dificuldades para os presos, com sérias afrontas aos direitos humanos, sejam eles do gênero masculino e, mais severamente ao feminino, quanto mais ao transgênero, aquele que elegeu uma identidade ou ainda, a forma como se expressa, diferente daquela que lhes foi atribuída ao nascer.

A Carta Magna estabeleceu, em seu art. 5º, inciso XLVI, que aos condenados fosse garantida a individualização de sua pena, levando em consideração todas as suas particularidades, para que não só sua aplicação seja justa, mas também o seu cumprimento (BRASIL, 1988). Porém, segundo Aleixo e Penido (2018, p. 33), o que ocorre é uma homogeneização do sujeito, não levando em conta suas especificidades. Assim, deve o preso ser visto como indivíduo, na verdadeira acepção da palavra, enquanto sujeito de direitos. O Estado, apesar de estabelecer a igualdade entre todos, fecha seus olhos às diferenças.

A Resolução Conjunta nº 1, de 15 de abril de 2014, estabelece os parâmetros de acolhimento dos LGBTs em privação de liberdade no Brasil, a qual prevê em seu artigo 4º as pessoas transexuais masculinas e femininas devem ser encaminhadas para as unidades prisionais femininas (BRASIL, 2014), ou seja, coloca todos os transexuais em uma mesma categoria, o qual corrobora com a lógica heteronormativa da sociedade. No mesmo sentido, tem-se a ADPF 527, através de decisão proferida pelo Ministro Luís Roberto Barroso onde, em resumo, fica facultado às mulheres trans decidir se ficarão em presídios masculinos ou femininos.

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O fato é que a realidade do sistema prisional exibe falhas comuns a todos, tais como as queixas quanto à alimentação, principalmente no tocante à qualidade; quanto às condições de higiene, diante da precariedade de itens mais básicos de higiene pessoal; quanto à superlotação; quanto à ausência de oportunidades para trabalho e estudo, fundamentais para o processo de ressocialização e, não menos importante, quanto à saúde e os vários aspectos a ela relacionados. Considerando as necessidades específicas às questões de gênero, poder-se-ia começar afirmando sobre a dificuldade de acesso a itens femininos, compreendidos como roupas, maquiagens, produtos para cabelo e unha; e, outros, relacionados, por exemplo, acesso a hormônios. Questões igualmente relevantes merecem destaque e dizem respeito à convivência com os outros detentos e até com os agentes penitenciários, quando são expostas a situações vexatórias, sem contar a violência, seja física ou psicológica.

Desta forma, pode-se afirmar que os transexuais, dentro das prisões, sofrem todos os tipos de violência, sendo vítimas não só de pessoas com as quais convivem, mas de todo o sistema prisional, posto que não são ajudados em suas necessidades, em respeito aos seus direitos no tocante à identidade de gênero, sendo, de fato, invisíveis.

É notório que o sistema atual não resguarda os direitos das pessoas trans, muito menos quando considerados os homens. Nota-se que, além de todas as violações sofridas, apresentam-se invisibilizadas pelo sistema penal, frente à carência de dados oficiais referentes à população carcerária LGBT, no Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias do Ministério da Justiça e Segurança Pública (Infopen). A ausência dessas informações dificulta a implementação de programas voltados a essa temática.


 CONCLUSÃO

Nessa breve análise pôde-se observar, embora seja necessária a fixação de sanção penal frente à prática de condutas tipificadas na legislação penal, a lei estabelece normas e critérios para que seja aplicada. Entretanto, embora a Lei de Execução Penal, aliada aos ditames constitucionais, disponha sobre o tema, na prática, verifica-se a sua não observância, precipuamente no que tange aos transgêneros masculinos, pois toda a sua individualidade não é levada em conta, quando do cumprimento da sentença.

Nem mesmo o artigo 4º da Resolução Conjunta nº 1, bem como a ADPF nº 527, embora constituíam um avanço, conseguem entender e abranger as particularidades de homens transexuais, havendo um real apagamento de sua identidade. É notório que se buscou uma solução, levando em conta a problemática de levá-los a presídios masculinos, porém, a discussão não foi estendida, onde continuam esquecidos em suas celas pelo poder público, o que se confirma, inclusive, pela ausência de maiores dados acerca do tema.


REFERÊNCIAS

ALEIXO, Klelia Canabrava. Ato infracional: ambivalências e contradições no seu controle. Curitiba: Juruá, 2012.

ALEIXO, Klelia Canabrava; PENIDO, Flávia Ávila. Execução penal e resistências. Belo Horizonte: Editora DPlácido, 2018.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 1988, 292p.

_____. Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984. Institui a Lei de Execução Penal. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7210.htm. Acesso em: 27 set. 2021.

_____. Departamento Penitenciário Nacional. Resolução Conjunta nº 1, de 15 de abril de 2014. Disponível em: https://www.gov.br/depen/pt-br/composicao/cnpcp/resolucoes/2014/resolucao-conjunta-no-1-de-15-de-abril-de-2014.pdf/view. Acesso em: 27 set. 2021.

_____. Supremo Tribunal Federal. Medida Cautelar na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 527 Distrito Federal. Disponível em: https://stf.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/1183757118/medida-cautelar-na-arguicao-de-descumprimento-de-preceito-fundamental-adpf-527-df-0073759-7820181000000/inteiro-teor-1183757124. Acesso em: 27 set. 2021.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Trad. Raquel Ramalhete. 28. ed. Petrópolis: Vozes, 2004.

GIL, Antonio Carlos. Como elaborar projetos de pesquisa. 4 ed. São Paulo: Atlas, 2008.

NÓBREGA, Monnizia Pereira; SOUSA, Marília Gomes Barbosa Ferreira. Transexualidade: análise dos reflexos jurídicos na esfera civil decorrentes da readequação sexual. In: BAHIA, Alexandre Gustavo Melo Franco et al. Gênero, sexualidade e Direitos Fundamentais para além do Binarismo. Porto Alegre: Editora Fi, 2019.

ROIG, Rodrigo Duque Estrada. Execução penal: teoria crítica. 5 ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021.

WOLFF, Maria Palma; FERREIRA, Guilherme Gomes. Vulnerabilidade penal no contexto das penas e medidas alternativas. In: Somos Comunicação, Saúde e Sexualidade. Construindo Elos: um debate sobre gênero, violência e direitos humanos em penas e medidas alternativas. Porto Alegre: Somos, 2011.

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Sobre os autores
Maria Eunice de Oliveira Costa

Professora Adjunta da Faculdade de Direito do Sul de Minas - FDSM. Mestra em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná - UFPR. Especialista em Direito Constitucional e Direito Processual Civil pela Faculdade de Direito do Sul de Minas - FDSM. Advogada.

Matheus de Oliveira Rizzi

Graduando do Curso de Direito do Centro de Ensino Superior dos Campos Gerais CESCAGE.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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