Depois da vigência da Lei 11.232/05, a liquidação de sentença passou a ostentar natureza jurídica de incidente processual que visa a declarar a certeza, liquidez e exigibilidade do título executivo processado perante o juízo de primeiro grau de jurisdição, dando à parte que tem razão, e na medida em que tenha condições processuais, a satisfação de seu direito pleiteado perante o Estado-juiz. O deslocamento do instituto - do Livro II para o Livro I - visou adequar o novo regime adotado pela mesma lei: o regime do processo sincrético, que unificou as fases de conhecimento e execução dos títulos executivos judiciais (regra geral). Desse modo, não tem mais natureza jurídica de "ação", como outrora, em compasso com a tendência do processo civil constitucional (moderno), cuja tempestividade é uma de suas principais características, deixando o rigor do instituto que recai sobre o direito público subjetivo da ação para ser momento processual subseqüente à decisão judicial que reconheça a formação/existência de título executivo, abrindo-se à parte que teve seu direito reconhecido (declarado) em juízo a oportunidade de execução forçada da obrigação descumprida pelo demandado (devedor-executado).
Com efeito, obtida a declaração judicial do incidente de liquidação, que recairá nas decisões "não-satisfativas", por necessitarem essas de posteriores atos processuais para atingir sua finalidade de satisfação do pleiteado (o que não ocorre em regra com as sentenças declaratórias e constitutivas em sentido estrito), recaindo-se, portanto, nas decisões judiciais condenatórias (sentido lato), tem a parte titular do título executivo meio jurídico-processual que enseja ato material de execução forçada contra o obrigado inadimplente.
Sua finalidade é, então, a de dar condições materiais à execução do direito judicialmente reconhecido.
Deu a entender o Código de Processo Civil, quanto às suas espécies, que são genuinamente espécies de liquidação de sentença: i) a liquidação por arbitramento (art. 475-C e ss.) ii) e a liquidação por artigos (art. 475-E e ss.). Ocorre que o art. 475-B se refere a uma espécie de "liquidação" nos casos em que a condenação depender apenas de "cálculo aritmético", onde o credor requererá o cumprimento da sentença, na forma do art. 475-J do mesmo Código, instruindo o pedido com a memória discriminada e atualizada do cálculo. Abre-se então a discussão na processualística se essa última constitui espécie de "liquidação da sentença". Embora o juízo possa se utilizar do contador judicial quando a memória apresentada pelo credor aparentemente exceder os limites da decisão exeqüenda, o que de certa forma constitui tímida forma de "liquidação", pois há certa matéria a ser dirimida pelo auxiliar técnico do juízo, tende-se na doutrina e jurisprudência a negar a natureza jurídica de liquidação de sentença propriamente dita ao incidente do "cálculo aritmético", diferentemente do que ocorre com as liquidações por "arbitramento" e "artigos", cuja depuração do título executivo processado sofre maior desencadeamento de atos processuais se comparados com a "liquidação por cálculo aritmético" (nas "liquidações propriamente ditas" há confecção de laudo e até a possibilidade de audiência para dirimir questão relevante, o que não ocorre nos "cálculos", que apesar de possuir alguma "instrução" não tem o rigor das liquidações por arbitramento ou por artigos, que são bem mais complexos). Mas não se pode negar, por outro lado, certa dose de incidente processual (menos intenso, reconheça-se) dessa mascarada espécie de "liquidação". O incidente de "liquidação por cálculo aritmético" já existia no regime anterior (revogado art. 604 do CPC), onde a discussão sobre sua natureza jurídica já era debatida sem sede doutrinária e jurisprudencial, não sendo nenhuma novidade, destarte, os "cálculos aritméticos" trazidos pela lei 11.2321.
Tendo agora sido positivada a natureza jurídica de incidente processual, prescindindo-se da formalidade da "ação" como se exigia no antigo regime, far-se-á o processamento de chamamento do réu nos processos (fases) de liquidação na forma de requerimento, intimando-o na pessoa de seu advogado nos termos dos arts. 475-A, 475-B e 475-D do Código de Processo Civil, o que se compadece com a unificação dos processos de conhecimento e execução dos títulos executivos judiciais (regra geral), que visa dar concreção material ao direito da parte que tem razão e na medida em que tenha de forma tempestiva sob pena de inutilidade do processo como meio de pacificação social e composição das lides. A burocracia do direito público subjetivo da ação destoa da celeridade processual (duração razoável do processo, art. 5º, LXXVIII, da Constituição Federal2) exigida dos órgãos republicanos como instituições constituídas (segundo grau) pela vontade originária do poder constituinte (primeiro grau), que quis dar solução rápida e efetiva às demandas levadas ao Estado-juiz para dar vazão à promessa constitucional trazida ao ordenamento jurídico positivo pela Constituição-dirigente de 19883. Processo judicial ou administrativo letárgico descumpre o texto magno e cai em inegável inconstitucionalidade material, ainda que a forma seja respeitada durante o desencadeamento do feito. Mais do que a forma, é preciso o respeito à matéria: "matéria de processamento rápido e justo" das demandas levadas ao Poder Judiciário!
Sobre a liquidação provisória, diz a lei que a liquidação poderá ser requerida na pendência de recurso, processando-se em autos apartados, no juízo de origem, cumprindo ao liquidante instruir o pedido com cópias das peças processuais pertinentes (art. 475-A, § 2º, do CPC). Se for admitida liquidação na pendência de recurso, ou seja, quando ainda não há coisa julgada material diante da sobrevivência da lide em razão da possibilidade de reforma do julgamento por órgão hierarquicamente superior, por coerência se admite a "liquidação provisória", pois se tratando de fase processual (incidente) que declara a existência, certeza e exigibilidade do título executivo que ainda admite reforma, não seria possível que a liquidação processada nessas circunstâncias ostentasse natureza jurídica de incidente processual definitivo ("liquidação definitiva"). Ademais, diante do regime trazido pela lei 11.232, deixou a liquidação de ser "processo autônomo" e passou a ser vista como fase ou incidente processual que dirime questão incidente posterior ao conhecimento da matéria alegada e reconhecida (mérito) e anterior à execução do direito (satisfação), tendo, assim, natureza jurídica de matéria que não julga propriamente o mérito da lide, sendo possível diante da técnica processual vigente se falar em "liquidação provisória". Seguindo a tônica do direito material, a lógica obriga a preconizar também em sede de liquidação a regra geral de que o acessório segue a sorte do principal: a liquidação segue a sorte do título executivo; se não há mais título executivo a ser liquidado, pois se verificou, ao depois (em grau de recurso), a inexistência do mesmo, não há falar-se em liquidação (não há processo – fase – de execução sem título executivo), daí ser admissível "liquidação provisória" do título executivo até então reputado como juridicamente existente pelo juízo provisório de cognição e verossimilhança.
Outra inovação da lei derrogante abre a seguinte dúvida: é possível o proferimento de sentença ilíquida nas ações que visem o ressarcimento de danos causados em acidente de veículo em via terrestre?
Não, por expressa disposição legal (art. 475-A, § 3º, do Código de Processo Civil), que não admite "sentença ilíquida" e dá poder para o juiz fixar de plano e ao seu prudente critério o valor devido. Hipótese de proibição que alcança também a alínea "d", do inciso II, do art. 275 do Código (rito sumário), tratante das ações que visem o ressarcimento de danos causados em acidente de veículo em via terrestre. Alexandre Freitas Câmara faz interessante apontamento sobre a sentença ilíquida nos casos do art. 275, II, "d", do CPC: "Outro caso de vedação da sentença condenatória genérica, porém, é um completo disparate... Ora, nesses casos tem-se, com muita freqüência, danos causados à pessoa, e não só à coisa. E pode então acontecer de o demandante, no momento do ajuizamento da petição inicial não ser capaz de determinar toda a extensão do dano sofrido. Basta pensar, por exemplo, na hipótese de a vítima do acidente ter de se submeter a um tratamento médico de longo prazo em razão das lesões sofridas no acidente. Nesse caso, não seria razoável exigir que a vítima aguarde o desfecho do tratamento para só depois demandar. Permite-se, pois, a formulação de pedido genérico (art. 286, II, do CPC).
Ora, se o demandante não consegue, no momento do ajuizamento da petição inicial, determinar toda a extensão da obrigação do demandado, pode acontecer de tal determinação tampouco ser possível no momento da sentença, caso em que ao juiz não seria possível proferir condenação ordinária (e seria, então, inevitável proferir-se condenação genérica, deixando-se a liquidação do valor devido para momento posterior). A regra insculpida no art. 475-A, § 3º, do CPC, porém, proíbe a prolação de condenação genérica, e determina ao juiz que fixe o valor da condenação "a seu prudente critério". Isto é, porém, completamente desarrazoado. Basta pensar em duas hipóteses: a) o juiz fixa um valor que, afinal, se revela insuficiente para cobrir todo o prejuízo sofrido pelo autor; b) o juiz fixa um valor que, afinal, revela-se excessivo. No primeiro caso, não poderia a vítima do acidente postular o complemento da indenização, pois a tanto lhe vedaria a coisa julgada material. No segundo caso, não poderia o ofensor pleitear a repetição do indébito, pelo mesmo motivo. Vê-se, pois, que a norma aqui apreciada é completamente despida de razoabilidade. Por essas razões, há quem sustente que esse dispositivo criou para o juiz o poder de decidir esses casos por eqüidade. De outro lado, já há quem afirme que esse dispositivo deve ser compreendido como se dissesse que o juiz não proferirá sentença ilíquida, salvo quando falte elemento necessário para a fixação do valor devido. Penso que não se deve acatar aqui nenhuma dessas duas proposições. A meu juízo, a melhor interpretação do dispositivo leva a concluir que, sempre que o juiz verificar que as características da causa impedem a determinação do valor devido já na sentença, deverá converter o procedimento sumário em ordinário, em razão da complexidade da causa. Estando presentes, porém, os elementos necessários para a determinação do quantum debeatur, a sentença será obrigatoriamente líquida. O ideal, porém, é que essa norma desaparecesse, já que o procedimento ordinário é mais demorado e complexo do que o sumário, e essa obrigatória conversão vai contra o ideal de tempestividade da tutela jurisdicional"4.
O apontamento do carioca é emblemático. Apesar de não se negar que as demandas judiciais têm de ser processadas da maneira mais célere possível, desde que respeitante aos direitos constitucionais derivados do devido processo legal, não enxergo outra solução senão a inevitável conversão do rito sumário ao ordinário, ainda que a matéria se alongue por mais algum tempo. Há meios processuais, todavia, para que o juiz antecipe eventual tratamento médico necessário durante o procedimento da lide (por exemplo, antecipando os efeitos da tutela pretendida na forma do art. 273 do CPC). O que não se pode admitir é que o manto da coisa julgada material impeça o recebimento do valor realmente correspondente quando a parte requereu menos do que o necessário, não podendo depois reaver o que não foi adimplido como se deveria, ou mesmo quando receba quantia superior do que realmente necessitava e o demandado seja impedido para ajuizar ação de repetição de indébito pelo mesmo motivo (coisa julgada material). Por entender que o processo é instrumento de aplicação do direito material, devendo a este estar sempre correlato (o direito de ação não pode ser visto de forma totalmente dissociada do direito material, como no passado, quando o direito processual foi debutado), não vejo melhor saída senão a conversão do rito sumário para o rito ordinário. Entre dois ou mais direitos em cotejo (material ou processual), deve-se atender o que melhor prestigia a razoabilidade. Penso, assim, que é mais razoável a conversão do rito do que negar parcialmente o direito da parte que tem razão e ajuíza a ação de reparação de danos e perdas e acaba pedindo menos do que teria direito ou do que negar o direito daquele demandado em pagar realmente o valor devido, deixando o processo cristalizar a impossibilidade da repetição do indébito pela estaca da coisa julgada material. Ao invés de negar, ainda que parcialmente, o direito à parte (seja o direito do demandante ou do demandado), a conversão nessas hipóteses é a medida mais prudente e a que menos agride o princípio da razoabilidade constitucional5, devendo ser tomada desse modo pelo juiz para que se evite: i) a temida "sentença ilíquida" ii) ou mesmo para que se evite a tutela jurisdicional que não dê à parte o direito que ela realmente tenha e na medida em que tenha em razão da "injustiça" da decisão que a pretexto de se evitar a decisão ilíquida acaba dando menos ou mais direito à parte, colidindo com o princípio constitucional que garante não só a apreciação de lesão ou ameaça a direito pelo Poder Judiciário bem como a garantia de efetividade dessa tutela, pois é inimaginável que o Estado garanta o acesso à justiça sem que ao mesmo tempo possa garantir a correlata proteção do direito violado, seja diante de lesão ou ameaça a direito6.
E como deve se entender a expressão "se for o caso", descrita no artigo 475-A, § 3.º, do Código de Processo Civil?
Conforme as ponderações trazidas por Freitas Câmara, me parece que a norma dá ao juiz margem de discricionariedade para gizar o quantum debeatur de acordo com as circunstâncias da lide, podendo arbitrar o devido mediante juízo de eqüidade o que entenda ser necessário ao adimplemento justo de determinada ação de reparação de danos e perdas (art. 127 do CPC). A justificativa é a nova visão do processo civil constitucional (moderno), que permite maior poder ao juiz para que não se finque à literalidade da lei, quando impossível se extrair da norma (material ou processual) à primeira vista seu verdadeiro sentido, sua verdadeira finalidade, agremiada com os métodos de interpretação que a doutrina construiu ao longo dos tempos: histórico, autêntico, literal, teleológico ou lógico (finalístico) e sistemático, dentre outras classificações7. Diferente do juiz de outrora, do Estado liberal de previsão e nem sempre garantia dos direitos constitucionais, tem o processo civil de hoje mecanismos de interpretação aos quais desamarra o juiz da tipicidade das formas, principalmente das formas executivas. Caminha o processo civil moderno para uma maior valorização da execução dos julgados, que só será bem vinda se for ofertada à parte que tem razão e na medida em que tenha caso for adimplida em seu crédito de forma tempestiva sob o risco da busca ao Poder Judiciário se tornar inútil! Melhor dar maior poder ao juiz, fazendo assim com que ele cumpra seu múnus perante a sociedade, do que prendê-lo às deficiências da lei, não permitindo que ele possa através do processo tutelar os direitos diante das necessidades concretas da lide. Acaso seja ultrapassado o limite do razoável tem os demais órgãos da república meios para impugnar, controlar e reformar eventual excesso praticado pelo juiz nos termos do princípio da proporcionalidade, que segundo o mestre cearense Paulo Bonavides, é princípio inato ao texto constitucional vigente8. Bom exemplo do poder-dever que tem hoje o juiz à decisão da lide são as decisões de cumprimento (mandamentais e executivas) das tutelas diferenciadas (específicas e de urgência), que foram reforçadas pela lei 11.232 ao unir em fases ou módulos as matérias antes atinentes ao processo de conhecimento e executivo do regime antigo, ora derrogado pela sua evidencia inépcia.
Mesmo assim, acredito que na dúvida curial o juiz deve converter o rito (sumário para ordinário; se possível conceder a antecipação dos efeitos da tutela pretendida), pois será pior para sua consciência e muito pior para o direito da parte que seja dado menos do que o devido ou que o pago seja superior ao que era devido, sem que se possa reverter tal situação em decorrência da força da coisa julgada material.
O processo9, instrumento do direito, não pode ser maior que o próprio direito, pois ninguém vai a juízo "discutir o processo" em si mesmo; as genuínas cautelares (arresto, seqüestro, por exemplo) visam, em verdade, a preservação, através do processo, do próprio interesse buscado, de direito material, e não do "processo pelo processo", evidentemente10.
A necessidade de cálculos aritméticos, todavia, não justifica a liquidação, por expressa disposição legal (art. 475-B do CPC). Há nítida diferença entre os institutos ("cálculos aritméticos" e "liquidação por arbitramento ou artigos"): i) a determinação do valor da condenação, quando depender apenas do "cálculo aritmético", poderá o credor requerer o cumprimento da sentença na forma do art. 475-J do Código, instruindo o pedido com a memória discriminada e atualizada do cálculo (art. 475-B) ii) se a elaboração da memória do cálculo depender de dados existentes em poder do devedor ou de terceiro, o juiz, a requerimento do credor, poderá requisitá-los, fixando prazo de até trinta dias para o cumprimento da diligência (art. 475-B, § 1º) iii) se os dados não forem, injustificadamente, apresentados pelo devedor, reputar-se-ão corretos os cálculos apresentados pelo credor, e, se não o forem pelo terceiro, configurar-se-á a situação prevista no art. 362 (art. 475-B, § 2º) iv) poderá o juiz valer-se do contador do juízo quando a memória apresentada pelo credor aparentemente exceder os limites da decisão exeqüenda e, ainda, nos casos de assistência judiciária (art. 475-B, § 3º) e v) se o credor não concordar com os cálculos nos termos do § 3º far-se-á a execução pelo valor originariamente pretendido, mas a penhora terá por base o valor encontrado pelo contador (art. 475-B, § 4º).
Diferentemente das espécies de "liquidação da sentença" (arbitramento e artigos), não há no incidente processual dos "cálculos aritméticos" uma instrução com o rigor que há nas genuínas liquidações (arts. 475-D e 475-E, respectivamente), pois neste último caso o grau de complexidade da matéria justifica a confecção de laudo pelo experto e até a premente necessidade de audiência para dirimir questão relevante, o que não ocorre no incidente dos "cálculos aritméticos", bem mais simples e onde não existe uma instrução como ocorre com as "liquidações puras" (arbitramento e artigos). Daí a desnecessidade dos cálculos aritméticos justificarem a liquidação, pois um incidente afasta o outro diante do grau de hierarquia quanto à complexidade dos atos processuais a serem realizados: ou se tem os "cálculos aritméticos" ou se tem alguma espécie de liquidação.
E quanto à sentença de liquidação ser julgada improcedente, cumpre frisar que a improcedência da liquidação decorre da própria interpretação que se deva dar ao novo art. 475-H do Código de Processo Civil, que abriga a possibilidade da parte agravar por instrumento decisão desfavorável proferida no incidente de liquidação. Ocorre que diante do novo regime adotado pela lei 11.232, não mais se fala em "sentença de liquidação", que antes era atacável mediante recurso de apelação, mas sim em "decisão interlocutória de liquidação", justificada pela decisão incidente proferida em momento processual posterior ao conhecimento da matéria alegada (fase de conhecimento) e anterior à execução forçada (fase de execução), pois o novo regime unificou os antigos processos de conhecimento e execução (ainda que somente nos títulos executivos judiciais como regra) não sendo mais compatível com o texto novo (derrogante) a burocracia do regime antigo que alçava a liquidação como "processo autônomo", revestindo inegável natureza jurídica de ação às liquidações anteriores à vigência da lei 11.232.
A natureza jurídica da decisão que julga a liquidação sofreu substancial status no ordenamento, pois antes da reforma o juiz decidia a liquidação por sentença; o instituto era visto como "processo autônomo" (iniciado mediante "ação") em relação ao anterior processo de conhecimento, sendo meio de preparação ao posterior processo de execução do julgado. Mas agora seu regime jurídico mudou drasticamente porque a liquidação ostenta hodiernamente natureza jurídica de fase ou incidente processual do conhecimento da matéria posta em juízo, e ainda que prepare (sendo anterior, portanto) a execução do julgado, como se dava recentemente no regime revogado (autonomia do "processo" de liquidação), não necessita mais do formalismo do direito público subjetivo da ação. É expressão do processo sincrético que se tem na atual processualística brasileira que a parte tenha a satisfação de seu direito de forma menos burocratizada possível. Então como se trata de incidente processual posterior ao conhecimento do direito alegado (mérito) e anterior à execução (satisfação) do mesmo direito, possui inegável natureza jurídica de decisão interlocutória a decisão que julga a liquidação, desafiando destarte o recurso de agravo processado na forma de instrumento (nos termos da lei 11.187/05) diante de expressa disposição legal: "Da decisão de liquidação caberá agravo de instrumento" (art. 475-H instituído pela lei 11.232).
Quanto à prescrição, houve alteração no recente bloco de reformas ao Código de Processo Civil, sendo vigente o reconhecimento da prescrição extintiva como uma das hipóteses que ensejam a resolução (julgamento) do mérito da lide, ainda que diante do novo regime adotado pela lei 11.232 não haja necessariamente a extinção do processo em primeiro grau de jurisdição (pense-se em prescrição parcial do direito alegado). A doutrina afirmava - diante do regime antigo - que não haveria uma verdadeira hipótese de julgamento do mérito propriamente dito e sim que haveria "falsa" apreciação da matéria (mérito) diante do conhecimento superficial encetado. Não se tratava, portanto, de apreciação do mérito na acepção pura da palavra. Mesmo assim havia a extinção do processo na primeira instância por expressa disposição legal (art. 269 do CPC em sua redação antiga). Considerava-se que se estava diante de norma que trazia consigo inegável matéria de ordem pública e que deveria ser conhecida de ofício com a conseqüente extinção do processo quando não se tratava de direitos patrimoniais (art. 219, § 5º, em sua redação antiga), uma vez que se tratando de direito disponível da parte (patrimonial) o juiz não deveria extinguir o feito sem o requerimento da parte nesse sentido, salvo se favorecesse absolutamente incapaz (art. 194 do Código Civil).
A lei 11.280/06, que revogou o art. 194 do Código Civil e derrogou o art. 219, na redação de seu § 5º, do Código de Processo Civil, permitiu ao juiz pronunciar de ofício a prescrição ("extintiva"), independentemente da demanda versar ou não interesse de incapaz e independentemente se a declaração da prescrição e conseqüente resolução (julgamento) de mérito irão ou não beneficiar absolutamente incapaz. Quis a lei dar tratamento uniforme à matéria pois se alegava ofensa ao princípio constitucional da igualdade diante da possibilidade do juiz privilegiar o absolutamente incapaz podendo (devendo) extinguir o feito desde que conhecesse a matéria prescritiva, o que não ocorria quando não havia incapaz na lide ou quando eventual alegação de ofício pelo juiz pudesse prejudicá-lo. Aduzia-se que havia quebra da decantada imparcialidade do juiz, contaminando o processo, destarte. Para os críticos a respeito o juiz nessas hipóteses funcionava como um "curador do incapaz", não sendo compatível com seu múnus tal atividade em virtude da quebra do princípio da imparcialidade, de valor supremo na república.
Sem adentrar no mérito da reforma a respeito da possibilidade de agora o juiz ter o dever de declarar de ofício a prescrição extintiva independentemente do direito debatido na lide (se patrimonial ou não, ou se também patrimonial e com interesse de absolutamente incapaz, mesmo que a declaração irá ou não beneficiá-lo), que certamente é confim do direito material e lá é seu campo fértil de discussões mais aprofundadas, cabe fazer breve apontamento a respeito e já com o objetivo de abraçar o foco da questão: saber se a prescrição pode ser acolhida na liquidação.
Diz o novo artigo 475-G que é defeso, na liquidação, discutir de novo a lide ou modificar a sentença que a julgou (lei 11.232); o conteúdo dessa norma é justamente a de conferir caráter de mero incidente processual posterior ao conhecimento da matéria e anterior à execução do direito violado e apto à satisfação pela parte que tem razão e na medida em que tenha porque se fosse possível nova discussão da lide ou modificação da sentença que a julgou (portanto anteriormente à liquidação) seria inegável sua natureza de decisão de mérito, certo de que o regime da liquidação não se coaduna com o acertamento do mérito da lide (an debeatur) e sim com a "quantidade do mérito da lide" (quantum debeatur). Contudo, diante do novo regime adotado a contemporânea liquidação de sentença tem natureza jurídica de incidente processual (art. 475-H do CPC instituído pela lei 11.232) e por isso não resolve (julga) o mérito da lide e sim prepara o título executivo conhecido em juízo, dando-se a ele existência, certeza e exigibilidade para posterior execução forçada diante do inadimplemento da obrigação afeta ao demandado (devedor/executado). Com isso, o limite traçado pela lei processual instituidora da "sincretude" dos processos (títulos executivos judiciais) em se tratando de liquidação de sentença pode ser assim resumido: não se pode modificar o decidido na fase de conhecimento, que é anterior à liquidação, pois lá é que foi decidido o mérito da lide, tornando-se certa quanto à obrigação e incerta quanto à sua extensão, necessitando-se, destarte, do incidente de liquidação para justamente ocorrer o acertamento do débito reconhecido.
Por outro lado diz o texto novo da lei (art. 269, IV, do CPC, instituído pela lei 11.232) que haverá resolução (julgamento) de mérito quando o juiz pronunciar a decadência ou a prescrição. Conforme já ventilado, ainda mais agora reforçado pelo novo regime trazido pelo bloco de reformas ao CPC também pela lei 11.280, o juiz pronunciará, de ofício, a prescrição (revogado o art. 194 do Código Civil), reafirmando o CPC, desse modo, o inegável caráter de norma processual de ordem pública que reveste esse instituto de direito material (prescrição extintiva).
Sabendo-se que matéria de ordem pública não causa preclusão (em todas as suas modalidades: temporal, consumativa e lógica), e, assim, podendo-se a qualquer momento durante o procedimento -melhor na primeira oportunidade que tiver a parte que se beneficiará com a alegação da matéria sob pena de arcar proporcionalmente em sucumbência na medida de sua desídia - em primeiro grau ou mesmo no segundo grau de jurisdição (ou mesmo nos tribunais superiores) ser alegada a matéria ou ainda reconhecida de ofício pelo juiz independentemente de se tratar de direito patrimonial ou não e independentemente de haver interesse ou não de absolutamente incapaz, fica difícil não reconhecer a possibilidade de se alegar a prescrição em sede de liquidação11.
Não é razoável, todavia, que o incidente de liquidação tenha a força de passar uma borracha na matéria afeta à prescrição extintiva do direito alegado - que por algum motivo não foi percebida pela parte a quem interessava (demandado) ou mesmo pelo juiz (ex officio). A natureza de ordem pública do instituto é inderrogável pela vontade das partes (ou do demandante, no caso) e do próprio juiz, devendo ser reconhecida até mesmo nos feitos em que iniciem no primeiro grau e vão parar no Supremo Tribunal Federal! Um incidente processual (no caso a liquidação) não pode obstaculizar o direito da parte que tem razão em ver o julgado extinto diante da patente carência da ação (possibilidade jurídica do pedido) que deve ser reconhecida mesmo que superveniente à fase de conhecimento da lide (no momento processual da liquidação, por exemplo). Por isso penso que a regra do art. 475-G do CPC não se aplica na espécie e, assim, é viável a aplicação do instituto da prescrição extintiva ainda que em sede de liquidação, pois se trata de exceção à regra geral da proibição de que é defeso, na liquidação, discutir de novo a lide ou modificar a sentença que a julgou. Se há regra, há exceção, e exceção com caráter de norma de ordem pública que não permite eventual execução forçada com base em título inexistente.
A máxima de que "não há execução sem título executivo" coroa o aqui defendido no sentido de que se não há o direito, carente pela ausência de possibilidade jurídica em virtude da prescrição extintiva, consequentemente não há título executivo, não havendo que se falar em prosseguimento da ação e não havendo que se falar também em posterior fase de liquidação - o ato processual contaminado por nulidade absoluta em sua origem contamina os subseqüentes, ainda mais quando tal nulidade obsta o próprio direito à pretensão do direito alegado; ora se a fase de liquidação é incidente processual contaminado pelo direito inexistente do demandante por causa do reconhecimento da prescrição extintiva, não é possível que esse incidente tenha a força de operar os efeitos que operaria em situações ordinárias, o que não é o caso em se tratando de reconhecimento posterior à fase de conhecimento e durante o incidente de liquidação - sendo que o reconhecimento da prescrição extintiva nessa fase do processo só reafirma a inevitável inviabilidade da demanda aforada pela parte que achava estar com a razão e que na verdade foi atingida pelo tempo. O direito processual é instrumento de aplicação do direito material, não podendo ser visto o processo como mecanismo de obstáculo do direito da parte que tem razão e na medida em que tenha e sim como mecanismo de adimplemento do direito material. E o direito material nessas excepcionais hipóteses prevalece sobre qualquer regra de direito processual, pois a ordem pública até mesmo desconhece a força da coisa julgada material!
Entendo, assim, que tem de se admitir a excepcional via do reconhecimento da prescrição extintiva ainda que seja em sede de liquidação, mesmo que o mérito da lide seja afetado e julgado de forma diametralmente oposta ao pretenso direito alegado pelo demandante, que na verdade não tinha razão (diga-se de passagem!). Trata-se de hipótese excepcional de "liquidação com caráter infringente" se pudéssemos emprestar um apelido ao fenômeno.
Atinente à liquidação por arbitramento pode-se instaurar uma controvérsia a respeito da quantidade da condenação ou de sua qualidade.
O incidente da liquidação por arbitramento cinge-se ao acertamento da quantidade da matéria conhecida e decidida em favor do demandante (credor, exeqüente) na ocasião da prolação do mérito da lide, pois a discussão acerca de sua qualidade, salvo nas excepcionais hipóteses de matéria de ordem pública (v.g., matéria relativa à prescrição extintiva, que pode ser alegada pela parte a qual interessa seu reconhecimento e conseqüente extinção do processo em qualquer momento processual ou grau de jurisdição, inclusive por simples petição ou oralmente em juízo, devendo ainda o juiz de ofício reconhecê-la), devem ser debatidas pelas partes em contraditório e ampla defesa naquela oportunidade (conhecimento). A cognição da matéria na liquidação por arbitramento, apesar de haver a possibilidade de instrução (inclusive com audiência para dirimir questão relevante) encontra seu limite no próprio laudo pericial, que na verdade pode ser atacado pelas partes em virtude de injustificado acertamento da matéria a ser liquidada (quantidade), sendo certo ainda que acaso surja discussão acerca da matéria a ser provada a respeito da qualidade do laudo não significa dizer que as partes estão discutindo "qualidade do mérito" (qualidade do decisório de mérito proferido na fase de conhecimento), pois "qualidade" nesse momento processual se refere à qualidade do estudo elaborado pelo experto, tanto que haverá a possibilidade de instrução com audiência se necessário (repito), mas "qualidade" essa afeta tão somente ao laudo, pois já coberta a antecedente decisão de mérito pela preclusão. A liquidação por arbitramento, assim, limita eventual ataque ao laudo no que se refere ao acertamento da quantidade do valor encontrado pelo perito ou mesmo pelo critério de sua avaliação e parecer técnico (motivação do perito), jamais se prestando a discutir o mérito da lide (conhecimento).
Nestes termos, o art. 475-D do Código de Processo Civil.
Vale mencionar, ainda, se em sede de liquidação de sentença é cabível a retificação de conta.
Caso o juiz verifique erro material sobre o quantum debeatur apurado na liquidação, deve corrigi-lo de ofício, independentemente da vontade das partes, pois a matéria tem natureza de ordem pública e não causa preclusão, devendo ser reconhecida a qualquer momento ou grau de jurisdição, afastando-se inclusive a regra da imutabilidade do decisório nos termos do art. 463, I, do CPC12 (na redação da lei 11.232). Então se é a liquidação o momento processual (incidente) oportuno à apuração das contas apresentadas pela parte, tendo ao revés a outra a oportunidade de impugná-la ou mesmo do juiz acertá-la nos moldes do que ficou decidido na fase de conhecimento da matéria (mérito), com maior razão se deve reconhecer a retificação de conta em liquidação de sentença sem que haja modificação do conteúdo da matéria de mérito apurada na fase de conhecimento e sim acertamento do verdadeiro quantum debeatur, não do an debeatur, que se liga ao mérito da decisão de conhecimento.
E, ainda, cabe refletir se fixado, no processo de conhecimento, o critério de correção monetária, pode ser alterado em execução. A resposta é dada em aresto do Superior Tribunal de Justiça: A atualização de correção monetária é vista pela doutrina e jurisprudência como mera adequação do valor real à sua expressão numérica (mantendo o poder aquisitivo da moeda circulada), daí podendo ser elaborada a qualquer momento pois traduz correção de erro material, não sendo alcançada pela preclusão ou mesmo pela coisa julgada, tornando-a, ao contrário, eficaz (STJ, Corte Especial, EREsp 126.538-DF).
Entretanto, a fixação do critério adotado, levando-se em conta determinado índice correspondente à espécie (INPC, IGPM etc.), não tem natureza jurídica de "mera adequação do valor real à sua expressão numérica", e sim de matéria afeta ao próprio mérito da lide apurado na fase de conhecimento, não se podendo, desse modo, alterar o critério (mérito) de correção monetária fixado na fase de conhecimento em fase de execução (satisfação) da resolução (julgado) em respeito à preclusão da matéria, ainda que não se possa falar em coisa julgada material em virtude de eventual recurso voluntário das partes tendentes ao ataque do decisório de primeiro grau de jurisdição.
Ora, uma coisa é atualizar determinado quantum debeatur mediante o critério de correção monetária, outra é modificar o an debeatur através da via indireta do critério já decidido na fase de conhecimento.
Por fim, vale lembrar que o rito da liquidação considerando-se o novo regime instituído pela lei 11.232 se desencadeia nos termos dos arts. 475-B, 475-D, 475-E e 475-F, do Código de Processo Civil.
São essas, em síntese, algumas considerações sobre a nova liquidação de sentença no processo civil brasileiro, cujo mergulho na doutrina é inexorável a quem pretende atingir maior grau de conhecimento a respeito, inviável nesse estreito debate.