Capa da publicação Quilombos do século XXI: terras quilombolas e violência institucional

Quilombos do século XXI: uma breve análise sobre o direito às terras quilombolas e a violência institucional

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Resumo: Trata de um estudo sobre o direito aos territórios quilombolas para os descendentes de ex-escravos, com o enfoque do exercício da violência institucional, acentuando as desigualdades no Brasil, inspirado no documentário Quilombos do Século XXI. Analisa a luta das comunidades quilombolas pela garantia do território, como preservação de valores culturais e a difusão dos princípios da ancestralidade africana. A pesquisa, de método indutivo e abordagem qualitativa, investigou textos jurídicos nacionais; baseou-se na análise de referencial teórico bibliográfico e cinematográfico, para descrever melhor sobre a relação da violência institucional com o baixo número de territórios quilombolas titulados. Indicou que há uma continuação da violência, contra o grupo étnico quilombola, porém de uma forma silenciosa, ministrada por agentes públicos das estruturas de ordem social. Mitigar as violações institucionalizadas é necessário, pois negros, no passado, vivenciaram uma opressão do sistema e, ainda hoje, continuam reféns dele quando não usufruem dos seus direitos legais.

Palavras-chave: Direito à Terra. Comunidades Quilombolas. Violência Institucional.


INTRODUÇÃO

O presente trabalho traz uma discussão acerca da violência exercida pelos órgãos e instituições públicas e privadas no Brasil sobre as comunidades quilombolas, a partir da análise do documentário Quilombos do Século XXI. Buscou-se discutir a questão da titulação das terras dos seus antepassados escravos, a qual é reconhecida na contemporaneidade como direito, embora haja diversos entraves que necessitam, de fato, ser mitigados. Assim, o seu objetivo principal é promover discussões acerca da ausência do pleno acesso e do gozo ao direito à terra, enfatizando a violação desse direito por intermédio das instituições e dos órgãos privados e públicos, a qual motiva e acentua ainda mais as desigualdades existentes pelo critério étnico-racial.

O documentário Quilombos do século XXI teve seu lançamento em 17 de novembro de 2019, foi editado por Bob de Souza e dirigido por Billa Franzoni e Thiago Oliveira. O seu elenco é representado por Amaro Félix Filho, Carlos Moura, Élson Paulino dos Santos, Rafael Sânzio, Tiganá Santana, Valdirene Assis, Zezito de Araújo, dentre outros remanescentes do quilombo. Além do mais, sua produtora foi Jusciane Matos e possuiu a Coordenadoria de Gestão da TV e Rádio Justiça e a Secretaria de Comunicação Social do STF como suas supervisoras.

Com enfoque em demonstração da realidade vivida atualmente pelos descendentes de escravos, isto é, de comunidades remanescentes dos quilombos, sendo assim baseia-se no Quilombo Tabacaria, na região da Serra da Barriga em Alagoas. Nessa perspectiva, a obra documental aborda as problemáticas enfrentadas, a saber, a luta pela demarcação de terras pelos moradores de territórios quilombolas, bem como a perpetuação da existência dos quilombos como símbolo de resistência e a preservação dos valores religiosos e das riquezas culturais de um povo que fora violentado e oprimido, em todos os sentidos e áreas na pátria brasileira.

Em suma, é válida a ressalva da profunda relevância desse tema por seu cunho social ao instigar a sociedade brasileira ter a noção do respeito e tolerância cultural e religiosa para com os remanescentes dos quilombos. O texto está estruturado em três abordagens, onde a primeira é um breve resumo sobre o enredo do filme, a segunda é uma alusão da garantia do direito às terras quilombolas pela legislação brasiliense, e a terceira é caracterizada pela análise sobre a violência institucional, relacionando a inexistência do total aproveitamento desse direito suprarreferido, em conjuntura remota e atual no Estado do Brasil.


O DOCUMENTÁRIO QUILOMBOS DO SÉCULO XXI

A obra cinematográfica começa a documentar, em primeiro plano, sobre a história do mais conhecido herói dos quilombos, um dos que lutaram pela sobrevivência de um povo que não tinha o direito à vida, Zumbi dos Palmares. Esse homem brasileiro fora pioneiro na luta abolicionista, tornando-se símbolo de resistência negra no solo brasiliense.

Após o breve enfoque no simbolismo do povo negro sob a figura de Zumbi, aborda-se um quilombo em Serra da Barriga, no estado de Alagoas chamado Tabacaria. A partir dessa ótica, a narrativa expande para além das palavras, isto é, demonstrando através da gravação os valores culturais trazidos pelos antepassados africanos, as tradições, modo de vida, rituais religiosos, vestimentas, dentre outros.

Além do mais, as danças afras e os fundos musicais são abrangidos como pertencimento e manifestação de orgulho e devoção ao grupo de guerreiros e heróis que, em séculos anteriores, sofriam as maiores barbáries que a humanidade já cometeu sobre a raça humana: a escravidão. Não menos importante, a mescla de arte marcial, esporte, manifestação popular, dança e música expressa, culturalmente, a capoeiragem, a qual serviu de defesa física e marco identitário dos escravos, ex-escravos, quilombolas e os remanescentes de quilombos.

Outro ponto relevante é a distinção aludida entre quilombolas e comunidades de remanescentes de quilombos. O primeiro se refere a um grupo que foi esquecido com o final da escravatura no Brasil, uma vez que os quilombos eram territórios usados como refúgio para escravos negros fugitivos (embora também houvesse escravizados alforriados, brancos pobres, mestiços, indígenas, entre outros). Já o segundo concerne a agrupamentos constituídos por netos e bisnetos de ex-escravos, isto é, indivíduos que herdaram as principais características desses espaços e que trazem em si a luta da demarcação e titulação do que chamamos de terras quilombolas.

Ademais, há importantes contribuições de pessoas negras e descendentes de ex-escravos, os quais são detentores de conhecimento a despeito dos aspectos sociológicos, geográficos, históricos e sociais dos quilombos, em que cada um coopera de maneira significativa na narrativa do documentário ao decorrer dos próximos parágrafos.

Dessa forma, é imprescindível a explanação de tais participantes da curta metragem, a saber, Élson Paulino dos Santos (2019) morador do quilombo Tabacaria retrata a notoriedade da permanência e continuidade das comunidades quilombolas e acerca das diversas famílias que são acolhidas ano após ano naquele lugar, certamente, em busca do sentimento de pertencimento cultural, ideológico, simbólico, fora o acolhimento territorial. Mais se tange sobre a transmissão de valores e a progressão da sobrevivência dos conceitos e princípios afro-brasileiros. Aliás, é versada sobre a problemática da falta de acesso às escolas pelas crianças e adolescentes, os quais têm de deslocar-se até a zona urbana para usufruírem do acesso à educação, porque não é oferecido dentro da terra quilombola.

Similarmente, o professor de história Zezito de Araújo (2019) compartilha grande mensagem a respeito da identidade buscada no passado, na origem do povo afro-brasileiro: (...) o que as comunidades estão fazendo é buscar a sua identidade através da história do Quilombo dos Palmares. Não apenas na figura de Zumbi, mas na proposta de sociedade, de negociação, que foram organizadas nesse espaço. Nessa concepção, o historiador explana no tocante as estruturas de sociedade organizadas naquele tempo como formas de organização de resistência no período colonial e que, na contemporaneidade, acontece o mesmo episódio, mas com o ideal da titulação de terras quilombolas para os descendentes dos heróis da luta contra o sistema escravagista.

Outrossim, o líder comunitário do quilombo, Amaro Félix Filho explana sua óptica no que se refere ao processo dificultoso e longo para todos remanescentes terem a garantia legal de demarcação do quilombo chamado Tabacaria e como o respeito externo começa a crescer devido a titulação de terras creditada pelo Governo Federativo do Brasil. Nesse ínterim, vale a ressalva da importância da maximização de políticas públicas a fim de abranger grupos minoritários e vulneráveis no país, transformando a realidade dessas vidas.

Consoante, o geógrafo Rafael Sânzio (2019) expõe seu posicionamento em relação às questões das terras dos povos tradicionais ao decorrer dos séculos na Geografia Brasileira e também a respeito da existência do racismo estrutural como motivadora da exclusão dos quilombolas depois da abolição da escravatura. Além disso, explica aspectos inovadores, a saber, uma nova política de embranquecimento da população com a adoção da raça/cor parda no âmbito geográfico, a exemplo do que é apresentado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística: (...) as pessoas são perguntadas sobre sua cor de acordo com as seguintes opções: indígena, amarela, branca, preta ou parda (IBGEEDUCA, c2021). Idem é relevante citar sobre o reconhecimento da terra como Geodireito, sendo a busca da harmonia de territórios com apoio da área jurídica, através de técnicas geotecnológicas, mediante recortes no território (SANCHÊS, 2010).

Sem mais delongas, o criador da Fundação Palmares, Carlos Moura (2019) dialoga em relação à história e finalidade (origem, ancestralidade, valores afro brasileiros, auto-reconhecimento) dessa organização, a qual cabe certificar aos grupos remanescentes dos quilombos. Bem como está escrito no § 4º do art. 3º do Decreto nº 4.887, de 20 de novembro de 2003: A autodefinição de que trata o § 1° do art. 2° deste Decreto será inscrita no Cadastro Geral junto à Fundação Cultural Palmares, que expedirá certidão respectiva na forma do regulamento (BRASIL, 2003). Destarte, o senhor Moura abrange todos os lugares do Estado do Brasil que têm comunidades quilombolas, mais a crítica ao baixo nível de documentos emitidos que dão acesso aos programas do Governo Federal, ou seja, a titulação dos espaços quilombolas na pátria brasileira, caracterizando para ele esse óbice como: inércia do Estado.

Em síntese, Carlos Moura finaliza a obra documental com palavras de esperança e pedidos de paz, a exemplo: acabar com o preconceito racial e discriminação; ter um Brasil mais igualitário e menos desqualificado em distribuição de renda; e que a comunidade negra possa gozar dos benefícios da sociedade, de fato. Inclusive, outra grande aspiração era a realização do sonho de presenciar negras e negros atuantes em cargos de chefia, em igrejas, empresas, governo, em associações médicas, etc na nação brasiliana.


O DIREITO À PROPRIEDADE DE TERRAS QUILOMBOLAS SOB A LUZ DA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA

O direito da propriedade de terras por povos tradicionais, como os remanescentes dos quilombos veio a partir da legitimação através do Governo Federal com Decretos, Medidas Provisórias, Leis Federais e a Constituição Federal de 1988. Nesse contexto, o Ministério do Desenvolvimento Social (MDS) versa uma conceituação para o que seriam os povos e as comunidades tradicionais:

Povos e Comunidades Tradicionais (PCTs) são definidos como: grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição (MDS, [s.d.]).

Além disso, explana as categorias dos PCTs do Brasil, como os povos indígenas, os quilombolas, as comunidades tradicionais de matriz africana ou de terreiro, os extrativistas, os ribeirinhos, os caboclos, os pescadores artesanais, os pomeranos, entre outros. Posteriormente, o MDS vai tratar de seu objetivo: (...) ampliar o acesso desses povos a ações como Acesso à Água, Programa de Aquisição de Alimentos da Agricultura Familiar (PAA) e Programa de Fomento às Atividades Produtivas Rurais (MDS, [s.d.]).

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Assim, a despeito da garantia e gozo ao direito de terra, a Lei Magna de 1988 fornece o reconhecimento da virtude que os quilombolas têm às suas terras no seu artigo 68: Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos (BRASIL, 1988).

Logo, é assinado o Decreto n° 4.887 pelo Presidente da República no ano de 2003, recebendo, assim, uma afirmação que tais terras não poderiam ser divididas, vendidas, loteadas, arrendadas ou penhoradas. Também, abordando o procedimento para realização dos aspectos: Identificação, Reconhecimento, Demarcação e Titulação. Esse documento baseado no artigo constitucional supracitado isto é, de acordo com o disposto no art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias revela-se no artigo 17:

Art. 17. A titulação prevista neste Decreto será reconhecida e registrada mediante outorga de título coletivo e pró-indiviso às comunidades a que se refere o art. 2º, caput, com obrigatória inserção de cláusula de inalienabilidade, imprescritibilidade e de impenhorabilidade (BRASIL, 2003).

Nesse âmbito, esse artigo informa acerca do processo de titulação das terras ocupadas pelos descendentes dos conjuntos que viviam nos quilombos que fora exposto anteriormente. No Brasil, a titulação de quilombos sofre grandes entraves e enfrentamentos, como: ameaças do agronegócio, da especulação imobiliária e do Poder Público, refletindo em um escasso número de território quilombolas titulados. Tal abordagem é a aludida por Miriam Aprigio remanescente do Quilombo dos Luízes, em Belo Horizonte ao dizer que há um conflito histórico pelo território no Brasil, devido ao envolvimento de capital:

(...) Há uma secular disputa territorial, dos ganhos financeiros dos detentores do Agronegócio. E, no meio urbano, da especulação imobiliária, que nos afeta diretamente. É desconsiderado o nosso histórico, a nossa tradição nesses lugares da cultura viva, pois o capitalismo fala mais alto. Não há outra questão que interfira tão diretamente quanto esta (OLIVEIRA, 2017).

Para Sandra Maria da Silva Andrade, do quilombo de Carrapato de Tabatinga, em Bom Despacho- BA, as alegações para um rendimento tão baixo na política de titulação estão: a lentidão dos processos e a falta de dinheiro no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), responsável pela execução da política (OLIVEIRA, 2017). Tal como expõe nos seguintes parágrafos e caput do art. 3° e no art. 15 do Decreto n° 4.887 sobre o INCRA:

Art. 3° Compete ao Ministério do Desenvolvimento Agrário, por meio do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária - INCRA, a identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas pelos remanescentes das comunidades dos quilombos, sem prejuízo da competência concorrente dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.

§ 1° O INCRA deverá regulamentar os procedimentos administrativos para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas pelos remanescentes das comunidades dos quilombos, dentro de sessenta dias da publicação deste Decreto.

§ 2° Para os fins deste Decreto, o INCRA poderá estabelecer convênios, contratos, acordos e instrumentos similares com órgãos da administração pública federal, estadual, municipal, do Distrito Federal, organizações não-governamentais e entidades privadas, observada a legislação pertinente.

§ 3° O procedimento administrativo será iniciado de ofício pelo INCRA ou por requerimento de qualquer interessado.

Art. 15. Durante o processo de titulação, o INCRA garantirá a defesa dos interesses dos remanescentes das comunidades dos quilombos nas questões surgidas em decorrência da titulação das suas terras (BRASIL, 2003).

Diante disso, para que haja um responsável pela assistência jurídica e proteção da integridade territorial, a Certidão de Auto-reconhecimento documento sancionado em 22 de agosto de 1988, criado a partir da Lei n° 7.668 pela Diretoria de Proteção de Proteção ao Patrimômio Afro- Brasileiro. Partindo dessa lógica, tal finalidade é designada à Fundação Cultural Palmares, a qual se revela escrita no inciso III e caput do art. 2° e no parágrafo único:

Art. 2º A Fundação Cultural Palmares - FCP poderá atuar, em todo o território nacional, diretamente ou mediante convênios ou contrato com Estados, Municípios e entidades públicas ou privadas, cabendo-lhe:

III - realizar a identificação dos remanescentes das comunidades dos quilombos, proceder ao reconhecimento, à delimitação e à demarcação das terras por eles ocupadas e conferir-lhes a correspondente titulação.

Parágrafo único. A Fundação Cultural Palmares - FCP é também parte legítima para promover o registro dos títulos de propriedade nos respectivos cartórios imobiliários (BRASIL, L. 1988).

Fora, a comprovação no Decreto n° 4.887, no artigo 16 e no parágrafo único:

Art. 16. Após a expedição do título de reconhecimento de domínio, a Fundação Cultural Palmares garantirá assistência jurídica, em todos os graus, aos remanescentes das comunidades dos quilombos para defesa da posse contra esbulhos e turbações, para a proteção da integridade territorial da área delimitada e sua utilização por terceiros, podendo firmar convênios com outras entidades ou órgãos que prestem esta assistência.

Parágrafo único. A Fundação Cultural Palmares prestará assessoramento aos órgãos da Defensoria Pública quando estes órgãos representarem em juízo os interesses dos remanescentes das comunidades dos quilombos, nos termos do art. 134 da Constituição (BRASIL, 2003).

Em finalização, nota-se como o direito à propriedade para os remanescentes quilombolas é tratado na legislação da República Federativa do Brasil, uma vez que o direito à terra é de suma importância para a agremiação quilombola, servindo como seguridade à restituição moral pela ofensa e sofrimento vivenciado remotamente. Consoante, Sandra Andrade disserta no que concerne o território de quilombos sendo esse a base de tudo, o espaço que a gente usa para as práticas religiosas, nossas festas. Temos o cemitério dentro das comunidades, onde estão enterrados nossos ancestrais. Sem a terra, não precisamos viver (OLIVEIRA, 2017).


A RELAÇÃO ENTRE VIOLÊNCIA INSTITUCIONAL E A FALTA DE ACESSO À TERRA QUILOMBOLA

A princípio, é necessário determinar que a violência se trata de um modo de controle sobre outrem, a qual não se caracteriza somente visivelmente, mas também de forma oculta, encoberta e incutida em normas e ordens com cunho autoritário. Sob esse viés, abordaremos o termo violência institucional, o qual ocorre através das instituições, entidades e órgãos públicos e privados, mas que os deveres teriam de ser uma resposta transmitida pelo cuidado, proteção e defesa dos cidadãos (LADEIA; MOURÃO; MELO, 2016).

Já para a Lei 13.431, sancionada em 2017 apresenta no seu art. 4°, no inciso IV: violência institucional, entendida como a praticada por instituição pública ou conveniada, inclusive quando gerar revitimização (BRASIL, 2017). A partir dessa exposição da lei federal brasileira sobre as ações violentadoras mediante dos agentes públicos nesses espaços de poder.

Com base nisso, vale frisar que tais princípios e regras burocráticas por essas instituições são instrumentos utilizados pelos agentes públicos como disfarce para violentar os integrantes do âmbito social (SANTOS, et al., 2011). Dessa maneira, esse tipo de violência acontece em circunstâncias já tidas como comuns, isto é, são atitudes normalizadas, mas que agridem as virtudes do ser cível diariamente e transgressão dos direitos legalmente garantidos. Para melhor entendimento da violação institucionalizada, requerem-se exemplos que podem ser discorridos, detalhadamente, pelos autores Felberb; Araújo & Góes em sua obra:

Ao desqualificar saberes práticos em razão dos saberes científicos; ao ignorar, destratar ou maltratar usuários por conta de sua orientação sexual, gênero, cor, classe social, idade ou deficiência; ao proibir acompanhantes ou restringir demais os horários de visitas; ao tratar com frieza, rispidez, negligência ou omissão, ao não ter tempo suficiente para um atendimento adequado; e ao negar acesso a medicamentos e outros serviços, estamos diante de práticas corriqueiras, muitas delas instituídas como regras e normas a serem seguidas para o bom funcionamento da instituição. Todavia, são práticas que agridem diretamente o ser humano e sua dignidade (FELBERB; ARAÚJO e GÓES, 2017, p. 8).

Nesse sentido, também, o Conselho Nacional de Justiça interpela que há motivações para que haja a violência institucional, como:

(...) desigualdades (de gênero, étnico-raciais, econômicas etc.) predominantes em diferentes sociedades. Essas desigualdades se formalizam e institucionalizam nas diferentes organizações privadas e aparelhos estatais, como também nos diferentes grupos que constituem essas sociedades (CNJ, [s. d.]).

À face do exposto, é notória uma real correlação de tal prática com o direito não concedido das terras aos quilombolas pelo Poder Público, uma vez que a violência institucional demonstra e releva-se por meio de aspectos demonstrativos comuns recusa em prestar atendimento e orientação e a ação de forma discriminatória e preconceituosa (MPSP, [s. d.]).

Em breve retro-visão da história do Brasil, é nítida a privação dos direito à propriedade de terras desde o período colonial até muito depois do contexto republicano democrático, que por vezes, àquela não assegurou especificadamente com a legislação ou, mais a frente, com a eficácia desta supradita.

Na época da colonização, com a delimitação de terras, por via da Carta de Doação, era determinada a posse de terras a quem detivesse poderes aquisitivos e status social perante o Rei Dom Jõao III. Nessa análise, Fernandes (2017) escreve:

A escolha dos primeiros capitães donatários se deu a partir de um concurso entre pessoas da nobreza e aquelas enriquecidas pelo mercantilismo. Estas pessoas eram favorecidas pela proximidade de suas relações com a Coroa. (...) Os donatários dispunham de grande autoridade (...), detinham a posse sobre os territórios desde que pudessem defendê-los, mantê-los e cultivá-los (FERNANDES, 2017).

Diante disso, obviamente negros, ainda que alforriados, jamais teriam a possibilidade do acesso ao gozo de uma propriedade privada. Não menos relevante, a Lei das Sesmarias, cuja base era a mão de obra escrava, definia o modo das divisões das terras e o imposto sobre elas. Dessa forma, a historiadora Mislene Neres aponta que a lei era rígida, devendo ser cumprida à risca e a relação dos negros africanos no país:

Esse regulamento das Sesmarias era muito rigoroso, havendo quase vinte artigos. A maior exigência era que os colonizadores deveriam plantar nas terras a todo custo e não podiam ficar sem mão-de-obra. Para manter esse sistema escravizaram várias pessoas, sendo essas majoritariamente importadas da África (SILVA, c2021).

Posterior, após a abolição da escravidão, negros da área urbana e dos quilombos foram rejeitados pelo Estado, padecendo sem trabalho, devido ao processo migratório dos nativos das regiões da Europa e da Ásia, no intuito do branqueamento racial brasileiro (MAIA; ZAMORA, 2018). E, no tocante ao quesito territorial, os quilombolas ex-escravos ficaram sem terra, em razão à Lei De Terras de 1850 cujo objetivo era limitação a terra a pessoas de títulos. Nesse cenário, o historiador Cavalcante (2005) disserta muito bem sobre a abolição da escravatura e a permutação da força de trabalho dos negros pelos imigrantes europeus e asiáticos:

A substituição do trabalho escravo pelo trabalho livre deveria ser realizada de forma gradativa, porém a grande preocupação era a respeito de quem financiaria a vinda de trabalhadores imigrantes para assumir as lavouras. Entre tantas discussões, levantou-se a possibilidade de que a venda de terras propiciaria subsídios para custear a aquisição de mão-de-obra.

A Lei de Terra de 1850 (...), apesar de ainda apresentar dois de seus grandes problemas: a regularização territorial e a imigração. A partir da criação dessa lei, a terra só poderia ser adquirida através da compra, não sendo permitidas novas concessões de sesmaria, tampouco a ocupação por posse, com exceção das terras localizadas a dez léguas do limite do território. Seria permitida a venda de todas as terras devolutas. Eram consideradas terras devolutas todas aquelas que não estavam sob os cuidados do poder público em todas as suas instâncias (nacional, provincial ou municipal) e aquelas que não pertenciam a nenhum particular, sejam estas concedidas por sesmarias ou ocupadas por posse (CAVALCANTE, 2005).

Avançando essa problemática à conjuntura atual, conquanto já fora supratranscrito, salienta-se que esse trespasse promove certas conseqüências no ser social. Nesse entendimento, Felberb; Araújo e Góes (2017) relatam o que sucede quando as pessoas são violentadas institucionalmente:

Este é o tipo de violência que muitas vezes não agride fisicamente, que não faz o disparo e que não fere a olho nu, mas que violenta a partir do desgaste físico e emocional, da descrença nos seus direitos e da impossibilidade de acessar a cidadania, causando impactos imensuráveis na vida dos indivíduos e gerando um caos social, muito perceptível principalmente (FELBERB; ARAÚJO & GÓES, 2017, p. 9).

Assim, tais conseqüências são, dia após dia, presenciadas pelos remanescentes dos quilombos, porque esses homens e essas mulheres vivem de precariedade precária, onde não são respeitadas o modo de vida e ainda são de destruição de suas casas e desapropriação de suas terras, dentre outros (OLIVEIRA, 2017). Sendo perceptível, então, as marginalização e exclusão social dos remanescentes de quilombos (SILVA; NASCIMENTO, 2012).

Em síntese, é inevitável a real afirmação da violência institucional através das normas legítimas impostas pelo Estado Brasileiro, ao decorrer dos anos, as quais foram responsáveis pela limitação e impedimento de ex- escravos moradores de quilombos a terem acesso legalmente posto ao território ocupado durante a época escravagista. Analogamente, na conjuntura contemporânea, as atividades do passado refletem, pois diversas comunidades de quilombos não detêm seu território titulado. Conclui-se, portanto, que tal disparate ministrado por agentes públicos espelha estruturas sociais alicerçadas na injustiça civil, consolidando, cada vez mais, o desprivilegio, a discriminação e a exclusão de tais seres no corpo social.

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