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Medidas executivas atípicas:

Análise crítica ao poder geral de aplicabilidade do art. 139, IV do CPC/2015 e sua (in) constitucionalidade

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3 PROCESSO DE EXECUÇÃO: ESPÉCIES DE MEDIDAS EXECUTIVAS

Tem-se, por processo de execução, um mecanismo tipificado e necessário ao cumprimento de obrigação imposta judicialmente a um devedor, seja através de uma sentença judicial (título executivo judicial), seja através de um título extrajudicial. E de acordo com Becker (2021, p. 41):

o processo de execução tem o primordial intuito de concretizar, na realidade, o direito subjetivo reconhecido no título executivo judicial ou extrajudicial. Para isso, o Poder Judiciário se utiliza de procedimentos, medidas e regras que se consubstanciam na tutela executiva.

O Código de Processo Civil de 2015 veio apresentando avultosas transformações, principalmente na seara das tutelas executivas. Porém, as que mais merecem destaque para este estudo estão na relação entre seu caráter constitucional afirmado de pronto pelo artigo primeiro (que prima pelo respeito aos valores e normas fundamentais estabelecidos na Constituição Federal) e a ampliação dos poderes do juiz, principalmente na aplicação de medidas executivas atípicas no processo de execução (art. 139, IV).

A relação entre estes assuntos é de extrema relevância, pois esta ampliação entregou poderes gerais de aplicabilidade dessa norma ao Estado (juiz), que por um lado veio para auxiliar na satisfação das lides obrigacionais, trazendo maior efetividade; por outro, desembocou em excessos e desrespeitos a direitos e garantias fundamentais dos devedores. Aprofundaremos essa discussão mais adiante.

Agora, passamos primeiramente a breves explicações sobre as espécies de medidas executivas.

3.1 MEDIDAS EXECUTIVAS TÍPICAS

A tipicidade das medidas executivas é a regra geral atualmente. Em outras palavras, o Princípio da Tipicidade dos Meios Executórios, que afirma que todos os atos executivos deverão constar previamente e pormenorizadamente na lei processual, foi relativizado com o advento de exceção do art. 139, inciso IV, do Código de Processo Civil de 2015. O Código de 1973 restringia as medidas executivas a um rol taxativo, cujo juiz deveria aplicar ao devedor apenas as medidas coercitivas que estavam dispostas nos artigos 461 §5º e 461-A §3. Porém, não quer dizer que hoje exista uma discricionariedade por parte do magistrado. O que há hoje em dia, na exceção do art. 139, inciso IV, do CPC, é apenas uma relativização, pois na aplicação de medidas executivas o magistrado deve sempre primar pela aplicabilidade de princípios constitucionais básicos, o que indica ausência de discricionariedade.

Atualmente, as medidas executivas elencadas, por exemplo, são o protesto de decisão transitada em julgado (art. 517), um meio de coerção para facilitar o adimplemento da obrigação; a inclusão do nome dos executados no cadastro de inadimplentes (art. 782 § 3º e 4º), outro meio para coagir o devedor à obrigação de pagar; a penhora de dinheiro em depósito ou em aplicação financeira (art.854), para a obrigação de pagar, entre muitas outras medidas. E no que compete aos procedimentos especiais executivos (alimentos, Fazenda Pública), o Código de Processo Civil de 2015 estabelece medidas executivas observando as necessidades diferenciadas a cada tutela executiva.

Neste contexto, para Marinoni, o princípio da tipicidade tem uma finalidade precípua, a de garantir ao jurisdicionado proteção contra a possibilidade de arbítrio na utilização da modalidade executiva. Em outras palavras, garantir que o âmbito jurídico do executado somente seja tocado pelas medidas executivas típicas impede que arbitrariedades na tutela executiva sejam praticadas pelo magistrado.

Grande parte de processualistas possuem a visão de que somente exauridas a aplicação de todas as medidas típicas executivas é que se fará necessária a utilização de medidas atípicas executivas, caso contrário, a aplicação direta de medidas atípicas, restariam compreendidas como indícios de arbitrariedade contra devedores. Esta visão está consubstanciada no enunciado nº 12 do Fórum Permanente de Processualistas Civis:

(arts. 139, IV, 523, 536 e 771) A aplicação das medidas atípicas sub-rogatórias e coercitivas é cabível em qualquer obrigação no cumprimento de sentença ou execução de título executivo extrajudicial. Essas medidas, contudo, serão aplicadas de forma subsidiária às medidas tipificadas, com observação do contraditório, ainda que diferido, e por meio de decisão à luz do art. 489, § 1º, I e II. (Grupo: Execução)

Julgado de Agravo de Instrumento em sede de execução também coaduna com a visão acima:

AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO DE EXECUÇÃO. TÍTULO JUDICIAL. ADOÇÃO DE MEDIDAS EXECUTIVAS ATÍPICAS FUNDADAS NO ART. 139, IV DO CPC/2015. NÃO CABIMENTO. EXISTÊNCIA DE MEDIDAS EXECUTIVAS TÍPICAS. CARATER SUBSIDIÁRIO DAQUELAS EM RELAÇÃO A ESTAS. RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO.

As medidas executivas fundadas no art. 139, IV, do CPC/2015, em razão de sua atipicidade, devem ser adotadas excepcionalmente, de forma subsidiária àquelas típicas já previstas no ordenamento jurídico. É dizer, só devem ser utilizadas após esgotados todos os meios tradicionais de execução, de forma subsidiária. (TJ /SP, Agravo de instrumento n. 2017511-84.2017.8.26.0000, 31ª Câmara de Direito Privado. Rel. Adilson de Araújo, j. 11.04.2017).

Portanto, pelas razões expostas acima, encontra-se o argumento para que o rol das medidas executivas seja extenso e detalhista, procurando acolher a maior parte das necessidades executivas. Não obstante, a lei não conseguiu acolher todas as demandas executivas, demonstrando que mesmo que o rol de medidas executivas seja extenso, se tornaram insuficientes perante a maneira com que o devedor age frente às suas cobranças.

Conclui-se, portanto, que atualmente as medidas executivas típicas são aquelas previstas na legislação e que tem como objetivo compelir o devedor a cumprir com suas obrigações, sejam elas de pagar, fazer, não-fazer ou entregar a coisa. E que muitas vezes as medidas típicas não são suficientes para a satisfação da lide, surgindo a necessidade de aplicação de medidas executivas atípicas, com o entendimento majoritário da subsidiariedade.

3.2 MEDIDAS EXECUTIVAS ATÍPICAS

O Código de Processo Civil de 2015, em seu art. 139, inciso IV, buscando ampliar os meios de efetivação da execução pecuniária, consagrou a modalidade atípica das medidas executivas e, para tanto, julgou necessário ampliar os poderes do magistrado na condução do processo de execução. Eis o texto legal:

Art. 139. O juiz dirigirá o processo conforme as disposições deste Código, incumbindo-lhe: (...) IV - determinar todas as medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias necessárias para assegurar o cumprimento de ordem judicial, inclusive nas ações que tenham por objeto prestação pecuniária.

Deste modo, o Código trouxe o Princípio da Atipicidade das Medidas Executivas, que se traduz na liberdade que o juiz possui de aplicar outros mecanismos hábeis a forçar o cumprimento da obrigação pelo devedor quando os meios típicos não forem suficientes (BECKER, 2021, p. 54).

Como dito em tópico anterior, muitos doutrinadores, processualistas e aplicadores do Direito têm-se mostrado favoráveis à aplicação das medidas atípicas como ultima ratio. Isso significa dizer que, após esgotados todos os meios executivos típicos, passa-se à aplicação de meios atípicos, a exemplo da doutrina de Theodoro Júnior, que diz: A aplicação do art. 139, IV, portanto, deve ocorrer em caráter extraordinário, quando as medidas ordinárias se mostrarem ineficazes.

Porém, não é exatamente isso que têm acontecido nas decisões de primeira instância atualmente. A ultima ratio não tem sido utilizada, trazendo a necessidade de recurso à turma recursal. Assim traz o exemplo do julgado do Agravo de Instrumento a seguir:

AGRAVO DE INSTRUMENTO. EXECUÇÃO DE TÍTULO EXTRAJUDICIAL. MEDIDAS EXECUTIVAS ATÍPICAS, SUSPENSÃO DA CNH. APREENSÃO DO PASSAPORTE. EMISSÃO DE CERTIDÃO DE DÉBITO. MEDIDAS EXCEPCIONAIS. ESGOTAMENTO DOS MEIOS CONVECIONAIS. NÃO DEMONSTRAÇÃO.

As medidas executivas atípicas podem ser aplicadas após o esgotamento dos meios convencionais da execução. No caso concreto, o exequente informou a existência de imóvel capaz de satisfazer a dívida, tendo sido efetivada a penhora do bem. Nesta hipótese, por ora, as medidas executivas atípicas devem ser indeferidas. (TJ-DF 07092987120218070000 DF 0709298-71.2021.8.07.0000, Relator: ESDRAS NEVES, Data de Julgamento: 08/09/2021, 6ª Turma Cível, Data de Publicação: Publicado no PJe: 20/09/2021. Pág.: Sem Página Cadastrada.). Grifo nosso.

De fato, a maior problemática atual deste tema tem sido a dificuldade da ponderação de princípios constitucionais frente aos direitos individuais na tutela executiva atípica (credor versus devedor) e o esforço para que não haja violação de direitos fundamentais por parte do Estado. Obviamente que quando se trata de decisões dessa estirpe, todo cuidado é necessário, pois toca em princípio constitucional de maior relevância, como o da dignidade da pessoa humana. Ainda Theodoro Júnior (2021, p.29) coaduna com este pensamento quando afirma que:

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a medida coercitiva tem de amparar-se na possibilidade real de que o devedor tenha condições patrimoniais para saldar o débito, e tem de ser aplicada pelo juiz com moderação e adequação para evitar situações vexatórias incompatíveis com a dignidade da pessoa humana.

Baseados nessa forte corrente da atipicidade das medidas executivas, atualmente há muitos julgados, em execução por quantia certa, deferindo contra devedor executado, medidas como: suspensão de utilização de cartão de crédito, suspensão de carteira de habilitação de motorista, apreensão de passaporte, entre outras e que sempre vêm suscitando discussões, pelo fato de haver potencial violação de direito e garantia fundamental ou por não demonstrar a efetividade de tais decisões.

O julgado a seguir, ao desprover o Agravo de Instrumento, demonstra repreender tais violações:

AGRAVO DE INSTRUMENTO. SUSPENSÃO DA CNH. APREENSÃO DE PASSAPORTE. AUSÊNCIA DE EFETIVIDADE.

1. É ilegal a determinação da suspensão da CNH, bem como a apreensão do passaporte do executado, para pagamento de dívida por representar medida punitiva que viola o direito de locomoção do devedor. 2. O cancelamento dos cartões de crédito não se mostra como medida razoável, uma vez que pode prejudicar a própria subsistência do devedor. 3. Negou-se provimento ao agravo de instrumento. (TJ-DF 07466656620208070000 DF 0746665-66.2020.8.07.0000, Relator: SÉRGIO ROCHA, Data de Julgamento: 10/12/2020, 4ª Turma Cível, Data de Publicação: Publicado no PJe: 07/01/2021. Pág.: Sem Página Cadastrada.)

Em conclusão, podemos observar que o poder geral de aplicabilidade do art. 139, inciso IV, tem causado uma série de debates a respeito da sua possível inconstitucionalidade, justamente pelo fato de os magistrados cometerem abusos de difícil reparação durante sua aplicação. A favor deste pensamento está o ilustre jurista Araken de Assis (2020, p.164), quando afirma que:

é duvidosa, senão patente, a inconstitucionalidade do art. 139, IV. É bem de ver, que nos casos de coerção pessoal (prisão) ou patrimonial (astreinte), os efeitos jurídicos são predeterminados (...). Essa predeterminação das consequências jurídicas para o executado recalcitrante torna essas medidas compatíveis com o art.5º, LIV, da CF/1988. Ao invés, a aplicação do art. 139, IV, a par de gerar abusos dificilmente controláveis.

Além disso, por vezes, os juízes não se atêm à análise do princípio da efetividade nessas decisões, deixando de fundamentar sobre como tais decisões seriam efetivas ao cumprimento das obrigações pecuniárias, principalmente. Em muitos julgados, não estão sendo razoáveis e proporcionais no momento das decisões, deixando de sopesar direitos individuais com os anseios da sociedade, coibindo excessos despropositados, por meio da aferição da compatibilidade entre os meios e os fins (LIMA, 2021).

Por esta razão, há incidentes de resolução de demandas repetitivas se instaurando perante muitos tribunais do país. Foi, contudo, o que levou à provocação da Corte Constitucional por parte do Partido dos Trabalhadores, por meio de Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 5941, para a decisão sobre a possível inconstitucionalidade do art. 139, inciso IV, do CPC.

Caberá, portanto, ao Poder Judiciário, uma vez mais, na figura do Superior Tribunal Federal, definir por sua inconstitucionalidade ou por sua constitucionalidade, delineando limites na aplicabilidade e alcance desta norma.

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Sobre a autora
Ana Paula Câmara C. Boaventura

Advogada especialista em Direito Civil e Direito de Família, pós-graduada em Direito Processual Civil. Há 3 (três) anos militando no contencioso cível e no direito de família, como também atua de maneira consultiva/preventiva, para a resolução de conflitos.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BOAVENTURA, Ana Paula Câmara C.. Medidas executivas atípicas:: Análise crítica ao poder geral de aplicabilidade do art. 139, IV do CPC/2015 e sua (in) constitucionalidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 6806, 18 fev. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/96270. Acesso em: 3 mai. 2024.

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