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Fraude paternal: uma lacuna do direito

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A conduta de atribuir falsamente a paternidade de filho de outrem a um homem é penalmente atípica, o que deixa sem proteção diversos bens jurídicos da vítima.

1. INTRODUÇÃO

Na dogmática alemã se fala do chamado espaço livre de direito (Rechtsfreieraum), especialmente na seara penal, para referir-se a certas condutas que, embora não consideradas como propriamente ilícitas, se situam em uma espécie de limbo neutro do Direito. Modalidades de questões adiafóricas ou indiferentes. Nessas situações não haveria aprovação jurídica da conduta, mas tão somente a manutenção de uma posição de neutralidade, uma espécie de recuo do mundo do Direito, deixando a questão à consciência ética do indivíduo. 1

Segundo essa doutrina, tais situações, face à sua relevância, são reguladas pelo Direito, afastando a aplicação de sanções de forma explícita, daí que algumas excludentes de antijuridicidade seriam assim consideradas nesse pensamento. Porém também se menciona outro conceito que pode ser eventualmente confundido com o espaço livre de direito. Trata-se do espaço vazio de direito. Nas palavras de Silva e Souza:

Em contrapartida, é necessário que se tenha a noção de que se há conceitos juridicamente relevantes é porque há também espaço para aqueles que se devam considerar irrelevantes, os quais devem ser entendidos como um espaço vazio de direito. Este esvaziamento do direito, cuja razão de sua existência é fruto do desejo da própria ordem jurídica, não deve ser entendido como algo não regulado juridicamente, mas sim como um fato regulado de forma negativa por meio da negação de uma consequência jurídica. Esse espaço vazio de direito não pode ser confundido com o espaço livre de direito, os quais são uma forma de conceito jurídico relevante, mas para o qual a ordem jurídica abdicou, por suas razões, de lhe dar certa valoração, especialmente de licitude e ilicitude. 2

Dessa maneira, o espaço vazio de direito se refere a fatos que não possuem qualquer definição jurídica, daí porque não pode ser considerado como norma jurídica. 3

É bem sabido que existe muita discussão acerca da existência ou inexistência de lacunas no ordenamento jurídico e que não há uma distinção ontológica entre a lacuna e o vazio jurídico. Ou seja, a natureza desses elementos é a de que para determinados fatos ou condutas inexiste norma ou solução expressa no ordenamento. 4 Nisso em nada diferem entre si. Entretanto, o espaço jurídico vazio seria uma deliberada limitação do Direito, uma área na qual o ordenamento não quis empreender regulações e preferiu deixar as pessoas livres para agir. Diversamente, uma lacuna seria uma efetiva falha ou deficiência a exigir solução. No caso do espaço vazio de direito, a solução está dada pelo afastamento do mundo jurídico a respeito da questão intencionalmente omitida. A solução no caso do espaço vazio é a liberdade de ação ou omissão das pessoas de acordo com suas consciências. Portanto, embora não se possa vislumbrar, nessa perspectiva, diferença ontológica entre lacuna e vazio, existe uma distinção possível referente à intencionalidade do ordenamento. 5

Neste trabalho, sem entrar em minúcias acerca do dogma da completude do Direito 6, pretende-se estudar a falta de tipificação penal para a chamada Fraude Paternal, bem como do tratamento prejudicial ao homem na seara civil dos alimentos de acordo com a doutrina e jurisprudência prevalentes, também na ausência de uma regulamentação explícita do tema.

Iniciar-se-á por uma exposição do problema pouco explorado da Fraude Paternal, expondo seu conceito e seu tratamento usual nos ordenamentos jurídicos. Em seguida será abordada a questão do chamado Garantismo Integral e sua infração pela ausência de regulamentação positiva acerca da Fraude Paternal. Finalmente, será estudada a situação em que se acha no Brasil a questão da atipicidade penal da Fraude Paternal, com propostas de soluções, bem como da falta de regulação legal e da posição doutrinário jurisprudencial prejudicial ao homem sobre a questão de alimentos indevidamente pagos nesse contexto. Desde logo, deixando de lado o dogma da completude do ordenamento, como já destacado, se pode dizer que há uma efetiva lacuna a ser preenchida sobre o tema, não sendo possível, sob pena de violação da equidade e justiça, atribuir à falta de regulação um espaço vazio de direito, cuja existência pode se insinuar devido à posição da doutrina e jurisprudência civil (alimentos). Realmente é possível entrever uma intencionalidade no silêncio legislativo. Mas, é urgente tomar consciência e denunciar que essa intencionalidade de esvaziamento jurídico do tema e consequente liberalidade para com a conduta da Fraude Paternal, não são admissíveis moral, jurídica e socialmente. Há aqui sim uma efetiva lacuna, uma falha ou deficiência do mundo jurídico e também, no caso da solução na seara civil para o problema dos alimentos indevidamente pagos, um erro e uma injustiça a serem devidamente reparados.


2. A FRAUDE PATERNAL

A Fraude Paternal consiste em atribuir falsamente a paternidade a um homem de forma intencional. Ou seja, ocorre Fraude Paternal sempre que uma mãe mente a um homem dizendo-lhe que é o pai de seu filho. 7

Conforme aduz Roxana Kreimer, essa é uma das grandes desvantagens de que padecem os homens, afinal, é praticamente impossível a correlata Fraude Maternal. Usando a expressão fraude por paternidade, a conceitua como aquela em que uma mulher assegura que um homem é o pai biológico de seu filho, sabendo que não é. A autora faz alusão a uma pesquisa britânica de 2016 que apontou que a cada 50 homens 1 acreditava ser pai de um filho que, na verdade, não era seu. 8

Os danos que podem emergir dessa conduta são muitos e tendem a tornarem-se cada vez mais gravosos e intensos quanto mais tempo se leve para a descoberta da mentira. Um homem pode ser conduzido a dedicar uma série de recursos materiais e criar vínculos emocionais, os quais não somente lhe causam lesões a bens jurídicos importantes, mas também à sua eventual prole real.

Não obstante a gravidade da conduta enfocada e de suas consequências materiais e morais, a Fraude Paternal não é considerada como crime na maioria dos países.

Em uma clara intencionalidade de apontar para um inaceitável espaço vazio de direito, um então porta voz do Ministério da Justiça alemão, chamado Piotr Malachowski, afirma que esses casos se referem a um assunto privado que não compete à Justiça. Na Espanha e em muitos outros países há uma exigência desmedida de comprovação de que a fraude tenha produzido um enorme dano psicológico para poder demandar em termos de danos, sendo, porém admissível acionar a mãe fraudadora por enriquecimento ilícito. 9

Aquilo que se pode denominar de violência reprodutiva contra o homem, no entanto não é considerado como crime em geral no Direito comparado, assim como no nosso próprio ordenamento. Na verdade o que ocorre na maioria dos casos é que a situação sofrível do homem nessas circunstâncias é ainda mais agravada pelo Estado, o qual obriga pais enganados a manter filhos que não são seus, mesmo diante de comprovação inequívoca por exame de DNA. Pode-se pensar que isso seria uma característica de países pouco desenvolvidos. Mas, essa é a posição albergada pela maioria dos juízes nos Estados Unidos, onde há numerosos precedentes. Destaca-se o caso de um homem que foi obrigado a continuar pagando alimentos, mesmo depois que a mãe fraudadora se casou com o verdadeiro pai biológico da criança. No Japão, embora dotado de uma cultura bastante conservadora, o Tribunal Supremo considerou que mesmo resultados de DNA negativos de paternidade imputada não são suficientes para invalidar as obrigações paternas (sic) de quem, na verdade, não é realmente o pai. Pior que isso é o que ocorre na França, onde são proibidos exames de paternidade privados. E mais, tal conduta é considerada criminosa para o homem e apenada com um ano de prisão e multa de até 15.000 euros. O exame de paternidade na França só pode ser levado a efeito mediante ordem judicial, de forma que é o suposto pai excluído do direito de investigar se foi ou não enganado, sem que tenha a autorização do aparato estatal. A Espanha não penaliza o pai pela investigação de paternidade e permite que no prazo de um ano possa demonstrar a ocorrência de Fraude Paternal. No entanto, não prevê qualquer compensação por pagamento de alimentos e outras despesas indevidas. Apenas na Alemanha, inobstante a manifestação supra mencionada do porta voz Malachowski, é que se tem tomado alguma providência para compensar o homem enganado, estabelecendo que o pai biológico deverá restituir até dois anos de alimentos e outras despesas empreendidas, bem como obrigando a mãe cuja fraude for descoberta a indicar o nome do pai verdadeiro, sob pena de multa cominatória ou astreintes e até mesmo de prisão civil. 10

Em geral essa deficiência protetiva do homem enganado tem sido pretensamente justificada pelo interesse superior do bem estar do menor envolvido. Contudo, essa suposta justificativa não se sustenta, pois que há certamente meios de desobrigar o homem enganado, punir a fraude e indenizar os danos morais e materiais, sem necessariamente prejudicar o menor envolvido. Não se trata de um jogo de soma zero, onde a criança é necessariamente prejudicada se o homem é protegido. A responsabilidade pela manutenção do menor obviamente pode e deve ser transferida para o verdadeiro pai biológico, o qual, na verdade, é aquele que tinha a obrigação desde o início. Acaso este não tenha condições, há sempre a possibilidade de complemento por seus ascendentes e/ou pelos familiares da mãe. Também caberia ao pai biológico e/ou também à mãe fraudadora a compensação financeira ao homem lesado. A verdade é que existem muitas alternativas sem prejuízo ao menor implicado, o que inexiste é vontade política de implementação dessas soluções, bem como uma tendência a penalizar os homens em toda e qualquer relação de gênero, por razões meramente ideológicas que impõem um filtro deformador da realidade. Isso é notável pela absoluta insensibilidade para com o fato de que nesses casos de Fraude Paternal a Justiça acabe castigando a vítima, sem gerar a mais mínima indignação social ou pleito pelo reconhecimento da conduta enfocada como crime. 11

Sommers enfatiza o fenômeno do ginocentrismo ideológico que oculta a humanidade comum entre as pessoas, independentemente de sexo ou gênero:

Ouvimos muito pouco hoje sobre como as mulheres podem se unir aos homens em igualdade de condições para contribuir para uma cultura humana universal. Em vez disso, a ideologia feminista tomou um rumo divisivo e ginocêntrico, e a ênfase agora está nas mulheres como uma classe política cujos interesses estão em desacordo com os interesses dos homens. 12

Como bem aduz Jiménez:

El tratamento del fraude paternal em la mayoría de los países constituye uma muestra inequívoca de discriminación sexista en el ámbito jurídico, político y mediático. En un mundo que afirma querer avanzar hacia la igualdad, es necessário señalar la incongruência de relegar esta forma de violência reproductiva al ámbito privado y estabelecer un debate público que desemboque en modificaciones legales. 13

É claro que seria de um anacronismo grotesco pretender apontar o pensamento feminista radical como a origem ou fonte remota da falta de atenção para com a Fraude Paternal nos âmbitos penal e civil. Tanto a atipicidade penal quanto a desconsideração para com as agruras do homem no campo cível, são antecedentes, havendo até mesmo brocardo latino relativo à irrepetibilidade do indébito alimentar em geral (Alimenta decernuntur, (...) nec teneri ad restitutionem praedictorum alimentorum, in casu quo victus fuerit Os alimentos são decretados e não vinculados a restituição em caso de derrota). 14 Porém, é preciso rastrear as origens do fenômeno de ideias difundidas acriticamente pelos cultores do Direito e que já poderiam ter sido objeto de muito maior reflexão e consequente evolução. Fato é que se um feminismo radical influente e tendente a obscurecer os padecimentos masculinos não estivesse tão arraigado no senso comum e na intelectualidade, fatos como a Fraude Paternal não teriam passado despercebidos e sido relegados a um olvido lacunoso absolutamente injusto e desproporcional. Sem as travas ideológicas conscientes ou inconscientes, as lacunas absurdas nos campos penal e civil acerca da Fraude de Paternidade já teriam sido superadas há tempos, ao invés de se perpetuarem até a atualidade e serem objeto de raríssimas denúncias como a deste texto, o qual corre o risco de ainda ser mal recebido no seio de grupos ajustados a uma tradição que se julga progressista e não percebe o quanto é, na verdade, reacionária e infensa a qualquer discordância crítica.

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Há um caldo cultural bem assentado que conduz ao desprezo pelas desvantagens masculinas e que certamente tem promovido e mantido um atraso na solução de problemas como a Fraude Paternal.

Sommers demonstra como essa mentalidade divisiva e preconceituosa atinge até mesmo a formação e o tratamento dado a crianças do sexo masculino, o que certamente induz futuros profissionais e estudiosos do direito a serem desleixados com relação aos problemas que afetam ao homem. Homens e até meninos são considerados como naturalmente violentos e violadores, sendo os segundos tachados como protomaltratadores que precisam de programas de intervenção e socialização capazes de extirpar os estereótipos masculinos. 15 Isso resulta na promoção das meninas como vítimas constantes de prejuízos e dos meninos sempre e necessariamente como o gênero injustamente favorecido. Não há dúvida de que o crescimento da influência desses promotores da chamada Justiça de Gênero tem sido responsável por um ambiente cultural hostil a qualquer estudo ou preocupação com o gênero masculino, considerado sempre através das lentes ideológicas que o transformam em um invariável privilegiado opressor. 16 Nos Estados Unidos, departamentos de educação acatam um guia denominado Gender Violence! Gender Justice, onde são encontradas lições que visam conscientizar os meninos sobre como os homens causam sistematicamente sofrimento às mulheres. 17 Cada vez mais os meninos vivem em um ambiente de desaprovação nas escolas. São vistos rotineiramente como protosexistas, abusadores potenciais e perpetradores de injustiça de gênero. Os garotos vivem hoje sob uma nuvem de censura que os coloca em permanente estado de culpabilidade. 18 Note-se que a abordagem é eminentemente unidirecional, desconsiderando a bilateralidade inerente a qualquer relação intersubjetiva, o que induvidosamente induz à formação de um pensamento simplista, incapaz de abarcar a complexidade do mundo da vida. Pessoas com essa formação (ou deformação) intelecto emocional serão inevitavelmente incapazes de detectar falhas, por exemplo, no tratamento jurídico conferido aos homens em temas como o discutido neste trabalho, gerando uma indevida estagnação da ciência jurídica e até mesmo um bloqueio acadêmico do livre debate. Não é que tais pessoas sejam capazes de vislumbrar uma desigualdade, uma lacuna, mas rejeitar argumentativamente e intelectualmente a necessidade de sua correção. Na verdade, indivíduos (homens ou mulheres) assim formados (deformados) são incapazes sequer de perceber a existência de um problema a ser estudado e debatido. E quando confrontados com a questão reagem de forma emocional, movidos por um condicionamento ou até mesmo um adestramento moral e intelectual.

É justamente por isso que é premente a necessidade de discussão a respeito do tema da Fraude Paternal e da alteração do horizonte de abordagem, interpretação e regulamentação do problema na seara jurídica penal e civil. Isso é o que inspira a elaboração deste texto, onde se pretende expor uma visão crítica do status quo da questão, pugnando por um tratamento justo e igualitário entre mulheres e homens.


3. FRAUDE PATERNAL E A SITUAÇÃO DO HOMEM ENGANADO SOB O PRISMA DO GARANTISMO INTEGRAL

A teoria do Garantismo Jurídico apregoada, dentre outros, por Ferrajoli 19 costuma ser deturpada por muitos mediante uma redução indevida a seu aspecto negativo que se refere à imposição de limites ao arbítrio estatal frente ao indivíduo. Nesse passo, acaba-se descurando a face positiva da teoria enfocada, que diz respeito às obrigações estatais de garantia de proteção a bens jurídicos.

Opõem-se então duas facetas do Garantismo:

Uma que se tem denominado de Garantismo Hiperbólico Monocular, a qual exatamente enxerga e descreve o Garantismo apenas sob sua concepção negativa, levando ao extremo as garantias do indivíduo perante o Estado, sem a contrapartida do chamado Garantismo Positivo. Essa é uma visão evidentemente pervertida da teoria. Outra, que se constitui na correta concepção garantista, tem sido chamada de Garantismo Integral, abrangendo o Garantismo negativo ao lado do Garantismo positivo em uma relação de complementariedade. Pugna-se pela proteção de todos os direitos fundamentais, sejam eles atinentes a investigados ou réus, sejam relativos às vítimas ou qualquer prejudicado por uma conduta dotada de reprovabilidade. Por isso se fala em proibição de excesso (limites ao Estado perante o indivíduo, evitando o arbítrio) e proibição de insuficiência protetiva (impossibilidade de deixar bens jurídicos sem a devida, razoável e proporcional proteção). 20

No tema da Fraude Paternal o que ocorre é que uma indevida ideologização da questão sob o prisma de gênero acaba obnubilando o necessário tratamento do problema de maneira ampla e não de forma unilateral, deixando de lado, sem pudores, a vitimização do homem.

Um influente feminismo radical propõe uma visão divisiva da realidade social e política, acreditando na existência de uma guerra de gênero, de maneira a somente dar ênfase a histórias de atrocidades perpetradas pelos homens contra as mulheres, a fim de alertar estas últimas sobre sua situação sofrível. 21 Nesse quadro não é de espantar que a bilateralidade das relações intersubjetivas entre homens e mulheres seja totalmente obliterada em detrimento dos primeiros, ao ponto de ocasionar até mesmo sua desumanização. 22 Fato é que conforme bem descreve Sommers:

A presunção de que os homens estão coletivamente engajados em manter as mulheres para baixo convida as feministas a se unirem em uma comunidade ressentida. 23

E, como é sabido, o ressentimento geralmente conduz a uma cegueira deliberada ou mesmo patológica, o que, no mundo social e jurídico, somente pode levar a injustiças.

Nas circunstâncias de Fraude Paternal os homens estão em meio a um quadro nítido de insuficiência protetiva, seja no campo penal, seja no civil, de forma que o Garantismo Integral cede espaço, de maneira inadmissível, a um Garantismo Monocular.

A Corte Interamericana de Direitos Humanos consolidou no Caso Velásquez Rodrigues vs. Honduras, que os Estados Partes têm obrigação de tutelar positivamente os Direitos Humanos e não somente obrigações negativas neste campo. Restou consignado expressamente no § 176 que os Estados têm a obrigação de investigar toda situação na qual tenham sido violados direitos humanos protegidos pela convenção. Se o aparato do Estado atua de modo que tal violação fique impune e não se restabeleça, enquanto possível, à vítima a plenitude de seus direitos, pode afirmar-se que descumpriu o dever de garantir seu livre e pleno exercício às pessoas sujeitas à sua jurisdição. Ademais a Corte IDH ofertou uma definição de impunidade como sendo a falta em seu conjunto de investigação, persecução, captura, instrução processual e condenação dos responsáveis pelas violações dos direitos protegidos pela Convenção Americana, uma vez que o Estado tem a obrigação de combater tal situação por todos os meios legais disponíveis, já que a impunidade propicia a repetição crônica das violações dos direitos humanos e total desproteção das vítimas e seus familiares (Caso Ivcher Bronstein, Sentença de 06.02.2001. Série C, n. 74, par. 186; Caso do Tribunal Constitucional, Sentença de 31.01.2001. Série C, n. 71, par. 123; Caso Bámaca Velásquez, Sentença de 25.11.2000. Série C, n. 70, par. 211).

Não resta dúvida de que a Fraude Paternal tem potencial para ultrajar direitos do homem, como sua dignidade, sua estabilidade emocional, seu patrimônio, sua família etc. E a Convenção Americana sobre Direitos Humanos assegura a proteção à dignidade (artigo 11, item 1); a Proteção da Família (artigo 17, itens 1 e 4); a propriedade privada ou patrimônio (artigo 21, itens 1 e 2), afora a igualdade (artigo 24) e a Proteção Judicial (artigo 25). E os mesmos direitos são também garantidos pelo nosso ordenamento interno na Constituição Federal (artigo 1º., III; artigo 226; artigo 170, II; artigo 144; artigo 5º., I e XXXV).

Entretanto, o tratamento dado ao problema da Fraude de Paternidade tem sido absolutamente omisso e lacunoso quanto a todas essas garantias.

Isso mesmo já havendo nosso Supremo Tribunal Federal estabelecido sua adesão inconteste ao Garantismo Integral, tal como se vê no seguinte julgado:

O princípio da proporcionalidade, implicitamente consagrado pelo texto constitucional, propugna pela proteção dos direitos fundamentais não apenas contra os excessos estatais, mas igualmente contra a proteção jurídica insuficiente, conforme a teoria da eficácia horizontal dos direitos fundamentais (RE n. 971.959/RS, STF, Rel. Min. Luiz Fux, Plenário, j. 14.11.2018, Dje 190 Divulg. 30.07.2020, publ. DJ 31.07.2020 grifo nosso).

Parece então isento de dúvidas o fato de que a questão da Fraude Paternal mereceria por parte do legislador maior atenção, com vistas à proteção de bens jurídicos lesados com relação ao homem vitimizado por tal conduta. Pode-se afirmar que o tratamento dado ao tema no momento é eivado de inconvencionalidade e inconstitucionalidade por insuficiência protetiva.

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Sobre os autores
Eduardo Luiz Santos Cabette

Delegado de Polícia Aposentado. Mestre em Direito Ambiental e Social. Pós-graduado em Direito Penal e Criminologia. Professor de Direito Penal, Processo Penal, Medicina Legal, Criminologia e Legislação Penal e Processual Penal Especial em graduação, pós - graduação e cursos preparatórios. Membro de corpo editorial da Revista CEJ (Brasília). Membro de corpo editorial da Editora Fabris. Membro de corpo editorial da Justiça & Polícia.

Bianca Cristine Pires dos Santos Cabette

Graduanda em Direito do 10º. Período do Unisal

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CABETTE, Eduardo Luiz Santos ; CABETTE, Bianca Cristine Pires Santos. Fraude paternal: uma lacuna do direito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 6816, 28 fev. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/96366. Acesso em: 19 abr. 2024.

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