RESUMO Tendo em vista a integração da Convenção Interamericana contra Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância ao conjunto de normas brasileiras, este artigo pretende, de forma breve, traçar um panorama crítico entre este importante instituto e os atos de racismo e intolerância televisionados no reality show Big Brother Brasil, em sua edição de 2022.
Palavras-chave: Racismo. Intolerância. Discriminação
SUMÁRIO: INTRODUÇÃO. 1. BASES HISTÓRICAS DO RACISMO ESTRUTURAL NO BRASIL. 2. CONVENÇÃO INTERAMERICANA CONTRA O RACISMO, A DISCRIMINAÇÃO RACIAL E FORMAS CORRELATAS DE INTOLERÂNCIA E O RACISMO NA TELEVISÃO: O BIG BROTHER BRASIL 2022. CONCLUSÃO. REFERÊNCIAS. NOTAS.
INTRODUÇÃO
Há poucos dias em que mais uma ferramenta legislativa de combate ao racismo e formas semelhantes de discriminação são incorporadas ao direito interno por meio da Convenção Interamericana contra Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância, os expectadores de um dos programas de reality shows brasileiros de maior audiência assistem perplexos a uma verdadeira perseguição à participante Natália. Qualquer semelhança entre os fatos e os dispositivos da Convenção não são mera coincidência. O que é insuportável é perceber que tentamos, há séculos, romper com este câncer. Porém, a olhos vistos, a participante, por ser negra, pobre e trazer consigo as marcas do vitiligo, padece de racismo indireto no programa. Pois bem, este artigo pretende relacionar os episódios cruéis a que a participante foi exposta e a inclusão da Convenção ao ordenamento jurídico brasileiro.
Esta avaliação é importante, pois atos de racismo, ainda que forjados sob as vestes da involuntariedade, genuinamente apenas reafirmam o racismo estrutural existente no seio da sociedade brasileira. Não obstante, não podem mais ser tolerados. Vive-se um contexto desafiador, social e economicamente, o que não justifica que o câncer da intolerância e da discriminação se façam presentes; ao contrário, devem ser combatidos e exterminados.
1. BASES HISTÓRICAS DO RACISMO ESTRUTURAL NO BRASIL
O racismo estrutural no Brasil está enraizado na organização escravista desenvolvida desde o período colonial. A escravidão, na verdade patrocinou a manutenção da monarquia no Brasil, o que já se impõe como obstáculo intransponível de rompimento não só do racismo naquela época, mas, primeiramente, à escravidão. A conclusão é notória, porquanto não se poderia falar em racismo em um país escravista. Assim, antes de adentrar nas discussões sobre igualdade, durante os séculos XVIII e XIX, era necessário eliminar os laços com a escravidão. Bersani (2018) traz o retrato da discriminação racial no Brasil enquanto consequência da escravidão, senão vejamos:
A discriminação racial constituiu estratégia apropriada pelas classes dominantes desde a época do escravismo e, embora não se tenha admitido de forma explícita o racismo atrelado às instituições, não se pode afastar tal premissa, uma vez que se pretende colaborar, na presente pesquisa, com a noção de racismo estrutural, que transcende as instituições, passando inclusive por elas. O modo escravista retirou dos negros a sua ancestralidade, violentando toda uma população e subjugando a aos interesses inerentes àquele modo de produção, de forma que acarretou à população a anulação de sua condição humana, mediante o esfacelamento das referências que trazia consigo em todas as dimensões, tais como a família, o território, a personalidade, o idioma, a religião e todo estigma criado em torno das práticas dela constantes, entre outras. (Bersani, 2018, p. 184)
O advento da República - que poderia proporcionar mudanças sociais, visto que embasada em liberdade e igualdade - pouco mudou a estrutura social dos negros. Mesmo a imperial e aclamada Lei Áurea, de 1888, restou infrutífera enquanto mudança social, sendo até considerada uma forma de postergar o fim da Monarquia que se anunciava. Na verdade, naquele momento inicial da República, os negros não eram sequer considerados cidadãos dotados de direitos sociais e tampouco políticos, pois a sociedade republicana firmou-se em uma rigorosa estrutura econômica de classes em que direitos políticos e sociais confundem-se ao poder aquisitivo das aristocracias. Bersani (2018) afirma que toda esta engrenagem montada desde os tempos coloniais conferiu ao Brasil o estigma de um país excludente socialmente. O que já não seria impossível concluir, posto que vergonhosamente recebe até hoje o título de último país a abolir a escravidão.
Atrelado a interesses de Estado, seja na monarquia ou na república, não se pode ignorar a dimensão política do racismo. (Bersani, 2018, p. 191)
Longe de ser um tratado sobre o racismo no Brasil, este estudo pretende fomentar as discussões sobre o tema que, ainda hoje, mostram-se relevantes. Assim sendo, o que é o racismo estrutural? Vamos nos recorrer a Bersani (2018):
Com efeito, o Estado age sobre o racismo quer pela sua presença, mediante leis, políticas segregacionistas e de higienização, entre outras medidas, quer pela sua ausência, pois não enfrentou a questão racial em seu cerne, enraizada no país desde o período colonial. Quando se trabalha a partir de políticas de ações afirmativas, como o sistema de cotas (nos âmbitos da educação e do trabalho), ou mediante a criação de um órgão com status de ministério (Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial) para tratar as políticas públicas voltadas à questão racial, o Estado revela o tratamento do assunto no âmbito institucional. Por outro lado, o racismo também apresenta sua face institucional, seja pela violência praticada pelo Estado diariamente à população negra, pela Polícia Militar, seja pela forma como o Estado se revela em sua composição mediante a dificuldade de acesso ao poder e aos espaços de que dispõe (e isso será objeto de estudo oportunamente) ou, ainda, pela dificuldade de acesso a políticas públicas de qualidade. (Bersani, 2018, p. 192)
Pois bem, enraizado na história do Brasil, financiador da manutenção da monarquia por quase dois séculos e posteriormente balizando a estratificação socialmente injusta que se iniciou com o período republicano, o racismo estrutural tem marcas profundas na sociedade brasileira. Em que pese a Constituição Federal de 1988 ser considerada um marco fundado no princípio da dignidade da pessoa humana ao considerar o racismo crime imprescritível e inafiançável, a efetividade desta importantíssima principiologia ainda é morosa. Isto porque a própria estrutura social no Brasil ainda desfavorece aqueles historicamente excluídos, de forma que face ao acervo legal existente atualmente, face à sua criminalização, o racismo existe, conforme muito bem nos explica Bersiani (2018) o racismo aqui vincula-se à luta de classes.
2. CONVENÇÃO INTERAMERICANA CONTRA O RACISMO, A DISCRIMINAÇÃO RACIAL E FORMAS CORRELATAS DE INTOLERÂNCIA E O RACISMO NA TELEVISÃO: O BIG BROTHER BRASIL 2022
Ratificada anteriormente por meio de Decreto Legislativo, agora a Convenção Interamericana Contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância, integra o conjunto de normas válidas em todo o território nacional, conforme Decreto nº 10.932 de 10 de janeiro de 2022. (Bolsonaro, 2022)
Passemos agora à análise da Convenção que, em seu preâmbulo, justifica-se da seguinte maneira:
Considerando que a dignidade inerente e a igualdade de todos os membros da família humana são princípios básicos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, da Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos e da Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial. (OEA. 2013)
É notório que os alicerces da Convenção são os Direitos Humanos e a Dignidade da Pessoa Humana que, nas palavras de Morais (2017), representam o seguinte:
Direitos Humanos correspondem a todos os direitos subjetivos individuais, coletivos, difusos e cosmopolitas legitimamente positivados, disso decorrendo sua universalidade balizada pelo princípio da dignidade da pessoa humana e cujo núcleo substancial de garantia é a cláusula constitucional da absoluta inviolabilidade. (Morais, 2017, p. 49)
É, portanto, uma garantia constitucional inviolável, um dever de todos, não sendo, portanto, exclusividade do Estado combater, mas de todos.
Em seu artigo primeiro, a Convenção nos traz
2. Discriminação racial indireta aquela que ocorre, em qualquer esfera da vida pública ou privada, quando um dispositivo, prática ou critério aparentemente neutro tem a capacidade de acarretar uma desvantagem particular para pessoas pertencentes a um grupo específico, com base nas razões estabelecidas no Artigo 1.1, ou as coloca em desvantagem, a menos que esse dispositivo, prática ou critério tenha um objetivo ou justificativa razoável e legítima à luz do Direito Internacional dos Direitos Humanos.
(...)
6. Intolerância é um ato ou conjunto de atos ou manifestações que denotam desrespeito, rejeição ou desprezo à dignidade, características, convicções ou opiniões de pessoas por serem diferentes ou contrárias. Pode manifestar-se como a marginalização e a exclusão de grupos em condições de vulnerabilidade da participação em qualquer esfera da vida pública ou privada ou como violência contra esses grupos. (Bolsonaro, 2022)
Além deste conceito, o instrumento igualmente define o que é racismo, discriminação racial. A convenção também legitima medidas especiais e ações afirmativas enquanto se fizerem necessárias.
Qual a relação desta importante Convenção - que consiste em um verdadeiro tratado de combate às diversas formas de racismo - e o reality show Big Brother Brasil, em sua edição de 2022? Resumidamente, trata-se de um programa de televisão em que diversas pessoas permanecem confinadas, sem qualquer contato com o mundo exterior, sendo que a cada semana um participante é eliminado do programa pelo público. O que torna este programa interessante para uma infinidade de pessoas é a possibilidade de presenciar as dificuldades de convivência entre o grupo. O que em tese é reflexo das próprias relações humanas, porém, neste caso televisionadas.
O programa, em sua edição de 2022, reuniu diversos participantes: uma parte de famosos e outra parte de pessoas comuns, todos em busca, além do prêmio milionário, visibilidade e seguidores nas redes sociais.
Entre os participantes encontra-se Natália Deodato, modelo e designer de unhas. Em razão das marcas do vitiligo, por ser de família humilde, negra, a participante pode ser vítima de intolerância e discriminação racial nos termos da Convenção Interamericana Contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância. Nesta segunda-feira, dia 14/02/2022, oportunidade em que os participantes realizaram o jogo da discórdia, em que pesem as diferenças atinentes à convivência do ser humano, o que restou claro foi uma ampla e gratuita rejeição de muitos participantes, beirando à humilhação.
Não bastasse o desprezo a que foi exposta, neste mesmo episódio de perseguição contínua, a participante sofreu agressão de uma das integrantes do programa [1]. Como já se debateu exaustivamente, o racismo no Brasil tem raízes históricas, mas vive-se um momento de combate contínuo, por movimentos sociais, pelo Poder Judiciário, por organizações internacionais e tantas outras. A intolerância desmedida, desumana, deve ser combatida. Agressões como esta não merecem ser esquecidas.
Diariamente são inúmeras as Natálias que sofrem o mesmo e se calam ante o bombardeio de ataques dirigidos única e exclusivamente em razão da cor da pele e da situação social. É de se enfatizar que o racismo tem raízes na luta de classes, e foi exatamente o que o programa mostrou.
CONCLUSÃO
O artigo finalmente conclui que a barbárie amplamente divulgada reacendeu os discursos sobre o combate efetivo de todas as formas de intolerância, racismo e discriminação. Que mais aliados possam emergir para que este mal seja, por fim, exterminado da sociedade brasileira. É verdade que não se pode apagar o passado assombroso de escravidão que a história do Brasil carrega consigo, mas o presente e o futuro, sob a proteção da Constituição de 1988, sugerem que atos iguais a este, data máxima vênia, sejam abortados, para que efetivamente se alcance uma sociedade justa e equânime.
REFERÊNCIAS
BERSANI, Humberto. Aportes teóricos e reflexões sobre o racismo estrutural no Brasil. Revista Extraprensa, v. 11, n. 2, p. 175-196, 2018. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/extraprensa/article/view/148025/147028
BRASIL. Decreto nº 10.932, de 10 de janeiro de 2022. 2022. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2022/Decreto/D10932.htm
OEA. Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância. 2013. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2022/Decreto/D10932.htm
MORAIS, Océlio de Jesús Carneiro de. Direitos Humanos Fundamentais e a Justiça Constitucional Brasileira. Rio de Janeiro. Lumen Juris, 2017, p. 49.
ROSA, Túlio Macedo et al. A Convenção Interamericana Contra o Racismo como parâmetro normativo ao ordenamento jurídico brasileiro. REBELA-Revista Brasileira de Estudos Latino-Americanos, v. 11, n. 3, 2021. Disponível em: file:///C:/Users/55619/Downloads/4953-17972-1-PB.pdf
Notas
1 Vídeo em que a participante sofre a agressão disponível em: https://www.uol.com.br/splash/noticias/2022/02/15/veja-video-do-momento-da-agressao-de-maria-a-natalia-que-gerou-a-expulsao.htm