Ab initio, cabe-nos esclarecer que, no Regime Geral de Previdência Social (RGPS) o segurado que não contasse com tempo exclusivamente em atividade insalubre para se aposentar, podia converter o tempo especial em tempo comum.
A conversão do tempo especial em comum, comumente utilizada no âmbito do RGPS, consiste na aplicação de um acréscimo de tempo em sua atividade insalubre, de modo a garantir a elevação no total do tempo de contribuição do segurado para obter uma aposentadoria comum, observando-se os fatores multiplicadores constantes no Decreto nº 3.048/99.
Contudo, no âmbito do Regime Próprio de Previdência Social - RPPS, a conversão de tempo especial em comum não era possível juridicamente, pois, para tanto, nunca houve expressa autorização legal ou constitucional, mesmo após a edição da Súmula Vinculante n.º 33, emitida pelo Supremo Tribunal Federal (posto que esta somente autorizou a análise da concessão das aposentadorias especial, sem falar em conversão).
Entretanto, novamente o STF se pronunciou sobre o tema, ao julgar o Recurso Extraordinário nº 1014286, firmando entendimento acerca da conversão do tempo especial em comum, conforme ementa a seguir transcrita:
EMENTA: RECURSO EXTRAORDINÁRIO. REPERCUSSÃO GERAL. APOSENTADORIA ESPECIAL DE SERVIDOR PÚBLICO. ARTIGO 40, § 4º, III, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. PEDIDO DE AVERBAÇÃO DE TEMPO DE SERVIÇO PRESTADO EM ATIVIDADES EXERCIDAS SOB CONDIÇÕES ESPECIAIS QUE PREJUDIQUEM A SAÚDE OU A INTEGRIDADE FÍSICA DO SERVIDOR, COM CONVERSÃO DO TEMPO ESPECIAL EM COMUM, MEDIANTE CONTAGEM DIFERENCIADA, PARA OBTENÇÃO DE OUTROS BENEFÍCIOS PREVIDENCIÁRIOS. POSSIBILIDADE ATÉ A EDIÇÃO DA EMENDA CONSTITUCIONAL N.º 103/2019. DIREITO INTERTEMPORAL. APÓS A EDIÇÃO DA EC 103/2019, O DIREITO À CONVERSÃO OBEDECERÁ À LEGISLAÇÃO COMPLEMENTAR DOS ENTES FEDERADOS. COMPETÊNCIA LEGISLATIVA CONFERIDA PELO ART. 40, § 4º-C DA CRFB.
1. A Constituição impõe a construção de critérios diferenciados para o cômputo do tempo de serviço em condições de prejuízo à saúde ou à integridade física, conforme permite verificar a interpretação sistemática e teleológica do art. 40, § 4°, CRFB.
2. Desde a edição das Emendas Constitucionais 20/1998 e 47/2005, não há mais dúvida acerca da efetiva existência do direito constitucional daqueles que laboraram em condições especiais à submissão a requisitos e critérios diferenciados para alcançar a aposentadoria. Nesse sentido é a orientação desta Suprema Corte, cristalizada no verbete de n.º 33 da Súmula da Jurisprudência Vinculante: Aplicam-se ao servidor público, no que couber, as regras do regime geral da previdência social sobre aposentadoria especial de que trata o artigo 40, § 4º, inciso III da Constituição Federal, até a edição de lei complementar específica.
3. Ao permitir a norma constitucional a aposentadoria especial com tempo reduzido de contribuição, verifica-se que reconhece os danos impostos a quem laborou em parte ou na integralidade de sua vida contributiva sob condições nocivas, de modo que nesse contexto o fator de conversão do tempo especial em comum opera como preceito de isonomia, equilibrando a compensação pelos riscos impostos. A conversão surge, destarte, como consectário lógico da isonomia na proteção dos trabalhadores expostos a agentes nocivos.
4. Após a EC 103/2019, o § 4º-C do art. 40. da Constituição, passou a dispor que o ente federado poderá estabelecer por lei complementar idade e tempo de contribuição diferenciados para aposentadoria de servidores cujas atividades sejam exercidas com efetiva exposição a agentes químicos, físicos e biológicos prejudiciais à saúde, ou associação desses agentes, vedada a caracterização por categoria profissional ou ocupação. Não há vedação expressa ao direito à conversão do tempo comum em especial, que poderá ser disposta em normativa local pelos entes federados, tal como operou a legislação federal em relação aos filiados ao RGPS, nos termos do art. 57, da Lei 8213/91.]
5. Recurso extraordinário desprovido, com fixação da seguinte tese: Até a edição da Emenda Constitucional nº 103/2019, o direito à conversão, em tempo comum, do prestado sob condições especiais que prejudiquem a saúde ou a integridade física de servidor público decorre da previsão de adoção de requisitos e critérios diferenciados para a jubilação daquele enquadrado na hipótese prevista no então vigente inciso III do § 4º do art. 40. da Constituição da República, devendo ser aplicadas as normas do regime geral de previdência social relativas à aposentadoria especial contidas na Lei 8.213/1991 para viabilizar sua concretização enquanto não sobrevier lei complementar disciplinadora da matéria. Após a vigência da EC n.º 103/2019, o direito à conversão em tempo comum, do prestado sob condições especiais pelos servidores obedecerá à legislação complementar dos entes federados, nos termos da competência conferida pelo art. 40, § 4º-C, da Constituição da República. (g.n.)
Nota-se pela decisão da Suprema Corte que até a data da vigência da Emenda Constitucional nº 103, de 13 de novembro de 2019, pode-se invocar as normas do RGPS para garantir ao segurado do RPPS, a conversão do tempo de contribuição especial em comum, em decorrência das condições especiais que prejudiquem a saúde ou a integridade física do servidor público, que decorre do inciso III do § 4º do artigo 40, da CF, na redação anterior à EC nº 103, de 2019.
Nesse sentido, adotando-se a decisão no âmbito do RPPS, deve-se invocar os dispositivos aplicáveis do RGPS, especialmente aqueles previstos no art. 57. da Lei Federal n.º 8.213/91 e os fatores multiplicadores previstos no art. 70. do Regulamento da Previdência Social, aprovado pelo Decreto nº 3.048, de 06.05.1999 (vigente à época).
A dúvida, então, é se o RPPS pode adotar o entendimento em debate, firmado pela Suprema Corte, que, aliás, é decorrente do julgamento de Recurso Extraordinário e que, para sua interposição e ulterior julgamento, é indispensável a demonstração de repercussão geral.
A repercussão geral é uma técnica voltada a controlar, de algum modo, o afluxo excessivo de processos, certo de que a decisão tomada no leading case tende a parametrizar a solução a ser estendida aos demais apelos sobre a mesma quaestio juris, sobrestados nos tribunais de origem.
É a demonstração de relevantes questões do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico que ultrapassem os interesses subjetivos de um respectivo processo, consoante o art. 1.035, § 1º, do Código de Processo Civil.
Em que pese sua relevância, a modalidade de impugnação específica que possui natureza recursal sob o controle difuso de constitucionalidade, ou seja, que não vincula a Administração Pública)
A despeito de a decisão proferida pela Egrégia Corte ter reconhecido a Repercussão Geral, cabe-nos esclarecer que não é de observância obrigatória pela Administração Pública, pois é destituída de poder vinculatório.
As decisões exaradas pelo STF de obrigatória observância são as decorrentes de julgamentos de demandas do controle concentrado de constitucionalidade (ADI, ADO, ADC e ADPF), ou enunciado de Súmula Vinculante, de acordo com o art. 103-A da Constituição Federal.
É que somente essas decisões, prolatadas em controle concentrado de constitucionalidade, ou quando editado verbete de Súmula Vinculante, vinculam a Administração Pública.
Demais institutos processuais civis não guardam relação com o tema em apreço, pois vinculam apenas e tão somente o entendimento a ser aplicado nos Tribunais Judiciários, tais como o IRDR (CPC, art. 976. e ss.) e o IAC (CPC, art. 947).
Assim, pode-se concluir que a tese firmada no Tema 942, não vincula, nem obriga a sua observância no âmbito dos Regimes Próprios de Previdência Social (RPPS).
Consigne-se que havendo definição da matéria e não havendo novas teses, não enfrentadas pelo STF, parece-nos louvável evitar a esfera judicial, de forma que se houverem pedidos na esfera do RPPS, parece-nos coerente e adequado adotar o entendimento proferido pela Suprema Corte no âmbito administrativo, evitando-se aborrecimentos desnecessários aos beneficiários e demandas judiciais que poderiam acarretar aumento exorbitante do passivo judicial.
Contudo, o RPPS pode entender que ainda cabem discussões sobre o tema, como:
-
vedação constitucional à contagem do tempo ficto1;
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necessidade de observância do princípio da contributividade;
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impossibilidade de garantia de conversão sem prévia contribuição previdenciária; e
-
vedação à criação ou majoração de benefício sem a correspondente fonte de custeio23.
Nessas situações, parece-nos adequado o indeferimento administrativo; caberia, então, uma nova discussão judicial.
Além disso, vale mencionar que, ainda que aplicada a interpretação do STF no RPPS, se o tempo de contribuição especial tiver sido com filiação ao RGPS ou a um RPPS distinto do qual o servidor pretende convertê-lo, a expedição de CTC com os tempos de contribuição em atividade especial reconhecidos, devem restar consignados na respetiva certidão, nos termos do art. 96, IX, da Lei Federal nº 8.213/91:
Art. 96. O tempo de contribuição ou de serviço de que trata esta Seção será contado de acordo com a legislação pertinente, observadas as normas seguintes:
...
IX - para fins de elegibilidade às aposentadorias especiais referidas no § 4º do art. 40. e no § 1º do art. 201. da Constituição Federal, os períodos reconhecidos pelo regime previdenciário de origem como de tempo especial, sem conversão em tempo comum, deverão estar incluídos nos períodos de contribuição compreendidos na CTC e discriminados de data a data.
Portanto, para implementação do entendimento proferido pelo STF, o RPPS poderá converter somente o tempo especial efetivamente comprovado, não posterior à data focal de 12-11-2019.
A comprovação do tempo de contribuição se dá pela comprovação do efetivo tempo especial, aplicando-se o mesmo entendimento constante na Instrução Normativa nº 01/10, com a necessidade de formulação de processo e instrução com os documentos indispensáveis, especialmente o Perfil Profissiográfico Previdenciário (PPP), Laudo Técnico de Condições Ambientais do Trabalho (LTCAT) e parecer de perícia médica reconhecendo o período de efetiva exposição.
Já a conversão do tempo especial com contribuição a outro regime previdenciário, ainda que a atividade tenha sido exercida no mesmo ente público do regime instituidor, deverá ser realizada no regime de origem, sendo indispensável a apresentação da CTC reconhecendo o tempo especial emitida pelo outro regime.
Acrescentamos, ainda, em caso de conversão que se deve observar a tabela contida no art. 70. do Regulamento da Previdência Social, aprovado pelo Decreto nº 3.048/99 (reproduzido pelo art. 188-P, § 5º, com a alteração promovida pelo Decreto nº 10.410/2020), que prevê a conversão pela multiplicação do tempo especial por 1,20, para as mulheres, e 1,40, para os homens.
Ademais, quanto ao aspecto temporal atrelado à aplicabilidade do entendimento firmado pelo STF, deve-se atentar que a possibilidade de conversão está limitada até 12.11.2019 (dia imediatamente anterior ao da publicação e entrada em vigor da EC 103/19). Após o referido período, somente é possível a conversão se regulamentada na lei complementar de cada ente federativo.
É que a Emenda Constitucional nº 103/19, em seu art. 25, § 2º, previu a possibilidade de conversão do tempo de contribuição especial exercido junto ao RGPS em comum até a data de entrada em vigor da respectiva emenda, vedando-se, contudo, a conversão após a correspondente data.
Aliás, a tese fixada, em regime de repercussão geral, pelo Supremo Tribunal Federal, por ocasião do julgamento do Recurso Extraordinário nº 1.014.286, ratificou o art. 25, § 2º, da EC 103/19 e definiu que:
Até a edição da Emenda Constitucional nº 103/2019, o direito à conversão, em tempo comum, do prestado sob condições especiais que prejudiquem a saúde ou a integridade física de servidor público decorre da previsão de adoção de requisitos e critérios diferenciados para a jubilação daquele enquadrado na hipótese prevista no então vigente inciso III do § 4º do art. 40. da Constituição da República, devendo ser aplicadas as normas do regime geral de previdência social relativas à aposentadoria especial contidas na Lei 8.213/1991 para viabilizar sua concretização enquanto não sobrevier lei complementar disciplinadora da matéria. Após a vigência da EC n.º 103/2019, o direito à conversão em tempo comum, do prestado sob condições especiais pelos servidores obedecerá à legislação complementar dos entes federados, nos termos da competência conferida pelo art. 40, § 4º-C, da Constituição da República
Assim, do mesmo modo que a conversão do tempo especial em comum é atualmente vedada para os segurados do RGPS, bem como para os servidores federais, recomendamos que os entes federativos, quando forem promover a sua reforma previdenciária, reproduzam igual preceito.
Por derradeiro, caso a legislação atual do ente federativo, que tenha realizado a sua reforma da previdência, não preveja expressamente a possiblidade de conversão do tempo especial em comum, temos que esta é indevida, em razão do princípio da legalidade estrita, a teor do art. 37, caput, da Constituição da República.
Diante de todo o exposto, podemos concluir que a tese firmada pelo STF permite aos RPPSs a converterem tempo especial em comum, de período anterior a EC 103/19, exclusivamente no exercício de atividade com exposição a agentes nocivos, devendo ser observadas, para tanto, as normas do RGPS.
Outrossim, a despeito de sua repercussão geral, destacamos que a decisão do STF não possui efeito vinculante em relação aos órgãos da Administração Pública e, portanto, não obriga sua observância no âmbito do RPPS.
Por derradeiro, parece adequado o indeferimento na via administrativa, facultando-se eventual discussão na esfera judicial, eis que pendente de discussão temas não enfrentados na decisão em debate.
Notas
1 CF, Art. 40. ... § 10. A lei não poderá estabelecer qualquer forma de contagem de tempo de contribuição fictício.
2 CF, Art. 195. ... § 5º Nenhum benefício ou serviço da seguridade social poderá ser criado, majorado ou estendido sem a correspondente fonte de custeio total.
3 LRF, Art. 24. Nenhum benefício ou serviço relativo à seguridade social poderá ser criado, majorado ou estendido sem a indicação da fonte de custeio total, nos termos do § 5º do art. 195. da Constituição, atendidas ainda as exigências do art. 17.