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Impeachment aplicável ao Presidente da República

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25/03/2007 às 00:00
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O processo de responsabilidade do Presidente da República a princípio pode soar como algo muito parecido com o processo penal, mas as discrepâncias são notáveis.

INTRODUÇÃO

Discorrer-se-á, na presente monografia, sobre a aplicabilidade do impeachment nos casos de eventual crime de responsabilidade cometido por Chefe do Poder Executivo Federal no Brasil.

A finalidade didática do trabalho é de configurar e analisar, com base na legislação, jurisprudência e doutrina, os meios e os fins alcançáveis e alcançados pelo processamento do impeachment quando aplicável ao Presidente da República. É neste intuito que se buscará o entendimento das fases deste processo, delineando-o desde os maus remotos tempos, à chegada do que é hoje.

Prima facie, o tema circundaria a aplicação do impeachment de maneira geral, isto é, o trabalho abarcaria o procedimento aplicável a todos os possíveis agentes do crime de responsabilidade. Outrossim, o funilamento do tema no sentido de fazê-lo incidir tão-somente ao Chefe do Executivo Federal, traria mais profundidade ao desenvolvimento, em vista da gama de desmembramentos que o instituto traz em seu bojo.

Primeiramente, a busca da diretriz do trabalho foi a obra de Paulo Brossard, "O Impeachment". Todavia, achei por melhor demonstrar minha capacidade de pesquisa, deixando a obra supracitada – que é uma referência sobre o assunto- como a luz do caminho que seguia no decorrer do desenvolvimento de escrita. Desta forma, tentei buscar o ensinamento de vários autores, objetivando demonstrar meu interesse em revelar as mais diferentes opiniões por meio da pesquisa.

O trabalho é divido em três partes. No primeiro capítulo far-se-á uma explicação sobre o desenvolvimento histórico do instituto, com destaque para o sistema inglês do impeachment, o qual culminou com a caracterização real do procedimento nos moldes que temos hoje. Outro aspecto interessantíssimo que será destacado é o fato de que a criação do sistema parlamentarista nasceu do impeachment, num movimento quase natural da função fiscalizadora recíproca entre os três Poderes. Outrossim, o impeachment dos Estados Unidos merecerá destaque por tratar-se de desdobramento daquele inglês, com algumas diferenças bem destacadas entre os dois países, sendo que no Brasil segue-se o sistema norte-americano estadunidense.

Devido à peculiaridade da característica mista dos componentes do grupo de julgadores do impeachment francês, será concedido um subcapítulo especial ao procedimento utilizado na França. Na seara brasileira-constitucional, será feita a amostragem do impeachment sob a ótica das Constituições Brasileiras, verificando-se que acompanham o desenvolvimento histórico que o Brasil e o mundo passam.

No segundo capítulo adentrar-se-á no impeachment brasileiro propriamente dito, sob seus aspectos material e processual. Alguns pontos serão destacados antes de se demonstrar efetivamente o instituto, tais como a diferença entre os crimes comuns e responsabilidade, a divergência doutrinária sobre a natureza jurídica do impeachment e sobre o agente político que pode sofrer o crime de responsabilidade. A partir daí, apontar-se-á as os crimes de responsabilidades elencados na Constituição da República Federativa de 1988 e suas características. Da mesma forma, serão analisadas as formas de procedimento do processo, ou seja, o aspecto procedimental ou processual do impeachment, basendo-se principalmente nas normas da Lei 1.079/1950.

No terceiro capítulo, pretende-se fazer uma análise sobre o impeachment sofrido pelo ex-Presidente Fernando Collor de Mello no ano de 1992. Primeiramente será feita uma narração sobre os acontecimentos políticos divulgados naquele ano tão conturbado, em relação aos fatos atinentes ao ex-Presidente Fernando Collor de Mello. Posteriormente, procurar-se-á fazer uma reflexão histórica e sociológica do impacto do primeiro caso de impeachment concluído em nosso país.


Capítulo 1

ORIGEM E HISTÓRIA

No primeiro capítulo da presente monografia, apresentar-se-á o histórico do impeachment. Seu surgimento ocorreu na Inglaterra e, é a partir daí que iniciará a explicação pretendida. Posteriormente, haverá uma narração do procedimento francês e, após, do processo de impedimento nos Estados Unidos. No último subcapítulo pretende-se desdobrar o estudo para a esfera constitucional brasileira, fazendo-se uma viagem histórica desde a Constituição Monárquica até a avançada Constituição Federal da República Federativa do Brasil de 1988.

1.1.ORIGEM INGLESA: O BERÇO DO PARLAMENTARISMO

Paulo Brossard explica de maneira muito peculiar este início histórico sobre o impeachment, leia-se:

Destarte, é sempre arriscado falar-se no impeachment inglês como se ele pudesse ser tomado por processo definido, inteiramente estruturado, quando, da gênese ao ocaso, ele se desdobra do crepúsculo do século XIII, ou XIV, à madrugada do século XIX. Lembra certos tecidos que mudam de cor conforme o ângulo do qual são vistos e segundo a luz que sobre eles incida (...) Isto precisava ser lembrado antes que, brevemente, fosse rememorados os traços marcantes da evolução do instituto e suas características no país que lhe universalizou o nome e quem sem ele não seria o que é (...) [01]

As primeiras exteriorizações fáticas do impeachment, como processo que originou o impeachment tal qual temos hodiernariamente, tem raízes na Inglaterra do século XIII. A própria palavra impeachment tem origem inglesa, que significa impedimento em sua forma literal. O verbo a que se remete o desdobramento da palavra impeachment é o verbo to impeach, que tem o significado de acusar e, naquele país, tem uma conotação de delação de crime ou violação de responsabilidade de funcionário do Estado. Riccitelli inclusive traduz a conceituação da palavra impeachment, utilizando-se do Cambridge International Dictionary of English como: "Fazer uma acusação formal declarando que um alto funcionário público é culpado de um delito grave conexo com seu cargo" [02].

Mesmo que a maioria da doutrina ensine sabidamente que o impeachment tem origem inglesa entre os séculos XIII e XIV, sua formação vem se desenvolvendo muito anteriormente a esta data. Como explica Carlos Maximiliano, citado por Riccitelli [03], as tribos já julgavam seus semelhantes de forma popular. Com a criação dos tribunais, as pessoas passaram a ser julgadas por estes, contudo, em relação àqueles crimes que porventura trouxessem à esfera pública grande aclamação popular, estes ainda se submeteriam ao julgo do povo. Na Grécia antiga, mais especificadamente em Atenas, o homem que ousasse ameaçar de algum mal à sociedade, poderia ser condenado ao exílio político.

Pinto Ferreira explica sobre a história pré inglesa do impeachment:

Embora resultante da história constitucional britânica, a história política sempre assistiu à hostilidade com que se perseguiram homens eminentes, ora com razão, ora por simples mesquinharia. É preciso relembrar o caso de Themístocles, na história grega, que foi exilado pela Assembléia popular de Atenas, e de Públio Cipião, o Africano, também exilado de Roma para a própria Itália, responsabilizado pelo uso irrestrito de fortuna pública. Sempre houve assim os chamados processos de responsabilidade que caracterizam o impeachment, mas é claro que ele surgiu com suas notas distintivas precisas muito mais tarde na história política [04].

Foi na Inglaterra, todavia, que o instituto tomou a estrutura a qual desencadeou a forma que temos hoje. À época, o impeachment veio como alternativa de punição aos detentores dos altos cargos reais, cujo clamor público apontava para a possibilidade de serem agentes de improbidades no exercício de seus cargos. A investigação, nestes casos, ficava sujeita a uma das casas do Parlamento [05].

Paulo Brossard [06] ensina que o instituto, na Inglaterra, não se restringia àqueles que encontravam-se investidos em função ou cargo público, mas alcançava também os súditos, autoridades, e até mesmo os cidadãos comuns. De outro lado, Sérgio Resende Barros [07] diz que uma das características mais marcantes do impeachment é a legitimidade passiva a que se refere, ou seja, somente políticos são réus. Segundo o autor, esta característica deu-se justamente com o pioneiro caso de impeachment inglês, o caso de Lorde Latimer, em 1376. Anteriormente ao caso Lorde Latimer existiu a acusação perante o Parlamento do Arcebispo de Cantuária, Jonh Stratford, em 1341. Contudo, tal acusação não foi considerada pelos autores como a pioneira, eis que se tratava de denúncia baseada em vagas difamações. Apesar de não se verificar no caso do Arcebispo da Cantuária a caracterização do impeachment inglês propriamente dito, pode-se dizer que neste caso é que houve o nascimento do impeachment na Inglaterra.

No entanto, foi no caso de Lorde Latimer que pela primeira vez a Câmara dos Comuns [08] teve papel nítido de casa de acusação, enquanto à Casa dos Lordes [09] cabia o julgamento do acusado. O instituto fora utilizado com este aspecto até 1459, no caso Lord Stanley. Depois deste caso, o impeachment só voltou a ser utilizado em 1620 [10], tornando-se foco de debate político e legislativo, eis que os Comuns passaram a reivindicar a atuação exclusiva do Parlamento em relação ao instituto. O Rei Jaime I se opôs inutilmente à idéia e o Parlamento, em especial a Casa dos Comuns, passou a utilizar-se do impeachment como arma de ataque às lesões ou ameaças desfalcadas pelos integrantes reais. Nesta época, inclusive, podemos citar, conforme Pinto Ferreira ensina, o famoso caso de acusação do "eminente filósofo e estadista [11]" Francis Bacon.

Muitos foram os casos de denúncias da Casa Baixa contra ministros e altos funcionários da Coroa. Vale lembrar o caso de Willian Laud que, em 1633, foi condenado à morte sob acusação de traição. A denúncia baseava-se na acusação de que Laud estava tentando trazer o papismo à Inglaterra, o que o levou à efetiva execução de morte em 1645 [12].

Riccitelli [13] explica que à Casa dos Comuns cabia, desde o reinado de Eduardo I, a fase de aceitação da acusação, enquanto que à Casa dos Lordes cabia o julgamento do acusado, de forma muito similar ao que acontece hoje quando da aplicação do processo, conforme bem lembra o Professor Pinto Ferreira [14]. Outrossim, a partir do reinado de Eduardo III a Casa Baixa passou a utilizar-se muito da prerrogativa que lhe cabia dentro do procedimento de impeachment.

No sistema inglês ao Rei ainda cabia a faculdade de "perdoar" o acusado do crime de responsabilidade que lhe era imputado, ou, quando impedido de conceder o perdão, poderia conceder indulto ao condenado [15].

Os principais ataques da Casa dos Comuns eram dirigidas aos ministros do rei, dentre os quais a acusação do Conde de Danby. Foi neste processo que se decidiu que o impeachment se tratava de matéria de competência exclusiva do Parlamento, excluindo o rei de seu poder exclusivo de perdoar, fato este que causou a condenação irrevogável do Conde supramencionado [16].

Mesmo tendo legitimidade passiva no processo inglês as figuras políticas da Corte, o rei não fazia parte deste grupo que poderia sofrer acusação ou julgamento pelas Câmaras. Isto porque, conforme ainda diz Riccitelli [17], o estado absolutista é baseado no direito divino e, com isso, o rei era imune a tais ataques, porquanto tido como representante de Deus na terra. Da mesma forma explica o mestre Paulo Brossard [18], conforme já mencionado acima, quando ensina que pares e comuns são passíveis de acusação no processo de impeachment, com exceção da Coroa.

René David [19] ensina que na concepção feudal, não existe a figura do Estado tal qual tem-se hoje. O Estado era a Coroa (the crown), ente personificado que constituía o Poder Executivo inglês, da mesma maneira que as Cortes constituíam o Poder Judiciário. Na Inglaterra a administração pública não era única, havendo uma divisão entre o alto escalão da Corte e o chamado civil service [20]. Os funcionários do civil service eram funcionários que respondiam pelos crimes cometidos pela justiça comum, não havendo, portanto, "distinção entre erro pessoal e erro de serviço" [21]. Neste viés, ao rei não cabia nenhuma responsabilidade sobre o erro de funcionários da Coroa, podendo inclusive instaurar um writ com o objetivo de ordenar que o funcionário indenizasse o cidadão prejudicado pelo dano. Este processo desenvolvia-se perante as Cortes Reais, as quais cabiam, quando não processado o writ, a petition of right [22], ou seja, um direito de petição do cidadão prejudicado ao soberano, requerendo justiça privada entre o peticionário e o acusado, para que obtivesse sua indenização.

Maria Sylvia Zanella Di Pietro explica que é na teoria da irresponsabilidade que o rei encontra a imunidade acima descrita, embasada no princípio do the king can do no wrong [23]. Até então, o subordinado real era o responsável por quaisquer danos advindos do exercício de suas funções como servidor real. Este princípio, segundo a doutrinadora, teve vigência até 1947, quando da aprovação do Crown Proceeding Act [24], que passou a normatizar a questão da responsabilização no seguinte sentido:

(...) a Coroa passou a responder nas seguintes hipóteses: por danos cometidos pelos seus funcionários ou agentes, desde que haja infração daqueles deveres que todo patrão tem em relação aos seus prepostos e também daqueles deveres que toda pessoa comum tem em relação à propriedade [25].

Entre os anos de 1621 e 1715, cinqüenta foram os casos de impeachment e o rei não podia interferir nas decisões do Parlamento, eis que não se tratava de processo de sua competência. Outrossim, não sofria revisão judiciária, cabendo exclusivamente ao Parlamento a investigação, julgamento e caracterização de conduta criminosa praticada pelo acusado [26].

Segundo Barros, diante do reiterado uso do procedimento para apuração destes crimes, aos ministros não restava outra alternativa melhor a não ser renunciar de seus cargos antes da instauração do processo de impeachment. Ou, em outra hipótese, sucumbiam às diretrizes políticas do Parlamento em prevenção à eventual acusação de cunho político possível de ser efetivada pelas Casas. Desta feita, ao rei não sobrava qualquer poder de coerção e proteção de seu ministério, ficando a Casa dos Comuns como o tribunal penal e político dos crimes praticados pelos agentes políticos. É exatamente neste cenário que "o impeachment foi a mais eficaz alavanca institucional para erguer um novo sistema de governo da Inglaterra: o parlamentarismo" [27].

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Assim, diferentemente do presidencialismo, que se trata de uma construção racional, o parlamentarismo é uma construção histórica, a qual teve no início do século XVIII seus primeiros alicerces. Foi com a morte da Rainha Ana que o sistema passou a ganhar molde, eis que os herdeiros do trono inglês eram alemães: Jorge I e Jorge II. A casa de Hanover [28] pouco sabia sobre os interesses e estratégias políticas britânicas, trabalhando sem planos de governo adequado ao local, ignorando inclusive a língua da terra. Foi aí que escolheram um ministro para que tomasse as rédeas do que seria, depois, o chefe de governo do Estado – neste caso o escolhido para o encargo foi o ministro Walpole.

Entregue aos ministros sob a chefia de um deles, o governo era ainda o governo do rei, dependente de sua vontade, que poderia destituí-lo a qualquer instante. Ao Parlamento ia, porém, caber o passo seguinte. Ganhando audácia, foi ele aos poucos buscando senão impor a sua orientação, ao menos enquadrar dentro de certos limites a linha de ação do ministério. Para isso, usou ele do impeachment, ou de sua ameaça. O impeachment era um procedimento penal mas, não podendo o monarca agraciar os condenados por ele, não cabendo apreciação judicial das decisões nele tomadas, estava nas mãos do Parlamento caracterizar, ou não, a conduta de um ministro como criminosa [29].

Nasce assim a chamada "responsabilidade política", ou seja, a obrigação do parlamentar de deixar de fazer parte do corpo legislativo, em vista da perda da confiança de seus semelhantes políticos [30].

Ainda de acordo com Barros [31], o processo de impeachment tratava-se, até então, de processo que reunia procedimento penal e político. Penal porque cedia ao acusado o direito à ampla defesa e ao contraditório e político pois tratava-se de procedimento de alçada exclusiva do Parlamento, desenvolvendo-se sobre a progressão de grandes discursos e debates. Paulo Brossard ainda ensina que o impeachment inglês trata-se de procedimento penal pois "atinge a um tempo a autoridade e castiga o homem (...) a Câmara dos Lordes julga a acusação dos Comuns com jurisdição plena, impondo-lhe livremente toda a sorte de penas" [32].

Riccitelli [33], por sua vez, vê o impeachment como procedimento penal [34] e jurídico, ao passo que Barros, como acima mencionado, o descreve como procedimento penal e político. Essa discussão de nomenclaturas não parece trazer grandes diferenças entre as visões finalísticas dos dois autores, veja-se o que diz Riccitelli:

Inicialmente de natureza criminal, o impeachment submetia os acusados a penas que variavam desde a perda do cargo de autoridade, pagamentos de multas, até a punição por castigo corporal, que podia culminar, inclusive, com a própria morte. O instituto do impeachment desenvolveu-se particularmente no século XIII à primeira metade do século XVII, quando passou a ser menos freqüente. Na sua origem, apresentava caráter judicial, baseava-se em crime e, além de ter como principal objetivo a destituição da autoridade condenada, assegurava ampla defesa [35].

Riccitelli [36] ensina que é em vista do procedimento moroso do processo de impeachment, assim como as longas sentenças a serem prolatadas que fizeram com que este procedimento fosse sendo deixado de lado pelos parlamentares. Isso não significou, entretanto, que as mazelas políticas seriam aproveitadas sem quaisquer sanções pelos agentes reais. Foi aí que surgiu a substituição pelo procedimento do bill of attainder como garantidor das imputabilidades penais aos parlamentares malfeitores.

Assim, após a institucionalização do parlamentarismo, adotou-se a preferência pelo sistema chamado de bill of attainder, que excluía do corpo desse processo parlamentar a ampla defesa e o contraditório. Brossard diz que se tratava o bill of attainder de "(...) condenação decretada por lei, uma lei-sentença, odiosamente pessoal e retroativa (...)" [37].

Com o passar dos tempos e com a conseqüente estruturação cada vez mais complexa das formas políticas, o impeachment foi tomando lugar no "museu das antiguidades constitucionais" [38], na medida em que as políticas preventivas vão tomando o lugar dos processos punitivos [39]. Em 1848, no julgamento de Lord Palmerston, a Câmara dos Comuns conclui que o procedimento do impeachment chega a seu fim, em vista de sua estrutura arcaica e pouco eficaz.

1.2 SISTEMA FRANCÊS: TRIBUNAL MISTO

Pinto Ferreira [40] descreve também o impeachment dentro do sistema legal francês, em seu aspecto histórico. Vale lembrar deste sistema, pois diferentemente do sistema britânico, é tribunal misto que julgará o acusado pelo crime de responsabilidade. O tribunal de julgamento dos crimes na França é chamado de Haute-Court e é formado por trinta juízes, dos quais vinte são membros da Assembléia, escolhidos por seus semelhantes, e dez são pessoas comuns, que não sendo membros da Assembléia, são também escolhidos por deputados. Geralmente esses dez membros não- deputados são juízes membros do Poder Judiciário. Este sistema de tribunal misto foi implantado na Constituição Federal da França de 1946, apesar do instituto existir constitucionalmente desde a Lei Maior de 1875, inclusive como forma de reflexo da revolução Francesa. O autor ainda ensina que existem outros países que se utilizam desta forma mista para as apurações e investigações, enfatizando que "de resto uma solução inspirada na democracia social-weimeriana". Na Constituição francesa de 1875 já havia previsão da aplicação do impeachment não só ao Presidente da República, mas também aos Ministros de Estado. Hoje o processo atinge a qualquer cidadão, incidindo o condenado à cominações de cunho administrativo, civil e criminal.

Carlos Alberto Provenciano Gallo [41] explica que a Constituição Federal Francesa de 1793 já estabelecia que "o Conselho Executivo é responsável pela inexecução de leis e decretos e de abusos que não denúncias" [42] e aponta a resolução de 17 de fevereiro de 1871, a lei de 31 de Agosto de 1871 [43] e a lei de 13 de março de 1873 [44] como as que tornaram o Chefe de Estado, da mesma forma que os ministros, responsável perante a assembléia. Entrementes, foi com a Constituição Federal Francesa de 1875 que a orientação sobre a responsabilidade do Rei se fortaleceu, culminando com a redação da Constituição Federal Francesa de 1946 – em vigor a partir de 1947 -, que responsabilizava o rei nos casos de alta traição. A Constituição Federal de 1958 foi a que trouxe a responsabilidade do Chefe do Poder Executivo como prerrogativa, tal qual a redação que dá o seu artigo 68:

Os membros do governo serão penalmente responsáveis pelos atos realizados no exercício de suas funções e qualificados de crimes ou delitos no momento em que forem cometidos. O procedimento descrito acima lhes será aplicável, assim como a seus cúmplices, em caso de conspiração, contra a Segurança do Estado. Nos casos previstos no presente parágrafo, a Alta Corte observará a definição de crimes e delitos bem como determinará as penalidades decorrentes da aplicação da legislação em vigor no momento em que os atos tiverem sido cometidos [45].

Lembre-se que o Presidente francês não é monarca, como no caso inglês, assim, é responsável penal e civilmente pelas ilegalidades cometidas fora do exercício de suas funções, conforme ainda explica o Professor Provenciano Gallo [46].

1.3.IMPEACHMENT ESTADUNIDENSE: EVOLUÇÃO DO PROCEDIMENTO INGLÊS

À primeira vista, pode parecer que o impeachment inglês e o estadunidense são totalmente diferentes. Porém, podem ser considerados semelhantes se considerados de maneira objetiva, principalmente em vista do resultado proposto por cada um, afora o fato do procedimento americano ser historicamente decorrente do inglês:

Assemelham-se, quando não se identificam, os fins que ambos perseguem. Tanto no complicado processo de roupagens judiciais quanto no singelo expediente da moção de desconfiança, o de que se cuida é de afastar do governo a autoridade que se pôs em conflito com a maioria da nação, representada no Parlamento [47].

Apesar de suas peculiaridades, o impeachment estadunidense é, indiscutivelmente, herança do impeachment inglês. A diferença mais clara entre as duas formas de impeachment é que enquanto na Inglaterra é criminal, também chamado de monárquico; nos Estados Unidos o impeachment é político, também chamado de republicano. O Professor Riccitelli explica:

No meio dessa estrutura, o impeachment criminal nasceu, desempenhou função estratégica na implantação do sistema de governo parlamentarista inglês e, antes de desaparecer naquele contexto histórico, deixou marcas indeléveis na Constituição norte-americana. Ressurgiu com características distintas, não sugerindo punições físicas ou patrimoniais, tornando-se procedimento de características essencialmente políticas. O impeachment republicano, mediante um processo de mutação, emergiu na fase da constituição escrita [48].

Brossard também explica sobre uma das maiores diferenças existentes entre o impeachment inglês e o americano, utilizando-se das palavras de Eduardo Duvivier, quando nomeado pela Ordem dos Advogados do Brasil para defender Washington Luiz em seu processo de exílio:

(...) transpondo o Atlântico, o ‘impeachment‘, que, como instituição política, se originara na Inglaterra do princípio da irresponsabilidade do Executivo e que, politicamente, se extinguira com o estabelecimento da sua responsabilidade (...) justifica-se, na América do Norte e nos países da América do Sul, que lhe seguiram o exemplo, exatamente pelo princípio da responsabilidade do executivo [49].

As primeiras emanações desses impedimentos deram-se, nos Estados Unidos, nas Constituições Estaduais americanas. Conforme explica Provenciano Gallo [50], pode-se citar as de New Hampshire, Virgínia, New Jersey, Delawre, Pennsylvania, Maryland e North Carolina, todas de 1776; além daquelas dos estados de Geórgia e New York, ambas de 1777.

Ferreira Pinto [51] diz que a constitucionalidade do impeachment nos Estados Unidos se deu na Constituição Federal Americana de 1787 e limitava-se aos funcionários civis. Provenciano Gallo [52] ensina que funcionários civis eram aqueles que não nomeados pelo Presidente, incluindo o próprio, o Vice- Presidente, magistrados federais e servidores da União norte- americana.

Assim, o caso do Senador Blount, que seria o primeiro caso de impeachment norte americano, dentro da Constituição de 1787, restou prejudicado por quatorze votos a onze, na decisão que confirmaria a situação do Senador como não funcionário civil, eis que congressista, na época nomeado pelo Presidente do Poder Executivo [53].

Os casos de impeachment constam no rol constitucional como os crimes de traição (treason), suborno (bribery), graves crimes (high crimes) e atos ilícitos ou má conduta (misdemeanors) [54]. Provenciano Gallo explica qual o significado de cada um desses tipos de crime, dizendo que, quanto à traição, a norma constitucional norte-americana do art. 3°, seção III, n°01 era clara:

A traição contra os Estados Unidos consistirá, unicamente, em levantar armas contra eles, ou coligar-se com seus inimigos, prestando-lhes auxílio e apoio. Ninguém será condenado por traição se não mediante o depoimento de duas testemunhas sobre o mesmo ato, ou mediante confissão em sessão pública do Tribunal [55].

Em relação ao suborno, Gallo continua a ensinar que não há definição direta constitucional sobre a matéria, mas o direito criminal já se ocupava dessa discussão, tratando-se, assim, de matéria já explicada pela doutrina penal.

A grande dificuldade é na definição exata do que se trata high crimes e misdemeanors. Entre muitos autores estrangeiros que têm diferentes explicações sobre os institutos, duas correntes destacam-se, "a primeira corrente afirma que se trata de crimes e delitos vistos em sentido técnico e restritivamente (...) e a segunda, extensiva, lhe dá o sentido vulgar de crime e mau procedimento" [56]. A Constituição Argentina e a Brasileira, desde 1891, absorvem a corrente restritiva para fins de crimes de responsabilidade e impedimento.

Paulo Brossard [57] lembra, ao comparar o procedimento inglês e o estadunidense, que a acusação, neste último, trata-se de acusação limitada. Isto significa que a análise da violação criminosa do fato fica a cargo do Poder Judiciário, tendo a Câmara política competência para acusação e processamento dos fatos violadores da responsabilidade funcional do executivo, sem adentrar no processo penal propriamente dito. O mestre ainda ensina que nos Estados Unidos existia vedação expressa quanto à prerrogativa do rei perdoar o acusado neste tipo de procedimento.

O impeachment norte- americano [58] é tido como verdadeiro instrumento de freios e contrapesos entre os Poderes, principalmente entre o Legislativo e o Executivo. Esse modelo caracterizou-se claramente no caso do processo do Presidente Johnson, onde o descontentamento de parte do Congresso com suas diretrizes políticas ocasionaram o surgimento do Tenure-of- Office Act [59], ou seja, o Presidente só poderia exonerar funcionários com a anuência do Senado. Johnson então destituiu o Secretário de Guerra Edwin M. Stanton e a Câmara procedeu a acusação do Presidente por crime de misdemeanors, contudo fora absolvido quando da votação no Senado. O Presidente Richard Milhous Nixon também teve o mandato ameaçado pela ação do procedimento de impedimento, em virtude do famoso caso Watergate. Acusado pela Câmara, Nixon renunciou para que o processo finalizasse. Gerald Ford assumiu a Presidência e, como Presidente, tinha o "poder do perdão", que foi utilizado para livrar Nixon de eventuais responsabilidades na esfera da Justiça Comum [60].

1.4.HISTÓRICO BRASILEIRO

A partir deste subcapítulo, busca-se a explicação do histórico constitucional do impeachment brasileiro. Inicia-se com a fase monárquica- constitucional e evolui para aquelas Constituições do período republicano.

1.4.1.Constituição monárquica

Na Constituição Monárquica [61], a princípio, temos uma grande semelhança com o que se poderia comparar com o impeachment do direito inglês, mas não tomou as proporções daquele país pelo fato de estar instalado no Brasil um sistema monárquico, não cabendo a aplicação do sistema parlamentarista lá alcançado:

Reproduzir-se-ia no Brasil, de certa forma, o fenômeno que ocorrera no país onde o impeachment surgiu, agigantou-se, entrou em declínio e feneceu. Não previsto na Constituição, o sistema parlamentar em torno dela se formou, à maneira de aluvião, envolveu-a, e chegou a ser nota dominante das instituições imperiais [62].

A Constituição Monárquica de 1824 já trazia a primeira configuração do instituto em nosso país, sendo equivocado, portanto, dizer que o impeachment nasceu com a república brasileira. Outrossim, não se pode negar que "era natural que se não falasse em responsabilidade do governo antes que as idéias liberais rompessem a crosta do absolutismo [63]". Paulo Brossard ensina ao falar do impeachment português:

(...) a partir de 1697, as Cortes não mais se reuniram nem foram convocadas até 1820, quando voltaram a reunir-se, mas ao toque da revolução que nesse ano estalou, e ao sopro do liberalismo, que mudava a face da Europa e do mundo (...) [64].

No art. 99 da Constituição Monárquica, é clara a inimputabilidade do Presidente em relação a eventuais crimes próprios que pudesse cometer, veja-se que sua redação era a seguinte:

Art. 99. A Pessoa do Imperador é inviolável, e sagrada: ele não está sujeito à responsabilidade alguma (...)

Porém, vale ressaltar que a Constituição Federal é como reflexo histórico de seu tempo, apenas traduzindo o que, à época, era a situação fática dos acontecimentos.

De outro lado, os arts. 133 a 135 da Carta Monárquica [65] dispunham sobre a responsabilidade dos Ministros de Estado quanto a seus atos. Foi nesse sentido que a Lei de 15 de Outubro de 1827 fixou diretrizes sobre a natureza desses delitos e a forma de ação quando verificada seu acontecimento. Brossard [66] ensina que esta fixação assemelha-se com a forma britânica do instituto, ou seja, "fixou-a em termos penais". E mais, além de lançar-se sobre a esfera criminal, a denúncia poderia ser apresentada por cidadãos contra Ministros dentro de três anos, enquanto que os parlamentares poderiam fazê-lo dentro de oito anos, estivessem ou não os Ministros denunciados ainda no poder.

Somente José Clemente Pereira, em 05 de agosto de 1831, então Ministro de Guerra, fora acusado sobre a égide da Lei de 15 de Outubro de 1827. Contudo, fora absolvido pelo Senado em 09 de junho de 1932 [67].

1.4.2.Período republicano

Doravante, como já mencionado, iniciará a explanação sobre a fase republicana do impedimento presidencial, sempre sob seu aspecto constitucional.

1.4.2.1 Constituição da república dos estados unidos do Brasil - 1891

A Constituição Republicana de 1891 [68], evoluindo seu texto em virtude das ocorrências sócio- políticas, dedicou um capítulo especial para o tratamento da responsabilidade do presidente da república. Trata-se do capítulo V, que abrange os artigos 53 e 54 daquela Carta [69].

As leis especiais que definiram tais delitos, em conformidade com o preceituado nos §§1º e 2º do art. 54, foram os Decretos 27 de 07 de Janeiro de 1892, e 30 de 08 de janeiro de 1892. O então presidente Marechal Deodoro da Fonseca vetou ditos Decretos, porém, tal veto não fora absorvido pelo Congresso, o que levou Deodoro a aplicar um golpe de Estado, dissolvendo o Congresso Nacional. Houve resistência, o que culminou com a renúncia do então Presidente em favor de Marechal Floriano Peixoto, que finalmente acatou ambas as Leis [70].

Alexandre de Moraes [71] faz um breve comparativo entre as leis de 1892 e aquela de nº 1079, de 1950 [72]. Lembra o doutrinador que as duas primeiras previam apenas a aplicação da pena de perda do cargo, enquanto que a pena de inabilitação de função pública por tempo determinado tinha caráter de acessoriedade. Por outro lado, a lei 1079/50 não prevê apenas a perda do cargo como punição à conduta de crime de responsabilidade, nem tem a inabilitação característica de pena acessória àquela primeira.

Todavia, muitos dos assuntos processuais e materiais da Lei de 15 de Outubro de 1827 foram aproveitados, mas a principal mudança foi em relação à natureza do instituto no país, isto porque deixa então de tratar-se de instituto criminal. Assim, numa primeira visão sobre a distinção entre o impeachment imperial e o republicano, pode-se pensar que poucas são as diferenças, pois apesar de "persistirem certas denominações, das semelhanças processuais, de ser quase idêntico o cerimonial" [73], a natureza jurídica do impeachment republicano é política.

As opiniões e correntes divergiam, quando se tratava da natureza jurídica do impeachment na Constituição de 1891. Gallo lembra de dois casos em que o Supremo Tribunal Federal decidiu em argüição de inconstitucionalidade sobre dispositivos enunciados nas constituições estaduais de São Paulo e do Piauí, afirmando o seguinte:

(...) sendo o impeachment um processo constitucional- penal, as Constituições dos referidos Estados deveriam observar os parâmetros traçados pela Constituição Federal, isto é, não poderiam definir os crimes ou cominar penas, não lhes cabendo também regular o processo e julgamento sem atender ao mandamento constitucional hierarquicamente superior, já que a matéria era objeto de competência privativa do Congresso Nacional [74].

Fábio Konder Comparato [75] explica que, apesar da grande semelhança constitucional entre as constituições americana e brasileira de 1891, o procedimento de impeachment entre os dois países difere em muitos aspectos. Enquanto que nos Estados Unidos o objetivo era justamente desvencilhar a responsabilidade política de qualquer conotação penal, no Brasil a questão de definição da natureza jurídica do impeachment sofre discussão teórica desde a época da Constituição Republicana de 1891.

Alexander Hamilton ensina o porquê da preocupação dos constituintes norte-americanos em desconectar os atos políticos da esfera penal, tipificando todas as condutas passíveis de penalização:

(o impeachment) não pode jamais limitar-se a regras tão restritas, seja na caracterização do delito pela promotoria, seja na elaboração da culpabilidade pelos juízes, como acontece nos casos comuns, quando elas servem para limitar o arbítrio dos tribunais, preservando a segurança individual [76].

Comparato [77] explica sobre a segunda diferença entre o instituto norte americano e o brasileiro de 1891. Diz respeito à suspensão que sofre o presidente brasileiro se fosse submetido ao procedimento político, o que não acontecia com o presidente submetido ao impeachment nos Estados Unidos. Isto porque, para o constituinte, o presidente não poderia ficar sob o julgo do poder legislativo, que poderia usar deste ato como subterfúgio para jogadas de politicagem.

A terceira diferença apontada por Comparato [78] é aquela em que o presidente norte-americano só poderá ser acusado perante o Poder Judiciário se fosse condenado pelo Senado por ato político. A Constituição Brasileira de 1891 apenas concedeu tal prerrogativa quando se tratava do Presidente da República, isto é, não estendia a prerrogativa para os outros Chefes do Poder Executivo.

Ferreira Pinto [79] lembra que houve tentativas de impeachment contra Floriano Peixoto (1893), contra Campos Sales (1901 e 1902) e contra Hermes da Fonseca (1912), sendo que todas elas foram negadas pela Câmara dos Deputados.

1.4.2.2.Constituição da república dos estados unidos do Brasil – 1934 e 1937

É muito semelhante a redação da Constituição de 1934 [80] com a de 1891, quando se delimita os atos que implicam responsabilização do Presidente da República no exercício de suas funções. As prerrogativas quanto às responsabilidades do Presidente estão previstas na redação do art. 57 da Constituição de 1934 [81].

Ferreira Pinto [82] ensina que o entendimento de Epitácio Pessoa sobreveio a outros, qual seja: na Constituição de 1934 a pena é dual, ou seja, além de referir-se à perda do cargo com a inabilitação por determinado período de tempo do exercício de qualquer função pública, a renúncia não pressupõe impunibilidade para o suposto violador do crime de responsabilidade.

Gallo estrutura o processo de responsabilidade da seguinte forma:

Sob a égide da Constituição de 1934, havia três etapas quanto aos crimes de responsabilidade: 1º) investigação feita por uma Junta Especial; 2º) decretação da procedência ou não procedência da denúncia feita pela Câmara dos Deputados ou de acordo com o estabelecido no §5º do artigo 57 pelo Tribunal Especial; 3º) processo e julgamento [83].

Trata-se de um raciocínio simplificador dos preceitos constitucionais da Constiuição de 1934 que, além disso, traz um sistema mais complexo de procedimento de responsabilização do Presidente, veja-se o artigo 58 da Constituição de 1934:

Art. 58 – O Presidente da República será processado e julgado nos crimes comuns, pela Corte Suprema, e nos de responsabilidade, por um Tribunal Especial, que terá como presidente o da referida Corte e se comporá de nove Juízes, sendo três Ministros da Corte Suprema, três membros do Senado Federal e três membros da Câmara dos Deputados. O Presidente terá apenas voto de qualidade [84].

Já a Constituição de 1937 diminui as hipóteses de aplicação do impeachment, apesar de que se tratam de casos, assim como nas outras Constituições, que podem ter extensivas interpretações, veja-se:

Art. 57 - São crimes de responsabilidade os atos do Presidente da República definidos em lei, que atentarem contra: a) a existência da União; b) a Constituição; c) o livre exercício dos Poderes políticos; d) a probidade administrativa e a guarda e emprego dos dinheiros públicos; e) a execução das decisões judiciárias [85].

Ferreira Pinto ensina, de forma sucinta, mas completa e direta, sobre a passagem da Constituição de 1934 para a de 1937:

A Lei Maior de 1934 pouco durou, substituída pela Carta da Ditadura de 1937. Esta aludia ao impedimento. Mas para quê, se a Carta nunca foi posta em prática e o Congresso, dissolvido, não foi mais eleito? A aludida Constituição foi mais palhaçada do caudilhismo sul-americano, baseado nas oligarquias rurais temerosas do surto comunista, contra o qual reagiu em tempo a democracia dos homens sensatos [86].

Gallo reforça este pensamento, dizendo:

A pessoa do Presidente da República tornava-se quase idêntica à de um Monarca absoluto, inviolável e sagrado, imune a responsabilidades por atos estranhos à sua função. Previa a Carta de 1937 que, uma vez cometido um crime comum, o processo seria sustado, aguardando-se que o Presidente deixasse as funções, afastando-se da sistemática adotada anteriormente [87].

Mais uma vez pode-se extrair da redação da Constituição Federal os reflexos da história do Brasil, revelando-se a vontade humana do Presidente da República na busca quase absoluta do poder, deixando-se levar pelo homem e esquecendo-se do papel do agente político da nação.

1.4.2.3.Constituição da república dos estados unidos do Brasil – 1946

A Constituição de 1946 [88] regulou o impeachment nos seus artigos 88 e 89 [89]. Ferreira Pinto [90] chama a atenção quanto ao fato de que nestes artigos 88 e 89 da Constituição de 1946, não há uso da palavra impedimento ou impeachment. Usa-se nestes artigos o termo "crimes de responsabilidade". Contudo, no art. 79 da mesma Carta Política, há alusão à palavra impedimento:

Art. 79 – Substitui o Presidente, em caso de impedimento, e sucede-lhe, no de vaga, o Vice-Presidente da República. (...) §1º - Em caso de impedimento ou vaga do Presidente e do Vice- Presidente da República, serão sucessivamente chamados ao exercício da Presidência o Presidente da Câmara dos Deputados, o Vice-Presidente do Senado Federal e o Presidente do Supremo Tribunal Federal. (...)

Foi o parlamentar Vieira de Melo quem orientou a doutrina pátria no sentido de que o art. 76 da Carta de 1946 tem sentido mais amplo do que aquele utilizado nos artigos 88 e 89 da mesma Lei Maior [91].

Foi ainda sob a égide da Constituição Federal de 1946 que foi promulgada a Lei 1079/50, a qual normatizou acerca dos crimes de responsabilidade a serem aplicados sobre atos do Presidente da República, Ministros de Estado, Ministros do Supremo Tribunal Federal, Procurador Geral da República, Governadores e Secretários de Estado.

1.4.2.4.Constituição do Brasil – 1967

São nos artigos 84 e 85 [92] da Constituição de 1967 [93] que se pode encontrar os dispositivos que tratam da responsabilidade do Presidente da República. Gallo [94] faz reflexão sobre a tendência ao fortalecimento do Poder Executivo quando da alteração do quorum para admissibilidade de processamento e julgamento do Presidente, bem como quanto à norma que dispõe sobre o arquivamento do processo, após decorridos sessenta dias sem a conclusão do julgamento.

1.4.2.5.Constituição da república federativa do Brasil – 1988 [95]

Na atual Constituição Brasileira [96], temos no art. 85 o rol de bens jurídicos resguardados pela Carta Maior quando trata-se de ato de Presidente da República no exercício do cargo:

Art. 85. São crimes de responsabilidade os atos do Presidente da República que atentem contra a Constituição Federal e, especialmente, contra: I – a existência da União; II – o livre exercício do Poder Legislativo, do Poder Judiciário, do Ministério Público e dos Poderes Constitucionais das unidades da Federação; III – o exercício dos direitos políticos, individuais e sociais; IV – a segurança interna do país; V – a probidade da administração; VI – a lei orçamentária; VII – o cumprimento das leis e das decisões judiciais. Parágrafo único – Esses crimes serão definidos em lei especial, que estabelecerá as normas de processo e julgamento.

Brossard [97] traz à reflexão alguns aspectos da nova redação do art. 85, em comparação aos textos das Constituições anteriores. São poucas as alterações. Lembra o autor, por exemplo, sobre a inclusão do Ministério Público no inciso II do art. 85 da Constituição Federal de 1988. Outro aspecto é o fato de ser extinto o texto em relação à "guarda e bom emprego dos dinheiros públicos", que ocorria na Carta de 1946 e era excluído nas Cartas de 1967. Brossard ensina, todavia, que por não estar no rol do art. 85, a guarda do dinheiro público não deixa de ser via de tutela do Presidente da República. Mostra o doutrinador que o constituinte protege o dinheiro público no preceito do §1º do art. 167 [98] da Constituição Federal de 1988.

Assim, a enumeração do art. 85 da Constituição de 1988 continua a não ser taxativa, pois reza que são "(...) crimes de responsabilidade os atos do Presidente da República que atentem contra a Constituição Federal e, especialmente, contra (...)", ou seja, quaisquer atos que atentem contra a Constituição Federal serão passíveis de serem entendidos como crime de responsabilidade. Ademais, a Lei 1079/50 continua a ter validade, sendo revogados aqueles dispositivos que não se chocam com a disposição de qualquer preceito da Constituição Federal de 1988. A exemplo disso, veja-se a redação original do art. 2º da referida Lei [99]:

Art. 2º Os crimes definidos nessa Lei, ainda quando simplesmente tentados, são passíveis da pena de perda do cargo, com inabilitação, até cinco anos, para o exercício de qualquer função pública (...) [100]

O entendimento do Supremo Tribunal Federal [101], assim, é no sentido de que se deva entender o período de oito anos para a inabilitação e não de cinco, conforme o texto original.

Resende de Barros [102] ainda faz um duplo desdobramento do impeachment brasileiro à luz da Constituição de 1988. Explica que o impeachment pode ser entendido como o impeachment "propriamente dito" ou tradicional, onde os acusados são aqueles do inciso I do art. 52 da Constituição Federal, ou pode ser entendido como um impeachment de caráter não tradicional, que seria aquele aplicável às pessoas do inciso II do art. 52 [103].

Assim, partindo desta análise histórica e constitucional, pode-se passar ao segundo capítulo, o qual aprofundará o estudo do processo de impeachment de maneira a entrar no tema em suas formas processuais e materiais.

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Sobre a autora
Maria Cecília Schmidt

bacharel em Direito, técnica judiciária auxiliar do Tribunal de Justiça de Santa Catarina

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SCHMIDT, Maria Cecília. Impeachment aplicável ao Presidente da República. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1362, 25 mar. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/9653. Acesso em: 22 dez. 2024.

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