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Princípio da não culpabilidade:

histórico constitucional, consequências e regras fundamentais

03/04/2022 às 10:20
Leia nesta página:

O princípio da não culpabilidade (ou presunção de inocência) tem como consequências principais a imputação do ônus da prova à acusação e a atribuição de deveres de tratamento ao acusado.

1 INTRODUÇÃO

O ordenamento jurídico-constitucional é um sistema normativo composto de regras e princípios diversos. Segundo Canotilho[1], os princípios se diferenciam das regras por vários motivos, mas, principalmente, porque aqueles possuem um grau de abstração maior; estas são suscetíveis de aplicação direta, enquanto princípios necessitam medidas concretizadoras; aqueles detêm um grau de fundamentabilidade superior no ordenamento jurídico; os princípios se aproximam mais do ideal de justiça, sendo padrões (standards) juridicamente vinculantes; e aqueles têm natureza normogenética, isto é, são a razão da criação das normas jurídicas.

Barroso, buscando simplificar tais diferenças, ensina que elas se baseiam em três critérios, quais sejam: conteúdo, isto é, princípios explicitam decisões políticas fundamentais República, Federação, Democracia, entre outras -, valores dignidade da pessoa humana e segurança jurídica por exemplo ou fins públicos erradicação da pobreza, desenvolvimento nacional, etc.-; estrutura normativa, ou seja, os princípios apenas enunciam ideais sem que seja detalhado como serão atingidos, sendo normas finalísticas; e modo de aplicação, já que, ao contrário das regras que são aplicados no modelo de subsunção típica de fatos a norma, mais conhecido como modelo tudo ou nada, os princípios deverão ter aplicação conforme o caso concreto com aplicação de técnicas de ponderação em caso de incidência de valores conflitantes, por isso os direitos deles decorrentes são exercíveis em princípio e na medida do possível[2].

Assim, os princípios de um ordenamento jurídico concentram a ideologia e aspirações de um povo em um determinado período, isto é, denotam os valores mais importantes de uma determinada sociedade.

Nas palavras de Nucci, é um postulado que se irradia por todo um sistema de normas[3]:

Portanto, no Estado Democrático de Direito, inaugurado pela Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, o estudo do Direito e, consequentemente, do Direito Penal e Processual Penal deve ser feito à luz dos princípios explícitos e implícitos de toda ordem jurídico-constitucional, fazendo com que o direito de punir estatal esteja em consonância com os direitos e garantias individuais.

2 ABORDAGEM HISTÓRICA E NOÇÕES INTRODUTÓRIAS

Eugenio Pacelli de Oliveira leciona da seguinte maneira:

O devido processo penal constitucional busca, então, realizar uma Justiça Penal submetida a exigências de igualdade efetiva entre os litigantes. O processo justo deve atentar, sempre, para a desigualdade material que normalmente ocorre no curso de toda persecucão penal, em que o Estado ocupa posicão de proeminência, respondendo pelas funcões investigatórias e acusatórias, como regra, e pela atuacão da jurisdicão sobre a qual exerce o monopólio[4]

Nesse contexto, a Carta Magna de 1988 elencou diversos direitos fundamentais da pessoa humana, entre eles, o presente no art. 5˚, LVII: "Ninguém será considerado culpado até o transito em julgado de sentença penal condenatória". Tal mandamento não estava presente de forma expressa em nenhuma das outras ordens constitucionais do Brasil, decorrendo, antigamente, do princípio do devido processo legal.

Diversas convenções e documentos internacionais já previam o direito de o acusado ser considerado inocente enquanto ainda houvesse razoável dúvida sobre sua culpa, tendo, no art. 9° da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, o seu surgimento com o ápice do Iluminismo posteriormente à Revolução Francesa, enquanto outros instrumentos internacionais reproduziram o seu conteúdo, como a Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948 em seu art. 11.1. e Convenção Americana sobre Direitos Humanos, também conhecido como Pacto de San José da Costa Rica, que dispõe em seu art. 8˚, § 2˚ da seguinte maneira: "Toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa".

Diante da terminologia utilizada pelos Tratados Internacionais e pela Constituição Federal, quais sejam, inocência e não culpado respectivamente, passou-se a denominar no âmbito internacional tal postulado de princípio da presunção de inocência e no âmbito brasileiro de princípio da não culpabilidade.

Gustavo Henrique Badaró indica a equivalência entre as expressões:

"na doutrina italiana prevaleceu, inicialmente, a posição de que a condição de 'não culpável' de quem deve ser julgado não se identifica com a presunção de inocência. Contudo, nunca se conseguiu delimitar em que consistia a distinção, isto é, em que o conteúdo da 'presunção de não culpabilidade' seria diferente do da 'presunção de inocência'. As expressões 'inocente' e 'não culpável' constituem somente variantes semânticas de um idêntico conteúdo. Justamente por ser inútil e contraproducente a tentativa de apartar ambas as idéias - se é que isto é possível - passou-se a postular a equivalência de ambas as fórmulas"[5]

No mesmo sentido, lecionam Nestor Távora e Rosmar Rodrigues de Alencar:

Vale destacar ainda que o princípio da presunção de inocência tem sido encarado como sinônimo de presunção de não culpabilidade. São expressões equivalentes. Essa é a nossa posição. [...] É certo que na atual ordem constitucional, não podemos admitir uma distinção dessa ordem. Enquanto não transitar em julgado a sentença condenatória, a culpa não se estabelece. [...][6]

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De fato, o caráter mais amplo da proteção estabelecida na Constituição deve prevalecer sobre os documentos internacionais, tendo em vista sua força normativa e a máxima efetividade que deve ser concedida na interpretação de normas consagradoras de direitos fundamentais. Por conta disso, o Pacto de San José da Costa Rica preceitua em seu art. 29, b, que as suas normas não impedem a aplicação de postulados de amplitude maior, oriundos do direito interno dos signatários.

Portanto, os princípios da presunção de inocência e de não culpabilidade devem ser tratados como expressões sinônimas, atentando o intérprete para o caráter amplificado deles no âmbito da norma fundamental de 1988, qual seja, o de que o acusado de uma infração penal só poderá ser considerado culpado depois do trânsito em julgado da sentença condenatória.

3 CONSEQUÊNCIAS E REGRAS FUNDAMENTAIS ORIUNDAS DO PRINCÍPIO DA PRESUNÇÃO DE NÃO CULPABILIDADE OU DE INOCÊNCIA

A primeira regra ou consequência é a de que, em regra, o ônus da prova cabe à acusação. Nas palavras de Renato Brasileiro:

[...]a parte acusadora tem o ônus de demonstrar a culpabilidade do acusado além de qualquer dúvida razoável, e não este de provar sua inocência. Em outras palavras, recai exclusivamente sobre a acusação o ônus da prova, incumbindo-lhe demonstrar que o acusado praticou o fato delituoso que lhe foi imputado na peça acusatória[7]

Vale ressaltar, no entanto, que há algumas exceções à tal regra, como o ônus de provar a incidência de alguma excludente de ilicitude ou de culpabilidade, por exemplo, a legítima defesa ou a coação moral irresistível, o qual compete ao acusado, além de causas de extinção de punibilidade ou circunstâncias que diminuam a pena, como a prescrição ou a confissão espontânea.

Nesse sentido, Eugênio Pacelli leciona:

Cabe, assim, à acusação, diante do princípio da inocência, a prova quanto à materialidade do fato (sua existência) e de sua autoria, não se impondo o ônus de demonstrar a inexistência de qualquer situação excludente de ilicitude ou mesmo de culpabilidade. Por isso, é perfeitamente aceitável a disposição do art. 156 do CPP, segundo a qual a prova da alegação incumbirá a quem a fizer [8]

Badaró ensina que a consequência do ônus da prova, via de regra, caber à acusação é uma disciplina de acertamento penal, sendo que, para prolação de uma sentença penal condenatória, é necessário um juízo, formulado pelo acervo fático-probatório do processo, de que o mandamento constitucional da presunção de inocência foi superado no caso concreto.[9]

A segunda consequência ou regra diz respeito à um dever de tratamento o qual Aury Lopes Jr. subdivide em deveres internos ao processo, que indicam a excepcionalidade da prisão durante o processo, bem como o favorecimento da dúvida ao réu, e deveres externos ao processo, os quais significam uma proteção à imagem ou privacidade do acusado, diante da publicidade excessiva ou estigmatização do acusado.[10]

Assim, denota-se que toda medida constritiva de direitos individuais, em especial, a prisão, só pode ser decreta excepcionalmente, isto é, cautelarmente. Segundo Tourinho Filho, enquanto não definitivamente condenado, presume-se o réu inocente. Sendo este presumidamente inocente, sua prisão antes do trânsito em julgado da sentença condenatória, somente poderá ser admitida a titulo de cautela.[11]

4 CONCLUSÃO

Diante do exposto, é possível inferir que o princípio da não culpabilidade, à luz de uma interpretação histórica e constitucionalmente adequada, sinônimo do chamado princípio da presunção de inocência, tem como consequências principais a imputação do ônus da prova à acusação e a atribuição de deveres de tratamento de natureza interna e externa ao acusado.


REFERÊNCIAS

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional. 6. ed. Coimbra: Almedina, 1993.

BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção de um novo modelo. São Paulo: Saraiva, 2009.

NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Processo Penal e Execução Penal. 5. ed. São Paulo: RT, 2008.

OLIVEIRA, Eugenio Pacelli de. Curso de Processo Penal. 10. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.

LOPES JR., Aury. Direito Processual e sua conformidade constitucional. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, v. 2, p. 47-48.

TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Código de Processo Penal Comentado. São Paulo: Saraiva, 1996, v. 1, p. 65.

BADARÓ, Gustavo Henrique Righi lvahy. Ônus da Prova no processo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003.

TÁVORA, Nestor; ALENCAR, Rosmar Rodrigues. Curso de Direito Processual Penal. 11. ed. Salvador: JusPODIVM, 2016.

LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de Processo Penal. 3. ed. Salvador: JusPODIVM, 2015.


  1. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional. 6. ed. Coimbra: Almedina, 1993, p. 1.086.
  2. BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção de um novo modelo. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 205-208.
  3. NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Processo Penal e Execução Penal. 5. ed. São Paulo: RT, 2008, p. 80.
  4. OLIVEIRA, Eugenio Pacelli de. Curso de Processo Penal. 10. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 7-8.
  5. BADARÓ, Gustavo Henrique Righi lvahy. Ônus da Prova no processo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 282.
  6. TÁVORA, Nestor; ALENCAR, Rosmar Rodrigues. Curso de Direito Processual Penal. 11. ed. Salvador: JusPODIVM, 2016, p. 46.
  7. LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de Processo Penal. 3. ed. Salvador: JusPODIVM, 2015, p. 44.
  8. OLIVEIRA, Eugenio Pacelli de. Curso de Processo Penal. 18. ed. São Paulo: Atlas, 2014, p. 336.
  9. BADARÓ, Gustavo Henrique Righi lvahy. Ônus da Prova no processo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 285.
  10. LOPES JR., Aury. Direito Processual e sua conformidade constitucional. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, v. 2, p. 47-48.
  11. TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Código de Processo Penal Comentado. São Paulo: Saraiva, 1996, v. 1, p. 65.
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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FILHO, Daniel Ribeiro Garcia. Princípio da não culpabilidade:: histórico constitucional, consequências e regras fundamentais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 6850, 3 abr. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/96887. Acesso em: 23 nov. 2024.

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