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Antinomia jurídica do acto de nomeação de directores provinciais nos órgãos de governação descentralizada em Moçambique

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24/03/2022 às 08:30
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ANTINOMIA JURÍDICA

O conceito de antinomia jurídica é apresentado na doutrina por vários autores que estudam o Direito.

Roberto Carlos Batista, citando Norberto Bobbio, conceitua a antinomia jurídica como aquela situação que se verifica entre duas normas incompatíveis, pertencentes ao mesmo ordenamento jurídico e tendo o mesmo âmbito de validade.[11] Recorrendo a Tércio Sampaio Ferraz Júnior, o autor ora em citação, vê na antinomia jurídica, como a posição que ocorre entre duas normas contraditórias (total ou parcialmente), emanadas de autoridades competentes num mesmo âmbito normativo, que colocam o sujeito em posição insustentável pela ausência de inconsistência de critérios aptos a permitirem-lhe uma saída nos quadros de um ordenamento jurídico dado.[12]

Emmanuel Teófilo Furtado e Juliana Cristine Diniz Campos, em seus estudos sobre Antinomias e a Constituição, definem as antinomias jurídicas como, o conflito entre normas jurídicas aparentemente aplicáveis ao mesmo caso concreto, mas com disposições incompatíveis entre si[13].

Infere-se dos conceitos acima apresentados, que a antinomia jurídica corresponde a uma dissonância, aparente ou real, entre normas dentro do mesmo ordenamento jurídico, propiciando interpretações díspares e colocando em questão a segurança jurídica na aplicação desses conteúdos normativos, o que impõe a adopção de soluções, por via da hermenêutica jurídica, com vista a conformá-las ao restante ordenamento jurídico.

Acontece que o nº 3 do artigo 48 da Lei nº 4/2019, de 31 de Maio, institui um regime procedimental de nomeação de Directores Provinciais alicerçado em requisitos com grande dose de subjectivismo, tendencialmente desvinculado da reunião pelo potencial gestor público, de requisitos previamente tipificados em algum diploma legal. Em contraponto, o Qualificador Profissional da Função de Director Provincial, aprovado pela Resolução nº 18/2020, de 26 de Maio, estabelece um quadro de requisitos predispostos que condicionam o provimento para o exercício da função pública de Director Provincial.

A antinomia nos diplomas legais acima referenciados leva-nos à clara colocação de pelo menos dois sentidos de compreensão que poderão culminar em interpretações contrárias e, no campo do judiciário, em decisões igualmente díspares, com todas as consequências que isso possa implicar no funcionamento dos Órgãos Executivos de Governação Descentralizada (OEGD).

O que aqui se pretende é desconstruir a ideia da coexistência e aplicabilidade de dois diplomas legais na prática de acto cuja finalidade é a mesma, investir um funcionário ou agente, na função de Director Provincial do Conselho Executivo Provincial.

Antinomia Jurídica do acto administrativo de nomeação dos Directores Provinciais nos Órgãos de Governação Descentralizada em Moçambique

O percurso apresentado nos pontos precedentes permite concluir que na estrutura organizacional do Estado e da Administração Pública em geral, encontram-se órgãos dotados de poderes para exercer quer funções políticas, como funções administrativas, podendo exercer ambas, sendo que, no campo do concreto, por vezes não é fácil descortinar se os actos praticados têm natureza política ou administrativa.

E deste modo, impõe-se apurar se o acto de nomeação do Director Provincial do Conselho Executivo Provincial tem natureza política ou administrativa.

O Governador Provincial é órgão executivo eleito na estrutura organizacional do Conselho Executivo Provincial, conforme resulta da normatização da alínea a) do artigo 32 da Lei nº 4/2019, de 31 de Maio. Pela lógica das discussões retro apresentadas, sendo órgão eleito por voto dos eleitores da circunscrição territorial da Província, está investido de poderes políticos e administrativos vide artigo 33 da Lei retro referenciada.

A nomeação de Directores Provinciais, é um acto cuja finalidade é a constituição do Conselho Executivo Provincial e, à semelhança do que sucede com a nomeação de Ministros pelo Presidente da República, na constituição do Governo, é feita no exercício da função política e não administrativa. Pelo que, seguindo o critério de funções, o acto de nomeação de Directores Provinciais é um acto político e não administrativo.

Pelo critério da legislação de governação descentralizada, o acto de nomeação de Directores Provinciais é um acto administrativo, circunscrito na alínea a) do nº 1 do artigo 46 da Lei nº 4/2019, de 31 de Maio. Sob a epígrafe Forma dos actos do Governador de Província, a norma em referência estabelece o seguinte: Os actos administrativos do Governador de Província tomam a forma de: despachos, quando sejam individuais e concretos; (sublinhado nosso).

Compreende-se que, ao Governador Provincial, o legislador tratou de determinar com bastante precisão que o mesmo pratica actos administrativos despachos (sendo estes os conhecidos actos administrativos de autoridade) e ordens de serviços (actos administrativos de gestão).[14]

Densifica-se ainda mais, quanto a nós, a qualificação do acto de nomeação dos Directores Provinciais, como acto administrativo, pelos seguintes fundamentos:

  1. A Lei nº 4/2019, de 31 de Maio, de que o Governador Provincial se serve para nomear os Directores Provinciais, é uma norma administrativa, orientada para a regulamentação da definição dos actos a praticar e o modus faciendi do Governador Provincial, no processo de gestão do Conselho Executivo Provincial;
  2. A prolação da Lei nº 4/2019, de 31 de Maio pela Assembleia da República, fundamentou-se nas normas dos artigos 178, nº 2, alínea r); 279, nº 4 e 280, nº 2, todos da Constituição da República de Moçambique de 2018 (CRM/2018), que na sua essência, as três normas aqui referenciadas têm por objecto a composição, organização e funcionamento da Administração Pública; e
  3. O Despacho de nomeação de Director Provincial é um acto praticado por uma entidade da Administração Pública de nível provincial, nos termos da alínea a) do artigo 59 e, é um acto de designação de um responsável pela gestão de bens públicos, gerador de despesa pública, em consonância com o estatuído no corpo do nº 1 e na última parte da alínea b) do artigo 60 da Lei nº 14/2014, de 14 de Agosto, alterada e republicada pela Lei nº 8/2015, de 6 de Outubro.

Sumarizando, os actos de nomeação dos Directores Provinciais do Conselho Executivo Provincial têm natureza administrativa e não política. Estão sujeitos à fiscalização prévia, através do Visto dos Tribunais da jurisdição administrativa, posto que, são actos geradores de despesa pública, ao abrigo da imposição posta pelo corpo do nº 1 do artigo 60 da LFRDP, que estabelece o seguinte: Estão obrigatoriamente sujeitos à fiscalização prévia os seguintes actos () geradores de despesa pública, (). (sublinhamos).

Relativamente à antinomia acima apurada, cura dizer que, o texto do nº 3 do artigo 48 da Lei nº 4/2019, de 31 de Maio, encontra sua inspiração no nº 1 do artigo 6 da Lei nº 11/2012, de 8 de Fevereiro, Lei que procedeu à revisão pontual da Lei nº 8/2003, de 19 de Maio (Lei dos Órgãos Locais do Estado - LOLE), nos termos do qual Podem ser dirigentes dos órgãos locais do Estado, cidadão moçambicanos de reconhecido mérito moral e experiência profissional de administração pública ou fora dela, para exercer as suas funções com idoneidades, objectividade, imparcialidade, competência e zelo.

Ao abrigo da disposição normativa acima citada, tornou-se prática a nomeação para o exercício de funções, como dirigentes dos Órgãos Locais do Estado[15], cidadão moçambicanos, sem necessidade de complemento com requisitos decorrentes de qualificadores profissionais. Processos desta índole têm merecido crivo favorável dos Tribunais da Jurisdição Administrativa.

Todavia, importa destacar que, o conteúdo da norma do nº 1 do artigo 6 da Lei nº 11/2012, de 8 de Fevereiro, apenas constitui/constituiu fundamento para a nomeação de dirigentes dos órgãos locais do Estado, nomeadamente, os Governadores Provinciais (do regime anterior aos OGDP), dos Administradores Distritais, dos Chefes de Postos Administrativos e de Localidades. Ou seja, a nomeação de Directores Provinciais não constituía objecto de fundamentação com recurso na norma do nº 1 do artigo 6 da Lei nº 11/2012, de 8 de Fevereiro. Estes eram nomeados com base na Resolução nº 3/2005, de 10 de Agosto.

O conteúdo normativo do Qualificador Profissional da Função de Director Provincial, aprovado pela Resolução nº 18/2020, de 26 de Maio, é, na prática, o retomar do conteúdo exposto pelo Qualificador Profissional de Director Provincial, aprovado pela Resolução nº 3/2005, de 10 de Agosto, portanto, anterior ao actual modelo de governação descentralizada.

À luz dos Qualificadores Profissionais referenciados no parágrafo precedente, apenas podiam/podem ser nomeados para o exercício da função de Director Provincial, funcionários da Administração Pública que reunissem/reúnem os demais requisitos aí impostos, que de um modo geral, se traduzem em: a) Possuir, pelo menos, o nível de licenciatura, ou equivalente e ter, pelo menos, 5 anos de serviço, com boas informações; b) Possuir, pelo menos, o nível de bacharelato, ou equivalente e ter, pelo menos, 5 anos de experiência de direcção e chefia, com boas informações; c) Estar enquadrado na carreira de Técnico Superior N2, de regime geral ou específico ou em carreiras correspondentes de regime de regime especial, com pelo menos 5 anos de experiência de direcção e chefia, com boas informações.

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No âmbito dos Qualificadores Profissionais em análise, o primeiro requisito é, necessariamente, ser funcionários da Administração Pública para dar corpo ao instituído no artigo 25 do EGFAE.

No contexto actual da Governação Descentralizada, o procedimento com vista à nomeação de Directores Provinciais, encontra fundamento quer no nº 3 do artigo 48 da Lei nº 4/2019, de 31 de Maio, bem como na Resolução nº 18/2020, de 26 de Maio. Entretanto, como acima ficou demonstrado, os referidos dispositivos legais se mostram desarmónicos, não podendo fundamentar de forma conjugada um mesmo acto de nomeação de Director Provincial, posto que, pela Lei nº 4/2019, de 31 de Maio, a qualidade de funcionário da Administração Pública não constitui requisito e, em contraponto, à luz da Resolução nº 18/2020, de 26 de Maio, só pode ser Director Provincial, quem reúna inicialmente, a qualidade de funcionário da Administração Pública.

Os dois diplomas legais em apreciação, fazem parte do mesmo ordenamento jurídico, daí que se mostra evidenciada a antinomia jurídica na nomeação dos Directores Provinciais, cabendo agora resolvê-la.

Kelsen entende que o Direito parte do pressuposto de que os conflitos de normas no material normativo que lhe é dado - ou melhor, proposto - podem e devem necessariamente ser resolvidos pela via da interpretação. Como a estrutura da ordem jurídica é uma construção escalonada de normas supra e infra-ordenadas umas às outras, em que uma norma do escalão superior determina a criação da norma do escalão inferior, o problema do conflito de normas dentro de uma ordem jurídica põe-se de forma diferente conforme se trata de um conflito entre normas do mesmo escalão e de um conflito entre uma norma de escalão superior e uma norma de escalão inferior.[16]

Tratando-se de conflito entre normas do mesmo escalão, regra geral, elas terão sido emitidas em diferentes ocasiões, pelo que, a validade da norma estabelecida em último lugar sobreleva à da norma fixada em primeiro lugar e que a contradiz, segundo o princípio lex posterior derogat priori.[17]

Hipótese inversa, é aquela em que, o conflito verifica-se entre normas de escalões diferentes.

Entre uma norma de escalão superior e uma norma de escalão inferior, quer dizer, entre uma norma que determina a criação de uma outra e essa outra, não pode existir qualquer conflito, pois a norma do escalão inferior tem o seu fundamento de validade na norma do escalão superior. Se uma norma do escalão inferior é considerada como válida, tem de se considerar como estando em harmonia com uma norma do escalão superior.[18]

Os diplomas legais instituídos no ordenamento jurídico moçambicano para regulamentar o procedimento de nomeação dos Directores Provinciais junto dos OGDP, são constituídos por Lei e por Resolução, ou seja, estamos claramente perante normas jurídicas de diferentes escalões.

No quadro do ordenamento jurídico moçambicano, as leis stricto senso promanam da Assembleia da República e ocupam o primeiro lugar na hierarquia de todos os actos normativos.

A Resolução nº 18/2020, de 26 de Maio, é um acto normativo do Governo mais concretamente, da Comissão Interministerial da Reforma da Administração Pública, presidida pelo Primeiro-Ministro.

Seguindo a escola de Kelsen com vista a resolver a antinomia na nomeação dos Directores Provinciais, uma vez demonstrada a impossibilidade da fundamentação dos mesmos com menção conjugada dos dois diplomas legais, resta considerar inválido, ilegal e inaplicável no ordenamento jurídico moçambicano, o Qualificador Profissional aprovado pela Resolução nº 18/2020, de 26 de Maio, por se mostrarem absolutamente contrário a uma norma de hierarquia superior o nº 3 do artigo 48 da Lei nº 4/2019, de 31 de Maio.

O Qualificador Profissional não deve se quer ser aplicado para os casos de nomeação para o exercício do cargo de Director Provincial, para cidadãos que sejam funcionários da Administração Pública, sob pena de injustiças derivadas de maiores imposições para estes, em detrimento de quem não tenha vínculo com a Administração Pública e que invariavelmente pode até ser de menor idoneidade que um funcionário da Administração Pública que aliás, por possuir essa qualidade, se presumirá que é de maior idoneidade do que quem não tenha vínculo de trabalho com a Administração Pública, posto que o funcionário no seu quotidiano, profissional e pessoal está adstrito a uma postura e disciplina que contribuam para o prestígio da função pública, nos termos da imposição feita na alínea e) do artigo 42 do EGFAE.

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Sobre a autora
Helder Manuel Naife

Doutorando em Direito Público pela Faculdade de Direito da Universidade Católica de Moçambique em parceria com a Universidade Nova de Lisboa, Juiz de Direito - A no Tribunal Administrativo Provincial da Zambézia.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

NAIFE, Helder Manuel. Antinomia jurídica do acto de nomeação de directores provinciais nos órgãos de governação descentralizada em Moçambique. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 6840, 24 mar. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/96909. Acesso em: 24 nov. 2024.

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