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A pena de morte automática e obrigatória no Caribe anglófono.

Raízes coloniais e jurisprudência internacional

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04/06/2022 às 09:33
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6. A pena de morte automática e obrigatória: o Comitê Judiciário do Privy Council na década de 2010

Na sua jurisprudência da década de 2010[63], o Comitê Judiciário do Privy Council, como Tribunal de Última Instância da maioria dos Estados independentes do Caribe de língua oficial inglesa[64], propendeu (a) a se abster de invalidar, sob o prisma do Direito Constitucional Positivo, a parcela das leis penais que, preexistentes à independência política do respectivo Estado caribenho, encerrasse tipos penais imbuídos de preceitos secundários a preverem a aplicação da pena de morte de forma compulsória (normas jurídicas pré-independência a prescreverem a imposição da pena capital a título de única pena cabível, sem a possibilidade de eventual comutação), (b) a limitar o controle incidental de constitucionalidade, pelo próprio JCPC, à gama de preceitos secundários a cominarem a pena de morte por meio de dispositivos legais que ingressaram na ordem jurídica interna após a independência do Estado caribenho demandado e (c) a devolver os autos ao Estado de origem, determinando a comutação de penas de morte, quer porque aplicadas com espeque em leis penais pós-independência declaradas inconstitucionais pelo JCPC (controle incidental de constitucionalidade), quer porque referentes a réus com deficiência mental (ou a determinar o reexame da matéria pelo Poder Judiciário local, para que se pronunciasse sobre a alegada deficiência mental do réu), quer porque atinentes a apenados com mais de cinco anos no “corredor da morte”[65], para que o próprio Poder Judiciário do Estado recorrido, por meio da sua Corte de Apelação ou órgão judiciário equivalente, procedesse à prolação de nova sentença penal. Na década de 2010, no que se refere à pena de morte automática e obrigatória, preponderaram julgados referentes à República de Trindade e Tobago.

Em Lendore & Ors versus The Attorney General of Trinidad and Tobago, o Comitê Judiciário do Privy Council, em 30 de julho de 2017, por meio do voto condutor do Lorde Hughes, recordou que, na República de Trindade e Tobago, o artigo 4.º da mencionada Lei de Delitos contra a Pessoa de 1925 preceitua, como sanção penal obrigatória, a aplicação da pena de morte para os delitos de murder, à exceção de felony murder, uma vez que a Constituição trinitário-tobagense de 1976 imuniza tal tipo penal de ser declarado inconstitucional pelo Poder Judiciário, porquanto já se encontrava vigente naquele ordenamento jurídico quando do advento da Constituição de 1962[66], que é a sua primeira Carta Magna.

Mesmo entendimento havia sido perfilhado pelo Comitê Judiciário do Privy Council em Pitman and Hernandez versus The State, em 23 de março de 2017, quando reconheceu a índole “cruel e desumana” da pena de morte como sanção estatal (“mandatory death penalty is a cruel and unusual punishment”), porém salientou a impossibilidade do indicado órgão colegiado britânico, no desempenho do múnus jurisdicional, questionar a sua constitucionalidade, pois que o artigo 4.º da Lei de Delitos contra a Pessoa de 1925 já se encontrava vigente em 1962, quando da alvorada da primeira Constituição de Trindade e Tobago e, portanto, cumpre acrescentar, preexistente à atual Lei Maior trinitário-tobagense de 1976.

Entretanto, no referido caso Pitman e Hernandez, o JCPC divisou, em tese, a possibilidade jurídica de que fosse invocada a misericórdia (“prerrogative of mercy”), como potestade da função judicante, para propiciar proteção constitucional contra a execução da pena de morte em relação a apenados com expressivo grau de deficiência mental[67], considerando, sob o prisma do Direito Legislado, (a) quer o artigo 4.º-A, n.º 1 e n.º 2.º, da Lei de Delitos contra a Pessoa de 1925 (disposição legal acrescentada pela Lei n.º 19 de 1985[68]), que, em Trindade e Tobago, exclui a punibilidade pelo delito de murder nas circunstâncias em que a defesa comprova que o réu padecia de “anormalidade da mente” (“abnormality of mind”) que comprometia, de forma substancial, a responsabilidade mental (“mental responsibility”) pela sua conduta e atuação no crime, (b) quer o artigo 5.º, n.º 2, alínea b, da Constituição trinitário-tobagense de 1976, o qual proíbe o Parlamento nacional de “impor ou autorizar a imposição de tratamento ou punição cruel ou incomum” (“impose or authorise the imposition of cruel and unusual treatment or punishment”)[69].

Em Hunte and Khan versus The State, no Comitê Judiciário do Privy Council, em 16 de julho de 2015, o Lorde Toulson, ao capitanear o voto da maioria, reviu o seu próprio entendimento pretérito, ao concluir, doravante, que, em realidade, o JCPC não possui competência jurisdicional originária similar àquela conferida à Corte Superior de Trindade e Tobago (High Court), pelo artigo 14, n.º 1 e n.º 2, da Constituição de 1976, para comutar penas de mortes sentenciadas em conformidade com a legislação trinitário-tobagense[70].

Anteriormente, em Ramdeen versus The State, no julgamento realizado pelo Comitê Judiciário do Privy Council em 27 de março de 2014, o Lorde Toulson, ao exprimir o voto majoritário, expressara posicionamento diametralmente oposto ao que seria proferido em 2015, ou seja, no caso Ramdeen havia adotado, em vez da interpretação restritiva do artigo 14, n.º 1 e n.º 2, da Constituição trinitário-tobagense de 1976, exegese ampliativa, que permitiu ao JCPC processar e julgar a apelação criminal do assinalado caso concreto de 2014. Apesar de o Comitê Judiciário do Privy Council não ter dado provimento ao apelo criminal, por não haver vislumbrado ilegalidade na condenação à pena de morte e entender adequada a atuação do juízo de primeiro grau, comutou, ex officio, a pena capital para prisão perpétua, tendo em vista ter sido ultrapassado o prazo de cinco anos para que fosse executada, intervalo de tempo, lembre-se, fixado pela jurisprudência do JCPC para o cumprimento de penas de morte[71].

Em Daniel versus The State, o Comitê Judiciário do Privy Council, em 13 de fevereiro de 2014, declarou a inconstitucionalidade da pena de morte obrigatória, com fincas nos artigos 4.º, alínea a, e 5.º, alínea b, da Constituição de Trindade e Tobago, não só devido ao cariz cruel e incomum da mencionada punição estatal e ao exaurimento do prazo jurisprudencial quinquenal para a execução da pena capital, mas também, e principalmente, porque o tipo penal em tela, ao contrário do delito de murder insculpido no artigo 4.º da Lei de Delitos contra a Pessoa de 1925, não estava abrangido pela cláusula de exclusão albergada pela artigo 6.º da Constituição trinitário-tobagense de 1976, porquanto a tessitura fática em apreço dizia respeito ao tipo penal de felony murder, este positivado no artigo 2.º-A da Lei n.º 45 de 1979[72], a qual, posterior à promulgação da atual Carta Magna de 1976 e da pretérita Lei Fundamental de 1962, curvava-se, portanto, ao controle incidental de constitucionalidade na via jurisdicional, motivo por que o JCPC anulou a sentença que aplicara a pena de morte e determinou a remessa dos autos à Corte de Apelação de Trindade e Tobago (Court of Appeal), para que nova sentença fosse prolatada e se aplicasse ao réu a sanção adequada[73].

Antes, em 15 de junho de 2011, o Comitê Judiciário do Privy Council, em Miguel versus The State, com esteio na mesma linha de raciocínio, havia declarado inconstitucional, no contexto da ordem jurídica de Trindade e Tobago, a pena de morte compulsória a figurar como preceito secundário da hipótese de violent arrestable offence murder entalhada, pela Lei n.º 16 de 1997[74], no artigo 2.º-A, n.º 1, da Lei n.º 20 de 1936[75], a qual, por sua vez, corporifica a Lei de Direito Penal[76] ao lado da Lei n.º 45 de 1979[77][78].

Em Taitt versus The State, em acórdão de 8 de novembro de 2012, e em Benjamin & Anor versus The State of Trinidad and Tobago, em acórdão de 13 de março de 2012, diante da alegação de inconstitucionalidade da pena de morte obrigatória, em face da arguida condição do réu de pessoa com deficiência mental, o Comitê Judiciário do Privy Council remeteu a matéria à Corte de Apelação de Trindade e Tobago, para instrução probatória e julgamento, a fim de evitar supressão de instância, uma vez que o Tribunal de Apelação trinitário-tobagense não havia ainda se pronunciado acerca de tal caso concreto[79].

De modo similar, mas sem digressionar sobre a possibilidade, em tese, de o Poder Judiciário declarar inconstitucional a pena de morte de réu com deficiência mental, o Comitê Judiciário do Privy Council, em Nigel Brown versus The State, em 7 de fevereiro de 2012, determinou o reexame do caso concreto, pela Corte de Apelação de Trindade e Tobago, após terem sido produzidas novas provas periciais a sinalizarem que o réu teria, de fato, deficiência mental[80].

Daí se percebe que a jurisprudência do Comitê Judiciário do Privy Council, ao longo da década de 2010, evitou chancelar a interpretação sistemática da Constituição trinitário-tobagense de 1976, exegese que propiciaria margem de discricionariedade judicial à aplicação da pena de morte, caso houvesse sido preservado o constructo pretoriano hasteado no caso Roodal. Deveras, em 20 de novembro de 2003, em Roodal versus The State, o JCPC ensaiou virada em sua jurisprudência que seria, no entanto, rechaçada em acórdãos subsequentes[81].

No caso Roodal, o voto majoritário proferido pelo Lord Steyn, a que aderiram os Lordes Bingham of Cornhill e Walker of Gestingthorpe e de que dissentiram os Lordes Millett e Rodger of Earlsferry, foi a de interpretar o artigo 4.º da Lei de Delitos contra a Pessoa de 1925 à luz não só da cláusula de exclusão estatuída no artigo 6.º, n.º 1, alínea a, da Constituição de Trindade e Tobago de 1976, como também em conformidade com a proibição de penas cruéis ou incomuns (“cruel and unusual treatment or punishment”), ancorada no artigo 5.º, n.º 2, alínea b, da mesma Carta Magna trinitário-tobagense, com o propósito de conferir à função jurisdicional discricionariedade para a aplicação da pena de morte, retirando o seu caráter compulsório e automático, em harmonia com a evolução do Direito Internacional dos Direitos Humanos, em especial com a interpretação da Corte Interamericana de Direitos Humanos da precitada cláusula convencional do direito à vida, situada no artigo 4.º, n.º 2 e n.º 4, da Convenção Americana de Direitos Humanos de 1969, e com o fato de que a ocorrência do crime do indicado caso concreto acontecera entre 19 e 20 de agosto de 1995, fato anterior ao momento em que a República de Trindade e Tobago denunciara a Convenção Interamericana de Direitos Humanos, em 26 de maio de 1998, com efeitos a partir de 26 de maio de 1999[82].

Contudo, no ano seguinte, em Matthew versus The State, em formação colegiada mais ampla, de 9 magistrados, em vez dos 5 do caso Roodal, o Comitê Judiciário do Privy Council, em 7 de julho de 2004, (a) não só considerou errônea a exegese da Constituição trinitário-tobagense de 1976 dada no caso Roodal, ao salientar a ausência de competência jurisdicional do Poder Judiciário de Trindade e Tobago para comutar penas de mortes (nessa linha de raciocínio, pautada em interpretação literal do texto constitucional, caberia à função jurisdicional somente a aplicação, de forma compulsória, da pena capital, uma vez que consistiria em atribuição constitucional exclusiva do Poder Executivo local, sob pena de violação ao princípio da separação de poderes), (b) como também assentou que o julgamento de 20 de novembro de 2003 não seria vinculante nem para a República de Trindade e Tobago (ante o invocado equívoco na interpretação da Carta Magna de 1976), nem para os demais Estados independentes do Caribe de língua oficial inglesa que tinham (parcela expressiva dos quais ainda têm), no JCPC, o seu Tribunal de Última Instância e cujos ordenamentos jurídicos estivessem dotados de dispositivos constitucionais semelhantes (ao assim proceder, sinalizou a impossibilidade de antecipar juízo de valor sobre a compatibilidade da ratio decidendi do caso Roodal com a ordem jurídica de outros Estados caribenhos sujeitos à jurisdição do Privy Council)[83].

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Nesse sentido, o voto majoritário do caso Matthew reportou-se[84] ao aresto proferido horas antes, no mesmo dia, em 7 de julho de 2003, em que o Comitê Judiciário do Privy Council, no julgamento de Boyce and Anor versus Barbados[85], frisara o imperativo de respeitar o princípio da separação de poderes, tendo em mente que a comutação da pena capital é faculdade exclusiva do Poder Executivo de Barbados, por meio do Governador-Geral, na forma do artigo 87 da Constituição barbadiana de 1966, combinado com o seu artigo 88[86], e, lado outro, estribando-se em interpretação literal, e não sistemática, da cláusula de exclusão geral prevista no artigo 6.º, n.º 1, da supracitada Lei Fundamental caribenha.

Por outro lado, tendo em mira a expectativa legítima[87] de Charles Matthew, suscitada pelo acórdão do Comitê Judiciário do Privy Council do caso Roodal, de que, por meio da revisão judicial, teria a possibilidade de obter a comutação judicial da pena de morte, o JCPC afastou a pena capital no tocante a Matthew, ao substitui-la pela prisão perpétua[88], buscando, para tanto, inspirar-se no retrocitado caso Pratt, em que o Privy Council substituíra, em relação aos apelantes Earl Pratt e Ivan Morgan, a pena de morte pela prisão perpétua, em face do exaurimento do prazo quinquenal (criado pela jurisprudência do JCPC) para a execução da pena capital, ou seja, em virtude do esgotamento do interregno de cinco anos de aguardo, por ambos os recorrentes, no “corredor da morte” (prazo judicial pioneiramente concebido pelo JCPC justamente no caso Pratt[89]).


7. A pena de morte automática e obrigatória: os casos Nervais e Severin na Corte Caribenha de Justiça

No que se refere à polêmica em torno do caráter automático e obrigatório da pena de morte na tessitura jurídica dos Estados independentes do Caribe de língua oficial inglesa, a Corte Caribenha de Justiça, na década de 2010, embora não tenha se deparado com o quantitativo de casos concretos enfrentados, naquele decênio, pelo Comitê Judiciário do Privy Council, diferenciou-se do JCPC pela linha de argumentação marcadamente decolonial, ao realizar o paradigmático julgamento em conjunto, em 27 de junho de 2018, dos casos Nervais and The Queen e Severin and The Queen.

Com efeito, no julgamento em conjunto dos casos Nervais (Apelação CCJ n.º BBCR2017/002) e Severin (Apelação CCJ n.º BBCR2017/003), a Corte Caribenha de Justiça declarou que o artigo 2.º da Lei de Delitos contra a Pessoa de Barbados de 1994 viola os artigos 11, alínea c, 12, n.º 1, 15, n.º 1 e 18, n.º 1, da Constituição barbadiana de 1966[90]. Diante do conflito entre a “lei existente e a Constituição” (“existing law and the Constitution”[91]), deveria prevalecer a Constituição de Barbados de 1966, de modo que os tribunais aplicassem as leis à luz do preconizado pela Ordem de Independência de 1966[92]. Cuidar-se-ia do múnus de o Poder Judiciário formular interpretação conforme que tivesse o condão de harmonizar tais disposições legais com a Lei Fundamental, notadamente com a sua Bill of Rights[93][94], à vista do dever judicial de assegurar a conformidade das leis à Constituição[95].

Entendeu a Corte Caribenha de Justiça, no voto majoritário dos casos Nervais e Severin, que o caráter mandatório da pena de morte é que torna a pena de morte inconstitucional[96]: a CCJ abraçou a perspectiva de que o componente compulsório da pena de morte é prejudicial ao processo judicial, na medida em que estabelece espécie de automatismo no ato de julgar, que vulnera a legitimidade e independência do Poder Judiciário e compromete o direito a julgamento justo[97]. Ao mesmo tempo, a CCJ ressalvou que, conquanto a pena de morte seja punição cruel e desumana, as penas capitais anteriores à Constituição vigente encontram-se imunes à impugnação constitucional[98].

Para declarar inconstitucional a pena de morte automática e obrigatória insculpida, a título de preceito secundário do crime de homicídio em sentido amplo (murder), no artigo 2.º Lei de Delitos contra a Pessoa de Barbados de 1994, a maioria da Corte Caribenha de Justiça, nos casos Nervais e Severin, necessitou se pronunciar acerca da recepção ou não, pela ordem constitucional de 1966, do artigo 2.º da Lei de Delitos contra a Pessoa de Barbados de 1868, correspondente ao artigo 2.º da Lei de Delitos contra a Pessoa de Barbados de 1994, o que tornou inafastável debruçar-se sobre o alcance da cláusula geral de exclusão radicada no artigo 26 da Constituição de Barbados de 1966.

O eixo argumentativo da maioria[99] dos casos Nervais e Severin esteou-se na inferência de que a vedação, irradiada por cláusulas gerais de exclusão, ao controle judicial incidental de constitucionalidade do bloco normativo de origem colonial é incompatível com a promoção da igualdade humana que redundou na marcha para a independência política do Caribe anglófono[100]. Em outras palavras, o voto majoritário, no julgamento em conjunto dos casos Nervais e Severin, considerou reprochável o ponto de vista segundo o qual norma jurídica pré-colonial, pelo mero fato de ter sido prévia à independência do respectivo Estado caribenho de língua inglesa, teria, por si só, o condão de obstar o Poder Judiciário de proceder ao exame da sua (in)constitucionalidade[101].

Nessa ordem de ideias, estruturada no voto majoritário dos casos Nervais e Severin, a observância literal, pelo Poder Judiciário, da saving clause do artigo 26 da Constituição barbadiana de 1966, ao imunizar o bloco jurídico pré-independência de qualquer aferição de constitucionalidade, privaria, de modo perpétuo, todas as pessoas em Barbados de usufruírem direitos e liberdades fundamentais[102]. Em outros dizeres, salientou-se que a interpretação literal das cláusulas de exclusão tem alijado parcela significativa de caribenhos de direitos e liberdades fundamentais, ainda que esteja sendo, gradativamente, esposada compreensão mais dilatada do escopo de tais direitos e liberdades de estatura constitucional[103].

Assim, a Corte Caribenha de Justiça, nos casos Nervais e Severin, criticou a justificativa tradicional para as saving clauses de que, no ordenamento jurídico dos Estados independentes do Caribe anglófono, o common law (direito consuetudinário pré-independência) englobaria todos os direitos aos quais os povos então recém-emancipados poderiam aspirar e que, portanto, caberia à Bill of Rights (Carta de Direitos Fundamentais a figurar, em lugar de destaque, na topografia das Constituições dos Estados independentes do Caribe de língua oficial inglesa) adstringir-se a fomentar a conformidade constitucional do contingente de leis pós-independência (e jamais pré-independência). Sublinhou-se que tal discurso de justificação das cláusulas gerais de exclusão positivadas no Direito Positivo do Caribe anglófono seria incompatível com o projeto decolonial (manifestado nos considerandos da Resolução 1514 (XV), de 14 de dezembro de 1960, da Assembleia-Geral da ONU[104]) de propiciar aos povos emancipados o exercício do seu direito inalienável à liberdade completa, bem como à soberania e à integridade do seu território nacional (inclusive o direito de que os povos libertos do jugo colonial possam, de forma livre, determinar o seu status político e promover o seu desenvolvimento econômico, social e cultural)[105]. Na perspectiva da CCJ, a cláusula de exclusão de âmbito geral consiste em redução inaceitável da liberdade conquistada pelos povos que se libertaram do domínio colonial, mobilizados pela “fé inabalável nos direitos humanos fundamentais” (“unshakeable faith in fundamental human rights”)[106].

Ponderou-se, nos casos Nervais e Severin, que esse efeito imunizante acarretado pela interpretação literal das cláusulas de exclusão de cunho geral faz com que as leis e sanções do período colonial fiquem presas em limbo temporal, atreladas irremediavelmente à sua forma primeva, infensas aos efeitos e à constante evolução dos direitos e liberdades fundamentais aplicáveis à contextura de cada caso concreto[107]. Nessa óptica, a exegese literal das saving clauses, ao deflagrar esse efeito de cristalização e perpetuidade do Direito Colonial Infraconstitucional, frustraria, de maneira permanente, os princípios constitucionais segundo os quais a Constituição é a lei suprema e o Poder Judiciário é independente[108].

Para alicerçar tal discurso decolonial, a composição majoritária da Corte Caribenha de Justiça arrimou-se nos diplomas legislativos fundantes do Direito Constitucional Positivo de Barbados.

A independência barbadiana começou com a Lei de Independência de Barbados de 17 de novembro 1966[109], ato legislativo do Parlamento britânico cujo artigo 5.º, combinado com o seu artigo 1.º, autorizou a promulgação, em 30 de novembro de 1966, da Ordem de Independência de Barbados[110], a encerrar, em seus anexos, a Constituição até hoje vigente no mencionado Estado caribenho.

Dessa forma, nos casos Nervais e Severin, a maioria da Corte Caribenha de Justiça invocou o artigo 4.º, n.º 1, da Ordem de Independência de Barbados de 30 de novembro 1966, que preconizara a conformação quer à antecedente Lei de Independência de Barbados, quer àquela subsequente Ordem de Independência, de todas as leis existentes, incluindo-se as que já existiam no ordenamento jurídico colonial (“the existing laws shall be construed with such modifications, adaptations, qualifications unawed exceptions as may be necessary to bring them into conformity with the Barbados Independence Act 1966 and this Order”)[111]. Nesse sentido, remarcou (a maioria formada na Corte Caribenha de Justiça nos casos Nervais e Severin) que, conquanto essa interpretação constitucional não pudesse remover as máculas do regime colonial, encontrava-se consentânea com o anseio da sociedade de que as leis se ajustassem à Constituição, ante o seu cariz de lei suprema da Nação barbadiense, e não se calcificassem, como se estivessem a refletir, ad aeternum, o panorama jurídico do período colonial[112].

De acordo com essa perspectiva constitucional abraçada pelo voto majoritário da CCJ nos casos Nervais e Severin, a obrigatoriedade da pena de morte, divisada pelo artigo 2.º da Lei de Delitos contra a Pessoa de 1868, não fora recepcionada pela ordem constitucional de 1966, uma vez que o artigo 4.º, n.º 1, da Ordem de Independência de Barbados, de 30 de novembro de 1966, impusera a conformação das normas jurídicas coloniais àquela Constituição barbadiana que surgira no seio da mencionada Ordem de Independência[113].

Portanto, a supremacia da Constituição barbadiana seria beneficiada pela clivagem levada a efeito pelo artigo 4.º, n.º 1, da precitada Ordem de Independência, que determinava a conformação das normas jurídicas coloniais ao disposto não só na Lei de Independência de Barbados, como também na supracitada Ordem de Independência, cujo conteúdo global abrangia, em seus anexos, a própria Constituição do novo Estado caribenho, de sorte que conformar o Direito Colonial, de forma explícita, à Ordem de Independência implicaria, de maneira implícita, harmonizá-lo com a Constituição veiculada em tal Ordem[114].

Partindo da premissa de que a ordem constitucional de 1966, por meio do filtro encaixilhado no artigo 4.º, n.º 1, da Ordem de Independência de 1966, depurara a pena de morte divisada pelo artigo 2.º da Lei de Delitos contra a Pessoa de Barbados de 1868 de índole compulsória, convolando-a em pena de morte doravante discricionária (sujeita ao juízo discricionário do Poder Judiciário), a Corte Caribenha de Justiça, nos casos Nervais e Severin, concluiu que o artigo 2.º da Lei de Delitos contra a Pessoa de Barbados de 1994 não estava imunizado pela cláusula geral de exclusão do Direito Colonial encastoada no artigo 26 da Constituição de Barbados de 1966[115].

Com efeito, nos casos Nervais e Severin, esse constructo pretoriano delineado pelo voto majoritário da CCJ foi objetado pelo voto dissidente do Justice Winston Anderson, para quem a Constituição de Barbados de 1966, uma vez promulgada, inaugurou novo ordenamento jurídico, fulminando as normas constitucionais prévias, inclusive o plexo normativo da Ordem de Independência, mesmo que ela tenha sido o instrumento jurídico por meio do qual aquela Constituição barbadiana fora inserida no ordenamento jurídico do mencionado Estado caribenho, Carta Magna que, a seu turno, figurou como um dos anexos (“Schedules”) de tal Ordem[116].

Por isso, o voto divergente do Justice Anderson, nos casos Nervais e Severin, redundou na chancela indireta de tal magistrado à orientação pretoriana, inspirada na jurisprudência do Comitê Judiciário do Privy Council sobre saving clauses presentes em Constituições do Caribe de língua oficial inglesa, de que o Poder Judiciário não poderia declarar inconstitucional a obrigatoriedade da pena de morte preceituada pelo artigo 2.º da Lei de Delitos contra a Pessoa de Barbados de 1994, porque tal dispositivo legal, ao encapsular a pena capital de cunho mandatório, não inova a ordem jurídica barbadiana, na medida em que apenas reproduz o preceito secundário originalmente positivado no artigo 2.º da Lei de Delitos contra a Pessoa de 1868, razão pela qual o diploma legislativo da década de 1990 estaria imunizado pela cláusula geral de exclusão do artigo 26 da Constituição de Barbados de 1966.

Nos casos Nervais e Severin, o beneplácito do Justice Anderson, pela via oblíqua, à jurisprudência predominante no JCPC decorre do entendimento minoritário, naquele colegiado da Corte Caribenha de Justiça, perfilhado por tal magistrado, de que a interpretação restritiva, e não literal, da saving clause do artigo 26 da Constituição barbadiana importaria usurpar a função legiferante do Parlamento[117].

Apesar de haver afastado a possibilidade jurídica de controle incidental da constitucionalidade do artigo 2.º da Lei de Delitos contra a Pessoa de Barbados de 1994, o Justice Anderson, nos casos Nervais e Severin, ressalvou que a CCJ estaria eximida de aplicar, de modo compulsório, a pena capital, porque respaldada pelo princípio constitucional da separação dos Poderes, desdobrado na independência do Poder Judiciário e no monopólio, pela judicatura, do poder estatal de sentenciar[118].

Tal plexo principiológico, centrado na separação de poderes, (a) impediria o Poder Legislativo de obrigar, pela via normativa (legislativa), o Poder Judiciário à aplicação de sentença de morte que, sendo obrigatória e, portanto, infensa à discricionariedade judicial e à eventual comutação, assumiria, por consequência, natureza cruel e desumana, e (b) possivelmente negaria estatura de Emenda Constitucional à Lei n.º 14 de 2002 (significa dizer: neste segundo aspecto, Anderson entreviu a possível inconstitucionalidade da Emenda Constitucional de 2002, mas evitou juízo de valor conclusivo), que havia inserido, no artigo 15 da Constituição barbadiana de 1966, o seu n.º 3, cuja alínea a, rememore-se, consistia em cláusula de exclusão específica, a imunizar a previsão legal de penas de morte compulsórias[119]..

Conquanto instigante a argumentação lançada pelo Justice Anderson, em seu voto divergente, nos casos Nervais e Severin, ao enfatizar que a Constituição de 1966, ao inaugurar a nova ordem constitucional de Barbados, extirpou do ordenamento jurídico as disposições da Ordem de Independência de 1966, obtempera-se que a primeira ruptura parcial com o Direito Colonial ocorreu antes da Carta Magna de 1966, pois que as normas jurídicas pré-independência tiveram de se conformar ao conteúdo das normas dimanadas quer da Lei de Independência de Barbados, de 17 de novembro 1966, quer da Ordem de Independência, de 30 de novembro de 1966, por força, lembre-se, de mandamento insculpido com esse sentido no artigo 4.º, n.º 1, da indigitada Ordem de Independência, o que torna plausível o posicionamento da maioria da CCJ nos casos Nervais e Severin, segundo o qual o artigo 2.º da Lei de Delitos contra a Pessoa de Barbados de 1868 teria sido recepcionado somente em parte, convertendo-se o caráter mandatório da pena de morte inscrita no diploma legislativo oitocentista em sanção estatal sujeita à discricionariedade judicial, já que o ajustamento, pelo instituto da recepção (como é conhecido no Brasil), do artigo 2.º da Lei de Delitos contra a Pessoa de Barbados de 1868 à Ordem de Independência, de 30 de novembro de 1966, implicou a sua conformação à totalidade do corpo normativo da precitada Ordem de Independência, inclusive do seu principal anexo, corporificado na Constituição de 1966, cujo artigo 15, n.º 1, vedava punições desumanas ou degradantes, de modo que as “leis existentes” a que se reporta a cláusula geral de exclusão do mesmo artigo 15, n.º 2, da apontada Carta Maior de 1966, seriam aquelas cujo teor havia sido adaptado, pelo instituto da recepção, ao então nascente ordenamento jurídico de Barbados.

Em consequência do julgamento proferido pela Corte Internacional de Justiça nos casos Nervais e Severin, o Poder Legislativo barbadiano editou o artigo 2.º da Emenda Constitucional de 2019, que revogou, conforme assinalado em passagem pretérita, o artigo 15 da Constituição de Barbados, e, assim, extinguiu o respaldo constitucional explícito, desde 2002, à pena de morte obrigatória e automática, enquanto que o artigo 3.º da mesma Emenda Constitucional de 2019, ao modificar a dicção do artigo 26 da Carta Maior de Barbados, desnaturou a cláusula geral de exclusão antes nela agasalhada, porquanto a nova redação do artigo 26 passou a reproduzir comando similar àquele outrora inserto no artigo 4.º, n.º 1, da Ordem de Independência de 1966, ao preceituar o imperativo de que as leis prévias a 30 de novembro de 1966 sejam alinhadas aos dispositivos da Bill of Rights discriminados nos artigos 12 a 23 da supracitada Carta Magna[120].

Os casos Nervais e Severin, de 27 de junho de 2018, diferenciam-se do julgamento pretérito, em 8 de novembro de 2006, também pela Corte Caribenha de Justiça, do caso Boyce. No julgado da década de 2000, a CCJ se devotou a expender balizas pretorianas, para que o Privy Council de Barbados (Barbados Privy Council – que não se confunde com o mencionado Privy Council britânico), como órgão colegiado do Poder Executivo local, pudesse assegurar equidade processual (“procedural fairness”) ao réu sentenciado com pena de morte, ao assim o BPC proceder no desempenho da sua atribuição de assessoramento superior de recomendar ou não ao Governador-Geral o exercício da potestade da misericórdia (“prerrogative of mercy”), por meio da eventual comutação, pelo governante, da pena capital, em circunstâncias em que são recorrentes marchas e contramarchas, enquanto aquele que se encontra “no corredor da morte” aguarda o deslinde de recursos judiciais no âmbito do Poder Judiciário local e do Comitê Judiciário do Privy Council do Reino Unido, da apreciação de suas petições no seio do sistema interamericano de proteção dos direitos humanos e/ou de pleitos perante a Chefia do Poder Executivo[121].

Desse modo, no caso Boyce, em 2006, a Corte Caribenha de Justiça, em vez de realizar juízo de constitucionalidade como viria a fazer, em 2018, no julgamento em conjunto dos casos Nervais e Severin, seguiu os passos da jurisprudência do Comitê Judiciário do Privy Council de mitigar a repercussão negativa da cláusula geral de exclusão sobre os direitos fundamentais dos condenados à pena de morte, ao delinear limitações temporais para o processamento e julgamento de recursos internos e garantir ao apenado o direito de impugnar a sua condenação à pena capital perante os sistemas interamericano e internacional de proteção dos direitos humanos[122].

Já nos casos Nervais e Severin, em 2018, a Corte Caribenha de Justiça delineou balizas jurisprudenciais próprias, ao dar passo além daquele que o Comitê Judiciário do Privy Council ensaiara no caso Roodal, para depois o próprio JCPC revertê-lo em sua jurisprudência posterior, centrada no caso Matthew, ou seja, a CCJ, por meio do voto majoritário em Nervais e Severin, formulou construção jurisprudencial que transcende o passo anterior por ela trilhado, em 2006, no caso Boyce, de se pronunciar sobre os direitos processuais e procedimentais dos condenados à pena de morte, na medida em que, nos casos Nervais e Severin, no final da década de 2010, a CCJ dedicou-se a edificar doutrina judicial própria, de tonalidades decoloniais, que, mediante (a) a interpretação sistemática do Direito Constitucional Positivo[123], (b) o manejo do que se chama, no Direito brasileiro, de instituto da recepção, quanto à legislação infraconstitucional oriunda do período colonial, e (c) o cotejo com o Direito Internacional dos Direitos Humanos, propicia a superação do efeito imunizante da cláusula geral de exclusão sobre a legislação penal que preceitua a aplicação da pena de morte em termos automáticos e obrigatórios e, por conseguinte, assegura a discricionariedade do Poder Judiciário do Caribe de língua oficial inglesa, de sorte que, de maneira independente, possa aquilatar a aplicação da pena de morte, de forma individualizada, conforme as circunstâncias do crime e do réu.

O julgamento, pela Corte Caribenha de Justiça, dos casos Nervais e Severin evidencia a plausibilidade, vaticinada pela literatura especializada[124], de que a CCJ consubstancie locus de irradiação de nova jurisprudência para o Caribe de língua oficial inglesa, por meio da qual seja sedimentado sistema de precedentes de defesa dos direitos humanos em face da pena de morte obrigatória e de outras questões caras à salvaguarda da dignidade da pessoa humana, de sorte que, revestida da legitimidade de Tribunal de Última Instância a exprimir, de modo genuíno, a identidade caribenha, possa concluir o processo de descolonização judicial do Caribe anglófono, assentar jurisprudência regional de viés decolonial (não só descolonizar, mas pensar em termos decoloniais, conforme distinção averbada em nota de rodapé pretérita) e fortalecer a afirmação e efetividade dos direitos humanos na Comunidade Caribenha de modo geral.

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Sobre o autor
Hidemberg Alves da Frota

Especialista em Psicanálise e Análise do Contemporâneo (PUCRS).Especialista em Relações Internacionais: Geopolítica e Defesa (UFRGS). Especialista em Psicologia Clínica Existencialista Sartriana (Instituto NUCAFE/UNIFATECPR). Especialista em Direito Público: Constitucional, Administrativo e Tributário (PUCRS). Especialista em Ciências Humanas: Sociologia, História e Filosofia (PUCRS). Especialista em Direitos Humanos (Curso CEI/Faculdade CERS). Especialista em Direito Internacional e Direitos Humanos (PUC Minas). Especialista em Direito Público (Escola Paulista de Direito - EDP). Especialista em Direito Penal e Criminologia (PUCRS). Especialista em Direitos Humanos e Questão Social (PUCPR). Especialista em Psicologia Positiva: Ciência do Bem-Estar e Autorrealização (PUCRS). Especialista em Direito e Processo do Trabalho (PUCRS). Especialista em Direito Tributário (PUC Minas). Agente Técnico-Jurídico (carreira jurídica de nível superior do Ministério Público do Estado do Amazonas - MP/AM). Autor da obra “O Princípio Tridimensional da Proporcionalidade no Direito Administrativo” (Rio de Janeiro: GZ, 2009). Participou das obras colegiadas “Derecho Municipal Comparado” (Caracas: Liber, 2009), “Doutrinas Essenciais: Direito Penal” (São Paulo: RT, 2010), “Direito Administrativo: Transformações e Tendências” (São Paulo: Almedina, 2014) e “Dicionário de Saúde e Segurança do Trabalhador” (Novo Hamburgo: Proteção, 2018).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FROTA, Hidemberg Alves. A pena de morte automática e obrigatória no Caribe anglófono.: Raízes coloniais e jurisprudência internacional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 6912, 4 jun. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/97837. Acesso em: 22 nov. 2024.

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