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Pena de morte em vôo (Lei 9614/98)

01/06/2000 às 00:00
Leia nesta página:

O legislador acaba por tentar instituir a PENA DE MORTE, sem que haja o estado declarado de guerra, sem o devido processo legal e, pior, retira do Poder Judiciário a exclusividade do julgamento ao permitir a derrubada ("abater") de aeronave civil, em decisão sumária de autoridade administrativa.

A Lei nº 9.614, de 05.03.1998, acrescentou o parágrafo terceiro ao artigo 303, do Código Brasileiro de Aeronáutica, que assim ficou redigido:

Art. 303. A aeronave poderá ser detida por autoridades aeronáuticas, fazendárias ou da polícia federal, nos seguintes casos:

I - se voar no espaço aéreo brasileiro com infração das convenções ou atos internacionais, ou das autorizações para tal fim;

II - se, entrando no espaço aéreo brasileiro, desrespeitar a obrigatoriedade de pouso em aeroporto internacional;

III - para exame dos certificados e outros documentos indispensáveis;

IV - para verificação de sua carga no caso de restrição legal (artigo 21) ou de porte proibido de equipamento (parágrafo único do artigo 21);

V - para averiguação de ilícito.

§ 1º. A autoridade aeronáutica poderá empregar os meios que julgar necessários para compelir a aeronave a efetuar o pouso no aeródromo que lhe for indicado.

§ 2º. Esgotados os meios coercitivos legalmente previstos, a aeronave será classificada como hostil, ficando sujeita à medida de destruição, nos casos dos incisos do caput deste artigo e após autorização do Presidente da República ou autoridade por ele delegada. (Parágrafo acrescentado pela Lei nº 9.614, de 05.03.1998)


Como se vê, esgotados os meios coercitivos legalmente previstos, a aeronave estará sujeita à destruição, ou seja, será atacada manu militari e, pois derrubada ou abatida.

Verifique que, meios coercitivos não é processo e o Presidente da República pode delegar este poder mortal a outra autoridade, autoridade administrativa, obviamente.

Desde já, verifiquemos de onde provém os tais ¨meios coercitivos legalmente previstos¨ (imagine se fossem meios ilegais? Convenhamos, só poderão ser legais Sr. Legislador !!!).

No Brasil, o controle de vôo é exercido por militares do Ministério da Aeronáutica, através do órgão central, Departamento de Aviação Civil, com sede no Rio de Janeiro, órgão central do Sistema de Aviação Civil, instituído via Decreto 65.144, de 12 _9-69, recepcionado pela CF/88, tendo como braço executor da tarefa de controle a Diretoria de Eletrônica e Proteção ao Vôo que expede a maioria dos regulamentos de tráfego aéreo, a exemplo da IMA 100-12, que falaremos mais adiante.

Órgão controlador de vôo é expressão genérica aplicável aos diversos setores organizados no âmbito da DEPV, ou seja: centro de controle de área (ACC); controle de aproximação (APP); torre de controle (TWR), controle de solo ou estação AFIS.

Estes órgãos têm diferentes intervenções no controle de vôo conforme a posição da aeronave em seu deslocamento e destino, por exemplo, aténs da decolagem o contato é com o controle de autorização tráfego e controle de solo até próximo à cabeceira da pista, deste ponto em diante, a torre de controle orienta o piloto até que o avião, decolado, atinja determinada altura, passando, então, ao controle de Aproximação, apesar deste nome, serve para controlar a saída, também. Ao atingir a rota de destino a aeronave passará a ser controlada pelo centro de controle de área (ACC) e, assim , por diante.

O art. 18, do Código Brasileiro de Aeronáutica, contém exigência dirigida diretamente ao comandante da aeronave obrigando-o a seguir, imediatamente, a ordem para pousar emanada do órgão controlador de vôo. Não atendida tal ordem, a autoridade aeronáutica poderá requisitar os meios necessários para interceptar ou deter a aeronave (parágrafo 2º).

Claro, deter aeronave que está em pleno vôo é tarefa impossível porque, se sua velocidade reduzir-se a ZERO haverá a queda iminente da mesma. Deste modo, é difícil imaginar de que maneira se poderia DETER um jato voando a mil quilômetros por hora, no entanto, vamos falar da interceptação, medida mais consentânea com a intenção do legislador.

Existe instrução, baixada pelo Diretor de Eletrônica e Proteção ao Vôo, nos termos da Portaria 410/GM3, de 20-7-88, que estabelece os procedimentos para os serviços de navegação aérea, denominada Regras do Ar e Serviços de Tráfego Aéreo, Trata-se da IMA 100-12, em vigor, desde, 22 de outubro de 1987 e atualizável constantemente.

Inserido no Capítulo IV, REGRAS GERAIS, IMA 100-12, item 4-8. INTERCEPTAÇÃO, podemos ler:

¨a . A interceptação de aeronaves civis será evitada e somente será utilizada como último recurso. Todavia, o Ministério da Aeronáutica se reserva o direito de interceptar qualquer aeronave, a critério dos órgãos de defesa aérea, ou das autoridades responsáveis pela execução das missões de defesa aérea¨.

Posteriormente, segue com as instruções a que o piloto da aeronave interceptada deverá seguir (imediatamente) ou seja, será forçado a acompanhar o avião militar - um avião de guerra, a jato, necessariamente. Nesse passo, estará aberta a via da execução sumária se o piloto resolver usar de seu direito à fuga, ... sim, fugir é direito, conforme melhor entendimento doutrinário; vejamos caso, onde o preso quase destruiu a Delegacia de Polícia para fugir e, no entanto, nem ao menos o crime de dano cometeu:

"Não comete o crime de dano qualificado o detento que, objetivando empreender fuga de cela de Delegacia de Polícia, arranca grades de ferro e produz perfuração na parede do prédio público, pois o seu objetivo centra-se na conquista da liberdade." (STJ - REsp 115.531-SP - 6ª T. - Rel. Min. Vicente Leal - DJU 16.06.1997).

Como se vê, o piloto poderá ter razões pessoais para empreender FUGA diante de um avião militar, de guerra e, tanto pior se não falar o mesmo idioma do piloto militar ou um contato rádio não for estabelecido. Não se poderá saber, em determinadas circunstâncias, se o caso é de seqüestro ou interceptação militar.

Um exemplo da vida poderá revelar a temeridade de tal autorização para matar: supondo uma pessoa que esteja de carona, em transporte de cortesia em aeronave pilotada por alguém que não deseje ser vistoriado pela autoridade. Realizada a interceptação, pela aeronave militar, o piloto da aeronave civil recusa-se a seguir o avião militar ou pousar onde indicado. Está aberta a via de execução da pena de morte porque poderá, por ordem de autoridade administrativa, em poder delegado do Presidente da República, ser ordenada a DESTRUIÇÃO EM VÔO da aeronave HOSTIL. Claro, NÃO HAVERÁ SOBREVIVENTE entre os ocupantes do avião civil.

Que motivo indica a lei como suficiente para se derrubar o avião? Veja o inciso III - ¨para exame dos certificados e outros documentos indispensáveis¨. Isto mesmo, para EXAMINAR OS DOCUMENTOS DA AERONAVE E OCUPANTES. Seria o caso similar de se autorizar um guarda de trânsito a destruir o automóvel de quem se negou a parar para vistoria e empreendeu fuga, e veja, destruir com todos os ocupantes à bordo - UMA LOUCURA.

Esta situação é similar a um hipotético pedido do Delegado de Polícia ao MM Juiz requerendo ordem para ¨descer o cacete ¨ no preso visando à confissão de crime, isto tudo para superar o desaparelhamento e falta de meios investigatórios do aparato policial, ou seja é o ABSURDO JURÍDICO.

Retornando ao caso da aeronave, pode se ver, prima facie, que desde de que embarcada e em vôo, a pessoa perde sua igualdade perante a lei, garantia inserta no caput do art. 5º, da CF:

"Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:"

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Esta perda da igualdade resulta da simples leitura do inciso LIII, do art. 5º, CF que diz: "ninguém será processado nem sentenciado se não pela autoridade competente".

In casu, a autoridade administrativa foi investida de poder dentro de uma competência que somente existe na espera do Poder Judiciário, criando verdadeiro tribunal de exceção, onde poderá, em tese, existir um só julgador ... em afronta ao inciso XXXVII – "não haverá juízo ou tribunal de exceção";

Um só julgado, porque o Presidente da República poderá delegar a atribuição de autorizar a destruição a um Comandante de Base Aérea, v.g.

Deste modo, a situação fática de se estar a bordo de aeronave em vôo, nos termos da lei inconstitucional, torna a pessoa desigual, permitindo o sentenciamento sumário , unilateral, por autoridade de fora do Poder Judiciário, (LIII - ninguém será processado nem sentenciado se não pela autoridade competente;) instituindo a PENA DE MORTE PROIBIDA, em tempo de PAZ, conforme o inciso XLVII:

"XLVII - não haverá penas:

a) de morte, salvo em caso de guerra declarada, nos termos do artigo 84, XIX;"

Atente para a cláusula pétrea contida no § 4º, do art. 60, CF, que veda ao constituinte derivado a proposta de emenda constitucional destinada a abolir direitos e garantias fundamentais, tal o DIREITO À VIDA, AO DUE PROCESS OF LAW, AO JUIZ NATURAL etc, todos maculados pela referida lei infra-constitucional;

"Art. 60, § 4º. Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:

IV - os direitos e garantias individuais."

Assim, com maior rigor, em razão da hierarquia das normas jurídicas, nunca a lei ordinária poderia contrariar o comando constitucional supra mencionado;

O Brasil pretende adotar legislação moderna como se em todos os cantos de seu território existissem controles aéreos com equipamentos suficientes a vigiar diuturnamente esta vastidão de ares, com isso, acaba por atropelar, de forma grave, a Carta Política e o próprio Estado Democrático de Direito, através de norma infra-constitucional;

Assim, trago à discussão a inconstitucionalidade da Lei nº 9.614, de 05.03.1998 que acrescentou o parágrafo 3º, ao art. 303, da Lei 7565/86 _ Código Brasileiro de Aeronáutica, onde se pretendeu excluir da apreciação do Poder Judiciário decisão de tão graves conseqüências, como a de DERRUBAR AERONAVE CIVIL , EM VÔO, aplicando, por via reflexa, A PENA DE MORTE SEM PROCESSO E EM TEMPO DE PAZ.

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Sobre o autor
José Aparecido Correia

advogado em Boa Vista (RR), piloto de linha aérea

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CORREIA, José Aparecido. Pena de morte em vôo (Lei 9614/98). Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 5, n. 42, 1 jun. 2000. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/981. Acesso em: 19 abr. 2024.

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