INTRODUÇÃO
A recente decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) sobre a taxatividade do rol da Agência Nacional de Saúde (ANS) quanto aos medicamentos, tratamentos, exames e cirurgias que devem ser custeados pelos planos de saúde complementar viola tanto normas constitucionais quanto normas convencionais, desrespeitando o princípio máximo da dignidade da pessoa humana.
Este ensaio sobre o tema foi estruturado, inicialmente, com uma leitura do direito à saúde, na sua dimensão constitucional e em sua dimensão convencional, demonstrando como esse direito influi nas relações consumeristas, especialmente nas relações que envolvem as operadoras de planos de saúde. Em seguida, apresentou-se a normativa da ANS que dispõe sobre sua autonomia, sua função institucional e a sua competência. Após, apresentou-se também a lei que regula os planos de saúde, que vincula esses fornecedores de serviços às normas da ANS. Por fim, fez-se uma abordagem quanto às consequências que essa decisão do STJ pode causar aos assistidos pelos planos de saúde complementar.
2. DIREITO CONSTITUCIONAL E CONVENCIONAL À SAÚDE
O direito fundamental à saúde, previsto no art. 6º da Constituição Federal (CF), considerado um direito social de segunda dimensão, é direito de todos e dever do Estado, devendo ser garantido, conforme o art. 196 da CF: (...) mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.
Para o desenvolvimento desse direito, que é diretamente relacionado ao princípio fundamental da dignidade humana, a Carta Magna determinou que a assistência à saúde seja livre à iniciativa privada (art. 196, caput), podendo as instituições privadas participarem de forma complementar ao sistema único de saúde, segundo as diretrizes deste.
Devido a importância desse direito social, o Protocolo de San Salvador, no âmbito do sistema interamericano, previu em seu art. 10º: Toda pessoa tem direito à saúde, entendida como o gozo do mais alto nível de bemestar físico, mental e social. Além disso, determinou que, para efetivar esse direito, os Estados Partes devem adotar medidas para garantir e proteger a saúde da população, bem como reconhecer a saúde como um bem público.
Na esfera internacional, tal direito também foi previsto no Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, afirmando em seu art. 12º: Os Estados Partes do presente Pacto reconhecem o direito de toda pessoa de desfrutar o mais elevado nível possível de saúde física e mental. O Pacto determina que devem ser tomadas medidas para assegurar o pleno exercício do direito à saúde, e dentre eles, determina: A criação de condições que assegurem a todos assistência médica e serviços médicos em caso de enfermidade.
Infere-se, portanto, que o direito à saúde possui uma proteção tanto constitucional quanto convencional, devendo receber especial atenção da sociedade e do Poder Público, especialmente dos Poderes do Judiciário, do Executivo e do Legislativo, visando a eficácia irradiante dos direitos fundamentais. Além disso, é imprescindível que, para qualquer decisão acerca desse tema, inclusive na instância dos Tribunais Superiores, se faça um duplo controle dos atos normativos, para que se adequem tanto às determinações da Constituição Federal quanto dos Tratados Internacionais.
Devido à dimensão objetiva e à eficácia diagonal dos direitos fundamentais, esses direitos devem ser respeitados também nas relações entre particulares, especialmente quando uma das partes ocupa uma posição de vulnerabilidade em relação a outra. Assim, o direito à saúde deve ser protegido e observado também nas relações consumeristas, nas quais se enquadra os contratos de planos de saúde, em que o consumidor ocupa uma posição de vulnerabilidade jurídica e técnica em comparação aos fornecedores desse serviço. Esse é, inclusive, o entendimento exarado na súmula 608 do Superior Tribunal de Justiça, que afirma: Aplica-se o Código de Defesa do Consumidor aos contratos de plano de saúde, salvo os administrados por entidades de autogestão.
3. LISTA DE MEDICAMENTOS DA AGÊNCIA NACIONAL DE SAÚDE E SUA OBSERVÂNCIA PELOS PLANOS DE SAÚDE
A Agência Nacional da Saúde (ANS), criada pela Lei 9.961 de 2000, com natureza jurídica de autarquia especial, tem por finalidade institucional, conforme o art. 1º da referida Lei: promover a defesa do interesse público na assistência suplementar à saúde, regulando as operadoras setoriais, inclusive quanto às suas relações com prestadores e consumidores, contribuindo para o desenvolvimento das ações de saúde no País.
Compreendendo essa função institucional, uma das competências da ANS, prevista no art. 4º, inciso III, é: elaborar o rol de procedimentos e eventos em saúde, que constituirão referência básica para os fins do disposto na Lei no 9.656, de 3 de junho de 1998, e suas excepcionalidades.
Ressalte-se que a ANS possui autonomia quanto às suas decisões técnicas, conferida diretamente pela lei, nos seguintes termos do parágrafo único do art. 1º da Lei 9.961: (...) caracterizada por autonomia administrativa, financeira, patrimonial e de gestão de recursos humanos, autonomia nas suas decisões técnicas e mandato fixo de seus dirigentes. Entretanto, ainda que dotada de autonomia, trata-se de uma pessoa jurídica de direito público, devendo obediência às normas constitucionais.
A ANS, como agência reguladora, determina quais os procedimentos os planos de saúde devem cumprir, regulando seu funcionamento. Nesses termos, prevê a Lei que dispõe sobre os planos privados de assistência à saúde (Lei nº 9.656), no art. 1º, parágrafo 1º:
Está subordinada às normas e à fiscalização da Agência Nacional de Saúde Suplementar - ANS qualquer modalidade de produto, serviço e contrato que apresente, além da garantia de cobertura financeira de riscos de assistência médica, hospitalar e odontológica, outras características que o diferencie de atividade exclusivamente financeira, tais como:
a) custeio de despesas;
b) oferecimento de rede credenciada ou referenciada;
c) reembolso de despesas;
d) mecanismos de regulação;
e) qualquer restrição contratual, técnica ou operacional para a cobertura de procedimentos solicitados por prestador escolhido pelo consumidor; e
f) vinculação de cobertura financeira à aplicação de conceitos ou critérios médico-assistenciais.
Atualmente, o rol de procedimentos, que é atualizado periodicamente, em razão das constantes inovações tecnológicas e científicas, é regulado pela Resolução Normativa nº 470 de 2021 da ANS, que afirma em seu art.1º:
Esta Resolução dispõe sobre o rito processual de atualização do Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde Rol, que estabelece a cobertura assistencial obrigatória a ser garantida nos planos privados de assistência à saúde contratados a partir de 1º de janeiro de 1999 e naqueles adaptados conforme previsto no art. 35 da Lei n.º 9.656, de 3 de junho de 1998.
No entanto, a complexidade e multiplicidade de causas e circunstâncias que envolvem a saúde do ser humano, torna quase impossível que haja uma previsão de todos os tratamentos, procedimentos, exames, medicamentos e cirurgias que podem ser imprescindíveis para a cura ou melhoria de vida de alguém.
Por isso, a jurisprudência majoritária entendia que a lista disposta pela ANS era meramente exemplificativa, cabendo ao médico, aquele que detém o conhecimento técnico mais apropriado ao caso do paciente, determinar qual procedimento mais adequado e eficiente, o que deveria ser custeado pelo plano de saúde, ainda que não constasse expressamente no referido rol. Nesse sentido, o Tribunal de Justiça de São Paulo editou a Súmula 102: Havendo expressa indicação médica, é abusiva a negativa de cobertura de custeio de tratamento sob o argumento da sua natureza experimental ou por não estar previsto no rol de procedimentos da ANS.
Tal entendimento sempre foi muito debatido, especialmente pelas grandes operadoras de plano de saúde, que entendiam que haveria uma ilegalidade em tal interpretação, uma liberalidade que violava o contrato e gerava um alto custo às empresas fornecedoras desse serviço.
No entanto, em 08 de junho de 2022, o Superior Tribunal de Justiça alterou seu entendimento e determinou que o rol da ANS era taxativo e não mais exemplificativo, não cabendo, em regra, a imposição aos planos de saúde de procedimentos que não constassem na lista.
4. CONSEQUÊNCIAS DA DECISÃO DO STJ QUANTO À TAXATIVIDADE DO ROL DA ANS
O Superior Tribunal de Justiça, ao determinar esse limite de cobertura, em sede do Recurso Especial, fixou as seguintes teses, publicada no sítio eletrônico do Superior Tribunal de Justiça:
1. O rol de procedimentos e eventos em saúde suplementar é, em regra, taxativo;
2. A operadora de plano ou seguro de saúde não é obrigada a arcar com tratamento não constante do rol da ANS se existe, para a cura do paciente, outro procedimento eficaz, efetivo e seguro já incorporado ao rol;
3. É possível a contratação de cobertura ampliada ou a negociação de aditivo contratual para a cobertura de procedimento extra rol;
4. Não havendo substituto terapêutico ou esgotados os procedimentos do rol da ANS, pode haver, a título excepcional, a cobertura do tratamento indicado pelo médico ou odontólogo assistente, desde que (i) não tenha sido indeferido expressamente, pela ANS, a incorporação do procedimento ao rol da saúde suplementar; (ii) haja comprovação da eficácia do tratamento à luz da medicina baseada em evidências; (iii) haja recomendações de órgãos técnicos de renome nacionais (como Conitec e Natjus) e estrangeiros; e (iv) seja realizado, quando possível, o diálogo interinstitucional do magistrado com entes ou pessoas com expertise técnica na área da saúde, incluída a Comissão de Atualização do Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde Suplementar, sem deslocamento da competência do julgamento do feito para a Justiça Federal, ante a ilegitimidade passiva ad causam da ANS. (https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/08062022-Rol-da-ANS-e-taxativo--com-possibilidades-de-cobertura-de-procedimentos-nao-previstos-na-lista.aspx)
Portanto, o STJ fixou o entendimento de que o rol dos procedimentos para a Operadora de plano de saúde é, em regra, taxativo, não podendo esta ser obrigada a arcar com tratamento indicado pelo médico que não conste nessa lista. Apenas excepcionalmente, cumprindo uma série de requisitos é que se poderia exigir esse fornecimento pelos planos de saúde complementar.
A decisão do STJ constitui uma violação aos direitos dos consumidores, em desrespeito ao Princípio da Vedação ao Retrocesso Social, que prevê que os avanços já conquistados na melhoria da situação dos vulneráveis, aqui os consumidores, adquiridas ao longo dos anos, não podem retroagir a fim de derrogar a proteção antes adquirida.
Embora a decisão do Superior Tribunal de Justiça não sepulte de vez essa discussão, posto que não vincula obrigatoriamente os demais juízes, serve de orientação e dá forças a argumentação das grandes empresas de plano de saúde.
Esse posicionamento foi tomado sem que os ministros levassem em conta as reais consequências dessa restrição. O catálogo de medicamentos, tratamentos e exames da ANS é de listagem básica, não contemplando tratamentos recentes, como os tratamentos contra câncer, por exemplo. Com essa limitação de cobertura, muitas pessoas que dependem de plano de saúde, que gastam grande parte de sua remuneração nesse custeio, terão seus tratamentos interrompidos, podendo, inclusive, incorrer em óbito.
As exigências construídas nessa tese do STJ para que o segurado consiga, excepcionalmente, a concessão de medicamentos fora da lista da ANS (como, por exemplo, a exigência de que seja realizado diálogo interinstitucional do magistrado com entes ou pessoas com expertise técnica na área da saúde, incluída a Comissão de Atualização do Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde Suplementar), não condizem com a urgência que é inerente às questões de saúde, que envolvem a vida e a morte.
Percebe-se, portanto, que há um desrespeito aos princípios da segurança jurídica, da dignidade da pessoa humana e da própria função social que deve orientar as relações contratuais. Um verdadeiro retrocesso social e descumprimento das normas constitucionais e convencionais do direito à saúde.
5. CONCLUSÃO
Há evidente contrariedade de interesses entre planos de saúde complementar, que visam o lucro, e os consumidores, vulneráveis da relação, que buscam melhorias na qualidade de vida. Entretanto, apesar da recente decisão do STJ, que determina a taxatividade do rol da ANS, limitando a responsabilidade das operadoras de plano de saúde, é necessário que se faça uma ponderação de valores, entre a vida dos consumidores e o potencial de lucro e ausência de gastos das empresas de saúde.
Além da ausência de proporcionalidade no que se foi decidido, deve-se ter em mente que a Constituição Federal tem valor superior a qualquer norma regulamentar, devendo os Tribunais orientarem seus julgados conforme as normas constitucionais e convencionais, em um duplo controle de legalidade e, assim, dar eficácia ao direito fundamental da saúde.
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