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Análise da juridicidade da cautelar diversa do pedido do Ministério Público

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É necessário rever a flexibilização da rigidez, da força cogente, do caráter dialético e da solidez do sistema acusatório brasileiro.

Com o pacote anticrime, houve a positivação do sistema acusatório no direito processual penal brasileiro.

Antes da inovação legislativa, a jurisprudência já caminhava de forma pacífica para consagrar o sistema acusatório:

"O sistema acusatório consagra constitucionalmente a titularidade privativa da ação penal ao Ministério Público (CF, art. 129, I), a quem compete decidir pelo oferecimento de denúncia ou solicitação de arquivamento do inquérito ou peças de informação, sendo dever do Poder Judiciário exercer a atividade de supervisão judicial." (STF, Pet. 3.825/MT, Rel. Min. GILMAR MENDES)

Numa outra perspectiva, o Ministro Celso de Mello também acolhia o sistema acusatório:

"A reforma introduzida pela Lei n. 13.964 /2019 ("Lei Anticrime"), preservando e valorizando as características essenciais da estrutura acusatória do processo penal brasileiro, modificou a disciplina das medidas de natureza cautelar, especialmente as de caráter processual, estabelecendo um modelo mais coerente com as características do moderno processo penal." (STF, HC 186490 , Relator (a): CELSO DE MELLO, Segunda Turma, julgado em 10/10/2020, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-255 DIVULG 21-10-2020 PUBLIC 22-10-2020)

Muito embora a sistemática legal tenha evoluído para uma compatibilização do entendimento dominante pelos ministros do Supremo Tribunal Federal com a lei anticrime, há nos diversos tribunais brasileiros decisões que atenuam a rigidez garantista do sistema acusatório.

É, por exemplo, o entendimento do STJ quando compreende a possibilidade de decretação de medida cautelar diversa da requerida pelo órgão acusatório (Ministério Público), inclusive, se for o caso, de determinação de segregação cautelar, conforme se verifica no julgado a seguir:

AGRAVO REGIMENTAL EM HABEAS CORPUS. PRINCÍPIO DA COLEGIALIDADE. INTERPOSIÇÃO DE AGRAVO REGIMENTAL. INEXISTÊNCIA DE PREJUÍZO. PRISÃO EM FLAGRANTE. SUPOSTA PRÁTICA DOS CRIMES PREVISTOS NOS ARTS. 268, 329, 330 E 331 DO CP E 306 DA LEI N. 9.503/1997. MINISTÉRIO PÚBLICO PUGNOU PELA CONVERSÃO DO FLAGRANTE EM FIANÇA. MAGISTRADO IMPÔS CAUTELAR DE RECOLHIMENTO NOTURNO. ATUAÇÃO DE OFÍCIO. NÃO OCORRÊNCIA. PRÉVIA E ANTERIOR PROVOCAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO. AGRAVO REGIMENTAL NÃO PROVIDO.

1. A prolação de decisão monocrática não implica ofensa ao princípio da colegialidade, ante a possibilidade de interposição do agravo regimental, que devolve ao órgão colegiado a matéria recursal, como no caso.

2. A atuação do juiz de ofício é vedada independentemente do delito praticado ou de sua gravidade, ainda que seja de natureza hedionda.

3. In casu, na audiência de custódia, o Ministério Público manifestou-se pela concessão de liberdade provisória mediante o pagamento de fiança. O Juízo singular acolheu o pleito e fixou, também, a medida de recolhimento domiciliar em período noturno e nos dias de folga.

4. A determinação do Magistrado, em sentido diverso do requerido pelo Ministério Público, pela autoridade policial ou pelo ofendido, não pode ser considerada como atuação ex officio, uma vez que lhe é permitido operar conforme os ditames legais, desde que previamente provocado, no exercício de sua jurisdição.

5. Impor ou não cautelas pessoais, de fato, depende de prévia e indispensável provocação; contudo, a escolha de qual delas melhor se ajusta ao caso concreto há de ser feita pelo juiz da causa. Entender de forma diversa seria vincular a decisão do Poder Judiciário ao pedido formulado pelo Ministério Público, de modo a transformar o julgador em mero chancelador de manifestações do Parquet ou de transferir a este a escolha do teor de uma decisão judicial.

6. Em situação que, mutatis mutandis, implica similar raciocínio, decidiu o STF: 'Agravo regimental no habeas corpus. 2. Agravo que não impugna todos os fundamentos da decisão agravada. Princípio da dialeticidade violado. 3. Prisão preventiva decretada a pedido do Ministério Público, que, posteriormente requer a sua revogação. Alegação de que o magistrado está obrigado a revogar a prisão a pedido do Ministério Público. 4. Muito embora o juiz não possa decretar a prisão de ofício, o julgador não está vinculado a pedido formulado pelo Ministério Público. 5. Após decretar a prisão a pedido do Ministério Público, o magistrado não é obrigado a revogá-la, quando novamente requerido pelo Parquet. 6. Agravo improvido' (HC n. 203.208 AgR, Rel. Ministro Gilmar Mendes, 2ª T., DJe 30/8/2021).

7. Na dicção da melhor doutrina, 'o direito penal serve simultaneamente para limitar o poder de intervenção do Estado e para combater o crime. Protege, portanto, o indivíduo de uma repressão desmesurada do Estado, mas protege igualmente a sociedade e os seus membros dos abusos do indivíduo' (Claus ROXIN. Problemas fundamentais de direito penal. 2. ed. Lisboa: Vega, 1993, p. 76), visto que, em um Estado de Direito, 'la regulación de esa situación de conflito no es determinada a través de la antítesis Estado-ciudadano; el Estado mismo está obligado por ambos fines - aseguramiento del orden a través de la persecución penal y protección de la esfera de libertad del ciudadano' (Claus ROXIN. Derecho procesal penal. Buenos Aires: Editores dei Puerto, 2000, p. 258).

8. Em outras palavras, embora seja o órgão acusatório o dominus litis, é do juiz a incumbência de atentar-se aos outros interesses legítimos que precisam ser protegidos na relação processual, além dos relativos ao acusado, e, portanto, cabe-lhe, eventualmente, adotar providência cautelar mais gravosa do que a alvitrada pelo representante do Ministério Público, de modo que não se identifica ilegalidade no presente caso.

9. Agravo regimental não provido.

(AgRg no HC n. 626.529/MS, relator Ministro Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, julgado em 26/4/2022, DJe de 3/5/2022.)

Tal decisão quer enfatizar a independência funcional do juízo em face do princípio da correlação ou do sistema acusatório.

Este debate, porém, deve ser aprofundado de forma a evitar relativização extremada do sistema acusatório consagrado expressamente pela lei anticrime, eis que - como já mencionado - foram mais de 30 anos de nova constituição federal até o legislador inserir expressamente tal princípio de garantia constitucional.

Analisando tal decisão do STJ, verifica-se que a concentração de poderes em favor do juízo ainda é tendência amplamente espalhada na jurisdição brasileira.

O Código de Processo Penal Brasileiro, quando de sua entrada em vigor em 1941, teve grande inspiração fascista no Código Rocco da Itália, em que colocava o juiz em uma posição hierarquicamente superior às partes da relação jurídica processual, como no caso de ter conferido poderes para iniciar ação penal através do procedimento denominado judicialiforme, sem observar o princípio da inércia da jurisdição (TÁVORA; ALENCAR, 2017).

O sistema antigo foi foi desacreditado principalmente por incidir em um erro psicológico: crer que uma mesma pessoa possa exercer funções tão antagônicas como investigar, acusar, defender e julgar (LOPES JR, Aury, 2021, p.68).

Ocorre que, no sistema acusatório, os princípios do contraditório, da presunção de inocência, da ampla defesa e da publicidade conduzem todo o processo. O princípio da verdade real é substituído pela busca da verdade, pois sabe-se não existir nenhuma verdade judicial que não seja uma verdade processual (PACELLI, 2017, 20).

Dessa maneira, concluo que é necessário rever determinadas decisões que flexibilizam a rigidez, a força cogente, o caráter dialético e a solidez do sistema acusatório brasileiro.


Referências

PACELLI, Eugênio. Curso de processo penal. 21. ed. São Paulo: Atlas, 2017.

LIMA, Renato Brasileiro. Código de processo penal comentado. 2. ed. rev. e atual. Salvador: Juspodivm, 2017.

TÁVORA, Nestor; ALENCAR, Rosamar Rodrigues. Curso de direito processual penal. 12. ed. rev. Salvador: Ed. JusPodivm. 2017.

LOPES JR, Aury. Direito processual penal. 18ª edição. Editora Saraiva.

STF, HC 186490 , Relator (a): CELSO DE MELLO, Segunda Turma, julgado em 10/10/2020, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-255 DIVULG 21-10-2020 PUBLIC 22-10-2020.

STJ, AgRg no HC n. 626.529/MS, relator Ministro Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, julgado em 26/4/2022, DJe de 3/5/2022.

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Sobre o autor
Kleber Vinicius Bezerra Camelo de Melo

Defensor Público Federal. Especialista em Direito Tributário e Finanças Públicas (IDP/2011). Especialista em Direito Processual nos Tribunais Superiores (UniCEUB/2013).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MELO, Kleber Vinicius Bezerra Camelo. Análise da juridicidade da cautelar diversa do pedido do Ministério Público. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 6964, 26 jul. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/99346. Acesso em: 21 nov. 2024.

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