O presente artigo visa à análise do caso relativo à República do Guiné Equatorial Vs. França, julgado, em 13 de junho de 2016, pela Corte Internacional de Justiça (CIJ), principal órgão judiciário das Nações Unidas que processa conflitos jurídicos propostos por Estados-membros.
Em suma, o litígio proposto pela República da Guiné Equatorial à CIJ, em desfavor da França, decorre da tramitação de processos penais, nos órgãos julgadores franceses, relativos à imunidade de jurisdição penal do Segundo Vice-Presidente da República da Guiné Equatorial responsável pela Defesa e Segurança do Estado, e ao estatuto jurídico do edifício que alberga a Embaixada da Guiné Equatorial, tanto como instalações da missão diplomática como sua propriedade estatal.
As alegações do Estado representante centram no fato de que o processo penal ajuizado em desfavor do Segundo Vice-Presidente constituiria violação da imunidade a qual lhe é conferida pelo direito internacional, interferindo no exercício das suas funções oficiais como titular de alto cargo no Estado da Guiné Equatorial. Aliado a isso, esses processos criminais resultaram, entre outros, na penhora do edifício situado em Paris, supostamente propriedade da Guiné Equatorial e que seria utilizado para fins da sua missão diplomática em França. Nesse compilado de alegações, sustentaram que os aludidos processos criminais violariam a Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas de 18 de abril de 1961, a Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional de 15 de novembro de 2000 e o direito internacional geral.
Pelo que consta no pleito do país africano, os processos criminais foram iniciados na França, a partir de 2007, quando uma série de queixas, reportadas por associações privadas, alegaram que alguns Chefes de Estado africanos estariam desviando recursos públicos de seu país de origem para a França.
Aliado a isso, foi sustentado que os órgãos julgadores franceses teriam se recusado a dar efeito à imunidade de jurisdição penal, a que teria direito o Segundo Vice-Presidente. Outrossim, nem os tribunais franceses ou o Ministério das Relações Exteriores (Ministère des Affaires Étrangères) francês teriam reconhecido a inviolabilidade do edifício situado na Avenida Foch, 42, em Paris, como sede da missão diplomática da Guiné Equatorial em França.
O promotor público francês, avaliando o caso, concluiu que haveria provas suficientes de que o Segundo Vice-Presidente africano teria ajudado a realizar investimentos ocultos, ou sua conversão em rendimentos direitos e indiretos, de valores originados de crimes ou contravenção. Ainda, sustentou que o estadista não gozaria de imunidade, bem como que o imóvel localizado em Paris não gozaria de nenhuma proteção por imunidade diplomática, pois não faria parte da missão diplomática da República da Guiné Equatorial na França.
O Estado reclamante teceu considerações acerca das competências previstas para o Segundo Vice-Presidente da Guiné Equatorial. A autoridade africana, na ocasião, nos termos da petição do país africano, exercia o controle e era chefe das forças armadas, da polícia e das autoridades de imigração do país. Seria um representante do Estado da Guiné Equatorial, com capacidade para atuar em seu nome perante outros Estados e organizações internacionais, nas matérias afetas à sua competência. Foi relatado, também, que o Segundo Vice-Presidente representou o seu país em diversas ocasiões (como, por exemplo, quando chefiou a delegação da guiné Equatorial na Septuagésima Sessão da Assembleia Geral das Nações Unidas).
O Poder Judiciário francês, em 13 de julho de 2012, expediu mandado de prisão em desfavor do Segundo Vice-Presidente (o qual ocupava cargo responsável pela Defesa e Segurança do Estado).
Com relação ao edifício localizado no território francês, foi relatado que, até 2011, havia uma copropriedade com cinco empresas suíças, nas quais o Segundo Vice-Presidente era o único acionista. Em 2011, foram transferidos os seus direitos de acionista das empresas à República do Guiné Equatorial, sendo utilizado, desde então, para missões diplomáticas. Em 19 de julho de 2012, o órgão judiciário francês ordenou a penhora do edifício em epígrafe, sob a alegação de que tal imóvel teria sido financiado com produto de crime perpetrado pelo Segundo Vice-Presidente.
Nesse viés, a decisão do Poder Judiciário francês, quanto à imunidade diplomática, foi no sentido de que, com relação à lavagem de capitais, os delitos teriam sido cometidos pelo Segundo Vice-Presidente, para seu ganho pessoal, antes de assumir suas funções atuais, no momento em que exercia as funções do Ministro da Agricultura e Florestas.
No seu pedido, o país africano, inicialmente, sustentou que o direito internacional estabelece os princípios da igualdade soberana dos Estados e da não ingerência nos assuntos internos de outro Estado, princípios que estão refletidos na Carta das Nações Unidas (esculpidos no artigo 2º, 1, da Carta das Nações Unidas). Afirmou que se aplicariam ao presente caso as disposições insertas na Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas de 18 de abril de 1961 e as da Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional de 15 de novembro de 2000, bem como o direito internacional geral relativo à imunidade de processos penais estrangeiros dos titulares de cargos de alto escalão em um Estado e as imunidades dos Estados e seus bens.
Nessa linha, arguiram que o processo judicial instaurado na França contra o Segundo Vice-Presidente da Guiné Equatorial, responsável pela Defesa e Segurança do Estado, que gozaria de imunidade ratione personae durante o seu mandato, constitui uma violação das obrigações da França perante o direito internacional. Com relação à não concessão de imunidade ao edifício localizado em solo francês, que era utilizado para missão diplomática pela Guiné Equatorial, alegar haver violação , em particular, ao artigo 22 da Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas de 18 de abril de 1961.
Aliado a isso, também foi arguido que houve violação às normas internacionais pelo Poder Judiciário francês, ao deixar de garantir que alguma medida de coação prévia, como penhora ou prisão, seja tomada sem o consentimento do Estado da Guiné Equatorial. As regras do direito internacional consuetudinário que regem as imunidades dos Estados em relação à penhora de seus bens estão refletidas na Convenção das Nações Unidas de 2004 sobre Imunidades Jurisdicionais dos Estados e Seus Bens.
Sustentaram violação ao artigo 4º da Convenção das Nações Unidas Contra a Corrupção, o qual possui a seguinte redação:
1. Os Estados Partes cumprirão suas obrigações de acordo com a presente Convenção em consonância com os princípios de igualdade soberana e integridade territorial dos Estados, assim como de não intervenção nos assuntos internos de outros Estados.
2. Nada do disposto na presente Convenção delegará poderes a um Estado Parte para exercer, no território de outro Estado, jurisdição ou funções que a legislação interna desse Estado reserve exclusivamente a suas autoridades.
Nessa linha de fatos e argumentos, considerando o pedido da República Equatorial da Nova Guiné, no que toca ao caso ora analisado, entre outros, foi solicitado à CIJ que fosse declarado que a França violou a sua obrigação de respeitar os princípios da igualdade soberana dos Estados e da não ingerência nos assuntos internos de outro Estado, devidos à República da Guiné Equatorial de acordo com o direito internacional, ao permitir que seus tribunais instaurassem processos penais contra o Segundo Vice-Presidente da Guiné Equatorial, em razão de supostos delitos que seriam da competência exclusiva dos tribunais da Guiné Equatorial, permitindo que os seus tribunais ordenassem a penhora de um edifício pertencente à República da Guiné Equatorial e utilizado para fins da missão diplomática desse país em França. Peticionaram que o país francês cessasse os procedimentos criminais em curso e as medidas as quais violam as imunidades conferidas pelas normas internacionais, assegurando, também, a imunidade material relacionada ao imóvel, localizado no território francês, o qual é sede de missão diplomática em Paris.
A CIJ, em sua Sentença, apreciando as preliminares levantadas pelo Estado francês, com base no artigo 35 da Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional, decidiu que não haveria competência para apreciar o caso, quanto eventual imunidade diplomática da autoridade africana. No entanto, considerou que exerce competência, com base no Protocolo Facultativo à Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas Relativas à Solução Compulsória de Controvérsias, para apreciar o Requerimento da Guiné Equatorial no que diz respeito ao status do edifício localizado na 42 Avenue Foch, em Paris, o qual seria utilizado como instalações de missão diplomática.
No mérito, a CIJ, após as audiências públicas realizadas em fevereiro de 2020, emitiu sua Sentença sobre o mérito do caso em 11 de dezembro de 2020. A Corte Internacional considerou que o prédio da avenida Foch, 42, em Paris, nunca havia adquirido o status de instalações da missão na acepção do artigo 1.º, alínea i), da Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas. Assim, entenderam que a França não violou as obrigações decorrentes dessa Convenção.
Analisando o presente caso, no que toca ao edifício referenciado na supracitada sentença, temos que a Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas, inserida no ordenamento jurídico brasileiro por meio do Decreto nº 56.435/1965, informa que os locais da missão são os edifícios, ou parte dos edifícios, e terrenos anexos, seja quem for o seu proprietário, utilizados para as finalidades da Missão, inclusive a residência do Chefe da Missão.
Resta claro que somente poderá ser considerado local da missão, incidindo as imunidades materiais previstas nos diplomas internacionais, o imóvel utilizado para a finalidade da Missão. Nesse sentido, é importante colacionar o entendimento proferido pelo Supremo Tribunal Federal brasileiro no julgamento da ARE 954858/RJ:
A imunidade de jurisdição de Estado estrangeiro não alcança atos de império ofensivos ao direito internacional da pessoa humana praticados no território brasileiro, tais como aqueles que resultem na morte de civis em período de guerra.
A imunidade de jurisdição de Estado soberano em razão de ato de império tem fonte no direito costumeiro. Este, ainda que tenha status elevado no direito internacional, nem sempre deve prevalecer. É que atos de império que resultem na morte de cidadãos brasileiros não combatentes, ainda que praticados num contexto de guerra, são atos ilícitos, seja por ofenderem as normas que regulamentam os conflitos armados (1), seja por ignorarem os princípios que regem os direitos humanos (2).
De acordo com o argumento acima colacionado, cujo entendimento jurídico deve ser exortado, a imunidade de jurisdição de Estado poderia ser relativizada no caso de atos de império ofensivos ao direito internacional da pessoa humana praticados no território brasileiro. Ora, é consabido que a ONU elaborou a Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional, a qual prevê, em seu artigo sétimo, medidas para combater a lavagem de dinheiro.
In casu, os órgãos julgadores franceses teriam demonstrado que o Segundo Vice-Presidente africano teria ajudado a fazer investimentos ocultos, ou sua conversão em rendimentos direitos e indiretos, de valores originados de crimes ou contravenção. Ainda, o imóvel localizado no terreno francês até 2011 era de propriedade privada, de empresas suíças, nas quais o Segundo Vice-Presidente era o único acionista. Há toda aparência, ao que consta nos documentos extraídos no sítio eletrônico da CIJ, de que o aludido imóvel foi utilizado como meio para a perpetuação de atividades ilícitas.
Nesses termos, tem-se como acertada a decisão da CIJ, especialmente pelo fato de que não seria possível um Estado se utilizar de eventual imunidade de jurisdição como escusa para a prática de atividades ilícitas. Adentrando ainda mais no mérito, acerca da responsabilização dos atos praticados pela autoridade do Estado africano (o qual não foi objeto de apreciação da CIJ), salienta-se que não se desconhece o tradicional entendimento de que vigoraria uma imunidade absoluta à Chefe de Estado, com relação a processos criminais (Caso Yerodia). Contudo, também não se desconhece que até mesmo essa imunidade, modernamente, está passando a ser relativizada no caso de prática de crimes previstos em tratados internacionais.
No afã de robustecer argumentos para a possível responsabilização a Chefes de Estado detentores de imunidade processual ratione personae, seria possível a aplicação do conteúdo da fórmula tu quoque, princípio geral aplicado no direito internacional público e privado. Nessa senda, o conceito desse princípio pode ser referido como aquele que descumpriu norma legal ou contratual, atingindo com isso determinada posição jurídica, não pode exigir do outro o cumprimento do preceito que ele próprio já descumprira.
Com base nesse argumento, seria possível extrair a interpretação de que o representante de Estado soberano, o qual descumpre regras internacionais, bem como as regras do Estado no qual se encontra, utilizando-se de imóvel, ainda que alegado como local de missão diplomática, para realizar infrações penais, não poderia se valer de imunidades diplomáticas para se furtar dessas responsabilidades, como um escudo protetivo.
Não há garantias, direitos ou imunidades absolutas. Cada autoridade deve ser responsabilizada pelos seus atos, ainda que seja necessários entraves, criados por regras de Direito Internacional público, para se efetivá-las.