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Agora é lei: quarto de hotel é local de freqüência individual e de uso exclusivo do hóspede

Agora é lei: quarto de hotel é local de freqüência individual e de uso exclusivo do hóspede

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A cobrança de direitos autorais pela disponibilização de equipamentos de som e imagem (rádio e televisão de canais abertos e por assinatura) em quartos de hotel é objeto de grandes controvérsias.

SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Evolução Legislativa. 3. Posicionamento jurisprudencial. 4. A nova Lei nº 11.771/2008. 5. Conclusões. 6. Referências Bibliográficas


1. INTRODUÇÃO

cobrança de direitos autorais pela disponibilização de equipamentos de som e imagem (rádio e televisão de canais abertos e por assinatura) em quartos de hotel constitui, de longa data, matéria que tem sido objeto de grandes controvérsias.

A Lei de Direitos Autorais - LDA classifica hotéis como "local de freqüência coletiva", em redação que agride a melhor técnica legislativa, posto que o parágrafo 3º do artigo 68 disciplina matéria diversa daquela constante do caput do referido artigo, que versa sobre representações "representações e execuções públicas".

Por outro lado, na falta de uma conceituação específica para os quartos de hotel, estes são englobados pela atual LDA no conjunto de dependências hoteleiras, as quais caracterizadas como "local de freqüência coletiva". Assim, o quarto de hotel é equiparado às demais áreas comuns do estabelecimento, onde são devidos direitos autorais pela execução de obras musicais, litero-musicais e de fonogramas. Tal equívoco tem acarretado pesados e indevidos gravames à categoria dos meios de hospedagem, além da incerteza quanto à realização de novos investimentos no setor.

Não bastasse isso, constitui princípio basilar da LDA que os negócios jurídicos sobre direitos autorais devem ser interpretados restritivamente, tornando-se necessário que não se aplique extensivamente a mesma norma legal para dependências de natureza distinta.

A Lei nº 11.771/2008, de 17.09.2008 (DOU de 18.09.2008), mais conhecida como Lei Geral do Turismo, esclarece definitivamente a natureza dos quartos de hotel, conceituando-os como "unidades de freqüência individual e de uso exclusivo do hóspede".

O objetivo da presente análise é descaracterizar que a disponibilização de rádio e televisão em quartos de hotel seja equiparada a "exibições e espetáculos coletivos" como os que se realizam em cinemas, teatros e estádios de futebol.

Nesse sentido será apreciada neste trabalho a evolução doutrinária e jurisprudencial da matéria, com a exata delimitação dos conceitos de "transmissão", "retransmissão", "representações e execuções públicas" e "locais de freqüência coletiva", com especial ênfase à Lei nº 11.771/2008.


2. EVOLUÇÃO LEGISLATIVA

Constituição Federal confere tutela específica à propriedade intelectual, dispondo que "aos autores pertence o direito exclusivo de utilização, publicação ou reprodução de suas obras" (artigo 5º, inciso XXVII).

Já o inciso XXVIII do mesmo artigo assegura "nos termos da lei", "proteção às participações individuais em obras coletivas e à reprodução de imagem e voz humanas, inclusive nas atividades desportivas" (alínea "a"), além de "o direito de fiscalização do aproveitamento econômico das obras que criarem ou de que participarem aos criadores, aos interpretes e às respectivas representações sindicais e associativas" (alínea "b").

Até a edição da Lei nº 5.988/1973 os direitos autorais eram tutelados por dispositivos do Código Civil e de legislação esparsa, sendo que a partir de 1998 a Lei nº 9.610 passou a regular a matéria, revogando quase todos os dispositivos da norma anterior e alterando alguns conceitos básicos.

Agora, em 2008, acaba de ser editada a Lei nº 11.771/2008, que coloca termo a uma acirrada polêmica travada em sede doutrinária e jurisprudencial, estabelecendo que os quartos de hotel constituem "unidades de freqüência individual e de uso exclusivo do hóspede", tal qual ocorre em sua residência.

Assim, sob o crivo do preceito constitucional de que "aos autores cabe o direito autoral na forma da lei", a expressão hotéis constante do artigo 68, parágrafo 3º, da LDA deve ser interpretada em conjunto com Lei nº 11.771/2008, para excluir os quartos de estabelecimentos hoteleiros do pagamento de direitos autorais em razão da disponibilidade de equipamentos de rádio e televisão, posto que estas dependências constituem "unidades de freqüência individual.

Ademais, a par de considerável diferença de enfoques das Leis nºs 5.988/1973 e 9.610/1998, constitui preceito comum que "interpretam-se restritivamente os negócios jurídicos sobre direitos autorais".

A respeito da interpretação restritiva leciona a mestre civilista MARIA HELENA DINIZ:

"Aquela em que o intérprete e aplicador da norma limita a incidência de seu comando, impedindo que produza efeitos injustos ou danosos, porque suas palavras abrangem hipóteses nelas, na realidade, não se contém.

Este ato interpretativo não reduz o campo normativo, mas determina tão somente os limites ou as fronteiras exatas da norma, com o auxílio de elementos lógicos e de fatores jurídico-sociais, possibilitando a aplicação razoável e justa da norma, de modo que corresponda à sua conexão no sentido". (¹)

Oportuno trazer à colação aresto que aborda com percuciência a interpretação restritiva prevista em ambos os diplomas legais que disciplinam os direitos autorais:

"O art. 4º da Lei nº 9610/98, efetivamente, determina que sejam interpretados restritivamente os negócios jurídicos sobre direitos autorais. Portanto, a exegese restritiva dos instrumentos negociais relativa aos direitos autorais nada mais é do que a interpretação exata, verdadeira do negócio, evitando-se a extensão ou a supressão de alguma coisa; a precisão deve ser alcançada com a avaliação dos elementos lógicos do negócio, sem qualquer dilatação do negócio". (²)

Em se tratando de matéria controvertida, necessário examinar os dispositivos que historicamente disciplinaram a matéria, como o artigo 73 da Lei nº 5.988/1973, que estabelecia:

"Art. 73 - Sem autorização do autor, não poderão ser transmitidos pelo rádio, serviço de alto-falantes, televisão ou outro meio análogo, representados ou executados em espetáculos públicos e audições públicas, que visem a lucro direto ou indireto, drama, tragédia, comédia, composição musical, com letra ou sem ela, ou obra de caráter assemelhado.

§ 1º Consideram-se espetáculos públicos e audições públicas, para os efeitos legais, as representações ou execuções em locais ou estabelecimentos, como teatros, cinemas, salões de baile ou concerto, boates, bares, clubes de qualquer natureza, lojas comerciais e industriais, estádios, circos, restaurantes, hotéis, meios de transporte de passageiros terrestre, marítimo, fluvial ou aéreo, ou onde quer que se representem, executem, recitem, interpretem ou transmitam obras intelectuais, com a participação de artistas remunerados, ou mediante quaisquer processos fonomecânicos, eletrônicos ou audiovisuais.

§ 2º Ao requerer a aprovação do espetáculo ou da transmissão, o empresário deverá apresentar à autoridade policial, observando o disposto na legislação em vigor, o programa, acompanhado da autorização do autor, intérprete ou executante e do produtor de fonogramas, bem como do recibo de recolhimento em agência bancária ou postal, ou ainda documento equivalente em forma autorizada pelo Conselho Nacional de Direito Autoral, a favor do Escritório Central de Arrecadação e Distribuição, de que trata o art. 115, do valor, dos direitos autorais das obras programadas" (grifamos).

Apesar de o artigo considerar indevidamente a disponibilização de rádio e televisão em quartos de hotel como execução de "espetáculo público" e "audição pública", o foco principal é a obtenção de "lucro direto ou indireto", razão pela qual sob a vigência da Lei nº 5.988/1973 os Tribunais reconheceram a não obrigatoriedade de cobrança de direitos autorais em quartos de hotel. Ocorre que a existência de rádio e televisão nos quartos de hotel encontra-se agregada ao mobiliário e utensílios que guarnecem esta dependência objetivando reduzir no hóspede a sensação de impessoalidade do ambiente.

Por outro lado, os hotéis têm como atividade o ramo de hospedagem, vale dizer, a música não se insere como fator de mercancia e nem sequer para obtenção de lucro direto ou indireto, não servindo como elemento essencial para captação de clientela. O que incrementa um estabelecimento hoteleiro, de forma a proporcionar-lhe lucro, são as condições atinentes à própria hospedagem, como preço, conforto das instalações, móveis, estilo, limpeza, segurança e outros serviços prestados e jamais por possuir nos quartos equipamentos de som e imagem,

posto que "ninguém se hospeda e vai-se trancar em quarto de hotel para ouvir música ou ver televisão". (³)

À título ilustrativo de mencionar a manifestação do Ministro ARI PARGENDLER, da 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, sobre o entendimento jurisprudencial na vigência da Lei

nº 5.988/1973:

"Durante a vigência da Lei nº 5.988/1973, prevaleceu nesta casa a orientação, segundo a qual, por tratar-se de rádio receptor individual, desprovido assim de sistema de retransmissão (sonorização ambiental), e de televisão, também independente, eram indevidos os direitos autorais". [4]

Observe-se, mais, que a prescrição do parágrafo 2º, do artigo 73 da LDA anterior ao estabelecer a exigência de o empresário "apresentar o programa ao requerer a aprovação do espetáculo ou da transmissão", está a demonstrar, a toda evidência, que se refere a espetáculos muito mais amplos do que a simples transmissão de sons e imagens em equipamentos disponibilizados aos hóspedes.

Ademais, como a disponibilização de aparelhos de rádio e televisão em quartos de hotel, constituindo serviço de natureza singular e não coletiva, não configura "espetáculo público ou audição pública" e nem objetiva o lucro direto ou indireto, era considerada indevida a cobrança de diretos autorais sob a égide da lei anterior.

Contudo, considerando que o pressuposto de "lucro direto ou indireto" sempre constituiu motivo de interpretações conflitantes, a lei atual acabou por retirar tal exigência, introduzindo um elemento novo, que é a "prévia e expressa autorização do autor ou titular do direito para que a comunicação seja levada ao público" e retirando a expressão "que visem lucro direto ou indireto".

A grande diferença entre as duas leis (Lei nº 5.988/1973 - LDA anterior e Lei nº 9.610/1998 - LDA atual) encontra-se no fato de que a primeira confere especial ênfase ao fator "lucratividade em espetáculos e audições públicas" como o elemento gerador da obrigação, enquanto a lei vigente prioriza a "execução pública em locais de freqüência coletiva".

Ambas as leis iniciam suas disposições fixando alguns conceitos dos quais, para a presente análise, os mais importantes são o de "transmissão" e "retransmissão", sendo que o primeiro restou ampliado pelo novo ordenamento em razão de avanços tecnológicos.

Na moldura legal, transmissão é a "difusão de sons ou sons e imagens, por meio de ondas radioelétricas, sinais de satélites, fio, cabo ou outro condutor, meios óticos ou qualquer outro processo eletromagnético", enquanto retransmissão é conceituada como a "emissão simultânea da transmissão de uma empresa por outra" (Lei nº 9.610/1998, artigo 5º, incisos II e III).

Assim, ocorre simples transmissão quando aparelhos de rádio ou televisão individuais, disponibilizados no quarto de hotel, recebem diretamente sinais de som e imagem, podendo o próprio hóspede, a seu talante, acionar ou não tais equipamentos, com livre escolha de estações e canais, sem qualquer imposição ou ingerência por parte do estabelecimento. Desse modo, os

previsto no caput do artigo, sendo de ressaltar que este não trata de freqüência coletiva, mas de execução pública.

Segundo FRANCISCO DE PAULA BAPTISTA, dentre as hipóteses que determinam a necessidade de interpretação do texto legal, alinha-se a ocorrência de defeitos em sua redação, resultando daí obscuridade e equivoco em seu sentido. [5]

Tem-se, assim, sob a ótica do princípio da razoabilidade, que existem apenas duas alternativas para harmonizar os preceitos do caput e do parágrafo 3º:

-ou o parágrafo extrapola sua função complementar e elucidativa do caput,

-ou a expressão "freqüência coletiva" do parágrafo 3º integra o conceito de "representações e execuções públicas" constante do caput.

Quanto ao parágrafo 3º ultrapassar os limites fixados pelo caput, tal hipótese é juridicamente inviável, posto que "o parágrafo sempre foi, numa lei, disposição secundária de um artigo em que se explica ou modifica a disposição principal". [6]

Desse modo, a expressão "freqüência coletiva" do parágrafo 3º só pode ser entendida como um dos elementos integrantes do conceito de "representações e execuções públicas" contido no caput, posto que, por simples hermenêutica jurídica, este deve prevalecer sobre aquele.

Nessa conformidade, em razão da indispensável integração do parágrafo 3º com o caput, tem-se como conseqüência lógica que a intenção da expressão "freqüência coletiva" é a de caracterizar locais em que há circulação de público, onde, positivamente não se enquadram os quartos de hotel. Tanto assim o é que o caput do artigo 68 veda a utilização de "teatrais, composições musicais ou lítero-musicais e fonogramas, em representações e execuções públicas".

Logo, a captação de som e imagem no interior de um quarto de hotel não pode ser considerada como execução pública porque não é imposta a uma coletividade de pessoas, mas se dirige, facultativamente, ao ambiente de fruição particular e íntimo dos hóspedes, tal qual quando se liga o rádio ou a televisão no âmbito de sua residência.

Nessa linha de raciocínio conclui-se logicamente que a representação ou execução pública em hotéis só pode ocorrer em áreas de uso comum destes estabelecimentos, onde há a eventual possibilidade de circular uma pluralidade de pessoas.

Ademais, importante ressaltar que os hotéis são constituídos por um conjunto de dependências para utilização de hóspedes e não hóspedes: umas de uso coletivo - áreas onde as pessoas circulam livremente, como a recepção, saguões, corredores, restaurantes, bares, salões para festas, recepções e conferências, áreas de lazer, piscina e garagem e outras de uso restrito, como os quartos de hóspedes.

Em relação ao parágrafo 3º, aparentemente dissociado do caput do artigo 68, de consignar que, muitas das vezes, a falta de técnica legislativa deixa na penumbra o espírito da lei, sendo de se observar que na hipótese a real intenção da referida norma, ao mencionar a expressão

"freqüência coletiva" é caracterizar os locais em que há circulação de público.

De fato, é de todo inimaginável a realização de um espetáculo, representação ou audição públicas em quartos de hotel, por mais ampla que seja esta dependência.

Conforme lição do mestre hermeneuta CARLOS MAXIMILIANO, em sua clássica obra "Hermenêutica e Aplicação do Direito", no sentido de que não se encontra preceito isolado em ciência alguma, todos estão em perfeita comunhão e de sua interpretação conjunta exsurge luz para a solução da controvérsia. Lembra ainda o saudoso exegeta que "deve o Direito ser interpretado inteligentemente: não de modo que a ordem legal envolva um absurdo, prescreva inconveniências, vá ter a conclusões inconsistentes ou impossíveis" [7], pois, conforme consagrado pelo axioma do Direito Romano: "interpretatio illa sumenda, qua absurdum evitetur" (deve ser escolhida aquela interpretação pela qual se evite o absurdo).

De outra feita, admitir que os aposentos hoteleiros constituam local de freqüência coletiva nos levaria a conclusão absurda de que um casal de hóspedes, em suas intimidades, correria o risco de ter seu comportamento tipificado como o ilícito previsto no artigo 233 do Código Penal: "praticar ato obsceno em lugar público, ou aberto ou exposto ao público".

Saliente-se, nesse sentido, a observação do Desembargador SEJALMO SEBASTIÃO DE PAULA NERY, do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, que aponta o equívoco do legislador ao empregar a expressão "freqüência coletiva":

"Freqüência significa assiduidade, repetição, e nunca foi sinônimo de reunião. Freqüentar um local significa ir muitas vezes, repetidamente, a esse local. Ora, em assim sendo, só haverá freqüência coletiva em motéis e hotéis quando muitas pessoas, ao mesmo tempo, e repetidamente, se reunirem nesses locais, circunstância que é completamente inimaginável". [8]

Por outro lado, é sabido e consabido que "público" é o local franqueado a todas as pessoas e onde cada um pode freqüentar e se locomover independentemente de qualquer autorização de quem quer que seja.

Ademais, oportuno assinalar que "o sentido de público a mens legis reservou para aqueles recintos que estão sempre em movimento, em que a entrada é franqueada, sem vínculo; a freqüência é aberta e duradoura e a programação nasce da obra dos que governam a casa, ordinariamente sem consulta aos freqüentadores. No caso dos apartamentos privados, o seu uso ocorre apenas para quem ali se hospeda e já se acha vinculado a uma determinada prevalência; ou só o hóspede, querendo, é que poderá movimentar a programação, ou jamais usá-la (…...) O quarto, ou apartamento, ou suíte, de hotel ou motel (onde está o rádio-receptor) jamais poderá ser considerado ambiente público, uma vez fechadas as portas pelo usuário. Ao contrário, é privadíssimo, ainda que se admita que o estabelecimento é público, isto é, de freqüência coletiva. Se aquilo fosse ambiente público, qualquer um poderia nele adentrar, ainda que outrem já estivesse nele, como acontece, por exemplo, num teatro, num cinema, num clube, numa loja, numa rodoviária, no estádio de futebol, num restaurante etc. No entanto, desde que alguém ingresse e feche a porta, torna-se privadíssimo, tão impenetrável como o ‘box’ de um sanitário ocupado. Logo o toque em aparelho receptor, aí, jamais poderá ser considerado audição ou espetáculo público". [9]

Ora, a luz da comezinha lógica, não se pode considerar um quarto de hospedagem como local

de freqüência coletiva, sendo, portanto, inviável que nesta dependência haja execução pública de qualquer coisa que seja, situação que descaracteriza a hipótese de incidência da norma tutelar dos direitos autorais.

De outra feita, constitui fato notório que muitas pessoas residem em quartos de hotel e modernamente muitas residem nos denominados "flats", "apart-hotel", "condohotel" ou "hotel-residência".

Nesse passo, oportuno trazer a colação esclarecedor voto do Ministro MASSAMI UYEDA, do Superior Tribunal de Justiça:

"Segundo Allan Rocha de Souza, "[…] todos os direitos privados tem limitações […]" e "[…] não poderia ser diferente no âmbito do dos direitos autorais […]". "[…] observa-se […] uma assimetria entre a despatrimonialização do direito civil a partir de sua constitucionalização e, em nosso caso, elevação do princípio de proteção da dignidade humana a uma das finalidades essenciais do Estado, e o que tem acontecido com os movimentos internacionais e nacionais de proteção autoral, onde nota-se, principalmente nas três últimas décadas, uma ampliação do processo de privatização de seus usos, restrição dos usos livres legalmente autorizados, expressando-se nas ''tendências patrimonialista, argentária, anti-social, que preside tantas de nossas novas leis de propriedade intelectual,'' afetando as próprias bases dos direitos autorais, que ''estão hoje corroídas por uma evolução economicista, que sufoca preocupações culturais.'' Diante disso, vislumbra-se um processo diverso, e não justificado, do que acontece com as demais áreas do direito civil, processo este que é na verdade assemelhado ao desenvolvimento histórico inicial do direito civil, talvez por seu tardio reconhecimento em comparação com os demais ramos civilísticos, repetindo os direitos autorais agora, com o neo-liberalismo, o período de apogeu da doutrina liberal, em sacrifício dos interesses coletivos que necessariamente o compõem." (in "A Função Social dos Direitos Autorais", Ed. Faculdade de Direito de Campos, Campos dos Goytacazes, Rio de Janeiro, págs.274/275).

Nos termos acima expostos, deve ser ressaltado que um quarto, como espaço em que uma (ou mais) pessoa(s) busca(m) privacidade, não pode ser compreendido como local de freqüência coletiva. Por mais transitório que seja o lapso a que esteja submetida a posse do dormitório (de hotel ou de motel), somente poderá ingressar no espaço delimitado pelo cômodo se o(s) possuidor(es) assim o permitir(em). Nesta hipótese, ocorre a proteção dos aposentos de modo individualizado, como se fosse uma residência particular.

(..........)

No tocante às áreas comuns (como corredores, halls e saguões), de livre acesso, franqueado a todos, são realmente espaços públicos por natureza.

Entretanto, pretender-se a extensão da natureza de espaço público a quartos individualizados de motéis, tal entendimento extrapola os limites do razoável. Na desarmonia entre as previsões do caput e do parágrafo do artigo da legislação em tela, deverá prevalecer o primeiro, por questão de hermenêutica jurídica". [10]

Ainda de considerar que, como o texto legal não especifica a dimensão de incidência de direitos autorais no âmbito destes estabelecimentos, situação que se constitui ponto nodal da divergência na doutrina e na jurisprudência, para esclarecer se os quartos de hotel encontram-se inseridos no conceito de locais de freqüência coletiva, necessário fixar a natureza jurídica destas dependências.

A transmissão de som e imagem realizada na esfera de atuação individual de um quarto de hotel é como se ocorresse na residência do hóspede.

A privacidade de um quarto de hotel equivale à privacidade do lar. O quarto de hotel não é lugar comum, mas é privativo do hóspede que o utiliza e não pode receber o tratamento de coisa comum, sob pena de incorrer em ofensa ao artigo 5º, inciso XI, da Carta da República.

Nesse sentido, o Colendo Supremo Tribunal Federal, em sua missão de definir conceitos no nível constitucional, esclarece:

"Para os fins da proteção jurídica a que se refere o art. 5º, XI, da Constituição da República, o conceito normativo de "casa" revela-se abrangente e, por estender-se a qualquer aposento de habitação coletiva, desde que ocupado (CP, art. 150, § 4º, II), compreende, observada essa específica limitação espacial, os quartos de hotel". [11]

Registre-se, ainda, que o princípio da não contradição, axioma fundamental da Filosofia enunciado na Antiga Grécia por Parmênides, afirma a impossibilidade de uma mesma coisa ser e não ser ao mesmo tempo ou ter e não ter, ao mesmo tempo, determinada propriedade.

Assim, não pode ser um conceito considerado como válido para o Direito Penal e inválido para o Direito Civil ou outros ramos do Direito.

Sob tal ótica, os aposentos hoteleiros não constituem local público ou mesmo local acidentalmente público e simultaneamente lugares de freqüência individual, dependendo da legislação aplicável, preferindo-se esta em razão de sua adéqua à garantia constitucional.

Nesse passo, oportuno lembrar o seguinte aresto específico:

"Não me parece que colocação do serviço à disposição do hóspede no quarto do hotel seja efetivamente equiparável a espetáculo público ou audição pública. Entendo que é uma conveniência, porque o quarto do hotel, na verdade tenta reproduzir o lar de uma pessoa quando está fora dele, em que dispõe de uma televisão e dispõe evidentemente, também de um rádio......Tenho que apenas a transmissão nas áreas comuns do hotel estaria sujeita a isso, mas não a disponibilidade do rádio no quarto". [12]

Outra circunstância que está a caracterizar o caráter de freqüência individual dos quartos ou apartamentos de meios de hospedagem é a celebração do contrato de hospedagem, instrumento negocial que, mesmo firmado de modo informal, identifica as partes contratantes, individualizando-as e descaracterizando sua natureza coletiva.

A propósito, o Decreto nº 5.406/2005, artigo. 3º, estabelece:

"§ 1º Serviços de hospedagem são aqueles prestados por empreendimentos ou estabelecimentos empresariais administrados ou explorados por prestadores de serviços turísticos hoteleiros, que ofertem alojamento temporário para hóspedes, mediante adoção de contrato de hospedagem, tácito ou expresso, e cobrança de diária pela ocupação da unidade habitacional".

Os contratos de hospedagem fazem parte da realidade da hotelaria nacional, possuindo todos os

elementos de um contrato de adesão, na acepção do Código de Defesa do Consumidor e com "características dos contratos de execução contínua, pois se protraem no tempo, caracterizando-se pela prática ou abstenção de atos reiterados, solvendo-se num espaço mais ou menos longo de tempo". [13]

A exigência de celebrar contrato de hospedagem enfatiza, ainda mais, que os aposentos hoteleiros não se constituem em locais de freqüência coletiva, ante a individualização dos contratantes (hotel e hóspede).


3. POSICIONAMENTO JURISPRUDENCIAL

e há muito a jurisprudência de nossos Pretórios dissente sobre a possibilidade de cobrança de direitos autorais referentes à transmissão de músicas e sinais por aparelhos radiofônicos e televisão postos à disposição dos hóspedes de hotéis.

Como já anteriormente mencionado, na vigência da Lei nº 5.899/1973 o foco era a obtenção de lucro direto ou indireto na execução de obras musicais. A partir de 20 de junho de 1998, data de edição da Lei nº 9.610, a exigibilidade do pagamento de direitos autorais em quartos de hotéis passou a girar em torno da configuração de "locais de freqüência coletiva" e "locais de freqüência individual".

Inicialmente o Superior Tribunal de Justiça editou o enunciado da Súmula 63, sendo que, já em 2002, aquela Corte Superior emitiu a Súmula 261.

Antes de apreciar o atual posicionamento do Superior Tribunal de Justiça, importante analisar referidas Súmulas:

Súmula 63

"São devidos direitos autorais pela retransmissão radiofônica de musicas em estabelecimentos comerciais";

Súmula 261

"A cobrança de direitos autorais pela retransmissão radiofônica de músicas, em estabelecimentos hoteleiros, deve ser feita conforme a taxa média de utilização do equipamento, apurada em liquidação",

tendo a primeira sido editada na vigência da Lei nº 5.899/1973 e a segunda sob a égide da Lei nº 9.610/1998.

De esclarecer a inaplicabilidade da Súmula 63 aos quartos de hotel que disponibilizam aparelhos de rádio e televisão, posto que em tal situação ocorre "transmissão" de sinais ("difusão, por meio de ondas radioelétricas, de sons, ou de sons e imagens") e não "retransmissão" ("emissão, simultânea ou posterior, da transmissão de uma empresa de radiodifusão por outra"), nos exatos e precisos termos das Leis nºs 5.899/1973 (artigo 4º, incisos II e III) e 9.610/1998 (artigo 5º, incisos II e III).

Aliás, o próprio Superior Tribunal de Justiça tem conferido interpretação restritiva à Súmula 63, cumprindo trazer à baila, por seu forte teor elucidativo, o seguinte aresto, relatado pelo Ministro NILSON NAVES:

"Direito autoral. Retransmissão radiofônica de músicas. Hotel

Hotel não se enquadra na expressão ‘estabelecimento comercial’, objeto da Súmula 63 (‘São devidos direitos autorais pela retransmissão radiofônica de músicas em estabelecimento comerciais’), no que diz respeito aos seus quartos, ou apartamentos. Não se considera espetáculo público nem audição pública e transmissão de músicas pelo rádio, no recesso de quarto de hotel. A sintonização de emissora, nesse caso, não enseja o pagamento de direitos autorais". [14]

Nem se argumente que este acórdão foi proferido na vigência da Lei nº 5.899/1973, posto que a Súmula 63 foi editada igualmente sob a égide da LDA anterior, bem como pelo fato que ambas as leis contêm igual disposição quanto à interpretação restritiva (artigos 4º e, respectivamente, incisos II e III).

Saliente-se, pois, que a Súmula 63 refere-se expressamente à retransmissão, pelo que se afigura indevida sua aplicação aos casos recepção ou simples captação de sons e imagens em quartos de hotéis, em aparelhos independentes de rádio-receptor e televisão, manuseados diretamente pelos hóspedes, situação típica de transmissão de imagem.

Em verdade, inexiste qualquer compatibilidade dos quartos de hotel com o enunciado da Súmula 63, pois até mesmo pela sua afetação especial não podem ser equiparados a "locais de freqüência coletiva". Indevida a referência do artigo 29 da Lei 9.610/1998, considerando-os, por similitude, a locais públicos onde se utilizam e divulgam composições musicais, uma vez que os hóspedes têm integral e exclusivo controle de tais exibições, em seu único e incompartilhável proveito e unicamente a seu talante.

Já a Súmula 261, partindo do pressuposto que a ocupação dos quartos dos meios de hospedagem é variável ao longo do ano, instrumentaliza o processo de execução para conferir seguro parâmetro de apuração da cobrança.

Contudo, é igualmente inaplicável aos quartos de hotéis, quando ocorrer a transmissão direta de som e imagem de um transmissor (estação de rádio ou canal de televisão) para um receptor (equipamento disponibilizado para o hóspede) (Lei nº 9.610/1998, artigo 5º, incisos II e III).

Ademais, sendo o hóspede que decide sobre o uso, ou não, dos equipamentos disponibilizados, bem como escolhe o canal de televisão ou a estação de rádio, trata-se, indubitavelmente, de simples transmissão e não de retransmissão.

Nesse passo, impende lembrar que os negócios jurídicos sobre direitos autorais devem ser interpretados restritivamente (artigo 4º da Lei nº 9.610/1998), pelo que não há como se admitir para os quartos de hotéis a aplicação das Súmulas 62 e 261, que versam sobre "retransmissão radiofônica de musicas".

A observância do mencionado artigo 4º, que estabelece a exegese restritiva dos instrumentos negociais relativos aos direitos autorais, nada mais é que a interpretação exata, evitando-se a extensão ou a supressão de alguma coisa, precisão esta que deve ser alcançada com a avaliação dos elementos lógicos do negócio, sem qualquer dilatação de seu alcance. Ora, na hipótese, cogita-se de captação de transmissão de rádio ou televisão nos quartos de hotel, local que não é público e muito menos de freqüência coletiva.

A partir da vigência da Lei nº 9.610/1998, a maioria das decisões do STJ passou a se orientar no sentido de que os quartos de hotel constituem "local de freqüência coletiva", em razão da literalidade do artigo 68, parágrafo 3º, sendo assim exigível a cobrança de direitos autorais em tais dependências.

Acórdãos relatados pelo Ministro CARLOS ALBERTO MENEZES DIREITO nos conferem a razão desta mudança jurisprudencial:

"A Lei nº 9.610/98 não autoriza que a disponibilidade de aparelhos de rádio ou de televisão nos quartos de motéis e hotéis, lugares de freqüência coletiva, escape da incidência da Súmula nº 63 da Corte" [15] e

"Direitos autorais. Aparelhos de rádio e televisão em quarto de motel. Precedente da Segunda Seção. Multa do art. 109 da Lei nº 9.610/98.

Já assentou a Segunda Seção que a Lei nº 9.610/98 "não autoriza que a disponibilidade de aparelhos de rádio ou de televisão nos quartos de motéis e hotéis, lugares de freqüência coletiva, escape da incidência da Súmula nº 63 da Corte. (REsp nº 556.340/MG)" (grifamos). [16]

A partir de então o acórdão do Recurso Especial nº 556.340-MG [15] tornou-se paradigma para decisões sobre a exigibilidade de direitos autorais na disponibilidade de radio e televisão em quartos de hotel, como se afere das seguintes decisões daquele Colendo Sodalício:

"Direito autoral. Aparelhos de rádio e de televisão nos quartos de motel. Súmula nº 63 da Corte. Lei nº 9.610, de 19/2/98.

A Lei nº 9.610/98 não autoriza que a disponibilidade de aparelhos de rádio ou de televisão nos quartos de motéis e hotéis, lugares de freqüência coletiva, escape da incidência da Súmula nº 63 da Corte. Precedente da 2ª Seção: REsp 556.340-MG, Relator Ministro Carlos Alberto Menezes Direito, DJU de 11.10.2004" (grifos nossos); [17]

"A Segunda Secção deste Tribunal já decidiu serem devidos direitos autorais pela instalação de televisores dentro de quartos de hotéis ou motéis (REsp nº 556.340/MG).

O que motivou esse julgamento foi o fato de que a Lei nº 9.610/98 não considera mais relevante aferir lucro direto ou indireto pela exibição de obra, mas tão somente a circunstância de se ter promovido sua exibição pública em local de freqüência coletiva" (grifamos); [18]

"DIREITOS AUTORAIS. RÁDIO RECEPTOR E APARELHO DE TV DISPONÍVEIS AOS HÓSPEDES EM APOSENTOS DE HOTEL. EXIGIBILIDADE A PARTIR DA VIGÊNCIA DA LEI Nº 9.610, DE 19.2.1998.

Consoante a Lei nº 9.610, de 19.1.1998, a disponibilização de aparelhos de rádio e de TV em quartos de hotel, lugares de freqüência coletiva, sujeita o estabelecimento comercial ao pagamento dos direitos autorais. Precedente da Segunda Seção: Resp nº 556.340-MG" (os grifos não pertencem ao original). [19]

Em síntese, externa acentuar que o entendimento predominante no Superior Tribunal de Justiça é de que os quartos de hotel constituem local de freqüência coletiva, onde ocorrem exibições públicas, em razão de uma equivocada exegese do parágrafo 3º do artigo 68 da atual LDA.

Ao contrário do Superior Tribunal de Justiça, a jurisprudência predominante nos Tribunais de Justiça dos diferentes Estados orienta-se no sentido da inexigibilidade da cobrança de direitos autorais em razão da disponibilidade de rádio e televisão em quartos de hotel, como se afere dos seguintes acórdãos:

"Apesar de a Lei dos Direitos Autorais fazer referência aos hotéis como locais de freqüência coletiva, deve ser observado que a intenção da norma ao mencionar tal expressão - ‘freqüência coletiva’ - é caracterizar locais em que há circulação de público. Situação em que não se enquadra o quarto de hotel. Exegese do art. 68, caput e § 3º, da Lei nº 9.610/98" (TJ-RS); [20]

"O uso de aparelho de televisão de livre recepção, pelo hóspede de hotel, dentro do apartamento, não configura hipótese de cobrança de direitos autorais. Configuração de simples transmissão e não retransmissão. inteligência das súmulas 63 e 261 do STJ" (TJ-RS); [21]

"DIREITO AUTORAL. ECAD. RECEPÇÃO DE MÚSICA, VIA RÁDIO, EM

APOSENTOS PRIVADOS DE MOTEL, À INTEIRA DISPONIBILIDADE DO HÓSPEDE, O QUE DESCARACTERIZA A FIGURA DA EXECUÇÃO PÚBLICA DE OBRA MUSICAL PRESENTE NA SONORIZACAO AMBIENTAL" (TJ-RS); [22]

"A simples existência e/ou utilização de aparelhos receptores de transmissão radiofônica ou televisiva no interior dos aposentos destinados ao abrigo dos hóspedes de estabelecimentos hoteleiros não está sujeita ao pagamento de direitos autorais. Espaços destinados à preservação da privacidade dos seus ocupantes, insuscetíveis de se identificarem como locais de freqüência coletiva, ainda que eventualmente em seu interior sejam pelos referidos aparelhos difundidas obras artísticas para exclusivo deleite ou entretenimento dos respectivos ocupantes, segundo sua conveniência e vontade" (TJ-RJ); [23]

"O caráter privado dos quartos e apartamentos de hotéis exclui a obrigação de pagamento dos direitos autorais, Local que não incorpora natureza pública ou de freqüência coletiva, desobrigando a retribuição pela recepção de sinais de rádio ou televisão" (TJ-RJ); [24]

"DIREITO AUTORAL. OBRA MUSICAL. HOTELARIA. COBRANÇA INDEVIDA. SÚMULA 63 DO STJ. INAPLICABILIDADE

Quando não se equipara a estabelecimento comercial e não se aplica a Sumula 63 do STJ. Não se considera espetáculo, nem audição pública, a retransmissão de música pelo rádio nos apartamentos ou quartos de hotel, motel ou pensão. A simples sintonização da emissora não gera obrigação de pagar direitos autorais" (TJ-RJ); [25]

"Não é devida a cobrança de direitos autorais aos hotéis pela utilização de aparelhos de televisão, instalados nas unidades individuais do estabelecimento e a inteira disponibilidade do hóspede, sendo cediço que as emissoras já providenciaram o recolhimento da taxa cobrada sobre as músicas que porventura sejam transmitidas durante a programação televisiva" (TA-MG); [26]

"A existência de aparelhos de rádio nos quartos do hotel não autoriza a cobrança de direitos autorais. É devido o pagamento quando houver a retransmissão radiofônica, captada por uma central e distribuída aos quartos" (TA-MG); [27]

"Músicas em quarto de estabelecimento hoteleiro.

Não são devidos direitos autorais pela empresa hoteleira que coloca, em seus quartos , aparelhos receptores de rádio ou televisão, à disposição dos hóspedes" (TJ-SP); [28]

"Captação e Retransmissão de música radiofônica em ambientes de circulação pública (bares, pub, recepção e restaurantes do hotel) - contribuição devida. Local público e que não serve somente aos hóspedes na medida em que esta mão é condição sine qua non para ingresso em tais ambientes. Inadmissibilidade de comparação aos quartos do hotel que servem somente aos hóspedes" (TJ-SP); [29]

"A liberalidade conferida ao hóspede na utilização do aparelho de rádio ou televisão colocado a sua disposição no interior dos aposentos, afasta o caráter público da transmissão e desautoriza a cobrança de direitos autorais pelo ECAD" (TJ-PR); [30]

"Não é admissível a cobrança de direitos autorais se a sonorização é feita em local que não permite freqüência coletiva. A simples recepção de programas de emissoras de rádio, em recinto privado não equivale a espetáculo público, para os efeitos legais" (TJ-GO); [31]

"A existência de aparelho de rádio e televisão em quarto de hotel não autoriza a cobrança de direitos autorais, outro é o efeito quando se trata de retransmissão de sons e imagens nas áreas comuns de hotel" (TJ-ES); [32]

"Música em quarto de hotel. Direitos autorais. Sonorização ambiental realizada

por meio de captação de músicas transmitidas por emissoras de rádio e fitas cassete. Utilização facultada aos freqüentadores. Ilegalidade da incidência. Afastamento da Súmula 63 do Superior Tribunal de Justiça" (TJ-SC); [33]

"Os direitos autorais são devidos pela entidade hoteleira quando resta comprovado que esta seleciona as músicas oferecidas a seus hóspedes. Quando o hotel apenas disponibiliza a seus hóspedes um rádio para que estes selecionem a estação e estilo musical, não incide cobrança de direitos autorais" (TJ-MT). [34]


4. A NOVA LEI Nº 11.771/2008

Lei nº 11.771/2008, que dispõe sobre a Política Nacional de Turismo, estabelece:

"Art. 23 Consideram-se meios de hospedagem os empreendimentos ou estabelecimentos, independentemente de sua forma de constituição, destinados a prestar serviços de alojamento temporário, ofertado em unidades de freqüência individual e de uso exclusivo do hóspede, bem como outros serviços necessários aos usuários, denominados de serviços de hospedagem, mediante adoção de instrumento contratual, tácito ou expresso, e cobrança de diária." (grifamos)

A nova lei estabelece, de modo insofismável, que os quartos ou apartamentos de hotéis, pousadas, motéis, hospedarias e similares, denominados genericamente de meios de hospedagem, constituem "unidades de freqüência individual" e de "uso exclusivo do hóspede".

A Lei nº 11.771/2008 veio a sanar o absurdo de que um quarto de hotel seja local público, de freqüência coletiva.

Diante dos expressos e conclusivos termos fixados na Lei nº 11.771/2008, encontra-se o confronto de teses "freqüência coletiva" X "freqüência individual" para cobrança de direitos autorais em quartos de meios de hospedagem que disponibilizam rádios e televisão a seus hóspedes.

Mas, como compatibilizar as duas leis (LDA e Lei Geral do Turismo) ?

A resposta a esta questão encontra-se na Lei de Introdução ao Código Civil (Decreto-Lei 4.657/1942). Da combinação dos parágrafos 1º e 2º, do artigo 2º, da LICC resulta que uma disposição geral não se entende ter revogado a disposição geral já existente, podendo subsistir as duas, quando, não havendo entre elas incompatibilidade, a nova lei geral não disponha, inteiramente, sobre a matéria de que trata a disposição geral anterior.

A seu turno, o parágrafo 2º, do artigo 2º, da LICC ao preceitua que "a lei nova, que estabelece disposições gerais ou específicas a par das já existentes", não revoga nem modifica a lei anterior.

Tendo em vista a imprecisão desta regra legal a doutrina firmou os princípios que CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA assim expõe:

"Esta coexistência não é afetada quando o legislador vote disposições gerais a par das especiais ou disposições especiais a par das gerais já existentes, porque umas e outras não se mostram, via de regra, incompatíveis. Não significa isso, entretanto, que uma lei geral nunca revogue uma lei especial, ou vice-versa, porque nela poderá haver dispositivo incompatível com a regra especial, da mesma forma que uma lei especial pode mostrar-se com dispositivo inserto em lei geral. O que o legislador quis dizer (Lei de Introdução ao Código Civil, art. 2º, § 2º, Lei Geral de Aplicação das Normas, art. 4º, parág. único) foi que a generalidade dos princípios numa lei desta natureza não cria incompatibilidade com regra de caráter especial. A disposição especial irá disciplinar o caso especial, sem colidir com a normação genérica da lei geral, e, assim, em harmonia poderão simultaneamente vigorar". [35]

Como a Lei nº 11.771/2008 estabelece que os quartos de estabelecimentos de hospedagem são "locais de freqüência individual e de uso exclusivo do hospede" a inclusão de hotel no rol de "locais de freqüência coletiva" (artigo 68, parágrafo 3º, da Lei nº 9.610/1998), deve ser entendida apenas e tão somente aplicável às áreas onde as pessoas circulam livremente, tais como recepção, saguões, corredores, restaurantes, bares, salões para festas, recepções e conferências, áreas de lazer, piscina e garagem.

Convivem, assim, harmonicamente, o comando do artigo 68 da Lei nº 9.610/1998 e o artigo 23 da Lei nº 11.771/2008.

Nesse sentido de lembrar que o Colendo Supremo Tribunal Federal preconiza:

"HERMENÊUTICA. DISPOSITIVOS APARENTEMENTE ANTAGONICOS. SE POSSÍVEL, DEVE-SE OPTAR PELA INTERPRETAÇÃO QUE SE CONCILIA". [36]

Por outro lado a Lei nº 11.771/2008 restabeleceu a coerência lógica de que a disponibilização de aparelhos de rádio e televisão em quartos de meios de hospedagem não configura "representações e execuções públicas" ou mesmo possa ser considerado como "local de freqüência coletiva".


5. CONCLUSÕES

om a constitucionalização dos direitos autorais (CF, artigo 5º, XXVII), passaram os mesmos a integrar patrimônio exclusivo de seu titular, razão pela qual nada mais justo que se cobre pela transmissão de sons e imagens nos exatos e precisos termos legais.

Contudo, há de se considerar que, igualmente, goza de proteção da Carta Magna a intimidade e privacidade do hóspede em quarto de hotel, considerada que é como residência para efeitos de sua violação.

Ressalte-se, por outro lado, que o autor da obra já percebe o direito autoral pela exibição de sua produção artística em razão desta ser objeto de transmissão pela emissora de rádio ou de televisão, caracterizando-se como ilógico e de juridicidade questionável admitir a percepção deste mesmo direito no momento da recepção do sinal de transmissão. Assim, em razão de um fato gerador único estaria configurada uma verdadeira hipótese de bis in idem.

A pretensão de ser devida tal contribuição ao órgão fiscalizador, como atualmente consagrado no Superior Tribunal de Justiça, decorre da interpretação genérica conferida aos hotéis como sendo "lugares de freqüência coletiva".[15] (16)

Agora, referida lacuna legal restou suprida pela Lei nº 11.771/2008, que estabelece taxativamente que os quartos de hotel são LOCAIS DE FREQÜÊNCIA INDIVIDUAL e DE USO EXCLUSIVO DO HÓSPEDE.

In claris cessat interpretatio (dispensa-se a interpretação quanto o texto é claro), sendo que a Lei nº 11.771/2008 é suficientemente clara, taxativa e precisa dispensando maiores reflexões interpretativas.

Assim, como a nova lei conceitua de forma específica e objetiva os quartos de hotel, não há como prevalecer a referência genérica do artigo 68, § 3 da Lei nº 9.610/1998 a tais dependências de meios de hospedagem.

Nem se argumente a prevalência da Lei nº 9.610/1998 sobre a Lei nº 11.771/2008 em razão de sua especificidade ao tratar de direitos autorais, posto que ao apreciar a disponibilidade de rádio e televisão em quartos de hotel não há como deixar de considerar a conceituação legal desta dependência hoteleira.

Tem-se, então, que se impõe, como imperativo de Direito, a interpretação conjunta da Lei nº 9.610/1998 (artigo 68) e da Lei nº 11.771/2008 (artigo 23), para concluir que é indevida a cobrança de direitos autorais pela simples disponibilização de rádio e televisão em quartos de hotel.

Ademais, não há de se argumentar que a noção de público não pode ser confundida com a de privacidade, posto que, como já anteriormente assinalado, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal estabelece que o conceito de "casa"‘, para fins da proteção jurídica a que se refere o artigo 5º, inciso XI, da Constituição Federal engloba os quartos de hotel.

Nessa conformidade, a manutenção do entendimento de que quarto de hotel é "local de freqüência coletiva", ou mesmo como constatamos em alguns arestos, é "local público embora de hospedagem remunerada" constitui flagrante infringência à Lei nº 11.771/2008.

Ainda de assinalar que LDA é expressa ao fixar que os negócios jurídicos sobre direitos autorais são interpretados restritivamente, razão pela qual a prescrição de que quarto de hotel é local de freqüência individual deve ser interpretada em sua literalidade.

Em síntese, subsume-se que tendo a Lei nº 11.771/2008 consagrado que os quartos dos meios de hospedagem, denominação genérica de hotéis, motéis, pousadas e similares, constituem unidades de freqüência individual e de uso exclusivo do hóspede, o artigo 68, caput, da Lei nº 9.610/1998 devidamente integrado ao parágrafo 3º, para disciplinar "representações e execuções públicas", continua em plena vigência, sendo aplicável nestes estabelecimentos apenas às dependências de uso coletivo, qual sejam, em áreas em que as pessoas circulam livremente.

Desse modo, a cobrança de contribuição autoral em quartos de hotel, local de freqüência individual conforme o comando da Lei nº 11.771/2008, estaria a configurar verdadeira duplicidade, pois o fato gerador da contribuição é uno e as empresas de comunicação já pagam ao órgão controlador a contribuição devida em decorrência da transmissão de obras musicais.

Importante ressaltar que ao Juiz cabe aplicar o ordenamento jurídico sem repudiar a lei, que o integra harmoniosamente e "não obstante a flexibilidade e a liberdade de interpretar a norma, conforme demonstram os resultados da doutrina e da jurisprudência, a lei ainda é a base principal da razão jurídica". [37]

Por derradeiro, em razão do disposto na Lei nº 11.672/2008 (Lei dos Recursos Repetitivos), cabe lembrar que eventuais Recursos Especiais interpostos pelos estabelecimentos hoteleiros face à cobrança de direitos autorais, deverão referir-se ao fato de que a controvérsia não envolve jurisprudência dominante e nem a matéria já afeta ao Superior Tribunal de Justiça, sob a égide da Lei nº 9.610/1998, mas versa sobre interpretação conjunta da LDA com a Lei nº 11.771/2008, sendo que esta especificou que os quartos de hotel constituem local de freqüência individual.


6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

(1)DINIZ, Maria Helena, "Dicionário Jurídico Saraiva", São Paulo, 1988, Editora Saraiva, vol. II, pag. 888.

(2)Apelação Cível Processo 2003.001.03592, TJ-RJ, 11ª Câmara Cível, Relator Desembargador José Carlos de Figueiredo, julgado em 25.06.2003.

(3)Recurso Especial Processo REsp 95.577-RS, STJ, 4ª Turma, Relator Ministro Barros Monteiro, julgado em 28.1999, DJU de 13.12.1999.

(4)Recurso Especial Processo REsp 988/87, STJ, 3ª Turma, Ministro Ari Pargendler, julgado em 12.08.2008, DJU de 13.08.2008.

(5)BAPTISTA, Francisco de Paula. "Compêndio de Hermenêutica Jurídica", 1984, São Paulo, Editora Saraiva, pag. 27-28.

(6)MARINHO, Arthur de Souza, Sentença de 29 de setembro de 1944, "Revista de Direito Administrativo", vol. I, pag. 227.

(7)MAXIMILIANO, Carlos, "Hermenêutica e Aplicação do Direito", 18ª edição, Rio de Janeiro, Editora Forense, 1999, pag. 118/119.

(8)Apelação Cível, Processo 70009853607, TJ-RS, 14ª Câmara Cível, Relator Desembargador Sejalmo Sebastião de Paula Nery, julgado em 27.06.2006, DJ-RS de 05.07.20067.

(9)Apelação Cível Processo 107.243-4/3-00, TJ-SP, 2ª Câmara de Direito Privado, Relator Desembargador Theodoro Guimarães, julgado em 30.03.1999.

(10)Voto do Ministro Massami Uyeda no julgamento do Recurso Especial Processo REsp 740.358-MG, STJ, 4ª Tuma, Relator Ministro Aldir Passarinho Júnior, julgado em 07.12.2006, DJU de 19.03.2007).

(11)Recurso em Habeas Corpus Processo RHC 90.376-2-RJ, STF, 2ª Turma, Relator Ministro Celso de Melo, julgado em 03.04.2007, DJU de 18.05.2007.

(12)Embargos de Divergência em Recurso Especial Processo EResp 45.675-RS, STJ, 2ª Seção, Redator Ministro Waldemar Zveiter, Voto do Ministro Aldir Passarinho Júnior, julgado em 09.08.1999, DJ de 02.04.2001.

(13)DINIZ, Maria Helena, "Curso de Direito Civil Brasileiro", vol. III, São Paulo, Editora Saraiva, 2001, pags. 87/88.

(14)Recurso Especial Processo REsp 68.514, STJ, 2ª Seção, Relator Ministro Nilson Naves, julgado em 12.06.1996, DJU de 18.11.1996.

(15)Recurso Especial Processo REsp 556.340-MG, STJ, 3ª Turma, Relator Ministro Carlos Alberto Menezes Direito, julgado em 09.06.2004, DJU de 11.10.2004.

(16)Recurso Especial, Processo REsp 627.650-MG, STJ, 3ª Turma, Relator Ministro Carlos Alberto Menezes Direito, julgado em 08.11.2005, DJU de 19.12.2005.

(17)Agravo Regimental no Agravo de Instrumento Processo AgRg 957.081-RJ, Relator Ministro Aldir Passarinho Júnior. julgado em 18.03.2008, DJU de 12.05.2008.

(18)Recurso Especial Processo REsp 791,630, STJ, 3ª Turma, Relatora Ministra Nancy Andrighi, julgado em 15.08.2006, DJU de 04.09.2006.

(19)Recurso Especial Processo REsp 542.112-RJ, STJ, 4ª Turma, Relator Ministro Barros Monteiro, julgado em 01.09.2005, DJU de 17.10.2005.

(20)Apelação Cível, Processo 70006385033, TJ-RS, 9ª Câmara Cível, Relator Desembargador Sergio do Nascimento Cassiano, julgado em 15.09.2004.

(21)Apelação Cível Processo 70003292794, TJ-RS, 10ª Câmara Cível, Relator Desembargador Jorge Alberto Schreiner Pestana, julgado em 29.08.2002.

(22)Embargos Infringentes Processo 70000599498, TJ-RS, 3º Grupo de Câmaras Cíveis, Relator Desembargador Sérgio Pilla da Silva, julgado em 07.04.2000.

(23)Apelação Cível Processo 2000.001.11442, TJ-RJ, 14ª Câmara Cível, Relator Desembargador Walter Felippe D’Agostino, julgado em 14.08.2001, Ementário TJ-RJ 38/2001, nº 10, de 06.12.2001.

(24)Embargos Infringentes Processo 2004.005.00097, TJ-RJ, 2ª Câmara Cível, Relator Desembargador Antonio Saldanha Palheiro, julgado em 26.05.2004.

(25) Apelação Cível Processo 2000.001.05663, TJ-RJ, 10ª Câmara Cível, Relator Desembargador João N. Spyrides, julgado em 10.10.2000, Ementário TJ-RJ nº 32/2002, de 24.10.2002.

(26)Apelação Cível Processo 465692-4, TA-MG, 3ª Câmara Cível, Relatora Juíza Selma Marques, julgado em 23.02.2005, DJ-MG 05.03.2005.

(27)Apelação Cível Processo 2.0000.00.416117-5/000, TA-MG, 3ª Câmara Cível, Relator Juiz Maurício Barros, julgado em 24.03.2004, DJ-MG de 03.04.2004.

(28)Apelação Cível Processo 133.018-4/2-00, TJ-SP, Relator Desembargador Antonio Galvão Leite Cintra, julgado em 10.06.2003.

(29)Apelação Cível Processo 137.748-40, TJ-SP, 10ª Câmara de Direito Privado, Relator Desembargador Ruy Camilo, julgado em 02.09.2003.

(30)Apelação Cível Processo 0430.250-7, TJ-PR, 18ª Câmara Cível, Relator Desembargador José Carlos Dalacqua, julgado em 10.10.2007, DJ PR 7497.

(31)Apelação Cível Processo 29994-0/188, TJ-GO, 1ª Câmara Cível, Relator Desembargador Juarez Távora de Siqueira, julgado em 13.04.1993, DJ-GO de 27.041993.

(32)Apelação Cível Processo 024.94.011794-8, TJ-ES, 1ª Câmara Cível, Relator Desembargador Arnaldo Santos Souza, julgado em 03.04.2001, DJ-ES 08.05.2001.

(33)Apelação Cível Processo 1996.009660-4, TJ-SC, Relator Desembargador Jorge Henrique Schaefer Martins, julgado em 12.02.2003).

(34)Apelação Cível Processo 9147, TJ-MT, Relator Desembargador José Silvério Gomes.

(35)PEREIRA, Caio Mário da Silva, "Instituições de Direito Civil", Rio de Janeiro, Editora Forense, 1978, Vol. I, pag.124.

(36)Recurso em Mandado de Segurança Processo 15.825-PE, STF, 1ª Turma, Relator Ministro Lafauette de Andrada, julgado em 30;051066, DJU de 19.10.1966.

(37)CAMARGO, Margarida Lacombe de, "Hermenêutica e Argumentação: Uma Contribuição ao Estudo do Direito", Rio de Janeiro, 2001, Editora Renovar, pag. 260.



Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALVES, Claudio Roberto Alves de. Agora é lei: quarto de hotel é local de freqüência individual e de uso exclusivo do hóspede. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2108, 9 abr. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/12609. Acesso em: 3 maio 2024.