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O princípio da igualdade e as discriminações de gênero.

Análise da Diretiva Comunitária nº 2004/113 do Conselho Europeu e do Projeto de Lei Orgânica nº 3/2006 da Assembléia da República Portuguesa

O princípio da igualdade e as discriminações de gênero. Análise da Diretiva Comunitária nº 2004/113 do Conselho Europeu e do Projeto de Lei Orgânica nº 3/2006 da Assembléia da República Portuguesa

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Índice: Introdução; 1.Gênero e Discriminações de Gênero; 2. Igualdade, 2.1. Princípio da igualdade, 2.2. Princípio da Igualdade na Constituição da República Portuguesa de 1976, 2.3. Diferenciar para igualar; 3. Análise da Directiva Comunitária 2004/113 do Conselho Europeu, 3.1. Lei nº. 14/2008 da República Portuguesa; 4. Igualdade e Participação Política da mulher no Estado Português; 4.1. Lei Orgânica nº. 3/2006 da República Portuguesa; Considerações Finais; Bibliografia Consultada; Notas.


INTRODUÇÃO

A discriminação em razão do gênero, nomeadamente a que põe a mulher, de forma direta ou indireta, em posição de inferioridade, advém das relações desiguais historicamente impostas aos homens e mulheres ao longo dos tempos pelas sociedades. Esta discriminação subsiste e, portanto, ainda presenciamos situações em que se mostra evidente que a mulher não detém capacidade plena de atuação e realização.

Além disto, também vivenciamos uma sociedade que, em sua maioria, trata a discriminação contra as mulheres como fato normal, de forma que a maior parte das violações e abusos é mantida em silêncio pelas pessoas, não porque estas acreditem se tratar de algo grave, mas, exatamente pelo contrário. Tal posicionamento diante de tratamentos desiguais entre homens e mulheres torna as desigualdades mais recorrentes, e, por conseguinte, mais enraizadas nas sociedades.

Diante desta situação, o presente trabalho pretende abordar a utilização do princípio da igualdade e suas implicações no que tange ao combate das discriminações de gênero, analisando, em âmbito estadual, a Lei orgânica nº. 03 de 21 de agosto de 2006, ou Lei da Paridade, e numa perspectiva mais ampla a Diretiva Comunitária 2004/113 emanada pelo Conselho Europeu, que culminou na Lei nº. 14 de 12 de março de 2008 da República Portuguesa.

Para tanto, analisaremos as discriminações em função do gênero e o princípio da igualdade a fim de observar a evolução deste princípio no que se refere a combater estas discriminações de forma ativa e concreta.


1. GÊNERO E DISCRIMINAÇÕES DE GÊNERO

Inicialmente se faz necessária a distinção entre sexo e gênero. Sexo refere-se aos determinantes biológicos do masculino e do feminino e gênero se refere às características sociais que são atribuídas a cada sexo. O gênero é ainda analisado dentro dos processos de socialização e abrange os comportamentos psicológicos, sociais e culturais dos membros das sociedades.

Discriminação sexual, ou de gênero – conforme se convencionou chamá-la por abranger os âmbitos biológico, psicológico e social dos indivíduos - significa uma ação que trate diferentemente homens e mulheres em função do sexo, podendo esta discriminação ser direta, ou seja, intencional e objetiva, ou indireta, isto é, que surge como conseqüência de um ato não discriminatório.

A discriminação de gênero que atinge as mulheres é a mais recorrente e, em conseqüência, a que recebe maior atenção dentro do tema. As teorias feministas surgiram para combater estas discriminações e preocupam-se, de forma geral, com as hierarquias dominantes que colocam a mulher em situação de inferioridade.

O fato é que o histórico de subalternização e discriminação da mulher data de milhões de anos, desde as sociedades primitivas, passando pelas antigas Roma e Grécia, chegando à modernidade. Entretanto, há dois marcos históricos significativos para a história das discriminações de gênero no ocidente, quais sejam, a revolução francesa e a revolução industrial. Consideram-se marcos significativos porque foram de grande relevância para o desenvolvimento das sociedades e do papel do ser humano dentro destas sociedades.

A revolução francesa de 1789, que pregava a igualdade, liberdade e fraternidade para todos e que foi essencial ao ser humano por difundir o antropocentrismo, não incluiu a mulher no conceito de cidadã estabelecido na declaração dos direitos do homem e do cidadão de 1973. Não obstante ter propiciado a inclusão política da burguesia, a revolução não se preocupou em promover as igualdades de forma mais elaborada.

Sobre esta declaração, o autor Celso Ribeiro Bastos em seu Curso de Direito Constitucional afirma que: "Naquela ocasião conhecia-se à perfeição o endereço do preconceito. Tratava-se de abolir a sociedade estamental então vigorante. O que se pretendia era fazer ruir um castelo de privilégios erigido a partir da inserção do indivíduo numa determinada classe social". (Bastos apud ATCHABAHIAN, 2006, p. 82).

Já na revolução industrial, em Inglaterra, do final no século XVIII, as mulheres passaram a integrar o mercado de trabalho, ganhando o equivalente a metade do salário que ganhavam os homens, para desempenhar as mesmas funções, no mesmo período de tempo; isto, por serem vistas como mão-de-obra inferior. Esta revolução promoveu a inclusão de muitas massas no processo econômico e, ao incluir as mulheres de forma sub-remuneradas findou por reproduzir - neste processo de assimilação de mão-de-obra industrial - o que já se tinha verificado numa revolução política precária.

O quadro de inferioridade e opressão do gênero feminino ainda é vivido, a despeito de mudanças significativas como a crescente inserção da mulher no mercado de trabalho masculino, e, mais recentemente, a possibilidade de participação do processo político democrático por meio do voto.

Em resposta às discriminações praticadas contra as mulheres surgiram os direitos das mulheres, que são reivindicados há séculos e incluem-se nos chamados direitos das "minorias" juntamente com os dos negros, dos índios, das crianças, dentre outros. Este direito das mulheres pretende de uma forma geral, chamar a atenção para a consideração de objetivos relevantes para as mulheres a serem refletidos em processos legislativos [01].

É também em resposta a estas reivindicações, e a tantas outras relacionadas ao exercício dos direitos fundamentais, que surgem os instrumentos de proteção dos direitos do homem. Neste sentido, a Organização das Nações Unidas (ONU) realizou a 18 de dezembro de 1979 a "Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação contra as Mulheres", com o objetivo de coibir qualquer distinção, exclusão ou restrição que possa anular o exercício de direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais das mulheres. Convém ressaltar que Portugal ratificou esta convenção no ano seguinte por meio da Lei nº. 23/80.


2. IGUALDADE

O princípio da igualdade nem sempre foi compreendido tal qual o é atualmente. O conceito e o conteúdo do princípio passaram por diversos entendimentos até obtermos a concepção alargada que temos hoje, qual seja, a de um princípio que age para garantir a igualdade.

Deste modo, faz-se necessária uma breve abordagem do histórico e da ampliação do conceito de igualdade no que se refere a sua atuação e seu conteúdo como princípio norteador dos direitos e liberdades.

O marco inicial deste breve histórico é a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1793, proclamada após a revolução francesa, ocasião em que o princípio foi visto, inicialmente, sob sua acepção formal, chegando a ser confundido com "prevalência da lei", e num segundo momento como "pura proibição de arbítrio ou discriminações" no sentido de limite negativo de controle do poder público.

Somente numa 3ª etapa, durante o "estado social de direito", passou a ser considerado o aspecto material do princípio no que se refere a trabalhar positivamente, ou ativamente, para se obter a igualdade como fim – seria o limite interno da atuação do poder público [02].

O princípio da igualdade como prevalência da lei foi assim entendido porque a igualdade foi consagrada na declaração de 1789 com valor absoluto. O princípio de que "todos os homens são iguais" referia-se a uma igualdade sem reservas, o que levava a compreensão de que o tratamento da lei deveria ser o mesmo para todos, sem considerar o conteúdo do tratamento. A igualdade consistia na exigência de generalidade da lei, estando, por conseguinte, submissa ao princípio da legalidade.

A compreensão do conteúdo da igualdade no princípio de que "todos são iguais perante a lei" foi evoluindo, e chegou-se a uma relativização do conceito de igualdade, de forma que esta passou a ser vista como proibição de arbítrio ou de discriminações, sendo evidente a busca por critérios materiais, justos e razoáveis na determinação da igualdade em função de certo tratamento jurídico.

Há aqui um nítido alargamento da compreensão do princípio da igualdade. Entretanto, pensar a igualdade como limite negativo de controle do poder público poderia acarretar uma idéia equivocada de que a justiça se contém na intenção do próprio tratamento jurídico, tal como os revolucionários acreditaram que ela se continha na generalidade da norma [03].

Na seqüência, e considerando o que fora acima mencionado, surge outro entendimento do princípio da igualdade que buscar aliar os entendimentos da igualdade já consagrados nas duas fases que o antecedem a uma ânsia maior de justiça. Há aqui a crença de que o princípio da igualdade já possui intencionalidade própria, uma intenção normativa que busca a realização da justiça, um limite interno de atuação do poder público corretor de violações às liberdades.

O princípio da igualdade, nesta terceira fase, considera os critérios razoáveis como meios de se chegar a um fim pretendido, preocupando-se com a finalidade de alcançar a igualdade e se obter justiça. Trata-se de igualdade da lei.

Esta última fase mostrou a face material da igualdade ao admitir que esta pode deixar a posição passiva de "igualdade perante a lei" e passar a uma posição ativa de igualdade de fato, de oportunidades, ou ainda igualdade como realizadora de justiças efetivas.

Esta dita igualdade material, segundo a professora Maria Glória Garcia, é composta por uma igualdade social, que deve ser obtida através de valores ou categorias referenciais vigentes em cada momento numa determinada sociedade. Desta forma, sempre se fará necessário saber qual a igualdade social que se pretende atingir por meio da lei em um dado momento.

Para tanto, a autora afirma que deve haver uma força combinada da igualdade formal com os valores que a sociedade assimilou e para a qual todos, em igual medida, contribuíram; o que configura a "dimensão participativa da igualdade". O que a autora pretende deixar claro é que o conceito de igualdade formal não pode ser sucumbido por completo pelo conceito de igualdade material, devendo, portanto, existir uma mistura dos dois conceitos para se obter alguma justiça. (Estudos sobre o Princípio da Igualdade. 2005. p. 42).

Ou seja, deve-se considerar a igualdade aliando suas acepções jurídico-normativa e jurídico-política. Deve-se buscar a igualdade da aplicação da lei e a igualdade da própria lei. Somente partindo deste entendimento ampliado é que se obtém um princípio mais eficaz, seguro e hábil a impedir as diferenciações pelas leis.

Após análise do caminho percorrido pelo princípio da igualdade, chegamos aos seguintes conceitos: Igualdade formal é a igualdade na lei e perante a lei, e se refere a igualdade de tratamento; e Igualdade material consiste na concretização da igualdade ou redução da desigualdade e está ligada a idéia de igualdade de oportunidades. Estes conceitos serão assim considerados para fins do presente trabalho.

2.2. Princípio da Igualdade na Constituição da República Portuguesa de 1976

No ano de 1974 o Estado Português derrubou o regime salazarista libertando-se da ditadura existente e restituindo as liberdades públicas. Neste contexto é proclamada a Constituição da República Portuguesa de 1976, que faz menção à igualdade em diversos dispositivos de seu texto. Inicialmente, nos fornece a idéia geral de igualdade em seu artigo 13º, inserindo o princípio da igualdade no rol dos princípios ordenadores do exercício dos direitos fundamentais, e enuncia que:

1. Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei.

2. Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas e ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual.

Da leitura deste artigo 13º pode-se perceber que a base constitucional do princípio da igualdade na Constituição Portuguesa é a igual dignidade social de todos os cidadãos, e ainda, que o princípio está inserido no documento com as dimensões democrática e social inerentes a um Estado de direito. Deste modo, o princípio deve impor a igualdade de aplicação da lei, garantir a igualdade de participação na vida política da coletividade e o acesso a cargos e funções públicas, e exigir a eliminação das desigualdades de fato [04].

Ao referir-se à igualdade perante a lei, a Constituição adota a forma clássica do princípio, mas não restringe seu âmbito de atuação à igualdade de aplicação da lei, alargando-o de maneira a que o princípio discipline toda a atividade pública nas suas relações com os cidadãos, além de se impor – como proibição de discriminação – aos particulares, de acordo com o artigo 18º, nº. 1 da Constituição.

O próprio artigo 13º, em seu nº. 2, já adota o conceito mais amplo do princípio da igualdade ao proibir as discriminações em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas e ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual.

Esta proibição não é absoluta e não veda diferenciações de tratamento. A Constituição indica, ela mesma, um conjunto de fatores de discriminação ilegítimos [05]. As diferenças de tratamento não serão discriminatórias quando houver justificativa razoável para tal, ou seja, quando houver correlação lógica entre o fator de discrímen e a desequiparação procedida.

Ainda no que se refere à igualdade de direitos de homens e mulheres, a Constituição reconhece um considerável número de direitos fundamentais de igualdade no sentido de proibir discriminações, a saber:

- O artigo 9º relativo às tarefas fundamentais do Estado, que emprega a palavra igualdade ao definir que o Estado deve "promover (...) a igualdade real entre os portugueses" (artigo 9º, d) e "promover a igualdade entre homens e mulheres" (art. 9º, h). Vale salientar que a norma da alínea h foi incluída no texto constitucional na quarta revisão constitucional de 1997, e representou um avanço no que concerne ao combate às discriminações de gênero.

- O artigo 10º, nº. 1, que confere ao povo o poder político por meio do "sufrágio universal igual, direto, secreto e periódico..".

- O artigo 26º, nº. 1, que reconhece a todos os "direitos à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade (...) e à proteção legal contra quaisquer formas de discriminação.". Esta norma também foi incluída pela quarta revisão constitucional de 1997.

- O artigo 36º, quem em seus números 1, 3 e 4 estabelece a igualdade de condições para constituir família, contrair casamento, bem como a igualdade de direitos e deveres dos cônjuges em relação a educação dos filhos, além de proibir qualquer ato discriminatório destinado aos filhos nascidos fora do casamento.

- O artigo 47º, nº. 2, que estabelece que "todos os cidadãos têm o direito de acesso à função pública, em condições de igualdade e liberdade..".

- O Artigo 58º, nº. 2, b, que consagra como direito social o direito ao trabalho, e diz que o Estado deverá promover "a igualdade de oportunidades na escolha da profissão ou género de trabalho e condições para que não seja vedado ou limitado, em função do sexo, o acesso a quaisquer cargos, trabalhos ou categorias profissionais.".

No que tange aos direitos de participação política e de participação na vida pública, a Constituição ainda estabelece:

- O artigo 48º, números 1 e 2, que tratam da participação na vida pública e determinam que todos os cidadãos têm o direito de tomar parte na vida política e na direção dos assuntos públicos do país, bem como, de serem esclarecidos e informados sobre atos do Estado e demais entidades públicas e dos assuntos públicos em geral.

- O artigo 50º, nº. 1, que estabelece que "todos os cidadãos têm o direito de acesso, em condições de igualdade e liberdade, aos cargos públicos.".

- O artigo 109º que dispõe sobre a igualdade de acesso a cargos políticos ao determinar que "a participação directa e activa de homens e mulheres na vida política constitui condição e instrumento fundamental de consolidação do sistema democrático, devendo a lei promover a igualdade no exercício dos direitos cívicos e políticos e a não discriminação em função do sexo no acesso a cargos políticos".

- E o artigo 113º, nº. 3, b, que trata da igualdade de oportunidades e de tratamento das diversas candidaturas.

No que se refere à discriminação de gênero, a Constituição, em seu texto inicial de 1976, não continha a explicitação da igualdade de direitos de homens e mulheres e não incluía a proibição de discriminação em função do sexo no rol de discriminações proibidas pelo artigo 13º, nº. 2.

Somente com o advento da quarta revisão constitucional, ocorrida em 1997, é que foi dada especial atenção a esta dimensão da igualdade, e foram, portanto, realizadas inclusões e mudanças nos artigo 9º, h, 26º, nº. 1 e 109º, no sentido de proibir a discriminação de gênero no exercício de direitos cívis e políticos.

As mudanças trazidas pela mencionada revisão constitucional foram de extrema relevância para a promoção estatal da igualdade entre homens e mulheres. Entretanto, a mudança mais significativa neste sentido foi realizada no texto do artigo 109º, e consiste na substituição do termo cidadãos da redação anterior pela frase homens e mulheres, de modo que agora ambos têm o direito constitucional expresso à participação direta e ativa na vida pública.

Esta é a única norma constitucional em que não há referência a cidadãos. Conforme a autora Maria Lúcia Amaral "o fato de o termo ter sido substituído pela frase homens e mulheres; - aliado ao fato de tal frase aparecer a propósito da enunciação de um princípio que cumpre uma função de concretização imediata do princípio democrático - leva a crer que o legislador de revisão tenha introduzido neste domínio mais do que uma simples reforma". (O Princípio da Igualdade na Constituição Portuguesa. In Estudos em homenagem ao professor doutor Armando M. Marques Guedes, 2004, p. 47).

Ainda segundo a autora, a mudança de termos acarretou numa modificação identitária do conceito constitucional de povo, porque este a partir de então não será mais compreendido como um conceito construído sem acepção de pessoas e com abstração das suas diferenças, mas sim como uma categoria estruturalmente composta pela diversidade dos gêneros [06].

Ademais, vale ressaltar que o artigo 109º ao falar da participação de homens e mulheres na vida política deixa claro que as discriminações positivas a favor das mulheres e em prol da igualdade de gêneros serão admitidas e recepcionadas pela Constituição.

2.3. Diferenciar para Igualar

Dentro do tema discriminação de gêneros é essencial abordar as medidas estatais e sociais que buscam reduzir e erradicar estas discriminações. Com o objetivo de promover a igualdade entre homens e mulheres, destinam-se, em sua maioria, a favorecer o gênero feminino pelo fato de as mulheres serem as maiores vítimas de discriminações em razão do sexo.

É neste sentido que o princípio da igualdade não pode ser considerado um princípio estático porque é passível de atuação nas sociedades através de mecanismos legais específicos. As ações afirmativas ou discriminações positivas fazem parte destes mecanismos que pretendem colocar todos os membros da sociedade em igualdade de condições.

São medidas privadas ou políticas públicas que objetivam beneficiar determinados segmentos da sociedade, sob o fundamento de lhes oferecer as mesmas condições de competição em virtude de terem sofrido discriminações ou injustiças históricas [07].

São medidas temporárias, e, portanto, seus efeitos são extintos quando atingidos os resultados a que se pretendem, ou seja, quando a sociedade por si só continue com o processo de tratarem-se igualmente cada vez mais. As medidas funcionam da seguinte forma: tratar igual no presente, em virtude das desigualdades históricas vividas no passado e que ainda subsistem, com o objetivo de reduzir ou eliminar as discriminações para que as próximas gerações vivam em uma sociedade mais justa e igualitária.

Tais ações têm origem com o Civil Right Act de 1964 nos Estados Unidos da América e tiveram pujança a partir da década de 70, nomeadamente a partir de 1971 no caso Swan x Charlotte Meckenburg Board of Education, ocasião em que a suprema corte americana defendeu o uso das quotas raciais como forma de acelerar o processo de integração racial nas escolas.

A partir de então, o modelo das affirmative actions norte-americanas vem sendo reproduzido nos chamados "Estados democráticos de direito" com a finalidade de conferir igualdade de oportunidades aos menos favorecidos histórica e culturalmente.

Não se pode olvidar o quanto a atuação estatal - que traz consigo a atuação do princípio da igualdade – avançou e passou a atuar significativamente para garantir aos homens e mulheres o exercício de seus direitos e liberdades de forma plena. Segundo a professora Flávia Piovesan, o alvo de tais políticas não é mais "o indivíduo genérica e abstratamente considerado, mas o indivíduo especificado" (Piovesan apud ATCHABAHIAN, 2006, p. 165/166).

Contudo, a despeito destas medidas trabalharem em prol da igualdade, existem inúmeras reservas a sua utilização. As principais críticas são as de que reforçam socialmente padrões culturais de forma estereotipada, geram injustiças e desconfortos sociais, limitam liberdades, dentre outras. Saliente-se que maior crítica às ações afirmativas é a que questiona a razoabilidade do critério que enseja uma ação especial desta.

Ocorre que, por vezes, a classe beneficiada pela discriminação positiva não considera que viva em situação de desvantagem, ou que sofra discriminações, de modo que torna-se um tanto quanto árdua a tarefa de justificar o critério – que deve ser razoável – em relação a desigualdade a ser estabelecida.

Segundo o professor Celso Antonio Bandeira de Mello, "é agredida a igualdade quando o fator diferencial adotado para qualificar os atingidos pela regra não guarda relação de pertinência lógica com a inclusão ou exclusão no benefício deferido ou com a inserção ou arrendamento do gravame imposto." (Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade, 2007, p. 38).

Em defesa das ações afirmativas, o professor J.J. Gomes Canotilho afirma que o princípio da igualdade tem a obrigação de diferenciar para se compensar a desigualdade de oportunidades, segundo ele "o princípio da igualdade tem uma função social, o que pressupõe o dever de eliminação ou atenuação, pelos poderes públicos, das desigualdades sociais, econômicas e culturais, a fim de se assegurar uma igualdade jurídico-material." (Constituição da República Portuguesa Anotada, 2007, p. 341/342).

Ainda no que tange às discriminações positivas, a Constituição Portuguesa de 1976, com a revisão constitucional de 1997, que modificou os artigos 9º, h, 26º, nº. 1 e 109º, passou a admitir ações positivas com vista a reduzir e erradicar as discriminações de gênero e a aumentar a participação política das mulheres.

Outro modelo de medidas estatais que visam à redução de desigualdades de gênero é o modelo de paridade. Este modelo foi expressamente defendido na recomendação nº 1269 da Assembléia Parlamentar do Conselho da Europa sobre os direitos das mulheres, que afirmou o seguinte:

Tendo em conta que a igualdade formal e informal entre homens e mulheres é um direito fundamental do ser humano, tendo em conta que as mulheres representam mais da metade da população: a democracia exige a paridade na representação e no governo das nações.

A primeira idéia da paridade foi adiantada pela feminista francesa Hubertine Auclert, que endereçou uma carta ao prefeito informando-lhe que não pagaria seus impostos enquanto não tivesse o direito de votar. Na ocasião, a reclamação da feminista não surtiu qualquer efeito, de maneira que a mesma, alguns anos mais tarde, exigiu novamente seu direito ao sufrágio dito "universal" e acrescentou a sugestão de que as assembléias fossem compostas também por mulheres.

A idéia de paridade foi se desenvolvendo e a reclamação de que às mulheres devem ser dadas as mesmas condições que são conferidas aos homens também foi aumentando. Deste modo, consolidou-se o modelo de paridade, o qual envolve uma intervenção jurídica duradoura correspondente à defesa de uma presença igualitária, neutral de homens e mulheres, em locais de trabalho ou em órgãos políticos.

O objetivo é fazer refletir nos diferentes enquadramentos sociais e, particularmente, no trabalho e na política, a presença de homens e mulheres. Afasta-se, neste modelo, o princípio do mérito relativo dos intervenientes do processo laboral ou político para fazer entrar por inteiro a natural igualdade entre mulheres e homens [08].

Os dois modelos aqui analisados – as ações afirmativas e o modelo da paridade – funcionam de formas diferentes. As primeiras por meio de legislações específicas ou quotas e o segundo, geralmente, por meio de listas contendo uma ordem paritária: um homem, uma mulher, e assim por diante.

Entretanto, a despeito disto, ambos os mecanismos pretendem acelerar o processo de equalização – e aqui nos reportamos a igualdade entre mulheres e homens – partindo do pressuposto de que as desigualdades exigem medidas diferenciadoras para que sejam alcançadas igualdades concretas.


3. DIRETIVA COMUNITÁRIA 2004/113 DO CONSELHO EUROPEU

Diretiva Comunitária é um ato normativo que pode ser emanado tanto pelo Conselho da União Européia, quanto pela Comissão da União Européia. Consiste em uma decisão coletiva aprovada pelos Estados-membros do órgão expedidor do documento, que obriga estes Estados a aplicarem a diretiva, mas os deixa livres para escolher a forma e os meios que serão utilizados para se chegar ao objetivo traçado pela mesma.

Inicialmente, a Comissão, em comunicação sobre a Agenda de Política Social, anunciou a sua intenção de propor uma diretiva relativa à discriminação em função do sexo fora da esfera laboral. Em resposta, o Conselho Europeu reunido em Nice em Dezembro de 2000, exortou a Comissão a reforçar os direitos relacionados com a igualdade, adotando uma proposta de diretiva relativa à promoção da igualdade entre homens e mulheres em áreas que não o emprego e a atividade profissional.

Deste modo, a diretiva Comunitária 2004/113 foi aprovada em 13 de dezembro de 2004 pelo Conselho Europeu com o objetivo de "aplicar o princípio de igualdade de tratamento entre homens e mulheres no acesso a bens e serviços e seus fornecimentos" sob o argumento de que as discriminações em função do sexo ocorrem não só em âmbito trabalhista, mas igualmente em áreas fora do mercado de trabalho.

A diretiva baseia-se nos artigos 2º, 3º, nº. 2 e 6º do Tratado da Comunidade Européia. Tais artigos trazem, em linhas gerais, como missão da Comunidade Européia eliminar as desigualdades e promover a igualdade entre homens e mulheres, além do respeito às liberdades e direitos fundamentais dos cidadãos. Também tem por base preceitos da Carta dos Direitos Fundamentais da União Européia que proíbem a discriminação em razão do sexo e exigem a garantia da igualdade entre homens e mulheres em todos os domínios (artigos 21º e 23º).

Considerando que a discriminação em função do sexo pode ser um obstáculo à plena e bem sucedida integração dos homens e das mulheres na vida econômica e social, a diretiva em questão busca a igualdade entre homens e mulheres no acesso a bens e serviços e seus fornecimentos, proibindo, para tanto, as discriminações direta e indireta.

Consoante seu artigo 2º, entende-se por discriminação direta aquela em que, em função do sexo, uma pessoa é sujeita a tratamento menos favorável do que aquele que é, tenha sido, ou possa vir a ser dado, a outra pessoa em situação comparável.

A discriminação indireta, por sua vez, acontecerá sempre que uma disposição, critério ou prática aparentemente neutra, coloque pessoas de um dado sexo numa situação de desvantagem comparativamente com pessoas de outro sexo. Se esta disposição, critério ou prática se justificar por um objetivo legítimo e os meios utilizados para alcançá-lo forem adequados e necessários, não estará caracterizada a discriminação em questão.

O artigo 3º estabelece o âmbito de aplicação da diretiva, sendo esta destinada a "todas as pessoas que forneçam bens e prestem serviços disponíveis ao público, independentemente da pessoa em causa, tanto no setor público quanto no setor privado, nomeadamente organismos públicos, e que sejam oferecidos fora do quadro da vida privada e familiar e das transações efetuadas nesse contexto.".

Para efeitos da diretiva, bens devem ser entendidos na acepção das disposições do Tratado que institui a Comunidade Européia relativas à livre circulação dos bens, e os serviços devem ser entendidos na acepção do artigo 50º do referido Tratado.

Além dos artigos já mencionados, também merecem destaque os seguintes artigos:

- O artigo 3º, nº 2, que trata da proibição da utilização do sexo como critério no cálculo dos prêmios e prestações para fins de seguros e de outros serviços financeiros. Para garantir a igualdade de tratamento entre homens e mulheres a consideração do sexo, enquanto fator atuarial, não deve resultar numa diferenciação nos prêmios e benefícios individuais.

- O artigo 4º, nº. 1, estabelece que para os efeitos da diretiva, o princípio da igualdade de tratamento entre homens e mulheres significa a proibição das discriminações diretas - incluindo o tratamento menos favorável às mulheres por motivos de gravidez e maternidade - e indiretas.

- O artigo 5º, nº. 3, que exige a garantia da repartição eqüitativa entre homens e mulheres dos custos das coberturas ligados à gravidez e à maternidade.

- O artigo 6º, que permite a utilização de ações positivas a fim de garantir, na prática, a plena igualdade entre homens e mulheres.

- O artigo 13º, que determina que os Estados-membros devem tomar as medidas necessárias para assegurar que o princípio da igualdade de tratamento seja respeitado relativamente ao acesso a bens e serviços e seu fornecimento, e que sejam suprimidas as disposições legislativas, regulamentares e administrativas contrárias ao princípio da igualdade de tratamento, e, ainda, declaradas nulas as disposições contrárias ao princípio da igualdade de tratamento que figurem em contratos, regulamentos internos de empresas ou estatutos de associações com ou sem fins lucrativos.

- O artigo 14º, pelo qual os Estados-Membros se obrigam a determinar um regime de sanções aplicável às violações das disposições da diretiva, e a adotar as medidas necessárias para assegurar a aplicação dessas disposições. Estas sanções têm que ser proporcionadas, dissuasivas e efetivas e devem ser aplicadas quando do incumprimento das obrigações decorrentes da diretiva.

As normas da diretiva funcionam para seus destinatários, os Estados-membros, como parâmetros mínimos, de modo que estes podem introduzir ou manter as disposições de proteção do princípio da igualdade entre homens e mulheres mais favoráveis do que as estabelecidas na diretiva.

Além disto, os Estados-membros devem realizar a transposição das normas da diretiva para seus respectivos ordenamentos jurídicos. Somente a partir desta transposição é que os cidadãos poderão gozar dos direitos reconhecidos na diretiva.

3.1. Lei nº. 14/2008 da República Portuguesa

No âmbito do Estado Português, a presente diretiva ensejou o surgimento do Projeto de Lei nº. 160/x de setembro de 2007, de iniciativa do governo, que fora elaborado nos moldes da diretiva e que, posteriormente, deu lugar à Lei nº. 14 de 12 de março de 2008.

Na transposição das normas da diretiva a Lei nº. 14/2008 estabeleceu seu objeto, a saber, "prevenir e proibir a discriminação, direta e indireta, em função do sexo, no acesso a bens e serviços e seu fornecimento e sancionar a prática de atos que se traduzam na violação do princípio da igualdade de tratamento entre homens e mulheres." (artigo 1º).

A Lei em comento reproduziu as normas da diretiva, indo além em alguns dispositivos como a proteção da mulher em situação de gravidez, ao estabelecer a proibição de pedidos de informação relativamente à situação de gravidez de uma mulher demandante de bens e serviços, salvo por razões de protecção da sua saúde (artigo 5º); e como o estabelecimento de penas, contra-ordenações, sanções acessórias – além das principais – e até sanções pecuniárias a serem aplicadas aos que praticarem a discriminação enunciada na norma (artigos 10º, 12º, 13º e 15º).

Da leitura da diretiva 2004/113 e da Lei nº. 14/2008 se depreende que o Conselho Europeu e o Estado Português preocupam-se com os evidentes problemas decorrentes das discriminações praticadas em razão do sexo e que, para erradicá-las se dispõem a um nível comum e elevado de proteção dos direitos e liberdades de homens e mulheres.

Também fica evidente a enfática e maior proteção destinada à mulher, o que demonstra que o feminino ainda é o gênero mais discriminado fora do âmbito laboral, e que somente ampliando a proteção das mulheres é que se pode conceber uma real igualdade entre gêneros.


4. IGUALDADE E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA DA MULHER NO ESTADO PORTUGUÊS

Partindo para uma análise mais especifica das discriminações de gênero que atingem o feminino, vamos analisar a participação política da mulher nos órgãos políticos portugueses e, em seguida, a Lei nº. 3 de 2006, mais conhecida por Lei da Paridade, cujo objetivo é aumentar o número de mulheres nas listas de candidaturas da Assembléia da República, do Parlamento Europeu e das autarquias locais.

A história das mulheres portuguesas com o direito de votar data de 1911 quando Carolina Beatriz Ângelo, licenciada em medicina e pioneira no exercício da prática de operações cirúrgicas aproveitou a formulação legal que se referia ao direito a voto dos que sabiam ler e escrever e eram chefes de família, para requerer a sua inclusão nos cadernos eleitorais, uma vez que era viúva e tinha uma filha a cargo.

O Ministro do Interior de então, António José de Almeida, recusou essa inclusão. Tendo recorrido da recusa, viu a sua pretensão colher decisão favorável da 1ª vara cível de Lisboa que ordenou a sua inclusão nos cadernos eleitorais. Tornou-se, assim, a primeira mulher a exercer o direito de voto em Portugal e em qualquer país da Europa do Sul. Convém salientar que após este fato a legislação eleitoral foi alterada no sentido de especificar que o direito ao voto pertencia apenas aos homens chefes de família.

Somente em 1931, nos primórdios do período Salazarista, foi concedido às mulheres o direito de votar por meio do Decreto-lei 19694 de 05 de maio de 1931. Este direito era restrito às mulheres que eram chefes de família e só poderia ser exercido para eleições a cargos políticos de juntas de freguesias.

Com a fundação da democracia e a conseqüente aprovação da Constituição democrática Portuguesa de 1976, foram criadas as condições jurídicas e políticas para que todos os cidadãos portugueses obtivessem o pleno direito de votar e de serem eleitos para cargos políticos.

Todavia, o texto inicial da Constituição não cuidou da promoção da igualdade entre homens e mulheres no âmbito da participação política, nomeadamente na ocupação de cargos políticos. As revisões de 1989 e 1992 que se seguiram a esta também não acrescentaram qualquer norma deste cunho no texto constitucional.

Foi, de fato, a Revisão Constitucional de 1997 que introduziu grandes aditamentos neste sentido. Conforme já fora explanado anteriormente neste trabalho, tornou-se tarefa fundamental do estado promover a igualdade entre homens e mulheres (artigo 9º, h) e consagrou-se, no artigo 109º, a participação política direta e ativa de homens e mulheres na vida política, devendo a lei promover a igualdade no exercício dos direitos cívicos e políticos e a não discriminação em função do sexo no acesso a cargos políticos (grifo meu).

Na nova tarefa do Estado viu-se uma reformulação do próprio conceito de democracia política [09], bem como o reconhecimento da exigência de uma democracia que não fosse só representativa e pluralista, mas também paritária [10].

Após a revisão de 1997, a Constituição Portuguesa passou a admitir ações positivas, ou ações afirmativas, com vista à participação política das mulheres e impôs ao legislador a adoção de medidas nesse sentido, sob pena de constituir uma inconstitucionalidade por omissão a total ausência de um mínimo de medidas de ação positiva para combater a desigualdade real existente nesta matéria.

Estas medidas, sejam diretas ou indiretas, pretendem aproximar a composição dos órgãos representativos da composição real da comunidade, de tal sorte que a soberania do povo (una e indivisível conforme artigo 3º da Constituição) se traduza em cidadania assumida por todos os seus membros [11].

A transformação trazida pela revisão de 1997 foi de extrema relevância para se chegar a uma repartição equilibrada - ou menos desequilibrada – dos lugares em que assentam as decisões políticas que atingem a todos, homens e mulheres.

De acordo com informações obtidas junto ao sítio eletrônico da Comissão Nacional de Eleições Portuguesa, em 1976 as mulheres representavam cerca de 5% do número total de deputados, valor que chegou a 6,8% em 1980, a 7,2% em 1983, regrediu para 6,4% em 1985, e que conheceu novamente uma evolução positiva nos anos seguintes, obtendo-se 7,6% em 1987, 8,7% em 1991, 12,2% em 1995 em 17,8% em 1999 e em 19,6% em 2002 [12].

Em 1999, a professora Virginia Ferreira em "Os paradoxos da situação das mulheres em Portugal" constatou o grau de "feminização da política" em Portugal como sendo um dos mais baixos dos países europeus. Segundo ela, à época, "do terceiro lugar (na escala dos países europeus) em taxa de actividade feminina, passa-se para o 11º lugar em "taxa" de participação política" (Ferreira apud AMARAL, 2004, p. 49).

Mais recentemente em 2005, a percentagem de mulheres eleitas nas eleições legislativas correspondeu a 21,3%, e em 2006 existia um total de sessenta e uma mulheres no Parlamento, correspondente a uma percentagem de 26% do número total de deputados.

Em 2008, segundo a Comissão para a Igualdade e para os Direitos das Mulheres – CIDM, a percentagem de mulheres portuguesas em cargos políticos era a seguinte: 20% no Parlamento, 12% no Governo e 5% em Autarquias e Juntas de Freguesias, perfazendo um total de 37% [13].

Da análise destas percentagens se depreende que, desde 1976 até 2008 houve um aumento significativo da quantidade de mulheres ocupando cargos políticos em Portugal, uma vez que passamos dos 5% do ano de 1976 para os 37% do ano de 2008. Contudo, não nos esqueçamos que ao lado desses 37% de figuras femininas ocupando cargos políticos existem 63% de composição masculina ocupando os mesmos cargos.

Deste modo, a despeito da evolução positiva – mais ainda pouca – de participação feminina em cargos políticos ocorrida no período de trinta e dois anos, ainda se pode afirmar a situação deficitária do Estado Português nesta matéria.

Diante destes números se compreende que a revisão constitucional de 1997 reconheceu a grande desigualdade existente relacionada à participação política da mulher, e, portanto, ao admitir as tais medidas já mencionadas, pretende que sejam afastadas as causas do contraste entre os direitos de plena participação constitucionalmente conferidos e a realidade de uma presença minoritária nos órgãos de decisão política.

4.1. Lei Orgânica nº. 3/2006 da Republica Portuguesa

É neste contexto que é elaborada pelo Partido Socialista a proposta de Lei nº 40/VII, em um esforço de tratar igualmente homens e mulheres e de tirar a mulher do âmbito de sub-representação política. A proposta é elaborada com base nos já citados artigos 9º, h e 109º da Constituição.

Antes deste projeto de lei, outras propostas já haviam sido apresentadas na Assembléia da República Portuguesa, com base nas modificações trazidas pela revisão constitucional de 1997, quais sejam:

- A proposta de lei nº. 169/VII, que propunha, no acesso a cargos parlamentares, um mínimo de 25% de candidatos de cada sexo.

- A proposta de lei nº. 194/VII que instaurava um sistema de quotas nas eleições para o Parlamento Europeu e para a Assembléia da República e fixava um limite máximo de 66,7% e mínimo de 33,3% para a participação de qualquer dos sexos, limitando a suas aplicações aos quatro atos eleitorais posteriores à sua entrada em vigor.

- E a proposta nº. 388/VII, que fixava uma representação mínima de 33,3% para cada sexo nas listas de candidatura para a Assembléia da República, Parlamento Europeu, assembléias legislativas regionais e autarquias locais.

Estas três propostas não foram aprovadas. Em decorrência disto foi elaborada a proposta nº. 40/VII com o objetivo de obter a paridade nas listas de candidaturas para a Assembléia da República, para o Parlamento Europeu e para as autarquias locais. Para tanto, estabeleceu uma representação mínima de 33% para cada um dos sexos nas referidas listas.

O modelo escolhido para esta ação positiva que busca a igualdade de homens e mulheres é o modelo da paridade – cuja origem e funcionamento já foram aqui explicados. Paridade, para efeitos de aplicação da lei, deve ser entendida como a representação mínima de 33% de cada um dos sexos nas listas. Conforme a exposição de motivos do projeto da lei em comento:

A sub-representação das mulheres corresponde a um défice participativo, susceptível de inquinar o universalismo republicano e a igualdade que o fundamenta. A paridade é o único meio de o suprimir, permanecendo fiel ao princípio da igualdade. Porque recusando a desigualdade que caracteriza a situação actual e que é profundamente injusta e antidemocrática, ela aceita e valoriza a diferença, que reconhece a especificidade das pessoas. (grifo da autora)

Seguindo este modelo, as listas de candidaturas apresentadas para círculos plurinominais não podem conter mais de dois candidatos do mesmo sexo colocados, consecutivamente, na ordenação da lista. As listas devem ser elaboradas alternando-se o gênero dos candidatos, de modo a que se obtenha, no final, uma representação mínima de 33% de cada sexo Ainda segundo o projeto da Lei, os partidos políticos que desrespeitassem esta norma teriam suas listas rejeitadas, não podendo, portanto, ir a votos.

Ocorre que esta primeira versão do projeto foi rejeitada pela maioria dos membros da Assembléia e, em junho de 2006, finalmente vetada pelo presidente Cavaco Silva, que justificou seu veto no fato de o projeto de lei prever em seu artigo 3º a possibilidade da rejeição das listas de candidatura. Na ocasião, o presidente mencionou ser tal artigo "sancionador, desproporcionado e desadequado para conseguir os fins prosseguidos pela legislação.".

Após o veto presidencial, os deputados do Partido Socialista corrigiram a trajetória e alteraram o conteúdo normativo do projeto, passando a prever, como punição aos partidos políticos que não obedeçam a percentagem de 33%, outras sanções que não a rejeição das listas.

Com a mudança, e tendo superado a justificativa do veto, a Lei Orgânica nº. 3/2006, mais conhecida por Lei da Paridade, foi promulgada em 21 de agosto de 2006, e já deverá ser respeitada pelos partidos políticos nas eleições autárquicas que se aproximam.

A Lei da Paridade busca uma representação mais significativa das mulheres na vida política, sendo essencialmente um requisito de justiça e de democracia. Também é extremamente relevante à redução das discriminações de gênero porque implica no aparecimento de pontos de vista diferentes, já que homens e mulheres têm, naturalmente, vivências e experiências que são histórica e culturalmente diferentes.

É bastante provável que mesmo com a vigência da Lei da Paridade o processo de integração das mulheres portuguesas ao ambiente político não se dê de forma mais acentuada num primeiro momento. Isto porque ainda é um ambiente essencialmente masculino, que somado à ainda subsistente discriminação contra a mulher, acaba por não chamar sua atenção.

É neste sentido que não se pode deixar de considerar que a iniciativa desta Lei é um estímulo a que as mulheres ocupem no cenário político uma posição condizente com a sua proporcionalidade demográfica. É inegável que a Lei da Paridade contém o germe de uma futura igualdade natural entre homens e mulheres no que tange a participação política no Estado Português.


Considerações Finais

A primeira observação cabível aqui diz respeito ao caminho percorrido pelo princípio da igualdade no sentido de entendê-lo como princípio dinâmico. A evolução histórica da humanidade fez com que os meios legislativos se adequassem a esta e, neste processo, um princípio de tamanha grandeza e responsabilidade não poderia ficar alheio às evoluções sociais, políticas e jurídicas pelas quais foram passando o ser humano e seus direitos e liberdades.

O princípio da igualdade, concebendo-o sob seu aspecto material, não é uma fórmula vazia de conteúdo, ele torna seu conteúdo palpável quando é posto em prática, quando atua e sai, portanto, de sua formalidade, passando a considerar as diferenças entre as pessoas.

É esta igualdade que é encontrada em iniciativas como a da Diretiva Comunitária e a da Lei de Paridade analisadas. Uma igualdade que busca na diferença o critério para a promoção de igualdades reais. Em matéria de discriminações de gênero, a igualdade formal mostrou nitidamente os seus limites em relação às mulheres, restando, desta forma, à igualdade material o papel de provedora da igualdade entre os sexos.

Quando da abertura dos campos mais fechados e masculinos às mulheres não era de esperar uma igualdade imediata, nem de oportunidades, nem de desempenhos. Todavia, presenciamos cada vez mais a entrada da mulher em terrenos antes considerados exclusivamente masculinos.

Neste desiderato, uma lei que facilite o acesso às candidaturas femininas mostra-se excelente não só pelo objetivo a que se propõe, mas também por demonstrar que a igualdade de gêneros é necessária em todos os âmbitos, inclusive para além daquilo que cabe ao direito regular. Também uma recomendação como a contida na diretiva abordada evidencia que a repressão às discriminações deve permear os campos mais específicos, esperando-se que tenha reflexos em campos maiores e mais problemáticos nestes temas.

Homens e mulheres precisam compreender, assimilar e refletir que a inserção feminina nos mais variados campos da sociedade é um elemento fundamental para o avanço da cidadania, e nisto a desigualdade de gêneros se coloca como um grande obstáculo a ser ultrapassado.

Devemos considerar que, em sendo as competências de homens e mulheres iguais e sendo seus talentos comparáveis, é relevante que, na sociedade, se conjugue a experiência diferenciada dos homens e das mulheres, e que a maior parte das funções, das tarefas e das responsabilidades não se encerre num universo monossexual [14].

Por fim, no quadro de democracia em que nos encontramos inseridos, erradicar as discriminações, promover iguais oportunidades, estimular uma maior participação política feminina e, sobretudo, buscar um maior respeito entre homens e mulheres constituem pilares essenciais para que os ditames democráticos de dignidade, igualdade e liberdade sejam respeitados.


Bibliografia Consultada

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Declarações e Textos legislativos Consultados

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PROJETO de Lei Nº. 40/VII do Partido Socialista do Estado português

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Sítio Eletrônico do Partido Socialista Português, disponível em www.ps.pt. Acessado em 06 de dezembro de 2008.


NOTAS

  1. DAHL, Tove Stang. O Direito das Mulheres: Uma Introdução à Teoria do Direito Feminista. Lisboa: Edição da Fundação Calouste Gulbekian, 1993. (p.25).
  2. GARCIA, Maria da Glória F.P.D. Estudos sobre o princípio da Igualdade. Coimbra: Edições Almedina, 2005.
  3. ________________. Idem (p.39).
  4. CANOTILHO, J.J. Gomes; MOREIRA, Vital. Constituição da República Portuguesa Anotada. Volume I. 4ª ed. rev. Coimbra: Coimbra Editora, 2007. (p. 337).
  5. ________________________. Idem (p. 340).
  6. AMARAL, Maria Lúcia. O Princípio da Igualdade na Constituição Portuguesa. In Estudos em homenagem ao professor doutor Aramando M. Marques Guedes. Coimbra: Coimbra editora, 2004. (p. 48).
  7. ATCHABAHIAN, Serge. Princípio da Igualdade e Ações Afirmativas. 2ª ed. ver. ampl. São Paulo: RCS Editora, 2006. (p. 165).
  8. GARCIA, Maria Glória F.P.D. Estudos sobre o Princípio da Igualdade. Coimbra: Edições Almedina, 2005. (p. 95/96).
  9. Deputada Isabel Castro. Diário da Assembléia da República. 7ª legislatura, 2ª sessão legislativa, 1ª série, nº. 34, reunião de 15 de julho de 1997 (p. 3377) apud MIRANDA, Jorge. Igualdade e Participação Política da Mulher. In Democracia com mais Cidadania. Lisboa: Presidência do Conselho de Ministros, 1998 (p. 37).
  10. Deputada Maria Eduarda Azevedo. Diário da Assembléia da República. 7ª legislatura, 2ª sessão legislativa, 1ª série, nº. 99, reunião de 22 de julho de 1997 (p. 3648) apud MIRANDA, Jorge. Igualdade e Participação Política da Mulher. In Democracia com mais Cidadania. Lisboa: Presidência do Conselho de Ministros, 1998 (p. 38).
  11. MIRANDA, Jorge. Igualdade e Participação Política da Mulher. In Democracia com mais Cidadania. Lisboa: Presidência do Conselho de Ministros, 1998 (p. 39).
  12. Disponível em www.cne.pt/index.cfm?sec=1001000000&step=2&letra=P&PalavraID=173. Acessado em 06 de dezembro de 2008.
  13. Disponível em www.cidm.pt. Acessado em 06 de dezembro de 2008.
  14. AGACINSKI, Sylviane. Política dos Sexos. Oeiras: Celta Editora, 1999. (p. 107).

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GOMES, Olívia Maria Cardoso. O princípio da igualdade e as discriminações de gênero. Análise da Diretiva Comunitária nº 2004/113 do Conselho Europeu e do Projeto de Lei Orgânica nº 3/2006 da Assembléia da República Portuguesa. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2128, 29 abr. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/12718. Acesso em: 24 abr. 2024.