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Da atipicidade do abortamento quando o produto da concepção é anencefálico

Da atipicidade do abortamento quando o produto da concepção é anencefálico

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A morte do produto da concepção seria pré-existente às manobras abortivas, motivo pelo qual no caso da anencefalia não haveria vida a ser preservada.

"(...) a ciência não deve encerrar-se em um magnífico e solitário castelo de marfim, distante dos rumores do dia, mas tem de entrar na vida, seguir-lhes os movimentos e aspirações, prescrutar as necessidades que a fazem pulsar, sempre consciente da mónita que não é a vida que deve adaptar-se ao direito, mas sim o direito à vida". FERRARA, Francesco. Como Aplicar e Interpretar Leis, 1999.

Resumo

A evolução científico-tecnológica experimentada pela ciência médica no final do século passado e início deste, que trouxe a possibilidade de ser detectada a anencefalia do produto da concepção, quando este ainda se encontra repousando no ventre materno, fez nascer uma grande discussão acerca da possibilidade, ou não, da interrupção dessa gravidez pela gestante. Parte da doutrina se posicionou contrária a essa possibilidade, alegando que isso consistiria em prática do crime de aborto, tendo em vista que seria uma evidente ofensa à vida intra-uterina tutelada pelos artigos 124,125, 126 e 127 do Código Penal. Em entendimento diverso, outros doutrinadores, com base na inovação trazida pela Lei 9.434/97, proclamam a atipicidade de tal conduta, tendo em vista que a morte do produto da concepção seria pré-existente às manobras abortivas, pois a referida Lei teria trazido à baila o conceito de morte, que seria a morte encefálica, motivo pelo qual no caso da anencefalia não haveria vida a ser privilegiada. No caso em testilha ocorre, na verdade, um fato atípico, pois o feto anencefálico é considerado um ser destituído de vida, não podendo ser imputado a morte do mesmo á prática da interrupção da gestação, tendo em vista que a morte, com base na já mencionada Lei, é anterior a produção das manobras abortivas. Não é escopo do presente ensaio esgotar o tema objeto do mesmo, mas sim contribuir para a melhor solução dessa problemática que já vem há um tempo razoável exigindo uma análise científica. Espera-se que o objetivo de melhor aclarar o tema aqui proposto seja alcançado, e que a solução aqui exposta possa contribuir de forma eficaz, trazendo uma maior certeza jurídica acerca da antecipação terapêutica do parto de fetos anencefálicos, rechaçando o atual contexto de insegurança que paira sobre o assunto.

Palavras-Chaves:

1. Interrupção da Gravidez; 2. Anencefalia; 3. Aborto; 4. Atipicidade.

Abstract

The scientific evolution tried by medical science in the end of the last century and beginning of this, that brought the possibility of being detected the anencefalia of the product of the conception, when this still if finds resting in the maternal womb, made to be born a great quarrel concerning the possibility, or not, of the interruption of this pregnancy for the gestante. Part of the doctrine if located contrary to this possibility, alleging that this would consist of practical of the abortion crime, in view of that tutored person for articles 124,125, 126 and 127 of the Criminal Code would be an evident offence to the intrauterine life. In diverse agreement, other doutrinadores, on the basis of the innovation brought for Law 9,434/97, proclaim the atipicidade of such behavior, in view of that the death of the product of the conception it would be preexisting to the abortive maneuvers, therefore the related Law would have brought to baila the concept of death, that would be the encefálica death, reason for which in the case of the anencefalia it would not have life to be privileged. In the case in testilha he occurs, in the truth, an atypical fact, therefore the anencefálico embryo is considered a being destitute of life, not being able to be imputed the death of the same the practical one of the interruption of the gestation, in view of that the death, on the basis of already mentioned Law, is previous the production of the abortive maneuvers. It is not target of the present assay to deplete the subject object of the same, but yes to contribute for the best solution of this problematic one that already he comes he has a reasonable time demanding a scientific analysis. One expects that the better objective of aclarar the subject considered here is reached, and that the solution displayed here can contribute of efficient form, bringing a bigger rule of law concerning the therapeutical anticipation of the childbirth of anencefálicos embryos, rejecting the current context of unreliability that hangs on the subject.

Word-Key: 1. Interruption of the Pregnancy; 2. Anencefalia; 3. Abortion; 4. Atipicidade.

1. INTRODUÇÃO 2. HISTÓRICO DO CRIME DE ABORTO 3. O DIREITO À VIDA: SUA TUTELA LEGAL E DELIMITAÇÃO 3.1 O direito à vida e seu tratamento Constitucional 3.2 Proteção penal da vida extra e intra-uterina 3.3 Crime de aborto: noções gerais 3.4 Princípio da Proporcionalidade 3.5 Lei nº 9.434/97 e a definição legal do momento da morte 3.6 Anencefalia 4. ABORTO ANENCEFÁLICO 4.1 Aborto eugênico: distinções conceituais 4.2 Arguição de descumprimento de preceito fundamental nº 54 5. CONCLUSÃO REFERÊNCIAS


1. INTRODUÇÃO

O direito à vida é um dos direitos mais importantes na escala valorativa existente no contexto normativo brasileiro, e qualquer circunstância que pareça, num primeiro momento, constituir uma ofensa a tal direito, faz com que os juristas e nossa jurisprudência travem em torno desta um embate em busca da teorização e solução do problema que se propõe.

A evolução histórico-social, juntamente com os avanços técnico-científicos da medicina, acabou por trazer a lume uma situação até antes não vislumbrada pelos juristas e pelos legisladores na ocasião da promulgação do Código Penal (Decreto-Lei nº 2.848 de 07 de dezembro de 1940) que estavam inteiramente alheios aos avanços que a ciência médica alcançaria no final do século passado e início deste.

A anencefalia, ausência total ou parcial da abóbada craniana, é uma anomalia que há muito vem assombrando a ciência médica. Esse distúrbio faz com que o ser que a possua seja incompatível com os estágios mais avançados da vida, e no atual estágio da medicina é plenamente possível que a existência desta anomalia seja diagnosticada quando o novo ser ainda repousa no ventre materno.

Essa evolução criou um embate entre o direito à vida desse ser e o direito à dignidade da pessoa humana da gestante, que a partir de tal diagnóstico transformou um período de imensa felicidade, que é o período gestacional, num momento de dor e angústia, o que fez com que diversas gestantes procurassem o Poder Judiciário a fim de encontrar neste uma autorização para que elas pudessem abortar o feto que carregavam, na tentativa de minimizar o sofrimento pelo qual estavam passando.

É esse o tema que aqui será debatido. Será analisada a anencefalia e as normas que podem trazer uma solução para esse grave problema que atualmente assola nossa sociedade.

Dessa forma, passa-se a ser analisado o artigo 5º da Constituição Federal, norma que trata da proteção da vida de forma mais genérica, assim como os artigos 124, 125 e 126 do Código Penal, que tratam do crime de aborto e, igualmente, as normas constantes da Lei nº 9.434, de 04 de fevereiro de 1997 (Lei de Transplantes de Órgãos), que trouxe uma definição genérica do momento em que, legalmente, um ser pode ser considerado sem vida.

É bom que desde já seja devidamente esclarecido que a discussão do presente tema é, eminentemente, dogmático-científica, portanto, deixa-se de lado posições de cunho religioso, social, filosófico, emocional ou moral, que provavelmente desvirtuariam o objeto do presente trabalho.

Aqui, será analisada a questão de forma científica e o quanto mais neutra, condição necessária para um melhor desenvolvimento científico do objeto estudado.

Outrossim, é bom que se esclareça que aqui não se tratará de uma obrigação legal para uma pessoa (a gestante), mas será discutida uma possibilidade (faculdade) de agir, ação que, uma vez tomada, não submeterá a pessoa que tomou tal atitude a uma reprimenda penal, a forma mais forte do Estado se insurgir contra uma pessoa.

Assim, será debatido no presente ensaio a seguinte problemática: o aborto de feto anencefálico é, realmente, uma violação do direito à vida, devendo todas as pessoas que contribuírem para tal violação sofrerem a reprimenda penal constante dos artigos 124 a 127 do Código Penal?

O objetivo geral da presente monografia será analisar os casos de abortos anencefálicos e a aplicação do Código Penal e da Lei nº 9.434/97 aos casos concretos, com fito de apresentar a nossa sociedade a resolução para a problemática aqui apresentada, trazendo a possibilidade às pessoas que passam diretamente por esse drama de não sofrerem uma segunda punição (a perda do ente no ventre materno já é o bastante), evitando, dessa forma, uma série de sofrimentos psíquicos à gestante, e dar às pessoas não envolvidas, mas que se relacionam indiretamente com esse problema uma solução da maneira menos danosa e mais razoável possível.

De forma mais especifica, esta pesquisa terá como objetivos, dentre outros, analisar os princípios constitucionais que se relacionam ao aborto anencefálico, para que, com base nestes, possamos solucionar a problemática ora proposta, analisar o crime de aborto trazendo todas as suas características para que seja possível analisar o referido delito face a situação específica de anencefalia, expor os problemas psíquicos a que está sujeita a gestante obrigada a carregar em seu ventre o feto portador de anencefalia, mostrando que isso não constitui violação a Constituição Federal e demonstrar com base em pesquisa a não-existência de infração penal no caso de anencefalia, haja vista, que não há vida intra-uterina a ser protegida pela norma penal com base na Lei nº 9.434/97.

A pesquisa que aqui se propõe será calcada no método dedutivo, haja vista que o tema ora proposto será analisado de forma ampla, o que colaborará no desenvolvimento do presente estudo e na busca de uma solução juridicamente viável para o seu objeto.

Este estudo possuirá como referencial a pesquisa bibliográfica, onde será utilizada a legislação em vigor, em especial a Constituição Federal de 1988, o Código Penal e a Lei nº 9.434/97, analisando nosso ordenamento de forma sistemática, com o fito de obter uma melhor interpretação do sistema e a melhor solução para os casos de aborto de fetos anencefálicos.

Também, será referencial a esta pesquisa a bibliografia dos principais doutrinadores nacionais, que discutem o direito penal e mais especificamente o objeto desta pesquisa, além de artigos científicos, o que nos permitirá ter uma visão dos estudiosos a favor e contra a interrupção da gravidez quando detectado que o feto é portador de anencefalia.

A importância do tema ora em análise para a ciência jurídica repousa na magnitude e importância dos valores aqui relacionados, pois não há que se negar a importância do direito à vida, como condição da existência de qualquer outro direito, ou mesmo do direito à dignidade de pessoa humana, erigido a fundamento da República Federativa do Brasil (art. 1º, inc. II, da Constituição Federal).

Junte-se a isso o fato de que a questão de abortamento de fetos portadores de anencefalia de há muito deixou de ser problema unicamente afeto aos personagens diretos que passam por esse drama particular, ou seja, os pais e mães que se vêm nesta situação tão delicada.

Na verdade, o tema passou essa perspectiva individual chegando a contornos muito maiores, o que exige atualmente dos teóricos do direito um estudo e aprofundamento do tema, no intuito de que seja encontrada uma solução que pacifique e traga uma maior certeza jurídica acerca desse assunto. Esse tema passou atualmente a ser uma problemática que afeta toda uma sociedade, que anseia a melhor resolução para tais casos, pois uma violação do direito à vida, ainda mais se for com o aval de um dos Poderes do Estado, causa grande comoção entre os membros que fazem parte desta sociedade.

Dessa forma, inicialmente, será feita uma explanação acerca do histórico do crime de aborto, no intuito de enriquecer o presente estudo, trazendo à colação o tratamento jurídico tutelatório do direito à vida intra-uterina, em que se vislumbrará o tratamento que o aborto teve nos primórdios da civilização. Igualmente, será analisado o tratamento do crime de aborto no direito brasileiro, desde o Código Criminal de 1830, passando pelo Código Penal Republicano de1890, até a entrada em vigor do atual Código Penal brasileiro, datado de 1940.

Em seguida, passa-se ao tratamento da proteção do direito à vida, tanto à luz da Constituição da República, quanto do atual Código Penal, chegando à tutela da vida intra-uterina ao se analisar as características do crime de aborto nos moldes do Código Penal de 1940. Nesse momento do presente estudo, ainda serão tecidos comentários acerca do princípio da proporcionalidade, como instituto dirimente de tensões entre princípios constitucionais, além de analisar a delimitação legal do momento da morte trazida pela Lei nº 9.434/97, encerando com a explanação acerca da anencefalia.

Posteriormente, passa-se a tratar da problemática aqui proposta, analisando a anencefalia com base na atual ordem legal, tentando solucionar a atual situação de desencontros doutrinários e jurisprudenciais acerca da questão se o aborto anencefálico constitui ou não violação ao direito à vida, trazendo a opinião de diversos juristas acerca do tema objeto do presente estudo, além de fazer a distinção entre aborto anencefálico e aborto eugênico, encerando com a analise da Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 54, ainda em tramitação no Supremo Tribunal Federal.

Por fim, serão analisadas todas as argumentações trazidos a lume, tentando-se chegar à conclusão que melhor solucione o problema posto, demonstrando a atipicidade da conduta de interromper a gravidez de um feto portador de anencefalia.

Assim, no presente ensaio, serão apresentados os argumentos jurídicos atualmente levantados acerca do abortamento de fetos anencefálicos, tema que há algum tempo vem provocando muita divergência entre os teóricos do direito e sociedade, como um todo, situação que causa uma enorme insegurança jurídica, deixando apreensivos todos aqueles que integram nossa sociedade e esperam que um tema tão delicado seja amplamente debatido e, ao fim, este seja solucionado da melhor forma possível.


2. HISTÓRICO DO CRIME DE ABORTO

Nem sempre a prática do aborto foi objeto de reprimenda penal, tendo em vista que durante muito tempo o produto da concepção era considerado parte integrante do corpo da gestante, e por tal razão ficava ao arbítrio desta a decisão da continuidade ou interrupção da gestação.

Esse entendimento foi bastante difundido em Roma, até que, por volta de 200 anos depois de Cristo, período em que Roma possuía como imperador Septimius Severus, o aborto tornou-se uma violação ao direito do marido à prole esperada, ocasião em que esta prática passou a ser objeto de sanção pelo ordenamento jurídico de Roma.

Assim explícita Adriana Tenorio Antunes Reis (2007):

A prática do aborto nem sempre foi objeto de incriminação. Inicialmente, predominava a total indiferença do Direito em face do aborto, considerando o produto da concepção como parte integrante do corpo da gestante e, por conseguinte, deixando a critério da mulher a decisão acerca da conveniência ou não de dar continuidade à gravidez. Assim era em Roma, nos primeiros tempos, quando não era sancionada a morte dada ao feto. Por volta do ano 200 depois de Cristo, com o reinado do imperador Septimius Severus, o aborto passou a ser considerado uma lesão ao direito do marido à prole esperada, sendo sua prática castigada.

No período medieval, a punição à prática de aborto passou a ser mais difundida.

Essa é a opinião da doutrinadora que, citando Santo Agostinho, afirma:

Na Idade Média, a punição do aborto generalizou-se. De acordo com Santo Agostinho, baseado na doutrina de Aristóteles, "o aborto só seria delito em se tratando de feto animado, o que ocorria quarenta ou oitenta dias após a concepção, conforme fosse do sexo masculino ou feminino". De outro lado, São Basílio não admitia qualquer distinção entre feto animado e inanimado, considerando o aborto provocado sempre como criminoso (REIS, 2007).

O Cristianismo trouxe a idéia, até hoje difundida, que o produto da concepção embora não possa ser juridicamente considerado pessoa, é um ser a quem a sociedade deve garantir seu direito à vida, até porque o produto da concepção trata-se de um ser humano em formação, pois a gestação e o desenvolvimento do novo ser no ventre materno constituem a fase inicial da vida humana.

A grande contribuição do Iluminismo no tocante ao crime de aborto foi a de acabar com a equiparação antes existente entre os crimes de aborto e infanticídio:

Nesse sentido colaciona a doutrinadora:

É certo que, em se tratando de aborto, "foi o Cristianismo que trouxe a concepção válida até os dias de hoje, no sentido de que o feto, mesmo no ventre materno, embora não se possa reputar como pessoa no seu sentido jurídico, representa um ser a quem a sociedade deve proteger e garantir o direito à vida". Com o Iluminismo, a equiparação entre os crimes de aborto e infanticídio foi abandonada, postulando-se, a partir de então, a redução das penas cominadas àquela espécie de delito (REIS, 2007).

No Brasil, o primeiro Código Criminal de nosso país fora aprovado em 23 de outubro de 1830, sendo o mesmo sancionado em 16 de dezembro do mesmo ano.

Antes de tal diploma legal aplicava-se em nosso país as ordenações do Reino de Portugal, pelo que podemos considerar o Código Criminal de 1830, o primeiro diploma sistemático penal legitimamente brasileiro.

No que diz respeito ao crime de aborto, tal diploma se limitava a punir a conduta de terceiros que, com ou sem o consentimento da gestante, provocassem aborto na mesma e levassem, conseqüentemente, à morte o produto da concepção.

Nesse período não era, pois, punido o aborto quando praticado pela própria gestante, isto é, não era reprimido o auto-aborto.

À época existia um tipo penal específico, que era decorrente de uma política penal muito similar e bastante difundida na nossa realidade social, qual seja, a criminalização de atos preparatórios, como ocorre atualmente com a criminalização do porte e da posse ilegal de armas de fogo.

Nesse diapasão, no período desse diploma legal era criminalizado o fornecimento de meios abortivos, ainda que o aborto não fosse praticado, sendo a pena de tal crime aumentada caso o sujeito ativo de tal delito fosse médico, cirurgião ou similar.

Acerca do Código Criminal de 1830, Cezar Roberto Bitencourt (2008, p. 132-133) doutrina o seguinte:

O Código Criminal do Império de 1830 não criminalizava o aborto praticado pela própria gestante. Criminalizava, na verdade o aborto consentido e o aborto sofrido, mas não o aborto provocado, ou seja, o auto-aborto. A punição somente era imposta a terceiros que interviessem no abortamento, mas não à gestante, em nenhuma hipótese. O fornecimento de meios abortivos também era punido, mesmo que o aborto não fosse praticado, como uma espécie, digamos, de criminalização de atos preparatórios. Agravava-se a pena se o sujeito ativo fosse médico cirurgião ou similar.

O Código Penal de 1890 inovou no sentido de criminalizar o aborto quanto este era praticado pela própria gestante, agravando, outrossim, a pena do sujeito ativo caso a gestante viesse a falecer devido as manobras abortivas.

O codex de 1890 ainda previu uma espécie de aborto privilegiado, atenuando a pena caso o mesmo fosse praticado para ocultar desonra própria ou alheia. O referido diploma penal ainda autorizava o aborto, quando este fosse praticado para salvar a vida da gestante, mas o médico ou parteira que praticasse tal aborto poderia ser alvo de reprimenda penal se qualquer destes, por imperícia, causassem a morte da gestante.

Nesse sentido, Cezar Roberto Bitencourt (2008, p. 133) colaciona que:

O Código Penal de 1890, por sua vez, distinguia o crime de aborto caso houvesse ou não a expulsão do feto, agravando-se se ocorresse a morte da gestante. Esse Código já criminalizava o aborto praticado pela própria gestante. Se o crime tivesse a finalidade de ocultar desonra própria a pena era consideravelmente atenuada. Referido Código autorizava o aborto para salvar a vida da parturiente, nesse caso, punia eventual imperícia do médico ou parteira que, culposamente, causassem a morte da gestante.

O Código Criminal de 1890 permaneceu em vigor até a promulgação e entrada em vigor do Código Penal de 1940, que até a presente data é o diploma legal sistemático em matéria penal no Brasil.

Esse Código previu três ilícitos penais distintos acerca do crime de aborto, sendo eles o auto-aborto, provocado ou consentido, previsto no artigo 124, o aborto sofrido, tipificado no artigo 125, e o aborto consentido, tipificado no artigo 126.

O diploma legal penal de 1940, ainda previu em seu artigo 127, uma causa de aumento de pena quando em decorrência do aborto ou dos meios empregados para ser consumado tal delito, resulta lesão corporal de natureza grave ou a morte da gestante, aplicando-se tal disposição aos ilícitos tipificados nos artigos 126 e 125 do Código, pois não é juridicamente possível que tal previsão seja imposta ao ilícito previsto no artigo 124, haja vista que no Direito Penal não se pune a auto-lesão, ainda porque se sobreviesse a morte da gestante, seu corpo, sem vida, não poderia sofrer qualquer tipo de reprimenda penal.

Ainda foram previstas no artigo 128 duas causas de exclusão de ilicitude do crime de aborto, quando este é praticado por médicos, sendo que este e os demais aspectos do crime de aborto serão pormenorizados no capítulo seguinte, quando serão tratados a proteção do direito à vida e o crime de aborto no atual Código Penal.


3. O DIREITO À VIDA: SUA TUTELA LEGAL E DELIMITAÇÃO

O direito à vida, direito fundamental da pessoa humana, previsto e garantido na Constituição da República Federativa do Brasil, datada de 05 de outubro de 1988, é um dos mais importantes direitos fundamentais da pessoa humana, tal como a liberdade, o patrimônio, e a própria dignidade da pessoa humana, não cabendo no presente tema ser explorado ou debatido se esse seria o mais importante dos direitos da pessoa humana, embora que seja possível admitir que este direito é pressuposto da existência dos demais direitos acima citados, pois não há que se falar em patrimônio ou dignidade da pessoa humana, se o ser humano não possui vida para gozar de tais direitos, mas em verdade todos os direitos fundamentais, notadamente aqueles elevados ao plano constitucional têm uma elevada importância no nosso sistema jurídico.

Nossa Constituição declara o comprometimento e a defesa do direito à vida em seu art. 5º, caput, quando esclarece:

Art. 5º Todos são iguais perante a Lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade direito à vida, á liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes.

A importância desse direito é que faz com que os estudiosos das ciências jurídicas e a jurisprudência pátria, ao vislumbrarem qualquer indício de violação ao mesmo, passem a entrar num violento embate para teorizar e decidir a melhor solução para o problema que se põe no atual contexto social, que pelos contornos de ser um tema tão delicado e de extrema necessidade de discussão buscam a solução mais condizente com nossa realidade e que pacifique e atenda aos anseios da sociedade cotidiana.

Tal direito não se limita na garantia da não ocorrência de violação deste por quem quer que seja, garantindo que o indivíduo não sofra atentados à sua vida, ou que simplesmente permaneça vivo. Essa é apenas uma das duas dimensões de tal direito. A segunda dimensão, também integrante da própria essência do direito à vida, consiste em garantir, além da inviolabilidade da vida da pessoa humana, que tal vida seja preservada e exista de forma digna, garantindo-se um mínimo das necessidades humanas vitais, ainda proibindo a prática de ato contra a pessoa humana que atente contra a sua dignidade como, a título de exemplo, que a pessoa humana seja vítima de tortura ou qualquer outro tratamento desumano ou degradante.

Sendo assim, importante se faz trazer à colação a opinião de um ilustre constitucionalista:

O direito à vida, previsto de forma genérica no art. 5.º, caput, abrange tanto o direito de não ser morto, privado da vida, portanto, o direito de continuar vivo, como também o direito de ter uma vida digna.

Em decorrência do seu primeiro desdobramento (direito de não se ver privado da vida de modo artificial), encontramos a proibição da pena de morte, salvo em caso de guerra declarada, nos termos do art.84, XIX. Assim, mesmo por emenda constitucional é vedada a instituição da pena de morte no Brasil, sob pena de se ferir cláusula pétrea do art. 60, § 4.º, IV.

Por fim, o segundo desdobramento, ou seja, o direito a uma vida digna, garantindo-se as necessidades vitais básicas do ser humano e proibindo qualquer tratamento indigno, como a tortura, penas de caráter perpétuo, trabalhos forçados, cruéis etc (grifo do autor) (LENZA, 2008, p. 595).

Por fim, deve ser acentuado, como faz o citado doutrinador, que a norma constitucional prevê uma tutela do direito à vida de uma maneira bastante genérica, em que caberá às normas de natureza infraconstitucionais pormenorizar a defesa de tal direito, estabelecendo regras com um grau de abstração menor do que existe na já citada norma constitucional, regras estas que protejam a vida de uma forma mais pormenorizada, o que comumente ocorre no nosso sistema jurídico, tradicionalmente romanístico.

Assim, existem em nosso sistema jurídico normas de natureza infraconstitucionais, tais como o Decreto- Lei nº 2.848 de 07 de dezembro de 1940 (Código Penal), que protege de forma mais pormenorizada a vida humana, punindo com penas restritivas de liberdade, tanto as violações à vida extra-uterina (quando prevê o crime de homicídio, por exemplo, prevendo, igualmente, a reprimenda penal para quem viole o preceito penal primário) e a vida intra-uterina (previsão do crime de aborto, tanto praticado pela gestante como por terceiros, e a sua respectiva sanção penal), e dá uma proteção especifica a este direito.

Cabe trazer à baila que, apesar de o direito à vida ser um dos mais importante direitos fundamentais da pessoa humana, além de ser, inclusive, pressuposto para a existência dos demais direitos, este não é absoluto em nosso ordenamento jurídico, pois ele pode entrar em confronto com direito igualmente prestigiável.

Pode ocorrer que esse direito entre em confronto com outros direitos igualmente garantidos no plano constitucional, como a liberdade, a dignidade da pessoa humana ou o patrimônio.

Isso ocorre, por exemplo, no caso dos ofendículos, que ao serem efetivamente utilizados, como no caso de um assaltante que tenta adentrar à residência da vítima e sofre um choque que o leve à morte, o que constituirá legítima defesa preordenada, ocorrerá, materialmente, uma violação à vida, mas juridicamente não será uma conduta ilícita a praticada pelo proprietário, pois seu ato é, juridicamente, aceito.

Quando ocorrer essa colisão de direitos de natureza constitucional, o meio para solucionar essa tensão entre direitos fundamentais é a aplicação do princípio da proporcionalidade, tão utilizado pelo Supremo Tribunal Federal em suas decisões quando entram em choque dois ou mais direitos fundamentais de natureza constitucional, sendo que este princípio será objeto de uma analise mais pormenorizada ainda neste capitulo.

3.2 Proteção Penal da Vida Extra e Intra-Uterina

Dando continuidade à exposição do tratamento jurídico dado ao direito à vida, é preciso tecer alguns comentários acerca da proteção penal dirigida a tal direito que, como já exposto, é um dos mais importantes direitos integrantes do patrimônio jurídico de qualquer pessoa humana.

O atual Código Penal, como norma sistemática de defesa dos valores mais importantes de nossa sociedade, prevê além de normas gerais acerca dos institutos e instituições necessários para a aplicação das normas jurídico-penais, colaciona na maior parte de seus artigos a definição dos crimes, culminando as penas correspondentes aos que violem o preceito penal previsto em tais normas, conhecidas, doutrinariamente, como normas penais incriminadoras.

Dentro desse contexto, é que se encontram as normas que protegem o direito à vida, tipificando condutas que, uma vez praticadas por qualquer pessoa, ocasionarão a estas a aplicação de uma sanção penal.

No início da parte especial de tal legislação, em seu Título I, denominado dos crimes contra a pessoa, e no seu Capítulo I, intitulado dos crimes contra a vida, estão tipificados os delitos que atentam contra a vida humana extra e intra-uterina.

Dos artigos 121 a 123, estão previstas as normas penais que têm por fim proteger a vida extra-uterina, sendo que essa vida começa, segundo a doutrina penal pátria, com o início do parto, que tem como período materialmente inicial quando ocorre o rompimento do saco amniótico e o início das contrações do parto.

Cabe trazer à tona o que dispõe o Código Penal em seu artigo 121, este prevê que "Matar Alguém: Pena – reclusão de seis a vinte anos".

Tal artigo tem como claro objetivo impedir, de forma intimidadora, que o direito à vida não sofra atentados, dando um sentido mais especializado à norma constitucional antes citada no bojo do presente estudo.

Os artigos 122 e 123 do mesmo Código, igualmente, tipificam condutas contrárias ao direito à vida, descrevendo-as como criminosas, sendo estas condutas o induzimento, instigação ou auxílio ao suicídio de outrem, ou o infanticídio, que nada mais é que um homicídio privilegiado, que ocorre quando praticado por uma mulher que comete o delito contra o próprio filho, desde que a mesma ao praticar tal ilícito esteja sob a influência do estado puerperal, comprovada a influência de tal estado no cometimento do crime mediante perícia.

Aos artigos 124, 125 e 126 do Código Penal, restou a defesa da vida intra-uterina, que vai até antes do momento em que tem início o parto, que ocorre com o rompimento do saco amniótico e início das contrações do parto. Tais artigos possuem a seguinte redação:

Art. 124. Provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lho provoque:

Pena – detenção, de um a três anos.

Art. 125. Provocar aborto, sem o consentimento da gestante:

Pena – reclusão, de três a dez anos.

Art. 126 Provocar aborto como o consentimento da gestante:

Pena – reclusão, de um a quatro anos.

O parágrafo único do artigo 126 prevê uma causa de aumento de pena para este tipo penal, enquanto o artigo 127 prevê duas causas de aumento de pena que se aplicam aos tipos penais previstos nos artigos 125 e 126, enquanto o artigo 128 prescreve duas hipóteses em que o aborto, praticado por médico, não será objeto de reprimenda penal.

Apesar de toda defesa constitucional e penal do direito à vida, este, como todos os direitos que existem, não pode ser considerado absoluto, haja vista que o mesmo é um instituto social, que sofre limitações de outros direitos reconhecidos no seio social que ocasionalmente entram em embate com este direito.

Exemplo clássico de tal afirmação é o instituto da legítima defesa, em que se restringe um direito, até mesmo o direito à vida, por um direito igual ou maior num grau valorativo dos direitos que se chocam.

Assim, se matar alguém é crime, o autor deve se submeter a uma reprimenda penal, mas se esse delito fora praticado porque a suposta vítima estava tentando matar a pessoa que cometeu o verbo do tipo penal, na verdade a ordem jurídica pátria não considerará a conduta do autor antijurídica (contrária ao direito).

Nesse sentido, o Código Penal prevê em seu artigo 25 que "entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem".

O mesmo ocorre com o crime de aborto.

O direito à vida intra-uterina não é ilimitado e absoluto, pois tal direito pode, e por diversas vezes irá entrar em choque contra outros direitos legitimamente reconhecidos pela ordem jurídica, e por vezes tais direitos estarão igualmente prestigiados e protegidos por normas de natureza constitucionais.

Tanto é assim que de forma específica trata do crime de aborto o art. 128 do Código Penal, prevendo que:

Art. 128. Não se pune o aborto praticado por médico:

I – se não há outro meio de salvar a vida da gestante;

II – se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.

Como se pode perceber, na primeira hipótese o móvel que faz restringir o direito à vida intra-uterina seria o fato da vida da gestante estar correndo um perigo eminente, caso a gravidez não seja interrompida, enquanto no segundo caso, a vida do feto é restringida em homenagem à dignidade da pessoa da gestante, impedindo que esta leve ao seu termo uma gravidez fruto de uma violência sexual.

Essas duas, em tese, seriam as únicas hipóteses em que a vida intra-uterina poderia ser restringida. Ocorre que a evolução histórico-social, sempre reclama do hermeneuta uma solução nova para questões que aparecem no cotidiano social.

Não é sem motivo que há algum tempo se consolidou que o aborto praticado por enfermeiro, quando existe perigo de vida para a gestante, não é crime, assim como no caso da gravidez ser decorrente de um atentado violento ao pudor (quando esse tipo existia), e o aborto, igualmente, em tal hipótese, não era punido, isso segundo a doutrina e jurisprudência pátrias que, com base em uma legislação antiga e longe de uma sociedade como a hodierna, transformaram a Lei mediante técnicas interpretativas.

Nesse sentido, Julio Fabrini Mirabete defende que "resultando a gravidez não de estupro, mas de atentado violento ao pudor (art. 214), aplica-se o dispositivo, isentando-se o agente, pela aplicação da analogia in bonan partem" (2006, p. 70).

Quanto ao aborto na hipótese do inciso I do artigo 128, a doutrina argumenta que quando praticado por enfermeiro não se aplica tal dispositivo, mas sim o artigo 24, pois nesse caso o enfermeiro age em estado de necessidade.

Assim argumenta Damásio Evangelista de Jesus (2005, p.128):

E se o aborto for praticado por enfermeira?

Depende. Tratando-se de aborto necessário, em que não há outro meio de salvar a gestante, não responde por delito. Não por causa do art. 128 uma vez que esta disposição só permite a provocação por médico. Na hipótese, a enfermeira é favorecida pelo estado de necessidade previsto no art. 24 do estatuto penal, que exclui a ilicitude do fato.

Dessa forma, embora a priori se chegue à errônea conclusão de que os termos do artigo 128 são peremptórios e restritos, certo é que já se construíram doutrinariamente novas hipóteses de exclusão de ilicitude do delito de aborto em casos não explicitamente previstos em tal artigo de Lei.

3.3 Crime de Aborto: Noções Gerais

O Direito Penal protege a vida humana desde o instante em que o novo ser é gerado. Agora serão tecidos alguns comentários acerca das características gerais do crime de aborto, que está tão intimamente relacionado com o objeto do presente ensaio, a começar pela explicação de quando tem início a vida humana.

Com a fecundação, união do espermatozóide com o óvulo, o que faz nascer de tal união o ovo, que posteriormente evolui para o embrião, e deste se chega ao feto, sendo que o conjunto de todas essas etapas constitui e marca a primeira fase da formação da vida humana. Toda essa primeira fase da vida humana já gerada no ventre materno se encontra prestigiada pelas normas jurídicas protetivas da vida humana intra-uterina.

Mas, o que seria o crime de aborto?

Julio Fabrini Mirabete conceitua este como sendo a "interrupção da gravidez com a destruição do produto da concepção". O autor ainda traz à colação de que não é necessária para a ocorrência de aborto a expulsão do produto da concepção para a ocorrência deste, pois pode esse produto "ser dissolvido, reabsorvido pelo organismo da mulher ou até mumificado, ou pode a gestante morrer antes da expulsão", e mesmo assim "não deixará de haver, no caso, o aborto"(2006, p. 62).

Damásio Evangelista de Jesus conceitua aborto, como sendo "a interrupção da gravidez com a conseqüente morte do feto (produto da concepção)"(2005, p. 119).

Do conceito de Jesus, pode-se perceber que o crime de aborto é a supressão, ou violação da vida humana intra-uterina, em que o desenvolvimento do ser é obstado e sua vida exterminada, quando ainda se desenvolvia no ventre materno.

Assim, pode-se conceituar aborto como a interrupção da gravidez antes que seja atingido o limite fisiológico para o nascimento do ser, o que compreenderá do período entre a concepção e o início do parto.

Nesse sentido, Cesar Roberto Bitencourt afirma que aborto é a "interrupção da gravidez antes de atingir o limite fisiológico, isto é, durante o período compreendido entre a concepção e o início do parto, que é o marco final da vida intra-uterina" (2008, p.135).

Para que o crime de aborto seja consumado é necessário " a interrupção da gravidez e a morte do feto", sendo, portanto, "desnecessária a existência de expulsão" do produto da concepção (MIRABETE, 2006, p.65).

É necessário, para a existência deste delito, que o feto esteja vivo, pois a morte do produto da concepção deve ser resultado das manobras abortivas, sob pena de ocorrer na verdade um crime impossível, que na realidade não constitui crime algum.

Nesse sentido a doutrina afirma que "o crime de aborto pressupõe gravidez em curso e é indispensável que o feto esteja vivo. A morte do feto tem de ser resultado direto das manobras abortivas" (BITENCOURT, 2008, p.135).

O bem jurídico tutelado por esta norma penal é a vida intra-uterina, ou seja, a vida do ser humano em formação. É bom que se esclareça que o feto ou embrião não podem ser considerados uma pessoa, mas sim uma potencialidade de pessoa que recebe tratamento e defesa jurídica específica. Nos casos em que o aborto é praticado por terceiro, o tipo penal também prestigia a incolumidade física e a vida da gestante, que pode ter sua saúde e vida prejudicados, devido às manobras abortivas.

Nesse sentido, afirma o doutrinador:

Tutela-se nos artigos em estudo a vida humana em formação, a chamada vida intra-uterina, uma vez que desde a concepção (fecundação do óvulo) existe um ser em germe, que cresce, se aperfeiçoa, assimila substâncias, tem metabolismo orgânico exclusivo e, ao menos nos últimos meses da gravidez, se movimenta e revela uma atividade cardíaca. Protege-se a vida e a integridade corporal da mulher gestante no caso de aborto provocado por terceiro sem seu consentimento (MIRABETE, 2006, p. 62 e 63).

Como já mencionado, o crime de aborto fora dividido em três tipos penais distintos que recebem tratamento jurídico autônomo.

O primeiro tipo penal que trata do crime de aborto, tipificado no artigo 124, é o aborto provocado pela gestante ou com o seu consentimento. Nesse tipo penal, a gestante pode praticar duas condutas típicas que podem interromper sua própria gravidez, quais sejam, ela mesma pode provocar o aborto em si própria (auto-aborto) ou esta pode consentir em que outra pessoa provoque o aborto, mas nesse segundo caso o consentimento não é o bastante, exigindo-se que o aborto seja executado por um terceiro, ou que as manobras abortivas tenham início, ainda que o produto da concepção não venha a morrer.

Em ambos os verbos do tipo, o crime será de mão própria, o que exigirá do sujeito ativo uma qualidade específica, que seria ser a gestante no caso concreto. Apesar disso, pode ocorrer que terceiros contribuam como partícipes, e por meio de atividades acessórias contribuam para que ocorra o evento delituoso, como quando um terceiro, induz, instiga ou auxilia a gestante a praticar o auto-aborto ou a que esta consinta em que outra pessoa provoque o aborto nesta.

Nesse diapasão, afirma Dámasio Evangelista de Jesus (2005, p. 124):

É admissível a participação na hipótese em que terceiro induz, instiga ou auxilia de maneira secundária a gestante a provocar aborto em si mesma. Se, porém, o terceiro executar ato de provocação do aborto, não será partícipe do crime do art. 124, mas sim autor do fato descrito no art. 126 (provocação de aborto com consentimento da gestante).

Dessa forma, caso o terceiro não se limite a praticar uma atividade acessória, e mediante atos executórios intervenha efetivamente na gravidez da gestante causando a morte do feto ou embrião, não responderá pelo delito previsto no artigo 124 do Código Penal, tendo em vista que a natureza deste, crime de mão própria, não admite que isso ocorra. Responderá o terceiro que praticou o aborto pelo delito previsto no artigo 126 do mesmo codex, no que constitui uma exceção à teoria monista da ação, pela qual todos os co-autores e partícipes respondem por crime único na medida da culpabilidade de cada um deles, teoria inclusive adotada pelo Código Penal pátrio, com fulcro no artigo 29 do mesmo diploma legal.

No caso em tela, o terceiro que pratica o aborto responde por um tipo penal, enquanto a gestante que consentiu responde por delito diverso. Pelo que, pode-se concluir que tal delito não admite co-autoria.

O segundo tipo penal que trata do crime de aborto é o aborto provocado sem o consentimento da gestante. Nesse caso, um terceiro provoca o aborto na gestante, causando a morte do produto da concepção, mas sem que ela consinta em que ele pratique tal ato.

O aborto praticado sem o consentimento da gestante é o que recebe a maior reprimenda penal, e pode ser classificado em aborto sem o consentimento real ou aborto com ausência de consentimento presumido.

No primeiro caso, previsto no artigo 125 do Código Penal, a gestante tem total capacidade para consentir que outrem lhe provoque o aborto, contudo, esta não consente; enquanto que no segundo caso, previsto no parágrafo único do artigo 126, a gestante pode chegar até materialmente a consentir, mas a norma penal afasta tal consentimento porque o mesmo não pode ser, juridicamente, prestigiado, como nos casos em que a gestante não tem idade superior a 14 anos, é alienada ou débil mental.

Damásio Evabgelista de Jesus, ao comentar essa espécie de aborto, afirma que o "dissentimento da ofendida pode ser real ou presumido. Real, quando o sujeito emprega violência, fraude ou grave ameaça. Presumido, quando ela é menor de 14 anos, alienada ou débil mental" (2005, p. 125).

O que se observa é que para a adequação típica é necessário o não consentimento da gestante, que é elemento essencial do tipo penal, e se este existir, o aborto não será o tipificado no artigo 125 do Código Penal, mas, sim, o ilícito previsto no artigo 126, caput, do mesmo diploma legal.

Qualquer forma de provocar o aborto sem o consentimento da gestante constitui o crime tipificado no artigo 125, não sendo essencial que haja a violência, grave ameaça ou fraude, podendo ser praticado o abortamento com simulações ou dissimulações do sujeito ativo, que sejam capazes de burlar a atenção ou vigilância da gestante.

Assim, para a ocorrência do delito do artigo 125 "é suficiente que a gestante desconheça que nela está sendo praticado um aborto" (BITENCOURT, 2008, p. 138).

Por fim, tem-se o tipo penal de aborto, conhecido como aborto consensual, tipificado no artigo 126, caput, do Código Substantivo Penal, que consiste no aborto praticado por terceiro, após a gestante ter consentido que este provocasse o aborto nela.

Já foi explicado que, no caso em questão, responderá o terceiro que praticou o aborto pelo crime tipificado no artigo 127, enquanto a gestante que consentiu responderá pelo ilícito previsto no artigo 124, por praticar o verbo consentir previsto em tal artigo de Lei.

Dessa forma:

Define-se no art. 126 a provocação do aborto com o consentimento da gestante. Esta responderá pelo crime previsto no art. 124 e aquele que pratica as manobras abortivas ou causa o aborto de outra forma será punido pelo crime em estudo, com pena mais severa (MIRABETE, 2006, p. 67).

É relevante informar que, além da gestante responder por crime diverso do crime ao qual estará incurso o terceiro que, com o consentimento desta, praticou o aborto, o crime do terceiro possui pena superior à prevista para a gestante que o consentiu, haja vista que, devido a critérios de política criminal, os nossos legisladores de 1940 acabaram por optar que deveria haver um nível de reprovabilidade maior da conduta do terceiro que efetiva e materialmente comete o aborto, em relação à conduta da gestante que se limita a consentir em que esse terceiro provoque o aborto nela.

Diante de todo o exposto, é possível vislumbrar que o crime de consentir em que outrem pratique aborto em si mesma, e o aborto com consentimento da gestante, são crimes de concurso necessário, exigindo uma conduta da gestante (consentir) e uma do terceiro (provocar aborto).

No aborto provocado por terceiro, com ou sem o consentimento da gestante, o sujeito ativo poderá ser qualquer pessoa, não se exigindo em tais hipóteses nenhum tipo de qualidade especial do sujeito ativo. No delito do artigo 124 "o sujeito ativo é a gestante, tratando-se, assim, de crime especial ou próprio" (MIRABETE, 2006, p. 63).

O sujeito passivo do crime de aborto, nos casos de auto-aborto e aborto consentido (artigos 124 e 125) é o produto da concepção, o que engloba o óvulo, embrião e o feto, sem embargo das opiniões em contrário de alguns doutrinadores, que defendem que o sujeito ativo de tal delito seria a sociedade, pois o que aqui se defende é que o produto da concepção do delito sub examine possui um tratamento autônomo, em que se protege a potencialidade de uma vida humana, vida esta distinta da própria vida materna, embora dependente desta.

Sendo assim, o sujeito passivo do crime de aborto "é o feto, ou, genericamente falando, o produto da concepção, que engloba óvulo, embrião e feto" (BITENCOURT, 2008, p. 134).

Em sentido contrário, Julio Fabrini Mirabete afirma que "não é o feto, porém, titular de bem jurídico ofendido, apesar de seus direitos de natureza civil resguardados. Sujeito passivo, portanto, é o Estado ou a comunidade nacional" (2006, p. 63).

Quando o aborto é praticado por terceiro sem o consentimento da gestante, esta última também será sujeita passiva do crime, juntamente com o produto da concepção, ocorrendo nesse caso uma dupla subjetividade passiva.

Para encerar estas noções gerais acerca do crime de aborto, cabe lembrar que o elemento subjetivo de tal delito é o dolo, dessa forma, o aborto apenas "é punível a título de dolo, vontade de interromper a gravidez e de causar a morte do produto da concepção" (JESUS, 2005, p. 123).

O dolo nesse delito pode ser direto ou eventual, e a legislação penal não prevê a figura típica do aborto culposo.

3.4 Princípio da Proporcionalidade

O Direito, e porque não dizer mais especificamente o nosso ordenamento jurídico brasileiro, fora construído no intuito de que este fosse harmônico, e é isso que se espera de um sistema, que este seja um conjunto harmônico de diversas partes que podem ser consideradas autônomas, mesmo assim interligadas.

Esse ordenamento fora criado em distintas épocas e por representantes populares diversos, o que às vezes faz com que esse sistema jurídico não seja tão harmônico como se espera que sempre seja.

O ordenamento jurídico pátrio tem como marca característica a sua organização hierárquico-normativa, em que algumas normas se sobrepõem às outras, como, por exemplo, a Constituição, que é a norma mais importante nessa hierarquia normativa.

Como norma superior de nosso ordenamento, cabe a todas as normas de cunho inferior buscar na Constituição o seu fundamento de validade, pois do contrário a norma de menor hierarquia será eliminada do nosso ordenamento, seja porque esta é incompatível com a atual ordem constitucional, sendo pois não recepcionada, seja porque a norma está eivada de inconstitucionalidade.

No caso especificado do parágrafo anterior, é evidente que a regra para solução do conflito de normas é que seja excluída a norma inferior e privilegiada a norma de natureza superior, mas indaguemos: e se as normas fossem de mesma hierarquia? Existem, por exemplo, princípio constitucional mais importante que outro? Na solução desse conflito deveria se excluir de nosso sistema um princípio constitucional porque o outro é mais prestigiável?

Alguns doutrinadores acreditam que existe entre os princípios constitucionais hierarquia, podendo-se afirmar teoricamente que um princípio constitucional é superior a outro, nesse sentido defende Geraldo Ataliba, citado por George Marmelstein Lima, que "mesmo no nível constitucional, há uma ordem que faz com que as regras tenham sua interpretação e eficácia condicionadas pelos princípios. Estes se harmonizam, em função da hierarquia entre eles estabelecida, de modo a assegurar plena coerência interna ao sistema (...)" (LIMA, 2002).

Contudo, sustenta-se aqui que tal afirmação é destituída de veracidade, na verdade não há que se falar em hierarquia entre princípios constitucionais, porque, sob o ponto de vista jurídico, todos os princípios constitucionais têm sua importância dentro do nosso ordenamento, e esse choque de princípios que muitas vezes ocorre dá-se pelo fato de a Constituição ter sido tão democrática, que acabou por privilegiar interesses antagônicos, sendo assegurados na mesma Constituição valores liberais, como por exemplo trazendo os princípios da liberdade e da propriedade, como princípios (valores) de natureza social, como o direito a um trabalho e à dignidade da pessoa humana.

Se de um lado a Constituição dá ênfase ao direito de informação, por outro defende expressamente a intimidade, princípios que por várias vezes sempre estarão em tensão.

Nesse sentido, afirma George Marmelstein Lima (2002):

Existem, é certo, princípios com diferentes níveis de concretização e densidade semântica, mas nem por isso é correto dizer que há hierarquia normativa entre os princípios constitucionais. Com efeito, como decorrência imediata do princípio da unidade da Constituição, tem-se como inadmissível a existência de normas constitucionais antinômicas (inconstitucionais), isto é, completamente incompatíveis, conquanto possa haver, e geralmente há, tensão das normas entre si.

Sendo assim, e com base nas afirmações do referido autor, não há que se pensar, no ordenamento jurídico em tela, na possibilidade de existência de normas constitucionais, provenientes do poder constituinte originário, inconstitucionais, tendo em vista que isso macularia a própria finalidade da Constituição, qual seja, conferir unidade a todo o nosso ordenamento. Aceitar a possibilidade de existência de antinomia entre os princípios constitucionais seria afirmar que a Constituição não é, ela mesma, dotada de unidade, donde se pode concluir que ela jamais seria capaz de trazer unidade ao restante do ordenamento.

Existem três critérios para a solução das colisões quando se trata de normas jurídicas infraconstitucionais antinômicas: o critério cronológico, em que a norma posterior revoga a anterior; o critério hierárquico, já antes explicitado, em que a norma inferior é revogada pela norma superior; e o critério da especialidade, em que uma norma especial afasta a aplicação de uma norma geral.

No entanto, esses critérios servem unicamente para os casos de antinomia entre normas jurídicas comuns, e normalmente dá-se entre elas a total exclusão da norma que sucumbe à norma que prevalece, o que não ocorre com os princípios constitucionais, haja vista que não há que se falar em antinomia entre eles, pois não se pode simplesmente excluir um dado princípio constitucional do nosso ordenamento pelo simples fato de que este possui uma colisão com outro princípio de igual valor constitucional em dada situação fática.

Diante disso, foi necessário o desenvolvimento teórico de um princípio que regularia essa tensão de princípios constitucionais, para possibilitar uma resolução dessa tensão.

E foi assim que nasceu o princípio da proporcionalidade, como o meio para se conseguir trazer harmonia no ordenamento jurídico quando houver colisão entre princípios constitucionais.

Esse princípio se daria da seguinte forma, os direitos ou princípios fundamentais em colisão terão que ser harmonizados, naquele determinado caso concreto, por meio de uma ponderação com o fito preservar e concretizar ao máximo os princípios constitucionais protegidos.

Dessa forma, nesse caso não se procura excluir a aplicação de qualquer dos princípios em tensão, mas sim se busca harmonizá-los, tentando fazer com que ambos sejam aplicáveis àquela situação concreta.

Note-se que ainda assim é necessário que seja feito um juízo de importância dos princípios em colisão no caso concreto, pois, embora não seja a finalidade do princípio da proporcionalidade a exclusão do princípio que naquele caso é menos prestigiável, inelutavelmente ocorrerá um aumento do volume de aplicação de dado princípio e, em contrapartida, uma diminuição do espectro de aplicação da norma de menor importância naquele caso, mas jamais ocorrerá a total exclusão de aplicação desse princípio menos favorecido no caso concreto, o que se busca com o princípio da proporcionalidade não é a exclusão de um princípio, mas a harmonia de ambos.

Em acordes com todo o exposto, cabe trazer à baila quatro itens da conclusão do inclito jurista:

e) duas soluções foram desenvolvidas pela doutrina estrangeira e vêm sendo comumente utilizada pelos Tribunais para solucionar casos em que dois princípios entram em rota de colisão. A primeira é a da concordância prática (Hesse); a segunda, a da dimensão de peso ou importância (Dworkin);

f) a concordância prática pode ser enunciada da seguinte maneira: havendo colisão entre valores constitucionais (normas jurídicas de hierarquia constitucional), o que se deve buscar é a otimização entre os direitos e valores em jogo, no estabelecimento de uma harmonização, que deve resultar numa ordenação proporcional dos direitos fundamentais e/ou valores fundamentais em colisão, ou seja, busca-se o ‘melhor equilíbrio possível entre os princípios colidentes’;

g) na dimensão de peso e importância, quando se entrecruzam vários princípios, quem há de resolver o conflito deve levar em conta o peso relativo de cada um deles, não se aplicando, tal como ocorre com as regras, o critério do tudo ou nada;

h) em todo caso, o princípio da proporcionalidade deve ser utilizado pelo operador do direito como meta-princípio, ou seja, como "princípio dos princípios", visando, da melhor forma, preservar os princípios constitucionais em jogo (LIMA, 2002).

3.5 Lei nº 9.434/97 e a Definição Legal do Momento da Morte

Aos 04 dias do mês de fevereiro do ano de 1997, fora sancionada pelo então Presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, a Lei nº 9.434, que versava sobre a remoção de órgãos, tecidos e partes do corpo de seres humanos para fins de transplante e tratamento.

Tal legislação passou a regular a retirada em seres humanos sem vida de partes de seus corpos, com o fito de que com estes sejam possíveis o transplante e tratamento de outras pessoas ainda vivas que se encontrem em risco de vida, ou que sofrem de alguma deficiência que demande partes de corpo de outras pessoas para a cura ou tratamento.

Essa Lei tem clara finalidade ético-humanitária, que seria a de retirar órgãos de outros seres humanos já sem vida para possibilitar àqueles que ainda possuem alguma chance de viver, mas se encontram em situação de saúde precária, dando a estes a chance de continuar vivendo, como, por exemplo, no caso de uma pessoa que precisa de um transplante de coração, ou que dê a possibilidade para que a pessoa possa viver com mais dignidade e possa alcançar o ideal de felicidade, como no exemplo do transplante de olhos.

A entrada desta Lei em nosso ordenamento jurídico causou uma certa polêmica quanto a alguns de seus dispositivos, dentre os quais o da presunção de vontade da pessoa sem vida de doar seus órgãos quando não expressamente manifeste a vontade em contrário quando ainda vivas.

Mas essas questões polêmicas envolvendo a supramencionada Lei não interessam para o desenvolvimento do trabalho aqui proposto.

A grande inovação desta Lei no que pertine ao objeto deste ensaio foi, sem dúvida, que esta trouxe de forma inédita em nosso ordenamento jurídico o momento cronológico em que o legislador decidiu em que momento a vida humana chega a seu termo final.

Motivo pelo qual aqui é aberta a oportunidade de comentar, ainda que de forma concisa essa legislação no bojo do presente ensaio.

Essa legislação afastou de uma vez por todas a discussão de quando pode ser considerada a morte do ser humano, se quando ocorre a chamada morte cardiorrespiratória, que ocorreria quando ocorre a cessação dos batimentos cardíacos e dos movimentos respiratórios, ou a morte cerebral que ocorre quando o cérebro cessa de forma irreversível o seu funcionamento.

Nesse sentido dispõe a mencionada Lei:

Art. 3º A retirada post mortem de tecidos, órgãos ou partes do corpo humano destinados a transplante ou tratamento deverá ser precedida de diagnóstico de morte encefálica, constatada e registrada por dois médicos não participantes das equipes de remoção e transplante, mediante a utilização de critérios clínicos e tecnológicos definidos por resolução do Conselho Federal de Medicina.

Como se pode inferir do texto legal, optou o legislador por considerar o momento em que o ser humano deixa de viver o exato instante em que é constata a sua morte cerebral, o que possibilitará a retirada dos órgãos do ser para que sejam atingidos os elevados fins desta Lei.

No artigo está claro que a retirada de órgão e tecidos após o diagnóstico de morte encefálica, devidamente realizada por dois médicos não integrantes das equipes de remoção e transplantes, constitui retirada post mortem (após a morte), o que evidencia que após tal diagnóstico o ser humano é destituído de vida.

Assim, a partir da morte cerebral, não há que se falar que o ser que fora objeto de tal diagnóstico ainda possa ser considerado vivo.

Evidente que tal legislação não constitui violação do direito à vida, pelo que não se pode considerar que a remoção nesse caso ocorre num ser ainda vivo, mas que a partir daquele instante o ser não mais vive.

Dessa forma, se coube à Constituição Federal prever a defesa do direito à vida da forma mais genérica possível, à Lei nº 9.434/97 coube definir o momento em que a vida humana chega a seu fim, delimitando e dando contornos mais claros a tal direito.

Nesse diapasão, essa Lei delimitou o momento em que a vida chega a seu momento final, explicitando o que a nossa Constituição não fez e nem uma Lei, antes ou depois desta, sendo que essa definição nos ajudará na solução mais adequada aos casos de anencefalia, que será objeto do próximo ponto.

3.6 Anencefalia

A anencefalia é a ausência total ou parcial da abobada craniana, que é proveniente de um defeito de fechamento do tubo neural. Assim, nos casos de anencefalia, o ser humano não possui cérebro, total ou parcialmente, sendo que essa patologia torna inviável a vida do ser, pois não existe registro de ser humano que viva sem possuir cérebro.

Nesse sentido cabe trazer à colação as palavras de Poliana Guimarães Rezende (2006):

A anencefalia é uma patologia congênita que afeta a configuração encefálica e dos ossos do crânio que rodeiam a cabeça. A conseqüência deste problema é um desenvolvimento mínimo do encéfalo, o qual com freqüência apresenta uma ausência parcial ou total do cérebro (região do encéfalo responsável pelo pensamento, a vista, o ouvido, o tato e os movimentos). A parte posterior do crânio aparece sem fechar e é possível, ademais, que faltem ossos nas regiões laterais e anterior da cabeça.

A razão mais comum para que o produto da concepção desenvolva anencefalia seria uma deficiência de ácido fólico. Mas alguns defendem que a causa é multifuncional, em que circunstâncias nutricionais e ambientais poderiam influenciar indiretamente como elemento causador dessa deficiência. Seriam causas da anencefalia a "exposição da mãe durante os primeiros dias de gestação a produtos químicos e solventes; irradiações; deficiência materna de vitamina do complexo B, especialmente o ácido fólico; alcoolismo e tabagismo". (REIS, 2007).

O diagnóstico de anencefalia pode ser realizado a partir de doze semanas, por meio de ultra-sonografia, haja vista que nesse período já é possível a visualização por intermédio desse exame do segmento cefálico do feto.

Em todos os casos, a anencefalia leva o produto da concepção à morte, sendo que na maioria das vezes o feto morre ainda no ventre materno, enquanto os que conseguem nascer ainda com vida acabam morrendo na primeira semana após o nascimento.

Nesse sentido, informa o doutrinador:

Em decorrência dessas graves carências do processo de desenvolvimento embrionário, o anencéfalo guarda, em altíssimo percentual, incompatibilidade com os estágios mais avançados da vida intra-uterina e total incompatibilidade com a vida extra-uterina. Aproximadamente 65% dos fetos afetados morrem ainda no período intra-uterino, enquanto que, dos 35% que chegam a nascer, a imensa maioria morre dentro de 24 horas e o resto dentro da primeira semana (REIS, 2007).

Durante e após o parto do feto portador de anencefalia, afirma a doutrina, podem acontecer algumas complicações que não seriam comuns às gestações de fetos que não possuem essa deficiência.

Adriana Tenorio Antunes Reis (2007) deixa explícito quais seriam:

Entre as complicações que podem ocorrer durante e após a gestação do feto anencefálico, estão relacionadas as seguintes: prolongamento da gestação além do período normal de quarenta semanas; aumento do líquido amniótico, o que pode ocasionar dificuldades de respiração, de funcionamento do coração da gestante e até levá-la à morte; aumento da pressão arterial, comprometendo o bem-estar físico da gestante; puerpério com maior incidência de hemorragias maternas por falta de contratibilidade uterina; maior incidência de infecções pós-cirúrgicas devido às manobras obstétricas do parto de termo; alterações comportamentais e psicológicas de grande monta para a gestante.

Após a entrada em vigor da Lei de transplantes, a anencefalia ganhou contornos mais complexos, quanto à questão de existência ou não de vida quando o produto da concepção é portador desta patologia, tendo em vista que a mencionada Lei definiu que o fim da vida humana é marcado pela morte cerebral, e o feto portador de anencefalia não possui cérebro.

Nesse raciocínio, fica mais polêmica ainda a questão de se o aborto de feto anencefálico constitui, ou não, crime, o que será mais debatido no capítulo que se segue.


4. ABORTO ANENCEFÁLICO

Agora será abordado um tema que há algum tempo vem suscitando diversas dúvidas quanto à solução mais condizente com as normas legais, constitucionais e diversos princípios da ordem jurídica brasileira, o abortamento quando, comprovadamente, o produto da concepção (feto ou embrião) é portador de anencefalia.

Já foi visto no presente ensaio que quando o produto da concepção é portador de anencefalia, a sua abóbada craniana é total ou parcialmente inexistente, o que inviabiliza a vida extra-uterina do produto da concepção pouco tempo após este sair do ventre materno.

O Código Penal, como já abordado, apenas prevê duas causas excludentes de ilicitude especiais para o crime de aborto, quais sejam: o aborto necessário, quando um médico pratica o aborto, pois esta é a única forma de salvar a vida da gestante, ou o aborto humanitário ou ético, quando um médico prática um aborto na gestante que fora vítima de crime de estupro, desde que essa consinta com o abortamento.

São essas, e apenas essas, as hipóteses previstas no Código Criminal, fora disso, a gestante ou terceiro que pratique aborto nesta, comete crime, e logo estará sujeito à reprimenda penal.

Apesar de tal codificação ter sofrido durante as décadas diversas modificações, sempre no intuito de torná-la mais atual, a verdade é que esta em vários aspectos tornou-se obsoleta, não atendendo mais aos reclamos sociais.

O processo de elaboração das leis brasileiras, que como todo processo legislativo de qualquer Estado sofre influências de cunho político e social, sendo ainda cheio de formalidades, acaba sendo comumente muito moroso para se chegar a uma solução para cada caso novo que surge em nossa sociedade, o que faz exigir do jurista uma interpretação que seja privilegiadora dos direitos e garantias fundamentais, interpretação que dê à Lei antiga vida nova, condizente com nossa realidade.

A grande verdade é que na década de 1940, ocasião em que o Código Penal fora promulgado, a ciência médica não possuía condições técnicas de definir se um feto, ainda guardado no ventre materno, era portador, ou não, de anencefalia, o que, atualmente, é plenamente possível, e por tais razões a sociedade reclama dos juristas uma solução para tais casos que seja mais adequada à nossa realidade.

Ora, o Direito Penal não pode ficar aquém da realidade, como ciência deve evoluir e tentar apontar uma solução para os casos de fetos portadores de anencefalia, pois a atual cultura e realidade social são bastante diferentes da realidade de 1940, e se a mutabilidade social sempre exigiu do Direito soluções para esses casos novos, no atual milênio em que tais mudanças são mais acentuadas e rápidas, pois se vive numa mutabilidade qualificada, que seria um estágio de evolução tão grande, decorrente da globalização e avanços cientifico-sociais que faz com que a sociedade evolua cada vez mais rapidamente, o que exige uma resposta que deverá ser ainda mais rápida e eficaz.

Nesse sentido, colaciona um ínclito jurista:

Transcorridos mais de sessenta e cinco anos da promulgação do Código Penal brasileiro de 1940, cuja Parte Especial ainda se mostra em vigor, questionam-se muitos de seus dispositivos, esquecendo-se, geralmente, que a vida é dinâmica, e que não só os usos e costumes evoluem, como também, e principalmente, a ciência e a tecnologia, de tal sorte que aquele texto publicado em 1940 deve ser adaptado à realidade atual mediante os métodos de interpretação, dando-se-lhe vida e atualidade para disciplinar as relações sociais deste início de novo milênio. Com Efeito, o Direito Penal não pode ficar alheio ao desenvolvimento tanto da ciência quanto dos usos e costumes, bem como da evolução histórica do pensamento, da cultura e da ética em uma sociedade em constante mutação. O Direito Penal – não se ignora essa realidade – é um fenômeno histórico-cultural que se submete permanentemente a um interminável processo de ajustamento de uma sociedade dinâmica e transformadora por natureza (BITENCOURT, 2008, p.146-147).

Assim, cabe ao cientista (jurista) analisar a legislação criada para outras épocas, amoldando a atual realidade, teorizando a melhor forma de se superar os impasses que nascem na sociedade.

Exemplo dessa interpretação mais condizente com a sociedade contemporânea e das mudanças sociais, segundo voz uníssona da doutrina pátria, é o fato de o aborto necessário poder ser praticado por enfermeira, embora o texto legal apenas preveja a exclusão de ilicitude quando o abortamento é provocado por médico.

Outro exemplo ocorre no caso do aborto humanitário, quando a gravidez é fruto de atentado violento ao pudor, sendo que o texto legal apenas menciona estupro. É importante salientar que com a inovação trazida pela Lei nº 12.015, de 07 de agosto de 2009, não mais existe o tipo penal autônomo de atentado violento ao pudor, ocorrendo uma imigração da ação de praticar ato libidinoso diverso da conjunção carnal para o tipo previsto no artigo 213 do Código Penal, constituindo, pois, atualmente, crime de estupro.

Como se vislumbra, em tais situações a doutrina adéqua a lei obsoleta às mudanças sociais, dando solução condizente com a realidade.

Anteriormente, no presente trabalho, foi abordado que a Constituição Federal traz no bojo dos direitos fundamentais da pessoa humana o direito à vida, de forma bastante ampla, não dando contornos mais precisos da tutela e limites deste direito.

O Código Penal protege a vida tanto intra quanto extra-uterina, sendo que coube à doutrina definir quando termina a vida intra-uterina e começa a vida extra-uterina, para efeitos de definir quando fato constitui crime de aborto ou homicídio; comumente, essa definição doutrinária está pautada em estudos da Medicina, tendo em vista que o Direito e os seus cientistas não poderiam se furtar das contribuições de outras ciências.

Mas todos os direitos, como fenômeno social que são, não podem ser considerados como absolutos, às vezes, até o mais fundamental dos direitos, se é que algum direito pode ser taxado de superior ao outro, entra em choque com outros direitos igualmente prestigiáveis na ordem legal pátria.

Não foi por outro motivo que se criou o princípio da proporcionalidade tão utilizado no Direito Constitucional brasileiro, e sempre norteador das decisões do Supremo Tribunal Federal, quando direitos e garantias fundamentais entram em choque, o que faz ser necessário o aumento do espectro de abrangência de um direito fundamental com uma limitação ou encolhimento de outro direito fundamental que é menos prestigiável em dada situação fática.

É relevante informar que o aborto não constitui apenas uma violência contra o feto, é também uma violência física contra a mulher, e por tal razão é que se aponta nesse estudo que não se está tratando de uma obrigação para a gestante, e sim uma faculdade à disposição desta.

Está-se defendendo a própria dignidade da pessoa humana da gestante, haja vista que obrigá-la a abortar um feto contra a sua vontade seria uma dupla violência, física e psíquica.

Assim como é condenável obrigar uma mulher a abortar um feto sem seu sincero desejo, seria igualmente atentatório à sua personalidade, ou melhor, à sua dignidade; obrigá-la a levar a um termo final em seu ventre, não uma fonte de infindáveis alegrias, uma criança saudável que viverá muitos anos compartilhando a vida familiar com ela (gestante). Pelo contrário, se o feto é portador de anencefalia, devidamente comprovada por perícia médica, a vida desse feto fora do ventre de sua mãe é inviável, haja vista que o produto da concepção será apenas uma razão de tormento, de tristeza e de sofrimento, uma vez que uma mãe que deveria se preparar para celebrar a vida de seu filho, passará a contar os duros dias para promover o enterro deste.

É uma situação por demais brutal, obrigá-la a levar essa gravidez até o fim, certamente nove meses em tais circunstâncias seria um período muito longo e que traria graves distúrbios de cunho psicológico, evidentemente prejudicial à sua dignidade de pessoa humana, princípio basilar da Constituição Federal, a saber:

Art. 1º A Republica Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

I - ... (omissis)

II - ... (omissis)

III - ... a dignidade da pessoa humana.

Eis o choque entre dois princípios constitucionais, de um lado o direito à vida intra-uterina; do outro, a dignidade de pessoa humana da gestante.

A vida é um direito, como qualquer outro, passível de limitação quando em choque com outro direito fundamental, exemplos claros e pertinentes disso são as causas específicas excludentes de ilicitude do aborto previstas no art. 128 do Código Penal, a hipótese do inciso I se reporta a choque entre o direito à vida da gestante e da vida do feto, enquanto o inciso II privilegia, em detrimento da vida do feto, a dignidade da gestante, vítima de crime brutal contra sua liberdade sexual, pois se essa gravidez fosse levada a seu termo final, indiscutivelmente a gestante poderia sofrer enormes distúrbios psicológicos, tratamento por demais degradante.

Nesse sentido, reza a Constituição Federal:

Art. 5º Todos São Iguais perante a Lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no Pais a inviolabilidade do direito á vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e a propriedade, nos termos seguintes:

I - ... (omissis)

II - ... (omossis)

III – ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante;

Acrescente, ao que foi dito até aqui, que durante muito tempo em nosso sistema jurídico não estava definido, ao certo, em que instante a vida teria seu termo final, o que tornava igualmente duvidoso até que momento a vida existe e merece ser prestigiada pelo ordenamento jurídico pátrio.

Isso mudou em 1997, quando fora promulgada a Lei de Transplantes de Órgãos, Lei nº 9.434/97, pois esta legislação autoriza que sejam extraídos os órgãos de uma pessoa com o reconhecimento da morte cerebral.

Assim, segundo tal legislação, ainda que os demais órgãos estejam em pleno funcionamento, a declaração de que o cérebro não mais possui vida dá ensejo a que uma equipe médica extraia os órgãos da pessoa, pois se estes não estivessem ainda vivos, de nada serviriam para fins de transplantes.

Apesar de tal legislação ter uma influência humanitária, não se pode concluir que ela permitiu que fosse autorizada a prática de homicídio contra as pessoas com morte encefálica declarada, por mais relevante que seja a finalidade desta, na verdade ela trouxe uma verdadeira definição legal de quando a vida termina.

Sendo assim, essa Lei definiu que a morte ocorre com a cessação dos sinais cerebrais (morte cerebral), espancando a possibilidade de continuidade da discussão se a vida tem fim quando o cérebro não possui sinais ou quando cessam os batimentos cardíacos e as atividades respiratórias (morte cardiorrespiratória ou clínica).

Como visto, no feto portador de anencefalia, o produto da concepção não possui a abóbada craniana, ou seja, não possui cérebro, então como pensar em crime de aborto no caso de feto anencefálico se, por previsão legal, a vida termina com a morte cerebral? Como esse fato seria crime de aborto se é necessário que o produto da concepção venha a morrer em decorrência das manobras abortivas se por definição da Lei a vida nem existe?

Quando se tratou do crime de aborto no seu momento específico foi constatado que neste era indispensável que a gravidez estivesse em andamento e o produto da concepção estivesse vivo, assim o crime de aborto se consumaria quando, em decorrência das manobras abortivas (nexo de causalidade entre conduta e resultado), adviesse a morte do produto da concepção.

Como o bem jurídico tutelado no crime de aborto é a vida intra-uterina, fica claro que embora dependente do organismo materno para crescer até possuir condições de viver fora do ventre materno, o produto da concepção, seja feto ou embrião, possui tratamento autônomo no ordenamento jurídico pátrio. O que a previsão do delito de aborto visa tutelar não é o ser humano já formado, mas sim a sua forma inicial de vida, a vida do produto da concepção.

Assim, é certo que no caso em testilha não há crime, porque na realidade não há, legalmente, vida a ser privilegiada porque esta nunca existiu, tendo em vista que o feto nunca possuiu um cérebro.

Quando ocorre um aborto de feto anencefálico não há que se falar em feto vivo, necessário para a ocorrência do delito de aborto, como não há que se imputar a morte do produto da concepção como decorrência das manobras abortivas, razão pela qual não há que se falar em delito, por não existir o bem jurídico tutelado pela norma penal incriminadora conforme a Lei de Transplantes, pois segundo tal legislação a morte do produto da concepção é anterior às manobras abortivas.

Junte-se a isso que em tais casos não há nexo de causalidade entre a conduta de efetuar as manobras abortivas e o resultado morte do feto, pois este nunca esteve vivo.

Portanto, fala-se na verdade de conduta atípica, pois o fato que ocorreu no mundo fenomênico não se amolda às circunstâncias fáticas previstas abstratamente na norma penal típica.

Nesse sentido, defende Cesar Roberto Bitencourt (2008, p.151):

Ora, se a "morte cerebral" significa a morte, ou, se preferirem, a ausência de vida humana, a ponto de autorizar o "esquartejamento médico" para fins científico-humanitários, o que se poderá dizer de um feto que, comprovado pelos médicos, nem cérebro tem? Portanto, a interrupção de gravidez em decorrência de anencefalia não satisfaz aqueles elementos que destacamos anteriormente, de que "o crime de aborto pressupõe gravidez em curso e é indispensável que o feto esteja vivo", e ainda que "a morte do feto seja resultado direto das manobras abortivas". Com efeito na hipótese de anencefalia, embora a gravidez esteja em curso, o feto não está vivo, e sua morte não decorre das manobras abortivas. Diante dessa Constatação, na nossa ótica, essa interrupção de gravidez revela-se absolutamente atípica e, portanto, sequer pode ser tachado como aborto, criminoso ou não.

Deve ser tratada agora a questão da culpabilidade, que também pode ser trazida à baila para análise do objeto do presente estudo.

A culpabilidade consiste na reprovação pessoal da conduta do agente que poderia se omitir da prática do ato ilícito praticado por ele. Assim, a culpabilidade tem sua essência na vontade, que deve ser, necessariamente, livre e consciente na consumação do delito.

Para a existência do crime, segundo o conceito analítico de crime, este deve ser um fato típico e antijurídico, mas para ser imposto ao autor do crime a reprimenda penal deve-se haver culpabilidade, pressuposto necessário à aplicação da pena, e isso apenas ocorrerá quando for possível ao autor do ilícito ter tido a possibilidade de agir de forma lícita.

Cabe ser lembrado que a consideração da culpabilidade como pressuposto da aplicação da pena é defendida de forma minoritária na doutrina pátria, considerando a grande maioria de doutrinadores que o crime é, necessariamente, um fato típico, antijurídico e culpável, conceito analítico não adotado no presente estudo.

Retornando ao tema em exame, não basta ao autor do crime ter o conhecimento de que sua conduta é criminosa, ele também deve, igualmente, possuir no caso concreto a possibilidade de agir de acordo com o conhecimento do injusto ou de forma contrária a este.

Ainda assim, existem casos em que, embora o autor seja imputável, tendo pleno conhecimento da existência do injusto, e tenha a possibilidade concreta de agir conforme esse entendimento, não é exigido do autor do ilícito uma conduta em conformidade com o Direito; trata-se, pois, da exigibilidade de conduta diversa, elemento da culpabilidade que, uma vez inexistente afasta esse pressuposto para a aplicação da pena.

Assim, culpável será o indivíduo que era imputável no momento do cometimento do fato, em que este possuía o conhecimento do injusto e podia se determinar segundo tal entendimento, e naquela circunstância era possível exigir deste uma conduta diversa da prática do crime.

Uma vez reunidos os três elementos da culpabilidade, o autor do ilícito poderá sofrer a reprimenda penal, pois sua conduta é socialmente reprovável.

Trazendo esses elementos da culpabilidade, e aplicando-os ao caso de abortamento de feto anencefálico, fica evidente que o Estado não poderia se insurgir contra uma gestante que, possuidora de um laudo médico que constatasse que em seu ventre está um ser portador de anencefalia e a sua morte será inevitável quando esse ser se desprendesse dela, obrigando-a manter tal gravidez, pois esse atitude estatal seria, como antes dito, por demais brutal.

Na verdade, obrigar uma mulher a carregar em seu ventre uma causa de dor e sofrimento é uma atitude por demais desumana e atentatória à dignidade da pessoa da gestante.

Assim, não existiria reprovabilidade social na conduta de uma gestante que em seu ventre carregasse um feto anencefálico, porque não seria razoável exigir desta uma conduta conforme o Direito, pois esta já teria uma certeza científica de que a vida daquele ser era completamente inviável fora do organismo materno, e obrigá-la a levar essa gravidez até o fim seria conduta que brutalmente a ofenderia não num momento específico, mas numa tortura que se protrairia no tempo até o último instante, o enterro de seu filho, que há muito já estava sem vida.

Exigir isso da gestante é inelutavelmente submetê-la a tratamento desumano, que lhe trará graves conseqüências psicológicas, tanto durante a prenhes quanto após o nascimento do ser, que cominara com a cerimônia fúnebre deste.

Nesse diapasão, conclui o doutrinador:

Concluindo, não se pode falar em reprovabilidade social nem em censurabilidade da conduta de quem interrompe uma gravidez ante a inviabilidade de um feto anencéfalo, que a ciência médica assegura, com cem por cento de certeza, a absoluta impossibilidade de vida extra-uterina. É desumano exigir-se de uma gestante que suporte a gravidez até o fim, com todas as conseqüências e riscos, para que, ao invés de comemorar o nascimento de um filho, pranteie o enterro de um feto disforme, acrescido do dissabor de ser obrigado a registrar o nascimento de um natimorto (BITENCOURT, 2008, p. 154)

É certo que na condição e visão de um cientista não é possível descrever os sofrimentos a que uma gestante nessa situação está exposta, então deixemos que uma mulher que passou por essa situação explique todo o sofrimento pelo qual passou:

Uma mulher chegou ao nosso lado e me perguntou: "Por que está chorando? É o primeiro filho? Qual o nome? Tem berço?". Eu chorei tanto, que assustei o hospital todo, todo mundo veio falar comigo. Isso já acontecia antes. Eu saía na rua, as pessoas viam minha barriga e me perguntavam: "já fez o chá-de-bebê?".

(...)

Um dia eu não agüentei. Eu chorava muito, não conseguia parar de chorar. O meu marido me pedia para parar, mas eu não conseguia. Eu saí na rua correndo, chorando, e ele atrás de mim. Estava chovendo, era meia-noite. Eu estava pensando no bebê. Foi na semana anterior ao parto. Eu comecei a sonhar. O meu marido também. Eu sonhava com ela no caixão. Eu acordava gritando, soluçando. O meu marido tinha outro sonho. Ele sonhava que o bebê ia nascer com cabeça de monstro. Ele havia lido sobre anencefalia na Internet. Se você vai buscar informações é aterrorizante. Ele sonhava que ela tinha cabeça de dinossauro. Quando chegou perto do nascimento, os sonhos pioraram.

(...)

Eu não tive esperanças na hora do parto. Ela não chorou. O médico falou que ela poderia durar três dias. O corpo estava todo perfeito. O pior momento foi quando ela morreu. O desespero foi enorme (Gabriela, paciente do Habeas Corpus 84.025-6 RJ impetrado perante o Supremo Tribunal Federal, deu à luz a Maria Vida, feto que resistiu sete minutos após o parto, antes que os Ministros o julgassem).

Cabe ainda relembrar que o Brasil ratificou a Convenção Interamericana para prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher, assim como a Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica, de 1969), além de diversos tratados e convenções, sendo que todos esses tratados e convenções que tratam de direitos humanos, segundo texto do artigo 5º, § 2º, da Constituição Federal, uma vez ratificados pelo Brasil, constituem normas de natureza constitucional e integram os direitos fundamentais da pessoa humana, o que as tornam cláusulas pétreas impassíveis de supressão por meio de emenda constitucional.

Dessa forma, existem diversas normas provenientes desses tratados e convenções internacionais que têm por escopo o prestígio da dignidade da pessoa humana da mulher.

Por fim, tem que ser trazida a opinião de alguns doutrinadores que afirmam que quando a lei penal tipifica o crime de aborto, este visa proteger a vida humana, mas não toda forma de vida humana, mas a vida útil e viável e, quando constatada a anencefalia do feto, a vida é, indiscutivelmente, inviável, não sendo razoável exigir que uma gestante carregue em seu ventre durante a gestação um ser que pouco depois do seu nascimento acabe falecendo, por falta de cérebro que é tão essencial para a continuidade da vida desse ser.

Dessa forma, a proteção penal se dirige à viabilidade do feto e não à sua mera existência física. Não existe notícia de existência de um ser com vida que não possua a abóbada craniana, elemento indispensável para a existência da vida humana.

Por tal razão, segundo essa opinião doutrinária, parece mais razoável que seja dado à gestante, a pessoa mais interessada e que suportará o sofrimento de carregar em seu ventre um ser que possui essa anomalia, decidir sobre levar, ou não, essa gravidez até seu fim, sem sofrer uma reprimenda penal.

É assim que pensa Guilherme de Souza Nucci (2007, p.628):

A polêmica certamente existe. Preferimos acreditar que a lei penal, ao punir o aborto, busca proteger a vida humana, porém a vida útil e viável, não exigindo que a mãe carregue em seu ventre por nove meses um feto que, logo ao nascer, dure algumas horas e finde a sua existência efêmera, por total impossibilidade de sobrevivência na medida que não possui a abóbada craniana, algo vital para a continuidade da vida fora do útero. O anencéfalo não é protegido pelo direito penal, que se volta a viabilidade do feto e não simplesmente a sua existência física. Há quem sustente que pode haver erro de diagnostico e a anencefalia não ser comprovada posteriormente. Ora, se tal ocorrer é um erro médico grave, sujeito à indenização como outro qualquer, mas não justifica a proibição para todas as gestantes que, efetivamente, possuem em seu ventre um feto completamente inviável.

Andou bem o citado doutrinador em mencionar que não é razão para persistir a vedação da prática do aborto no caso de anencefalia a possibilidade de erro médico no diagnóstico, até porque um erro dessa espécie poderia ocorrer no caso de risco de vida para a mãe (aborto necessário).

De qualquer forma, caso acontecesse tal falha médica no diagnóstico, o médico que emitiu o parecer deve ser responsabilizado civilmente, indenizando os pais da criança, que acabaram incorrendo em erro calcado numa opinião médica mal elaborada.

Em sentido oposto ao que até aqui foi exposto, alguns doutrinadores alegam que o abortamento de feto portador de anencefalia é flagrante ofensa à Constituição, pois esta defende a vida humana de forma ampla, não fazendo distinção entre os seres humanos bem ou mal formados, mas sim defendendo a vida destes desde o momento da concepção.

Os defensores de tal tese defendem que o aborto de feto anencefálico constitui aborto voluntário, crime tipificado nos artigos 124 a 126 do Código Penal, e todos aqueles que contribuem para a prática de tal delito devem ser submetidos à reprimenda penal.

O legislador já trouxe nos dois incisos do artigo 128 do Código Penal as únicas duas hipóteses em que a vida intra-uterina poderia ser limitada, não se admitindo uma interpretação extensiva para tais hipóteses.

Em acordes com tal posição colaciona a autora:

A Constituição garante a todos os seres humanos, bem ou mal formados, o direito à vida desde a concepção. Nega agressão à vida de modo incondicional, sem distinção entre a vida sadia ou doente, nova ou velha, intra ou extra-uterina.

Quando se dá a interrupção da gravidez, resultando na morte do embrião ou feto, ocorre aborto voluntário, classificado como crime contra a vida pelo Código Penal (arts. 124 a 126).

O legislador, de forma restrita, enumera as únicas hipóteses em que o aborto não é punível, embora praticado por médico: quando não há outro meio de salvar a vida da gestante e tratando-se de gravidez resultante de estupro. Não se admite interpretação extensiva, tampouco analogia "in malam partem". Deve prevalecer nesses casos o princípio da reserva legal.

Provocando a interrupção da gravidez, o sujeito ativo do delito atenta contra a vida do feto anencefálico, com o resultado desejado de sua morte, configurando-se, de forma inequívoca, nexo causal. A morte, no caso, não decorre da anomalia encefálica de que portador o feto, mas, sim, da ação de interromper-lhe, de modo eficaz, o normal desenvolvimento fetal, que vinha acontecendo no meio adequado intra-uterino (REZENDE, 2006).

Ainda de acordo com a tese dos opositores do abortamento de fetos anencefálicos, este configuraria uma ofensa à personalidade jurídica do ser em formação, pois o Código Ccivil resguarda desde a concepção os direitos do nascituro, sendo que diversos desses direitos são irrenunciáveis, tais como, o direito a um nome, ao corpo, à imagem, direitos sucessórios, direito a convivência familiar, direitos estes que, com a antecipação do parto, seriam violados pela prática do aborto nos casos ora analisados.

Dessa forma, para o Direito Civil pátrio não importa quanto tempo o ser passou vivo, mas se este nasceu com vida, passa a adquirir uma gama de direitos que já eram resguardados antes de tal nascimento, e impedir que o ser nascesse seria negar-lhe todos esses direitos e, portando, seria ofensa ao artigo 2º do Código Civil, e igual ofensa à personalidade jurídica do jovem ser.

Por fim, argumenta-se que o conceito de morte cerebral previsto na Lei nº 9.434/97 não é aplicável aos casos de anencefalia, pois a morte não seria um evento único, mas todo um processo, sendo a morte encefálica um momento definido pela Lei de Transplantes como sendo o mais seguro para a retirada dos órgãos do doador para fins de transplantes, não sendo possível atestar que, mesmo neste instante, não existiria vida no ser, embora minguante.

Dessa forma, seria impraticável nos casos de fetos anencefálicos o conceito de morte de tal Lei, previsto exclusivamente para casos de transplantes.

Nesse sentido defende Guylene Vasques Moreira Martins (2006), in verbis:

A razão de ser da inaplicabilidade do conceito de morte encefálica aos fetos anencefálicos, segundo o Conselho Federal de Medicina, está em que "a morte não é um evento, mas sim um processo. O conceito de morte é uma convenção que considera um determinado ponto deste processo". Assim, como o que se pretende com o conceito de morte encefálica é tão-somente determinar um momento a partir do qual é segura a retirada de órgãos do corpo humano para fins de transplante, não se pode afirmar que mesmo a partir dele não haja vida, ainda que minguante.

Interessante, ainda, verificar que o mesmo parecer do Conselho Federal de Medicina reconhece que "os anencéfalos morrem clinicamente durante a primeira semana de vida", de molde a demonstrar de forma definitiva que o conceito de morte encefálica dentro do útero materno não se lhes aplica. Repita-se: se os nascituros anencefálicos falecem logo após o nascimento, é lógico que isto quer dizer que nasceram com vida.

O argumento dos que defendem essa tese é no sentido de que o feto anencefálico, não obstante o conceito de morte trazido pela Lei de Transplantes, é dotado de vida, mesmo que limitada, devendo a mesma ser protegida pela nossa ordem jurídica, não se aplicando, nesse caso específico, o conceito de morte previsto legalmente na mencionada legislação, até porque o anencéfalo jamais possuirá um cérebro que torne possível a realização de exames que atestem sua morte cerebral.

4.1 Aborto Eugênico: Distinções Conceituais

Os autores da área da Medicina apresentam uma classificação de aborto que, de forma genérica, oferece aos doutrinadores do Direito Penal a possibilidade de que sobre esta seja realizada uma análise jurídica.

Em primeiro lugar, existe a interrupção eugênica da gestação (IEG), em que os abortos são praticados em nome de fins eugênicos, interrompendo-se a gestação com base em valores racistas, sexistas, étnicos. Exemplo clássico dessa pratica é o que era praticado pela medicina nazista, ocasião em que mulheres foram obrigadas a abortar pelo simples fato de serem judias, ciganas ou negras.

Em segundo lugar, tem-se a interrupção terapêutica da gestação (ITG), em que a interrupção se dá para proteção da saúde materna. Nesse caso, é interrompida a gestação para salvar a vida da gestante. Devido à evolução da tecnologia médica, a cada dia ficam mais raros os abortos que se enquadram nessa classificação.

Outrossim, existe a interrupção seletiva da gestação (ISG), que é a interrupção de gravidez ocorrida por motivo de anomalias fetais. Nesse caso, o motivo de tal interrupção é a constatação de lesão no feto, que torna o mesmo incompatível com a vida extra-uterina, sendo exemplo desse tipo de lesão fetal a anencefalia.

Por fim, temos a interrupção voluntária da gestação (IVG), que ocorre quando o aborto é motivado pela autonomia reprodutiva da gestante ou do casal, ou seja, a gestação é interrompida porque a mulher, ou o casal, não possui mais interesse na gravidez, seja este fruto de uma relação sexual violenta (estupro) ou de uma relação consensual.

E nesse sentido que trata o ilustre autor:

A doutrina especializada (da área médica) apresenta uma classificação de situações de aborto que, genericamente, oferece um espectro interessante e, ao mesmo tempo, abrangente que serve à doutrina penal para fazer o exame jurídico, nos seguintes termos:

1. Interrupção eugênica da gestação (IEG), que são os casos de aborto ocorridos em nome de práticas eugênicas, isto em situações em que se interrompe a gestação por valores racistas, sexistas, étnicos. Comumente sugere o tipo praticado pela medicina nazista, quando mulheres foram obrigadas a abortar por serem judias, ciganas ou negras.

2. Interrupção terapêutica da gestação (ITG), que são os casos ocorridos em nome da saúde materna, isto é, situações, em que se interrompe a gestação para salvar a vida da gestante. Hoje em dia, em face do avanço tecnológico experimentado pela Medicina, são cada vez mais raros os abortos inscritos nessa tipologia.

3. Interrupção seletiva da gestação (ISG), que são os casos de abortos ocorridos em nome de anomalias fetais, em que se interrompe a gestação pela constatação de lesões no feto, apresentando patologias incompatíveis com a vida extra-uterina, como é o caso da anencefalia.

4. Interrupção voluntária da gestação (IVG), que são os casos de aborto ocorrido em nome da autonomia reprodutiva da gestante ou do casal, isto é, situações em que se interrompe a gestação porque a mulher, ou o casal, não mais deseja a gravidez, seja ela fruto de estupro ou de uma relação consensual (BITENCOURT, 2008, p. 149)

Neste momento do trabalho, será tratada a interrupção prevista no primeiro item da classificação doutrinaria médica, tendo por fim fazer uma distinção entre o conhecido aborto eugênico e o aborto anencefálico, demonstrando as distinções fundamentais entre ambos.

Como visto, o aborto eugênico é aquele praticado com a finalidade específica de selecionar uma raça melhor ou pura de seres humanos, abortando o produto da concepção sempre que este apresente anomalias fetais, por menores que elas sejam, impedindo, dessa forma, que fetos detentores de viabilidade de vida extra-uterina, sejam sacrificados em prol de que seja mantida uma raça o quanto mais possível sadia.

Foi visto até aqui que seria possível à gestante, quando o produto da concepção fosse portador de anencefalia, que esta viesse a interromper o curso de sua gestação, em respeito à dignidade humana desta, e ao conceito de morte prevista na Lei de transplantes.

Essa possibilidade é medida razoável, mas não se pode permitir que ela seja um caminho aberto para a prática do aborto eugênico, dando a possibilidade que este seja autorizado em nosso Estado.

Assim, é preciso realizar distinções, para evitar abusos e desvirtuamentos da tese até aqui discutida, pois o que aqui se discute não é a possibilidade de que seja permitida a prática de aborto quando os seres humanos são portadores de defeitos genéticos ou possuem uma aparência monstruosa, pois o abortamento em tais casos, indiscutivelmente, constitui crime contra a vida intra-uterina, tipificados nos artigos 124, 125 e 126 do Código Penal.

Não seria possível e juridicamente permitido a uma mãe abortar um filho, pelo simples fato de este ser portador da síndrome de Dawn, ou porque o filho nasce deformado, possuindo uma aparência, socialmente, anormal.

Dessa forma, não há de forma alguma que ser privilegiado o abortamento pelo simples fato de o feto ser portador de mínimas deficiências de cunho psicológico ou físico, pois o ser no ventre materno encontra-se vivo e, portanto, tem essa vida protegida pelo nosso ordenamento jurídico.

Deve-se fazer com que essa prática em busca do aprimoramento da raça humana seja evitada, obstando aos pais que sejam detentores da possibilidade de escolher se o filho, como bem lhe aprouver, viva ou morra, deixando de levar a termo a gravidez dos filhos que não se amoldarem às suas mínimas perspectivas.

Parte dos doutrinadores, contrários ao abortamento do feto portador de anencefalia, argumentam que o aborto em tais causas seria uma forma de aborto eugênico, o que na espécie não ocorre.

No aborto de feto portador de anencefalia, não se tem por finalidade, como exigido para a ocorrência de aborto eugênico, a procura de um aperfeiçoamento ou a defesa de uma raça superior ou pura.

Na realidade, no aborto de feto portador de anencefalia, com base no até aqui colacionado, e, sobretudo, no conceito de morte trazido pela Lei nº 9.434/97, não há, em primeiro lugar, que se falar em ofensa ao direito à vida, tendo em vista que o conceito previsto em tal legislação acaba por considerar o feto anencefálico como um ser destituído de vida a ser prestigiado tanto pela nossa Constituição Federal, quando pelas normas infraconstitucionais, notadamente o Código Penal.

Em segundo lugar, o aborto de feto anencefálico pretende prestigiar o princípio da dignidade de pessoa humana da mãe do feto portador de tal anomalia, evitando que a gestante seja aniquilada pela obrigação de carregar em seu ventre um ser que constantemente, minuto a minuto, irá machucá-la com a triste lembrança de que após a gestação ela não terá um lindo filho a amar e cuidar, mas sim um ser sem vida para levar até o seu lugar de descanso eterno, situação que traria à mulher graves transtornos de cunho psicológico, para não falar que seria evidente tratamento desumano e degradante.

Sendo assim, evidente está a clara distinção entre os dois tipos de abortamento.

Não obstante o até aqui dito, doutrinadores, aproveitando-se da carga emocional trazida pelo termo aborto eugênico, tentam levar à mente dos leitores a idéia de repugnância que a prática da eugenia notadamente, e com justiça, traz.

Baseiam-se, ainda, na opinião de juristas contemporâneos ao nosso Código Penal (1940), que possuíam uma opinião bastante firme, no que tange ao aborto eugênico.

Nelson Hungria (1958, p.314) possuía a seguinte opinião sobre o aborto eugênico:

(...) andou acertadamente o nosso legislador em repelir a legitimidade do aborto eugenésico, que não passa de uma das muitas trouvailles dessa charlatanice que dá pelo nome de ‘eugenia’. Consiste esta num amontoado de hipóteses e conjeturas, sem nenhuma sólida base científica. Nenhuma prova irrefutável pode ela fornecer no sentido da previsão que um feto será, fatalmente, um produto degenerado. Eis a lição de Von Franqué: ‘Não há doença alguma da mãe, ou do pai, em virtude da qual a ciência, de modo geral ou nalgum caso particular, possa, com segurança, prever o nascimento de um produto degenerado, que mereça, sem maior indagação, ser sacrificado.

Como visto, o referido autor limita-se a comentar o aborto eugenésico como forma de violação à vida intra-uterina, baseado em meras conjecturas ideológicas e racistas, que visavam à criação de uma raça superior de homens.

O autor ignorava, completamente, os avanços científicos e tecnológicos que a Medicina alcançaria no fim do século passado e início do atual, e limitava-se a tratar de tema outro, bem distinto do objeto do presente trabalho.

Ora, a questão do aborto em caso de anencefalia é tema atual, pois teve início quando foi possível a ciência médica detectar, antes do termo final da gestação, definindo com quase 100 % de certeza que a gestante carrega em seu ventre um ser cuja vida não existe.

Portanto, não há a que se confundir o aborto eugenésico com o aborto no caso de fetos anencefálicos, pois essa confusão de conceitos traria ao o objeto do presente estudo um bojo de extrema carga emocional que atrapalharia a análise científica aqui proposta.

Além disso, não consiste em objeto do presente estudo a legalização da eugenia em nosso país, pois, o que aqui se defende, é que tal prática consiste em evidente violação ao direito à vida, por razões que nem sequer são prestigiáveis pela nossa ordem jurídica.

Na verdade, a prática do aborto eugênico deve ser espancada da nossa realidade social, até mesmo de nossas lembranças, devendo apenas ser relembrada para evitar que esse terrível passado da raça humana seja revivido, deve haver um máximo esforço para que tais práticas, tão comum no período nazista alemão, sejam evitadas e não voltem a ocorrer em nossa sociedade sobre nenhum pretexto.

4.2 Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 54

Agora serão analisados os fundamentos de mérito levantados na Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental atualmente em tramitação no Supremo Tribunal Federal, haja vista que este processo, em especial, trata do tema objeto do presente estudo.

Dessa forma, será realizada a análise desta demanda no intuito de enriquecer mais o debate jurídico até aqui proposto, sempre na busca de solução mais condizente com nossa ordem jurídica vista como um todo harmônico.

O objetivo dessa ação é afastar a possibilidade de punição criminal do aborto quando o produto da concepção (feto ou embrião) for portador de anencefalia, pois nesses casos apenas ocorreria uma antecipação terapêutica do parto.

Defende-se tal pretensão no fato de o feto, portador de anencefalia, não possuir uma perspectiva de vida extra-uterina viável, pelo que a gestante e qualquer profissional de saúde que participe dessa antecipação não podem ser alvo das prescrições típicas previstas para o crime de aborto.

Essa demanda foi proposta no dia 17 de junho de 2004, pela Confederação Nacional dos Trabalhadores de Saúde (CNTS), sendo que na peça preambular esta Confederação indicou como preceitos fundamentais vulnerados o da dignidade da pessoa humana (art. 1º, inc. IV), o princípio da legalidade, liberdade e autonomia da vontade (art. 5º, inc. II) e o direito à saúde (Art. 6º, caput, e 196), todos princípios constitucionais, indicando ainda como ato do Poder Público causador da lesão o conjunto de normas representados pelos arts. 124, 126, caput, 128, incs. I e II, do Código Penal.

Os argumentos dessa ação são os seguintes, em síntese:

a) Não constitui aborto a antecipação terapêutica do parto.

b) Não há perspectiva de vida extra-uterina no feto anencefálico, motivo pelo qual o mesmo não pode ser considerado nem mesmo um nascituro.

c) A ciência médica, após o diagnóstico de que o feto é portador de anencefalia, nada poder fazer em prol do feto que sofre esta anomalia.

d) O feto portador de anencefalia é um ser que não possui cérebro, e por isso não possui as funções superiores do sistema nervoso central, tais como: consciência, cognição, vida relacional, comunicação afetividade e emotividade.

e) Não obstante tal afirmação, a anencefalia não evita que o ser possua funções inferiores, como respiração e funções vasomotoras.

f) Comumente a sobrevida do ser, portador de anencefalia, fora do ventre materno dura cerca de algumas horas.

g) O quadro é irreversível, e a morte é inevitável.

h) Cerca de 65 % dos fetos anencefálicos morrem no período intra-uterino.

i) como nada pode ser feito pelo feto anencefálico, pode-se prestigiar a pessoa da mãe, reduzindo os riscos que esta possui quanto à sua saúde e o seu sofrimento psicológico.

j) Na década de 40, quando foi promulgado o Código Penal, o legislador não tinha idéia de que a ciência médica possuiria, nesse início de novo século, a tecnologia necessária para diagnosticar as anomalias fetais, pois se fosse possível, provavelmente, o legislador excluiria a ilicitude ou punibilidade, quando o feto fosse portador de anencefalia.

l) O Código Penal deve ser interpretado de forma evolutiva e que atenda à finalidade da norma, de modo a resguardar os direitos fundamentais previstos na Constituição.

m) O crime de aborto visa resguardar a vida intra-uterina viável, e por isso no caso de anencefalia não há que se falar em crime de aborto.

n) Obrigar a mulher a carregar em seu ventre um ser que lhe causa estrema dor, angústia e frustração é uma flagrante violação à sua dignidade de pessoa humana.

o) É atentatória a autonomia da vontade da mulher a proibição de que esta possa antecipar terapeuticamente o parto do feto anencefálico, pois não há norma que a proíba de fazer isso.

p) O direito à saúde também é violado, quando é obstada a antecipação terapêutica do parto, pois saúde é o completo bem-estar físico, mental e social, e não a ausência de doenças.

Como se pode ver, os argumentos jurídicos apresentados na peça inaugural dessa ação não são distintos dos já aqui apresentados, salvo o de violação ao direito de saúde, não citado explicitamente, pois, inelutavelmente, obrigar a mulher a manter em seu ventre um ser que lhe causa tamanho abalo de cunho psicológico, realmente põe em jogo a saúde mental da gestante.

Em seu pedido, a parte demandante requereu que o Supremo Tribunal Federal procedesse a uma interpretação conforme a constituição dos artigos 124, 126 e 128, incs. I e II do Código Penal, declarando-os inconstitucionais com efeito erga omnes e vinculante, quando estes forem óbices à antecipação terapêutica do parto nos casos de gravidez de feto anencefálico, devidamente diagnosticada por médico habilitado para tanto, atribuindo, assim, o direito subjetivo à gestante em se submeter a tal procedimento, deixando de ser necessária a prévia autorização judicial.

Foi também requerida uma liminar, alegando-se a existência do fumus boni juris e periculun in mora, para que ocorresse a suspensão do andamento de processos ou os efeitos de decisões judiciais que visam aplicar ou tenham aplicado os artigos do Código Penal combatidos na demanda quando o feto for portador de anencefalia.

Diante de tal pedido de liminar, assim se manifestou o relator do caso, o Ministro Marco Aurélio, que entendeu presentes os motivos ensejadores da concessão da liminar pleiteada, acabando por decidir da seguinte maneira:

Daí o acolhimento do pleito formulado para, diante da relevância do pedido e do risco de manter-se com plena eficácia o ambiente de desencontros em pronunciamentos judiciais até aqui notados, ter-se não só o sobrestamento dos processos e decisões não transitadas em julgado, como também o reconhecimento do direito constitucional da gestante de submeter-se à operação terapêutica de parto de fetos anencefálicos, a partir de laudo médico atestando a deformidade, a anomalia que atingiu o feto (ADPF/54/STF).

Tal decisão liminar foi baseada em anterior julgamento daquela Colenda Corte, em que o processo perdeu seu objeto pela demora da resolução, o que permitiu que a gestante que pleiteava autorização judicial para se submeter à interrupção terapêutica do parto desse à luz antes do julgamento final pelo Supremo (HC/ 84.025/STF).

Após tal decisão liminar, a Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) requereu sua entrada no feito na condição de amicus curiae, apresentando memorial, em que pleiteava a revogação da liminar, tendo em vista que o tema era da mais alta indagação, versando sobre o direito de nascer do feto portador de anencefalia, decisão que não poderia ser tomada pelo relator, monocraticamente, num juízo sumário, em que este acabaria legislando positivamente, fazendo nascer uma outra causa excludente de ilicitude do crime de aborto.

A CNBB aduziu ainda que o feto, mesmo portador de anencefalia, não pode ser coisificado, sendo, portanto, pessoa humana, também titular de dignidade e merecedor de ver prestigiado seus direitos.

A Procuradoria Geral da República, na ocasião de sua manifestação processual, ofereceu parecer manifestando-se contrário à pretensão da demandante, tendo em vista que as causas extintivas de punibilidade possuem um sentido estrito, inequívoco e preciso, sendo estes o aborto para evitar que a mãe morra, e o aborto se a mãe, vítima de estupro, consente na prática do mesmo, sendo, pois, claro que o caso de anencefalia não consta no rol de excludentes previstas no Código Penal.

Assim, permitir o aborto no caso de feto portador de anencefalia seria flagrante ofensa ao direito à inviolabilidade do direito à vida.

Outrossim, o parecer ainda cita diversas normas tutelatórias do direito à vida, tais como o artigo 2º do Código Civil, a Convenção Americana Sobre Direitos Humanos e a Convenção Sobre os Direitos da Criança, sendo que todos estes diplomas sempre resguardando o direito à vida desde o momento da concepção.

No parecer está latente que o desenvolvimento do novo ser no ventre materno torna evidente a existência de vida do feto portador de anencefalia, o que o torna merecedor de proteção.

Ainda sobre tal julgamento, foi formulada pela União dos Juristas Católicos, uma consulta ao Ministro aposentado do STF José Néri da Silveira sobre o objeto da ADPF nº 54, sendo que este claramente se manteve contrário às pretensões desta demanda, com base no princípio da ponderação de interesses (princípio da proporcionalidade), nos termos que se passa a expor, verbis:

7. O direito à vida, como o primeiro dos direitos fundamentais (CF, art. 5º, caput), é garantido, pela Constituição e ordenamento legal, ao ser humano, desde a concepção até a morte. É ele, assim, assegurado, também ao nascituro, desde a concepção, sem distinção de qualquer natureza ou condições de maior ou menor vitalidade desse ser vivo, na fase intra-uterina, bem assim na vida extra-uterina, quer exista ou não probabilidade de duração breve (itens 11 a 13).

8. Numa ponderação hierárquica dos direitos e valores concernentes à vida e à dignidade humana garantidas também ao nascituro anencefálico, vivo e em desenvolvimento no ventre materno, em face de invocados direitos fundamentais da gestante, quanto à dignidade de pessoa humana, liberdade e autonomia de vontade, no sentido de interromper a gravidez, do que resultaria a morte do feto, - não é possível deixar de fazer prevalecer o direito à vida do nascituro, visto que a vida e a saúde da gestante não correm perigo de grave dano, nem sua dignidade de pessoa humana é ferida pelo fato dessa maternidade, valor constitucionalmente exaltado. A gestante – em mantendo o feto anencefálico em seu ventre, até o nascimento, com vida, do filho por ela gerado, com a grandeza da humanidade e revestido da dignidade de ser humano, – não terá sua dignidade pessoal diminuída, na linha da magna compreensão desse valor na ordem constitucional, nem sua liberdade ameaçada ou comprometida, mas, ao contrário, – revestida do valor constitucional e humano que se confere à maternidade, – cumpre vê-la merecedora de mais respeito e admiração por seus concidadãos, o que significa ter sua dignidade pessoal elevada, porque, acima de tudo, soube amar até o fim e é somente pelo amor que o ser humano pode realizar sua perfeição e felicidade.

Não cabe dar prevalência ao que se pretende na inicial, que instrui a Consulta, porque isso importaria em destruir a vida do ser vivo e em desenvolvimento no útero materno, ou seja, fulminar, irreversivelmente, o direito fundamental à vida do feto anencefálico, antecipando-lhe a morte, eliminando uma vida que, mesmo se houver de ser breve, embora indeterminado o momento do óbito, nem com isso deixará de ser vida humana protegida pela Constituição e as leis, com a nobreza do ser humano (itens 23 a 25) (ALVES JR., 2007).

O plenário do Supremo Tribunal Federal deliberou acerca da liminar deferida pelo Ministro Marco Aurélio, ocasião em que ficou decidida a revogação da liminar quanto à permissão do aborto, mantendo esta em relação à suspensão dos processos em curso, até a decisão final daquele Colendo Tribunal, sendo que esta decisão definitiva não ocorreu até a presente data.

Ao analisar o caso, o Ministro Carlos Britto acompanhou o Ministro Marco Aurélio, relator do caso, pois este defendeu que o feto portador de anencefalia não era uma pessoa viável fora do ventre materno, que seria uma espécie de Unidade de Terapia Intensiva para esse ser, não podendo este sobreviver fora do organismo da mãe, pelo que, não haveria sentido obrigar a gestante a uma gravidez da qual não teria como resultado um começo de vida humana.

Seguiram essa posição os Ministros Celso de Mello e Sepúlveda Pertence, posicionando-se a favor da manutenção da liminar.

Em sentido contrário, o Ministro Eros Grau colacionou que o feto anencefálico é uma pessoa humana e não uma coisa (objeto), não havendo no caso risco de morte para as mães-gestantes de fetos com essa patologia, e ainda se manifestou no sentido de que o risco de grave e irreversível dano era do feto anencefálico e não da gestante, motivo pelo qual, a liminar deveria ser imediatamente revogada.

Acompanhando o Ministro Eros Grau, o Ministro Cezar Peluso argumentou que o feto é ser humano, e a brevidade de sua vida não lhe retira a proteção penal de sua vida intra-uterina. Por fim, ainda trouxe a colação que o sofrimento suportado pela gestante não a degrada, pois esse sentimento faz parte da própria experiência humana, não sendo motivo bastante para a permissão do abortamento em tais casos.

Os Ministros Gilmar Mendes e Carlos Veloso, igualmente, votaram contra a manutenção da liminar, o primeiro sob o argumento de que a matéria era muito delicada, e poderia levar a uma mutação constitucional por meio da Jurisprudência daquele Tribunal, o que não poderia ocorrer por meio de uma via tão estreita como a medida cautelar. O segundo, Ministro Carlos Veloso, entendeu que a cautelar não poderia subsistir, haja vista não haver risco de dano iminente para a gestante, mas sim para os fetos anencefálicos, e sopesando o direito da gestante e do feto, este optou pelo direito à vida do anencefálico.

Votaram em sentido contrário à manutenção da liminar, além dos já aqui citados, os Ministros Joaquim Barbosa, Ellen Gracie e Nelson Jobim, motivo pelo qual a liminar foi revogada.

Eis a final decisão do Plenário do Supremo acerca da liminar:

ADPF – LIMINAR – ANENCEFALIA – INTERRUPÇÃO DA GRAVIDEZ – GLOSA PENAL – PROCESSOS EM CURSO – SUSPENSÃO. Pendente de julgamento a argüição de descumprimento de preceito fundamental, processos criminais em curso, em face da interrupção da gravidez no caso de anencefalia, devem ficar suspensos até o crivo final do Supremo Tribunal Federal (ADPF/54/STF).

ADPF – LIMINAR – ANENCEFALIA – INTERRUPÇÃO DA GRAVIDEZ – GLOSA PENAL – AFASTAMENTO – MITIGAÇÃO. Na dicção da ilustrada maioria, entendimento em relação ao qual guardo reserva, não prevalece, em argüição de descumprimento de preceito fundamental, liminar no sentido de afastar a glosa penal relativamente àqueles que venham a participar da interrupção da gravidez no caso de anencefalia (ADPF/54/STF).

Essa decisão foi baseada, sobretudo, no fato de que grande parte dos Ministros consideraram muito perigoso que uma decisão monocrática num juízo sumário de mérito tivesse o condão de permitir em todos os casos a antecipação terapêutica do parto, sendo mais acertado que tal decisão fosse decidida pelo pleno ao final do julgamento, além dos julgadores mostrarem-se claramente divergentes quanto ao mérito do processo.

Quanto à suspensão dos processos e efeitos de outras decisões, esta se manteve, pois tais causas tinham o julgamento ora em comento como sua prejudicial lógica.

Diante de todo o exposto, espera-se que com as importantes opiniões relativas à ADPF nº 54 tenha sido possível emprestar ainda mais importância ao objeto do presente trabalho, e será deixada para o capítulo vindouro a análise valorativa do referido processo, em que ainda serão enfrentadas todas as questões controversas a respeito do aborto de fetos anencefálicos.


5. CONCLUSÃO

Nesse instante, deve-se analisar todas as argumentações jurídicas trazidas no bojo deste trabalho, para que seja atingida uma conclusão jurídica acerca do abortamento de fetos portadores de anencefalia.

Essa análise será feita tendo em vista o atual estágio de evolução histórico social, e do grande desenvolvimento técnico-científico experimentado pela ciência médica contemporânea, além do fato, já especificado, de as normas constantes do Código Penal acerca do crime de aborto encontrarem-se obsoletas em face da sociedade contemporânea.

Quando a ciência médica alcançou essa possibilidade de se chegar ao diagnostico com 100% de certeza de que o feto, ainda no ventre materno, é portador de anencefalia, nasceu essa problemática, exigindo-se uma análise do tema frente às normas jurídicas constantes de nosso ordenamento legal.

Em um primeiro instante dessa evolução científica, era evidente uma colisão de princípios constitucionais, sendo eles, o direito à inviolabilidade da vida do feto guardado ainda no ventre materno, e o da dignidade da pessoa humana da gestante, pois com a certeza de que esta carregava em seu corpo um ser predestinado a morrer antes ou logo após nascer, a gestante passou a viver numa constante situação de dor e angústia.

Nesse diapasão, apresentam-se dois princípios igualmente prestigiáveis na ordem jurídico-constitucional, devendo, com base no princípio da proporcionalidade, sopesar estes, na tentativa de harmonizá-los, limitando o espectro de atuação do princípio menos prestigiável no caso concreto, para dar maior efetividade ao princípio que merece prosperar nessa dada situação (aborto de feto anencefálico).

Com base nisso, poderiam os defensores da tese de que o direito à vida é o mais importante de todos os direitos existentes, argumentar que o melhor seria sacrificar o princípio da dignidade da pessoa humana, mas ao vislumbrar a situação como um todo essa perspectiva não deve ser aceita.

Se, com base nesse embate entre princípios constitucionais, trouxer-se à baila que a vida, embora existente no feto anencefálico, é precária e jamais existirá por tempo razoável fora do corpo materno, até porque na maioria dos casos, o jovem ser deixa a vida ainda dentro do corpo da mãe, pode-se vislumbrar que o princípio da dignidade da pessoa humana da gestante deve prevalecer.

Não seria razoável prestigiar uma vida prestes a chegar a seu fim, sacrificando assim a dignidade e, porque não dizer, a saúde psíquica da mãe, que sofreria um tratamento desumano e degradante com conseqüências desastrosas e irreversíveis. Junte-se a isso que o abortamento de um feto anencefálico seria uma faculdade à disposição da gestante que poderia, livremente, optar entre levar tal gravidez até seu termo final, ou interrompê-la, evitando toda sorte de dessabores que uma gestação nestas condições a levariam.

Motivos pelos quais, numa situação desta, inelutavelmente, os princípios constitucionais que devem prevalecer são, o da saúde da gestante, da dignidade da pessoa humana desta e o da proibição de submeter qualquer pessoa a tratamento desumano ou degradante.

Sendo assim, deve-se permitir a escolha pela gestante de interromper ou não a sua gestação.

Note-se, contudo, que essa solução, até aqui exposta, não mais é cabível com base em nossa atual legislação.

Com a entrada em vigor da Lei nº 9.434/97 (Lei de Transplantes de Órgãos), a situação de abortamento de fetos anencefálicos ficou sensivelmente modificada, pois tal legislação delimitou o direito à vida, definindo em que momento esta chega ao seu termo final, a morte cerebral.

A partir da entrada em vigor desta Lei, não há mais que se falar em embate entre princípios constitucionais acerca do feto anencefálico, pois, na realidade, o fato de o feto portador de anencefalia não possuir cérebro, faz com que o mesmo, com base na Lei de Transplantes, seja considerado um ser destituído de vida.

Podem os contrários a esse entendimento argumentar que não poderia uma norma de natureza infraconstitucional limitar uma norma de natureza constitucional, mas tal argumentação é destituída de razão. Ora, aqui não se trata de limitação do direito à vida, mas sim de uma delimitação de tal direto, tão comum em nosso sistema jurídico.

A Constituição Federal colaciona o direito à vida, mas o faz de forma genérica e com alto grau de abstração, cabendo à legislação ordinária delimitar os contornos de tal direito, e isso acontece quando se prevê institutos como a legítima defesa, ou as causas excludentes de ilicitude previstas no artigo 128 do Código Penal, ou, ainda, delimitando legalmente o momento em que a vida chega ao seu fim, o que fora feito pela Lei de Transplantes.

Essa legislação teve o condão de excluir a tipicidade do aborto anencefálico, por duas razões, já demasiadamente expostas no bojo deste trabalho.

Em primeiro lugar, porque para a ocorrência do delito de aborto, faz-se necessário que o feto esteja vivo, sendo que, com base na Lei de Transplantes, o feto anencefálico não possui vida, o que é necessário para a ocorrência de crime de aborto e, portanto, a prática de aborto em um feto portador de anencefalia é um crime impossível por absoluta impropriedade do objeto, conforme previsão do artigo 17 do Código Penal.

A segunda razão é porque não existe nexo de causalidade entre a conduta de praticar o aborto e o resultado morte do feto, pois a cessação da vida desta ocorreu em momento anterior, não derivando das manobras abortivas.

Diante de tais argumentações, melhor será denominar o aborto anencefálico de antecipação terapêutica do parto, pois o termo aborto está ligado a uma idéia de violência e prática delitiva e, como acima visto, o fato aqui tratado é atípico e, portanto, estranho ao Direito Penal.

Quanto à questão da culpabilidade, também trazida à baila neste trabalho, a análise desta restou prejudicada, pois, como já mencionado, a antecipação terapêutica do parto é fato atípico.

Contudo, pode-se definir que, indiscutivelmente, não há que se falar em reprovabilidade pessoal na gestante que pratica um aborto nas circunstâncias aqui tratadas, pelo que é inexigível desta uma conduta em conformidade com o direito, pois esta não poderia ser obrigada pelo Estado a carregar em seu ventre um ser que lhe trouxesse toda a sorte de sofrimentos de cunho psicológico.

Assim, não seria razoável exigir de uma gestante que levasse uma gravidez de feto anencefálico até seu fim, tendo em vista que isso atentaria contra a sua dignidade de pessoa humana, assim como atentaria contra a sua saúde psíquica, motivo pelo qual não existe culpabilidade numa gestante que tomasse a decisão de antecipar terapeuticamente o parto nesta situação.

A opinião dos juristas que defendem que o Código Penal visa apenas tutelar a vida útil e viável é falha, e talvez só tenha tido sua maior importância quando, no ordenamento jurídico brasileiro, existia um conflito entre princípios constitucionais acerca da solução jurídica para as situações dos fetos portadores de anencefalia.

Na verdade, nem a Constituição, tampouco o Código Penal, fazem distinção entre vida viável ou inviável, mas apenas se reportam à vida, se ela existe ou não, tutelando a existência da mesma; é, dessa forma, inadmissível essa classificação e ela é, na verdade, ineficaz para uma solução do tema aqui debatido.

Acerca dos doutrinadores que alegam que a antecipação terapêutica do parto é violação da vida, deve-se notar que, embora a Constituição preveja a proteção do direito à vida de forma ampla, não fazendo distinção entre feto bem ou mal formado, a Lei de Transplantes delimitou tal norma constitucional, e optaram os legisladores em definir o momento da morte como sendo a ocorrência da morte cerebral.

Portanto, no caso de anencefalia em que o ser é destituído de abóbada craniana, não possuindo um cérebro, não existe vida a ser tutelada, tanto pelas normas constitucionais, quanto pelas normas infraconstitucionais.

Igualmente, se o feto anencefálico legalmente é destituído de vida, não há que se cogitar em ofensa à personalidade jurídica com a antecipação terapêutica do parto, pois não existe violação à vida do produto da concepção no caso em análise, não chegando o novo ser a possuir os direitos civis que este possuiria se nascesse com vida.

Quanto ao fato de que o conceito de morte previsto na Lei 9.437/97 não seria aplicável aos fetos portadores de anencefalia, é uma opinião das mais absurdas, não havendo motivo para que isso ocorra, tendo em vista que essa Lei não fez tal limitação, não sendo razão para inaplicabilidade de tal legislação o fato de o Conselho Federal de Medicina tentar fazer com que nesses casos seja aplicado o conceito de morte clínica.

Ora, a Lei de Transplantes é norma geral e visa regular e definir o momento da morte de forma indiscriminada, não sendo prevista nesta ou em qualquer outra legislação exceções em que o seu conceito de morte não seja aplicado.

Outrossim, não é o fato de ser impossível realizar exames capazes de diagnosticar a morte cerebral do feto portador de anencefalia que fazem com que essa legislação seja inaplicável na espécie, pois a não existência de cérebro faz com que se chegue à irremediável conclusão de que não existe vida a ser tutelada nos fetos anencefálicos.

Acerca da Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 54, esta deve ser considerada procedente pelo fato de a conduta de interromper terapeuticamente o parto ser uma conduta atípica, não havendo delito em tal ação da gestante ou de qualquer outro que ajude nessa prática.

No entanto, deve ser lamentado que nesse julgamento sequer foi citada a Lei de Transplantes de Órgãos como legislação chave para a solução de tal lide, limitando-se as partes a discutir o objeto de tal processo com base numa colisão de princípios constitucionais, o que não ocorre desde o ano de 1997, quando passou a vigorar a Lei nº 9.434/97.

Na manifestação processual da Procuradoria da República, esta se baseou no fato de que deveriam ser interpretadas de forma restrita as causas excludentes de ilicitude previstas no art. 128 do Código Penal, mas esqueceu-se de analisar nosso ordenamento de forma sistemática, deixando de analisar a Lei de Transplantes de Órgãos e a definição trazida por esta do momento da morte, o que levaria à singela opinião de se tratar de fato atípico, por falta de objeto jurídico a ser tutelado, além de inexistência de nexo de causalidade entre as manobras abortivas e a morte do produto da concepção.

Por todo exposto, é possível vislumbrar que a discussão sobre qual seria o princípio constitucional a ser privilegiado nos casos de feto portador de anencefalia, princípio da dignidade da pessoa humana ou princípio do direito à vida, inexiste, tendo em vista que com a inovação trazida pela Lei nº 9.434/97, esta discussão restou superada.

Com base nessa inovação, é possível vislumbrar que quando ocorrer a antecipação terapêutica do parto de feto portador de anencefalia, não há vida a ser tutelada, e não há como se imputar o resultado morte do produto da concepção à conduta de praticar o aborto, pois a morte do feto ou embrião é anterior à conduta do agente.

Donde se pode concluir que se está tratando de fato atípico, não constituindo, pois, ação criminosa a ser punida pelo Direito Penal, tendo em vista não existir violação ao direito à vida.


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PESSOA, Jonathan Dantas. Da atipicidade do abortamento quando o produto da concepção é anencefálico. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2510, 16 maio 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14760. Acesso em: 25 abr. 2024.