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"Ultima ratio" do Direito Penal.

Comportamento frente aos crimes contra a ordem tributária e previdenciária

"Ultima ratio" do Direito Penal. Comportamento frente aos crimes contra a ordem tributária e previdenciária

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Resumo: As condutas humanas que geram repulsa social são sancionadas de diversas formas, tal como multas pecuniárias, restrições de direitos, obrigações de fazer, restrições à liberdade, dentre outras. O Direito Penal, por ser regido pelo princípio da fragmentariedade, tutela apenas uma parte das condutas ocorridas no mundo dos fatos. Somente as condutas humanas que sejam mais reprováveis e as que geram maior repulsa social devem ser criminalizadas. Há condutas que merecem reprimendas apenas de ordem financeira, sendo certo que em muitas situações outros ramos do Direito podem ser utilizados para sancionar as condutas menos lesivas aos bens juridicamente tutelados. Os crimes contra a ordem tributária e contra a ordem previdenciária são especialmente tutelados pelo Direito Penal com reprimendas de reclusão, detenção e multa. A CF/1988 não permite, face o princípio da dignidade da pessoa humana, que se punam através do Direito Penal, determinadas condutas tributárias porque não causam repulsa social. No entanto tais condutas são tuteladas pelo direito do terror como forma intimidativa, já que o pagamento do tributo e seus acessórios é causa de extinção da punibilidade.. O objetivo maior não é evitar a sonegação ou apropriação indébita, mas aumentar a arrecadação através da coação determinada pelas restrições à liberdade.

Palavras-chave: Direito Penal – Ultima Ratio – Crime contra Ordem Tributária – Crime contra Ordem Previdenciária – Intervenção Mínima

Sumário: I – INTRODUÇÃO; II – CONCEITO E OBJETIVO DO DIREITO PENAL; III – CONCEITO DE DIREITO PENAL ECONÔMICO; IV – DIREITO PENAL COMO ULTIMA RATIO;V – PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA NOS CRIMES CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA E PREVIDENCIÁRIA; VI – CONCLUSÃO; VII – REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


I – INTRODUÇÃO

Nos últimos anos houve significativas alterações na aplicação do princípio da dignidade da pessoa humana, tanto na doutrina quanto na jurisprudência do STF. Por conseguinte, o novo entendimento acarretou grande interferência no Direito Penal e fez despertar a importância de, novamente, estudar este ramo como a ultima ratio.

A mídia, representada pelos meios de comunicação de massa, diuturnamente apresenta situações que colocam a população em descrédito com as instituições sociais que teriam condições de evitar a proliferação da violência. Estes meios de comunicação, com as constantes intervenções demonstram a banalização da violência [01]. Há insegurança e descontentamento social. Nessa seara, surge como solução de todos os problemas o Direito Penal pós-moderno que cria novas condutas delituosas e agrava as sanções já previstas. O problema é que este direcionamento não é suficiente para resolver as controvérsias sociais, criando ainda mais insegurança, pois não há redução da violência e nem mesmo uma sensação de segurança ou apaziguamento. Sobre o assunto, há posicionamento doutrinário que merece especial atenção, já que retrata o tema com especial importância. Eis a passagem [02]:

Incapaz de responder satisfatoriamente aos novos problemas advindos da sociedade pós-moderna, a legislação penal emergente revela-se destituída de qualquer eficácia social duradoura, não logrando êxito na redução dos índices de criminalidade nem tampouco na produção dos novéis bens jurídicos de caráter difuso. Ou seja, "o direito penal, que parece a tudo tutelar, de fato muito pouco consegue defender". Diante desse cenário, delineia-se o processo de deslegitimação da intervenção jurídico-penal, com o consequente aumento da sensação coletiva de insegurança, que, por sua vez, dá ensejo a novas demandas sociais em favor de sua expansão e hipertrofia, em um verdadeiro círculo vicioso. Caracteriza-se assim a atual crise do direito penal.

Nas duas últimas décadas a criminalização de condutas foi acometida de diversos textos legais, demonstrando que o Estado utiliza o Direito Penal de modo inadequado. Em relação ao Direito Penal Tributário, os novos textos legais demonstram que há mais interesse em aumentar a arrecadação do que punir (ou evitar) as condutas que gerem repulsa social.

Por essa razão há que se analisar o modo que determinadas condutas praticadas pelos contribuintes comportariam a tutela do Direito Penal. A análise precisa ser elaborada de conformidade com o entendimento da intervenção mínima e da ultima ratio,ou seja, nem todas as condutas humanas comportam a tutela penal, especialmente quando os textos legais utilizam restrição à liberdade como meio de coação para aumentar a arrecadação tributária.

O Direito Penal é a ultima ratio e, por conseguinte, algumas condutas não podem ser tuteladas com repreensões de maior gravidade. Há punições em outros ramos do Direito que podem sancionar as condutas contrárias aos anseios sociais, não necessitando de uma intervenção penal.

A evolução da sociedade fez com que algumas condutas perdessem a importância na aplicação da tutela penal, mas também permitiu que outras condutas viessem a sofrer interferência do Direto Penal. A pós-modernidade fez surgir diversas alterações na sociedade, sendo que condutas antes não lesivas (ou inexistentes) viessem a desestruturar o bem estar social. É com esse espírito que surgiu o Direito Penal Econômico. Tal situação é fruto das constantes mudanças que ocorreram no Direito Penal, motivadas pela profunda alteração social ocorrida na segunda metade do século XX.

No presente estudo, o objetivo traçado é analisar se há, ou não, incompatibilidade dos arts. 1º e 2º da Lei nº 8.137/1990 e arts. 168-A e 337-A do CP com o postulado da ultima ratio. A apreciação será efetuada com fundamento no art. 1º, inciso III da CF/1988, que foi consagrado no texto constitucional como o princípio da dignidade da pessoa humana.


II – CONCEITO E OBJETIVO DO DIREITO PENAL

A estruturação de um conceito adequado para a disciplina estudada corresponde à atitude de fundamental importância, eis que partindo de uma premissa inicialmente adequada, os resultados serão mais específicos e úteis à eficácia do presente estudo. Não se pode esquecer que é com a adequada delimitação do tema que se pode chegar à conclusão mais acertada. Por isso representa importância elevada a elaboração de um conceito de Direito Penal.

Para tal empreitada é indispensável que se tragam as lições mais respeitadas dos pensadores que tecem digressões sobre o tema. Dentre os vários entendimentos apresentados pela doutrina, o que mais se refere a conceito conservador do Direito Penal é identificado por Cezar Roberto Bitencourt [03]. Segundo seu entendimento, o Direito Penal é um conjunto de normas jurídicas, cujo objeto corresponde à determinação de infrações de igual natureza e regulamentação das sanções correspondentes (penas e medidas de segurança).

É preciso atentar, contudo, para o fato de que a doutrina moderna veio alterando os conceitos mais tradicionais do Direito Penal, com o escopo de aprimorar os respectivos objetos. O fundamento para a modernização é a constante mudança no comportamento da sociedade. Por essa razão, Luiz Flávio Gomes disserta que o Direito Penal comporta dois conceitos extremamente úteis ao labor do exegeta: "conceito dinâmico e social" e "conceito estático e formal". Suas palavras são merecedoras de transcrição, ensejando maior credibilidade ao assunto [04]:

Conceito dinâmico e social: pode-se definir o Direito penal, do ponto de vista dinâmico e social, como um dos instrumentos do controle social formal por meio do qual o Estado, mediante um determinado sistema normativo (leia-se: mediante normas penais), castiga com sanções de particular gravidade (penas e outras conseqüências afins) as condutas desviadas (crimes e contravenções) mais nocivas à convivência, visando assegurar, dessa maneira, a necessária disciplina social bem como a convivência harmônica dos membros do grupo.

[...]

Conceito estático e formal: sob o enfoque estático e formal pode-se afirmar que o Direito penal é um conjunto de normas (normas jurídico-públicas) que definem certas condutas como infração, associando-lhes penas ou medidas de segurança assim como outras conseqüências jurídicas (indenização civil, por exemplo). (os grifos em itálico fazem parte do original).

Fernando Capez [05] conceitua o Direito Penal tendo por critério sua função, principalmente focando na necessidade de que se tenham penas voltadas exclusivamente para tutelar as condutas que afrontem os valores sociais dos quais dependam a sustentabilidade da sociedade. É preciso selecionar os comportamentos humanos, ou seja, aqueles que põem em risco os mais basilares direitos (fundamentais), aplicando a tais condutas uma sanção de especial gravidade.

Para fins do estudo ora apresentado o Direito Penal deve ser entendido como o conjunto de normas jurídicas, estruturadas de conformidade com os direitos e garantias fundamentais, que têm por objetivo selecionar as condutas consideradas de grave reprovabilidade pela sociedade, aplicando sanções positivadas como meio de evitar e punir a atuação ilícita do agente.


III – CONCEITO DE DIREITO PENAL ECONÔMICO

Diante do conceito de Direito Penal, é preciso verificar se as condutas descritas nos arts. 1º e 2º da lei nº 8.137/1990 e arts. 168-A e 337-A do CP podem ser tuteladas por esse ramo jurídico. Para compreender a situação, é necessário aclarar que tais dispositivos integram o sub-ramo Direito Penal Econômico. Portanto, há que se conceituar esta disciplina para que se conclua pela possibilidade ou não da aplicação de sanção penal aos crimes ora em comento.

Heleno Cláudio Fragoso [06] entende que para estruturar o conceito de Direito Penal Econômico, faz-se necessário tecer apontamentos sobre a ideia de economia e riqueza. Manoel Pedro Pimentel [07] entende que o objeto da disciplina é a regularidade na realização da política econômica de um país. Para André Luís Callegari [08], o Direito Penal Econômico seria entendido, em sentido estrito, como [...] o conjunto de normas jurídico-penais que protegem a ordem socioeconômica, entendido como regulação jurídica do intervencionismo estatal na economia. Édson Luís Baldan [09], citando Bajo Fernandez, define o Direito Penal Econômico, em sentido amplo, como [...] o conjunto de normas jurídico-penais que protege a ordem econômica entendida como regulação jurídica da produção, distribuição e consumo de bens e serviços.

O Direito Penal Econômico pode ser conceituado como a disciplina que tipifica condutas lesivas ou potencialmente lesivas a uma determinada ordem econômica, cujo objetivo principal é resguardar as relações no comércio, protegendo o desenvolvimento da sociedade. É preciso, contudo, atentar para a necessidade de coerência por parte do legislador quando tipifica determinados comportamentos, lembrando que somente as atitudes mais nocivas à sociedade merecem a tutela pelo Direito Penal.

Em algumas situações, há condutas que são ofensivas, mas não merecem reprovabilidade pelo Direito Penal. Isso ocorre porque em outros ramos do Direito se encontram meios para punir a conduta reprovável. É o caso das multas aplicadas quando ocorre o inadimplemento do tributo, sendo certo que tais multas podem atingir o percentual de 150% (cento e cinquenta por cento), o que representa uma forma de obrigar o contribuinte ao recolhimento pontual e evitar a sonegação. A multa mencionada tem caráter de penalização, mas também tem cunho intimidativo. Resta evidente que o Direito Tributário tem condições de instituir sanções pecuniárias aptas a determinar o cumprimento do texto legal por parte dos contribuintes.

É preciso que a constituição de condutas ditas contrárias ao bem estar social esteja descrita pelo legislador com extremo cuidado. Isso ocorre porque em algumas situações o poder de legislar pode utilizar o Direito Penal (Econômico) para privilegiar determinados interesse nem sempre condizentes com a segurança jurídica e o bem da coletividade. É exatamente o que ocorre com os crimes contra a ordem tributária, que têm o nítido propósito de intimidar o sujeito passivo da obrigação tributária a cumprir com a respectiva obrigação. Não se tem por objetivo principal a punição da conduta. Os crimes contra a ordem tributária tendem a punir o inadimplemento da obrigação tributária e preservar os constantes aumentos na arrecadação tributária.

Pelos conceitos de Direito Penal e Direito Penal Econômico é possível perceber que os crimes contra a ordem tributária previstos na Lei nº 8.137/1990 não preenchem os requisitos ínsitos para que os bens jurídicos sejam penalmente tutelados. No que tange aos crimes contra a ordem previdenciária, o art. 337-A do CP possui condutas que não poderiam ser tuteladas pelo Direito Penal Econômico; já o art. 168-A contém descrições que acarretam especial prejuízo à coletividade, razão pela qual, a princípio, poderiam ser sancionadas com restrição à liberdade. Resta confrontar os dispositivos com o princípio da dignidade da pessoa humana para entender se a reprimenda penal respeita as disposições constitucionais.


IV – DIREITO PENAL COMO ULTIMA RATIO

As regras são indispensáveis para a vida em sociedade que também necessita de um controle social para viabilizar o cumprimento das determinações positivadas. Esses meios de controle social podem ser externados através de duas modalidades: controle informal e controle formal. O controle informal é composto por órgãos ou agentes (família, igreja, sindicatos etc.), estratégias de atuação ou repressão, modalidades positivas ou negativas de consequência (sanções), dentre outros. O controle formal se refere ao Direito Positivo, ao conjunto de dispositivos legais que determinam o cumprimento das regras para que a vida em sociedade possa ser efetuada de modo agradável a todos.

O Direito Penal representa o mais rígido dos controles existentes, eis que é formal e tem por objetivo a aplicação de penas que, na sua maioria, tendem a tolher a liberdade, um dos pilares do Estado Democrático de Direito. A aplicação deste ramo jurídico corresponde à interferência do Estado na vida do cidadão através de uma afronta a direito fundamental (liberdade).

Para garantir o bem da sociedade, é preciso agir dentro de certos parâmetros de razoabilidade, necessidade e principalmente destacar a importância do princípio da dignidade da pessoa humana. Por essa razão, o postulado máximo de que "os fins justificam os meios" não deve ser utilizado na aplicação das regras, quando se estiver tutelando interesses no Estado Democrático de Direito.

Antes da utilização do Direito Penal, é preciso que outras medidas sejam adotadas para que a regra que almeja o adequado desenvolvimento da sociedade seja espontaneamente cumprida. O não cumprimento espontâneo das regras sociais faz emergir uma sanção, que pode ser penal, ou não. Há que se encontrar mecanismos para que a regra seja cumprida, sendo que tais meios devem ser os mais benéficos e menos agressivos possíveis.

É o que ocorre no caso da aplicação das regras tributárias. O Estado tem direito de exigir dos administrados determinados valores para manutenção da estrutura organizacional que garante a paz social. Essa exigência corresponde a uma violação ao patrimônio do administrado. No entanto, é perfeitamente possível que o Estado transfira parte do patrimônio particular para os entes de Direito Público Interno. É preciso atentar que tal medida somente pode ser efetuada porque a CF/1988 permite. Assim, é possível que o Estado receba tributos quando os fatos jurídicos tributários (fatos geradores) ocorrerem. Há regras para que essa transferência financeira ocorra. Essas regras devem ser cumpridas tanto por quem paga quanto, principalmente, por quem tem o direito de receber.

Quando as regras tributárias não são cumpridas pelo administrado, ou seja, quando ocorre o inadimplemento, é preciso indagar se há necessidade de interferência do Direito Penal para garantir a arrecadação tributária.

Se por diversos modos é possível sancionar o inadimplemento tributário, então há que ser feito do modo menos agressivo ao ofensor. O Direito Penal não pode ser utilizado para obrigar o cumprimento de todos os textos legais, até mesmo por força do princípio da fragmentariedade. Sempre que outros ramos do Direito possam ser utilizados para compelir o cidadão ao cumprimento da regra, então o Direito Penal não poderá atuar. O fundamento para tal adequação está no princípio da dignidade da pessoa humana [10].

Para Luiz Flávio Gomes [11], O Direito penal, em suma, é a ultima ratio, isto é, o último instrumento que deve ter incidência para sancionar o fato desviado (em outras palavras: só deve atuar subsidiariamente). Quando houver a falência do sistema de controle social, então o Direito Penal deverá agir. E, por conseguinte, somente nesse momento é que o legislador estaria amparado a incluir no Direito Positivo uma conduta reprovável e sancionável através de penas previstas no ordenamento penal. É o que se chama de controle social penal, ou seja, uma das formas de submeter os indivíduos às regras, mas com maior rigor.

As condutas previstas nos crimes contra a ordem tributária e previdenciária estão intimamente vinculadas ao não cumprimento das obrigações tributárias (principal e acessória). O próprio Direito Tributário prevê em seu sistema positivado uma série de sanções, através de multas pecuniárias e restrições de direitos (alteração de endereço, redução de capital social, alteração do quadro societário, encerramento das atividades sociais etc.).

A obrigação tributária, que pode ser de dar (principal), fazer ou não fazer (acessória) está intimamente vinculada à transferência de recursos ao Estado e à apresentação de informações que permitem a fiscalização dos fatos jurídicos tributários. As sanções previstas na legislação tributária são severas, tal como as multas que atingem percentuais de até 150% (cento e cinquenta por cento), conforme prevê o art. 44 da Lei nº 9.430/1996.

As sanções previstas na legislação tributária são rígidas e tendem a impor um temor financeiro de graves proporções quando o sujeito passivo da respectiva obrigação não cumpre espontaneamente com seu ônus (obrigação principal ou acessória). É preciso entender, contudo, que além das sanções pecuniárias e as restritivas de certos direitos, o legislador entendeu que o não cumprimento das referidas obrigações também é sancionável através de reprimendas determinadas pela legislação penal – reclusão de 2 (dois) a 5 (cinco) anos e multa para os crimes previstos no art. 1º da Lei nº 8.137/1990, arts. 168-A e 337-A do CP e de detenção de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos e multa para os crimes previstos no art. 2º da Lei nº 8.137/1990.

O problema causado com a tipificação de condutas que já têm severas sanções tributárias encontra amparo no art. 9º da Lei nº 10.684/2003 (texto reproduzido no art. 68 da Lei nº 11.941/2009), o qual prevê a extinção da punibilidade dos referidos crimes, diante do pagamento do tributo e acréscimos legais. Dentre os acréscimos legais estão as sanções meramente tributárias (multas). Qual seria, então, o objetivo de tipificar condutas que têm excluídas a punibilidade o mero adimplemento financeiro?

Resta evidente que no caso em apreço, com o pagamento do valor principal (tributo) e acréscimos legais (juros e multa, ou seja, sanções tributárias), a legislação entende devidamente adimplida a obrigação tributária e se torna extinta a punibilidade na seara penal. É por essa razão que se deve entender que os tipos penais externados nos arts. 1º e 2º da Lei nº 8.137/1990 e arts. 168-A e 337-A do CP são incompatíveis com o texto constitucional por afronta ao princípio da dignidade da pessoa humana.

A instituição de tipos penais encontra limites no texto constitucional, especialmente, no princípio da dignidade da pessoa humana. Outros princípios também existem e que têm por objetivo restringir a indiscriminada aplicação de tipos às mais variadas condutas. No próximo item será demonstrada a aplicabilidade do princípio da dignidade da pessoa humana aos crimes contra a ordem tributária.


V – PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA NOS CRIMES CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA E PREVIDENCIÁRIA

Não existirá liberdade a partir do momento em que textos legais permitam ao homem deixar de ser pessoa e passar a ser considerado um objeto. Este é o fundamento do princípio da dignidade da pessoa humana que está consagrado no art. 1º, inciso III da CF/1988 e tem como marco histórico a obra "Dos Delitos e das Penas", de Beccaria. Em 1988, a CF erigiu o princípio a valor fundamental.

Luiz Regis Prado [12] doutrina que o princípio da dignidade da pessoa humana se irradia por todo ordenamento jurídico, servindo como alicerce para todos os demais princípios penais fundamentais. A afronta ao princípio da legalidade também se considera uma violação ao princípio da dignidade da pessoa humana.

As condutas tipificadas nos arts. 1º e 2º da Lei nº 8.137/1990, em nenhum momento comportam a reprimenda instituída nas respectivas sanções, seja pela reclusão ou detenção. É fato que o emaranhado de milhões de dispositivos tributários pode causar dúvidas a respeito de qual tributo ser pago ou de qual alíquota aplicar, ou então qual a grandeza a ser utilizada como base de cálculo. E há que se mencionar o grande e elevado número de obrigações tributárias acessórias, crescente a cada dia, e com elevada carga de dúvidas ainda persistente perante a sociedade. Vários são os motivos pelos quais as obrigações tributárias não são honradas. E nem sempre há dolo por parte do inadimplente. O bem juridicamente tutelado nos crimes ora mencionados é a arrecadação tributária [13].

A tutela penal proveniente do descumprimento das obrigações tributárias está em conflito direto com o art. 1º, inciso III da CF/1988. O objetivo dos tipos penais tributários é, indubitavelmente, a coerção para que a obrigação financeira seja cumprida. Tanto é verdade que o adimplemento de tais obrigações acarreta a extinção da punibilidade, independente da fase processual em que se encontrar a lide penal. Esta é a disposição firmada pelo art. 9º da Lei nº 10.684/2003, também reproduzida no art. 68 da Lei nº 11.941/2009.

Modernamente o Direito Penal Econômico tende a voltar aos períodos nefastos da história, eis que penas desproporcionais são aplicadas a infratores que não cometem qualquer conduta que possa acarretar malefícios à sociedade. O objetivo que Beccaria atingiu com suas célebres lições foi de permitir que houvesse uma proporcionalidade entre a reprimenda aplicada e a conduta cometida pelo infrator. Durante o transcorrer dos séculos, o Direito Penal foi utilizado como método de tortura e de graves horrores, sendo que o delinquente era tratado de modo desumano e sem qualquer direito que lhe assegurasse uma reprimenda adequada.

Os crimes tipificados nos arts. 1º e 2º têm por meta tutelar a arrecadação tributária. As condutas legalmente previstas são entendidas como o "Direito Penal do Terror", sendo certo que Beccaria sentir-se-ia desmotivado por ver sua obra cair em total ruína frente aos avanços (ou retrocessos) com a instituição do Direito Penal Econômico. No caso dos crimes contra a ordem tributária, o agente encontra a absolvição com o pagamento do tributo (mais acréscimos). Em algumas situações, o cumprimento das obrigações tributárias é o único meio de que se vale o sujeito passivo da obrigação tributária para que não ocorra aplicação de reprimenda penal.

É preciso expurgar do ordenamento jurídico textos de lei que se utilizam do Direito Penal para obter finalidade inadequada. No caso ora estudado, a sanção penal é utilizada com o intuito de compelir o sujeito passivo tributário ao pagamento do tributo. O pagamento é praticamente uma "tábua de salvação" para todos: o acusado se livra de uma reprimenda porque se considera extinta a punibilidade; o Poder Executivo aufere a renda proveniente do tributo inadimplido, mais juros de mora, atualização monetária e, por evidente, as multas (moratória, de ofício e, em alguns casos, isolada); ao Poder Judiciário há extinção de mais uma ação.

Essa prática seria perfeitamente aceitável se as obrigações tributárias sempre estivessem acometidas de legalidade e/ou constitucionalidade. O problema ocorre quando o tributo não é devido e o administrado se encontra numa situação de muito constrangimento: ou paga, ou discute a validade do tributo e tem que produzir defesa para não ser reprimido pelo Direito Penal.

A fim de aclarar a problemática, é possível citar o art. 116, parágrafo único do CTN, que outorga poderes ao fiscal de tributos para desconstituir determinadas situações praticadas pelos contribuintes e declará-las ilícitos tributários. É o que comumente ocorre com alguns planejamentos tributários que não são acolhidos pelas fiscalizações. Imediatamente após a lavratura do auto de infração ou notificação fiscal, há encaminhamento para o Ministério Público da representação fiscal para fins penais.

Situações como as que se arrolam são frequentes. A defesa do autuado/notificado pode ser realizada administrativamente, razão pela qual entendeu o STF que em determinados crimes (materiais) somente após o lançamento definitivo é que se poderá iniciar os procedimentos penais. Mas nem sempre a defesa é útil, pois nem sempre consegue demonstrar que o tributo não é devido ou a obrigação acessória não está legitimamente constituída. Um dos entraves graves que caracterizam a esfera de julgamento administrativo tributária é a impossibilidade de se afastar a aplicação de dispositivo legal sob o argumento de inconstitucionalidade ou ilegalidade. Portanto, se a única defesa do administrador for alegar a flagrante inconstitucionalidade, então a esfera administrativa não poderá comportar tal julgamento. A discussão judicial será iniciada, mas com o prejuízo de ver iniciada a ação penal, pois o tributo não foi recolhido. É um tributo inconstitucional, mas para que não haja ação penal, então o administrado deve recolher a exação.

Fato relevante que pode ser citado é a publicação da Portaria MPS/MF nº 333/2010. A Portaria foi publicada em 30.06.2010, tendo por objeto a ampliação da base de cálculo da contribuição previdenciária de vários segurados com data retroativa para 01.01.2010. A medida é flagrantemente inconstitucional, pois fere o princípio da anterioridade. Tal situação, contudo, não poderá ser discutida na esfera administrativa. O problema de se discutir a questão perante o Poder Judiciário é que o lançamento definitivo do tributo já permite o início da ação penal. Por essa razão, administrado que não efetuar o recolhimento retroativo da contribuição previdenciária estará cometendo crime de sonegação de contribuição previdenciária (art. 337-A do CP), sendo certo que o seu pagamento encerra a discussão tributária e penal. A medida, de tão inconstitucional, foi revogada pelo próprio Poder Executivo.

Como se pode perceber, nos crimes contra a ordem tributária e previdenciária, o administrado deixa de ser considerado um ser humano e passa a ser um mero objeto, um mero "pagador" que não pode e nem deve questionar a ordem estatal, sob pena de sofrer uma sanção penal.


VI – CONCLUSÃO

Em virtude dos fundamentos apresentados, os crimes previstos nos arts. 1º e 2º da Lei nº 8.137/1990 e arts. 168-A e 337-A do CP estão em desacordo com a CF/1988, especialmente porque afrontam diretamente o art. 1º, inciso III (princípio da dignidade da pessoa humana).

O objetivo dos dispositivos penais citados é tutelar a arrecadação tributária, através da coerção imposta ao cumprimento das obrigações tributárias. A sanção penal é totalmente descabida porque o descumprimento das obrigações tributárias acarreta sanções de graves proporções na esfera tributária, tais como multas elevadas e restrição de diversos direitos, tais como a impossibilidade de alteração de endereço, vedação no encerramento de suas atividades, impossibilidade de redução do capital social, dentre outras penalidades. Essas medidas correspondem a reprimendas aplicáveis para que as regras de natureza eminentemente tributária possam ser cumpridas espontaneamente. Portanto, a legislação tributária possui mecanismos sancionatórios eficientes para que as regras sejam cumpridas e, não o sendo, punidas com gravidade (sanções pecuniárias).

Além da punição, a legislação tributária é estruturada de modo a permitir que os danos sejam reparados através da incidência de juros de mora e atualização monetária, tal como ocorre quando há aplicação da SELIC.

O Direito Penal, como ultima ratio, não tem autorização constitucional para tutelar condutas de ordem tributária, especialmente as previstas nos arts. 1º e 2º da Lei nº 8.137/1990 e arts. 168-A e 337-A do CP. Há sanções severas previstas na legislação tributária para tutelar o inadimplemento e buscar a reparação financeira.

O maior fundamento que prevê a limitação do Direito Penal à tutela das condutas tributárias é de que o pagamento (principal e acréscimos legais) extingue a punibilidade, independente da fase processual em que se encontra o processo judicial. O pagamento do tributo e seus acréscimos é a mais tradicional forma de extinção da obrigação tributária, pela sua própria natureza, mas não encontra respaldo científico para extinguir a punibilidade dos crimes contra a ordem tributária.

Assim sendo, o Direito Penal Econômico, quando tipifica condutas como os crime contra a ordem tributária e previdenciária, é utilizado de modo flagrantemente inconstitucional, pois atua como agente com cunho meramente intimidativo a fim de viabilizar o aumento da arrecadação tributária pela instituição do "Direito Penal do Terror".

Por conseguinte, os arts. 1º e 2º da Lei nº 8.137/1990 e os arts. 168-A e 337-A do CP são flagrantemente inconstitucionais por afronta ao art. 1º, inciso III da CF/1988.


VII – REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

  • BALDAN, Édson Luís. Fundamentos do Direito Penal Econômico. Curitiba: Juruá, 2008.

  • BITENCOURT, César Roberto. Tratado de Direito Penal. 10ª ed. São Paulo: Saraiva, 2006.

  • CALLEGARI, André Luís. Direito Penal Econômico e Lavagem de Dinheiro. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003.

  • CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal. 12ª ed. São Paulo: Saraiva, v. 1, 2008.

  • FRAGOSO, Heleno Cláudio. Dos Crimes Contra a Ordem Econômica. São Paulo: RT, 1995.

  • GOMES, Luiz Flávio; MOLINA, Antonio García-Pablos; BIANCHINI, Alice. Direito Penal – Introdução e Princípios Fundamentais. São Paulo: RT, v. 1, 2007.

  • JORGE, Wiliam Wanderley. Curso de Direito Penal Tributário. Campinas: Millennium Editora, 2007.

  • NUCCI, Guilherme de Souza. Leis Penais e Processuais Penais Comentadas. 3ª ed. São Paulo: RT, 2008.

  • PIMENTEL, Manoel Pedro. Direito Penal Econômico. São Paulo: RT, 1973.

  • PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro. 9ª ed. São Paulo: RT, v. 1, 2010.

  • ROBALDO, José Carlos de Oliveira. Direito Penal como ultima ratio. Disponível em http://www.lfg.com.br., acesso em 08 de abril de 2009.


Notas

  1. Ariella Toyama Shiraki, A legitimidade do direito penal econômico como direito penal de perigo – Uma análise à luz dos princípios da lesividade e da intervenção mínima, Revista do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais 83, São Paulo, RT, mar-abr 2010, p. 10.

  2. Ariella Toyama Shiraki, A legitimidade do direito penal econômico como direito penal de perigo – Uma análise à luz dos princípios da lesividade e da intervenção mínima, Revista do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais 83, São Paulo, RT, mar-abr 2010, p. 11.

  3. Cezar Roberto Bitencourt, Tratado de Direito Penal, 10ª ed., São Paulo, Saraiva, 2006, pp. 2-3.

  4. Luiz Flávio Gomes; Antonio García-Pablos de Molina; Alice Bianchini, Direito Penal – V. 1 – Introdução e Princípios Fundamentais, 1ª ed. São Paulo, RT, 2007, p. 24.

  5. Fernando Capez, Curso de Direito Penal, 12ª ed., São Paulo, Saraiva, v. 1, 2008, p. 1.

  6. Heleno Cláudio Fragoso, Dos Crimes Contra a Ordem Econômica, São Paulo, RT, 1995, p. 38.

  7. Manoel Pedro Pimentel, Direito Penal Econômico, São Paulo, RT, 1973, p. 42.

  8. André Luís Callegari, Direito Penal Econômico e Lavagem de Dinheiro, Porto Alegre, Livraria do Advogado, 2003, pp. 21-2.

  9. Édson Luís Baldan, Fundamentos do Direito Penal Econômico, Curitiba, Juruá, 2008, pp. 129-30.

  10. José Carlos de Oliveira Robaldo, Direito Penal como ultima ratio, Disponível em http://www.lfg.com.br. 08 de abril de 2009.

  11. Luiz Flávio Gomes; Antonio García-Pablos de Molina; Alice Bianchini, Direito Penal – V. 1 – Introdução e Princípios Fundamentais, 1ª ed., São Paulo, RT, 2007, p. 27.

  12. Luiz Regis Prado, Curso de Direito Penal Brasileiro, 9ª ed., São Paulo, RT, v. 1, 2010, p. 145.

  13. Guilherme de Souza Nucci, Leis Penais e Processuais Penais Comentadas, 3ª ed., São Paulo, RT, 2008, pp. 937 e seguintes.


Autor

  • Gustavo Nascimento Fiuza Vecchietti

    Gustavo Nascimento Fiuza Vecchietti

    Advogado, Consultor, Parecerista, Especialista em Direito Tributário pelo IBET/SC, Especialista em Direito do Trabalho e Processual do Trabalho pela UCAM/RJ, Especialista em Direito Penal e Processual Penal pela FURB/SC, Especializando em Direito Constitucional pela UNIDERP/MS, professor do Grupo UNIASSELVI (FAMEBLU) em Blumenau/SC no Curso de Direito (Direito Penal I – Parte Geral – e Direito Penal Econômico) e no Curso de Administração/Finanças (Direito Tributário e Empresarial), Ex-Professor de Direito Processual Tributário, Direito Processual Trabalhista e Legislação e Planejamento Tributário

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VECCHIETTI, Gustavo Nascimento Fiuza. "Ultima ratio" do Direito Penal. Comportamento frente aos crimes contra a ordem tributária e previdenciária. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2717, 9 dez. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/18001. Acesso em: 6 maio 2024.