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A falência das empresas públicas e das sociedades de economia mista

A falência das empresas públicas e das sociedades de economia mista

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Há grande discussão doutrinária acerca da possibilidade ou não da falência das empresas públicas e das sociedades de economia mista.

INTRODUÇÃO

O presente estudo tem a finalidade de apresentar a grande discussão doutrinária acerca da possibilidade ou não da falência das empresas públicas e das sociedades de economia mista.

A Lei n.º 11.101/05 (Lei de Falências) trouxe em seu art. 2º, inciso I, a impossibilidade da falência dessas empresas estatais. Todavia, na contramão dessa Lei infraconstitucional, existe sustentação hermenêutica baseada em dispositivo constitucional (art. 173 da CF) que possibilitaria a falência dessas empresas públicas da administração indireta.

É uma tentativa, com efeito, de destacar os aspectos mais relevantes desse assunto, uma vez que a discussão jurídica em comento é muito complexa, e poucos se aventuraram a debruçar-se sobre o tema. Trata-se, assim, uma questão insuficientemente apreciada pela doutrina e pela jurisprudência.

Dessa forma, a análise afigura-se relevante, pois se volta para a constitucionalidade do art. 2º, I, da Lei Falimentar numa interpretação sistemática com o art. 173, §1º, da CF, bem como apresentar eventual solução para essa questão que vem trazendo inquietações aos juristas dedicados ao assunto tanto na órbita do Direito Empresarial como do Direito Administrativo


i. EVOLUÇÃO LEGAL DO ASPECTO FALIMENTAR DAS SOCIEDADES DE ECONOMIA MISTA E EMPRESAS PÚBLICAS

O Decreto Lei 7.661/45, antiga Lei de Falências, não fazia menção à falência das sociedades de economia mista e das empresas públicas, justificando o esforço doutrinário para compreender se as estatais estariam ou não abrangidas pelo instituto falimentar. A única referência que, indiretamente, poderia ser aplicada ao tema era encontrada nas Disposições Especiais (Título XII, da LF), quando o art. 201 aduzia sobre a falência das concessionárias de serviços públicos federais.

Ainda que haja entendimento diverso, o indigitado artigo preocupava-se mais com o destino dos serviços públicos dados em concessão que em vedar a falência das concessionárias, como se deflui do §2º, da disposição legal citada acima. Com isso, conclui-se que a antiga Lei de Quebras nada aduzia sobre esse assunto.

Outra norma que também faz alusão à falência de concessionárias de serviços públicos é a Lei 8.987/95, que regulamenta o artigo 175 da CF/88. Nessa Lei Infraconstitucional, constava no artigo 35, VI, que a falência é uma das formas de extinção da concessão, acarretando a imediata assunção do serviço pelo poder concedente e a reversão de todos os bens necessários à continuidade do serviço concedido ao poder público.

Um dos grandes pontos de discussões legislativas sobre o assunto era mesmo o art. 242 da Lei 6.404/76 (Lei das S/A). Esse artigo não está mais em vigor, pois foi revogado pelo art. 10, da Lei 10.303/01, mas sempre provocou polêmicas a respeito do tema:

Art. 242. As Companhias de economia mista não estão sujeitas a falência, mas os seus bens são penhoráveis e executáveis, e a pessoa jurídica que a controla responde, subsidiariamente, pelas suas obrigações.

O desencontro de opiniões era total. Para alguns, a aplicação do artigo era de rigor, como lecionava Rubens Requião, "pois a pessoa jurídica que a controla responde, subsidiariamente, pelas suas obrigações" [01]. Assim, a única saída para o Estado, ao perceber a falência que se aproximava, seria dissolver o ente criado.

Outra corrente entendia que o artigo era simplesmente desnecessário, pois a falência não poderia mesmo atingir as estatais, já que interpretavam que o art. 173, da CF já as excluía, qualquer que fosse seu ramo de atuação (exploração de atividade econômica ou prestação de serviço público), vez que do texto constitucional não se deduziria nenhuma diferenciação, sendo vedado ao intérprete fazê-lo. Esta é a doutrina de Marcos Juruena Villela Souto:

Ora, por óbvio tal linha não pode prevalecer diante da empresa pública (ainda que não mencionada na Lei de S/A) e da sociedade de economia mista, porque criadas por lei (ato do Poder Legislativo em parceira – na iniciativa e na sanção – com o Poder Executivo) para atendimento de um relevante interesse coletivo ou imperativo de segurança nacional, conceitos que não podem ser afastados por ato do Judiciário para satisfação de um interesse privado. [02]

Para essa corrente, a necessidade de extinção das estatais somente por meio de lei (já que devem ser assim criadas), e a possibilidade de o Estado intervir na economia somente nos casos expressamente previstos na Constituição (de onde se presumiria a necessidade de tais empresas estatais continuarem a existir), seriam empecilhos suficientes para vedar a falência destas, a qualquer custo, de forma que qualquer interpretação diferente feriria a Constituição.

Como as empresas públicas e as sociedades de economia mista só podem ser criadas por lei, art. 37, XIX, da CF, somente por lei deveriam ser dissolvidas. Ademais, as leis Federais criadoras das empresas estatais já regulam, em princípio, a forma de sua extinção. Dessa forma, a esses tipos de sociedade não se aplicaria, em princípio, a Lei de Falências, pois possui mesma hierarquia.

Grande parte da doutrina, todavia, entendia que o art. 242 da Lei de S/A não poderia ser aplicado de maneira uniforme a qualquer sociedade de economia mista, havendo antes que se perquirir se a estatal era ou não concessionária de serviço público.

Aquelas que não o fossem, exatamente para não desfrutarem de vantagens sobre as empresas privadas, estariam sujeitas à falência, e a entidade criadora não responderia, nem subsidiariamente, pelas obrigações da falida, não sendo inviável cogitar do falimento.

Põe-se, aqui, o problema de saber se, tendo forma mercantil, podem vir a desaparecer em decorrência de falência. Cremos que a solução não pode ser dada uniformemente, nem para as sociedades de economia mista como pretendeu fazê-lo a lei citada (Art. 242, da Lei S/A), nem para as empresas públicas. Entre tais entidades, é necessário distinguir as que são prestadoras de serviço público das exploradoras de atividade econômica.

Essas indagações fazem sentir a necessidade de que seja afinal regulado por lei o estatuto jurídico das sociedades de economia mistas e das empresas públicas de que fala o art. 173, §1º, da CF, extremando-se, definitivamente, as diferenças de regime daquelas exclusivamente vocacionadas para a prestação de serviços públicos daquelas destinadas a explorar a atividade econômica stricto sensu.

Diferentemente do texto do Decreto Lei 7.661/45, a Lei 11.101/05, a atual Lei de Falências traz expressa menção às sociedades de economia mista e às empresas públicas, no seu artigo 2º, I, ao dispor: "Art. 2º. Esta Lei não se aplica a: I – empresa pública e sociedade de economia mista".

A inserção de tal referência, pura e desacompanhada de maiores discussões, é muito simplista.

Como se vislumbra do citado artigo, o legislador adotou um critério negativo direto, a partir de juízo de valor não explicitado, ao afastar a incidência do novel diploma jurídico-falimentar às empresas públicas e sociedades de economia mista.

Quis o legislador afastar categoricamente a incidência da legislação falimentar sobre as empresas públicas e as sociedades de economia mista, iniciando-se assim a polêmica sobre a verdadeira natureza jurídica de tais entes empresariais e por quais motivos deveriam ser tratadas diferentemente.

De certo, com fundamento no princípio basilar da supremacia do interesse público sobre o particular, desejou o legislador reservar à legislação especial a recuperação e a falência de tais empresas, observado, assim, princípios oriundos do Direito Administrativo.

Segundo Maria Sylvia Zanella Di Pietro,

É lamentável que o legislador, quando estabelece normas sobre empresas estatais, não leve em conta a distinção. Isto teria que ser feito, por exemplo, quando estabelece normas sobre falência, sobre contratos, sobre seleção de pessoal, sobre direito de greve, sobre dispensa de licitação par ao Poder Público contratar suas empresas, sobre processo de execução e tantas outras matérias em que a diversidade de tratamento se impõe. [03]

A análise da possibilidade ou não da falência das sociedades de economia mista e empresas públicas é tema de notável relevância econômica dos interesses que lhes são confiados.

O artigo 173 da CF/88 tem por finalidade evitar que as estatais logrem disputar o mercado em que atuam, com alguma vantagem sobre quaisquer outras empresas privadas.

Respeitadas as posições em contrário, é exatamente isso o que aconteceria se, sem indagarmos qual a sua atuação efetiva, simplesmente aceitássemos a idéia de que as estatais não podem falir, como laconicamente faz o texto da atual Lei de Falências. Seriam mais confiáveis essas empresas, e o regime de igualdade buscado na Constituição não estaria atingido.

Entendíamos tal privilégio de intolerável convivência com o espírito da Constituição Federal, quando esta exige que, quando o Estado desempenha uma atividade de exploração de atividade econômica stricto sensu, deva fazê-lo em regime de estrita concorrência leal com as empresas privadas.

Simplista, pois, é tratá-las igualmente em bloco único e, apenas por serem estatais, entender que não podem falir. É fundamental estabelecer uma diferenciação entre aquelas constituídas para prestar serviço público e aquelas cujo objeto é explorar a atividade econômica, pois, quando uma estatal atua explorando serviço público, não se afigura, para efeitos constitucionais, atividade econômica. Se entendida essa diferença, há solução, pois a estatal prestadora de serviço público não seria empresária, já que lhe faltaria a exploração da atividade econômica; logo, não sendo empresária, não estaria sujeita à falência.

O fato é que, no Brasil, as sociedades de economia mista e as empresas públicas desempenham um importante papel, constituindo elas o instrumento pelo qual do qual o Estado realiza a sua finalidade no campo econômico.

Fixados tais pontos, já é possível indagar qual seria a melhor interpretação a se conferir ao artigo 2º, inciso I, da nova Lei de Falências, que, peremptoriamente e sem nenhuma ressalva, exclui da sua aplicação as sociedades de economia mista e as empresas públicas. Como já asseverado, pelo menos quanto à sociedade de economia mista, é antiga a discussão quanto à sua sujeição ao regime falimentar, que, em virtude do revogado artigo 242 da Lei 6404/76, já existia antes mesmo da entrada em vigor da atual constituição.

Uma satisfatória análise da questão passa necessariamente pela verificação do tipo de atividade exercida pela empresa estatal, até porque do texto constitucional se extrai, sem qualquer traço de dúvida, que o objeto das sociedades de economia mista e das empresas públicas pode abranger, além da exploração de atividade econômica em sentido estrito (art. 173), a prestação de serviços públicos (art. 175). Além do mais, tal entendimento é coerente com a própria justificativa apresentada quando da votação da Lei 10.303/01.

O art. 173, da CF, permite a exploração direta de atividade econômica pelo Estado, restando ao legislador ordinário a definição quanto ao significado e à correta aplicação dos termos segurança nacional e relevante interesse coletivo. E se o Poder Público opta por se valer da organização em forma societária para o exercício de atividade puramente econômica, em regime de franca concorrência com as companhias privadas, teria ele que se submeter às mesmas regras a elas aplicáveis.

É da leitura do artigo 173, §1º, inciso II, da CF, que se pode extrair a conclusão de que as sociedades de economia mista e a empresas públicas que exploram atividade econômica destinada pelo próprio caput à iniciativa privada sujeitam-se ao regime jurídico próprio das empresas privadas. Quando discorre sobre interpretação a ser conferida ao dispositivo constitucional, Maria Sylvia Di Pietro se declara pela sujeição de tais entidades exploradoras de atividade econômica em sentido estrito àquele regime jurídico, resumindo: "Estas normas são a regra; o direito público é a exceção e, como tal, deve ser interpretado restritivamente". [04] Se o comando constitucional é no sentido da aplicação de tais normas, inadmissível é afastá-las por meio de lei infraconstitucional.

Para Jorge Miranda:

Há sempre que interpretar a Constituição como há sempre que interpretar a lei. Só através desta tarefa se passa da leitura política, ideológica ou simplesmente empírica para a leitura jurídica do texto constitucional, seja ele qual for. [05]

Nesse passo, o processo de entendimento do texto requer análise de todo o sistema constitucional, sua interpretação diante de uma dada realidade histórica, assim como uma leitura do dispositivo legal dentro de uma visão sistemática do seu texto, inserida no ordenamento jurídico constitucional e infraconstitucional.

Toda interpretação constitucional se assenta no pressuposto da superioridade jurídica da Constituição sobre os demais atos normativos no âmbito do Estado, inclusive se tais atos vêm com vantagem cronológica.

Essa é a opinião defendida por Norberto Bobbio, quando da análise do Ordenamento Jurídico, dispondo sobre conflitos hierárquicos e cronológicos das normas:

[...] esse conflito tem lugar quando uma norma anterior-superior é antinômica em relação a uma norma posterior-inferior. O conflito consiste no fato de que, se se aplicar o critério hierárquico, prevalece a primeira, se se aplicar o critério cronológico, prevalece a segunda. O problema é: qual dos dois critérios tem preponderância sobre o outro? Aqui a resposta não é dúbia. O critério hierárquico prevalece sobre o cronológico, o que tem por efeito fazer eliminar a norma inferior, mesmo que posterior. Em outras palavras, pode-se dizer que o princípio lex posterior derogat priori não vale quando a lex posterior é hierarquicamente inferior à lex prior. Essa solução é bastante óbvia: se o critério cronológico devesse prevalecer sobre o hierárquico, o princípio mesmo da ordem hierárquica das normas seria tornado vão, porque a norma superior perderia o poder, que lhe é próprio, de não ser ab-rogada pelas normas inferiores. [06]

Assim, quanto à análise do art. 173, da CF, verificou-se que o escopo dessa norma constitucional visou assegurar a livre concorrência, de modo que as entidades públicas que exerçam ou venham a exercer atividade econômica não se beneficiem de tratamento privilegiado em relação a entidades privadas que se dediquem à atividade econômica na mesma área ou em área semelhante.

É de se inferir que, à guisa da previsão constitucional, há extensão às empresas públicas e sociedades de economia mista do regime jurídico próprio das empresas privadas. Consequência disso seria a obrigatória inclusão das citadas empresas no regime jurídico-falimentar, pois a legislação de recuperação de empresas dispõe sobre direitos e obrigações comerciais.

Admitir que o Estado desempenhe atividade econômica sem reconhecer a possibilidade de falência, além de coroar e incentivar a incompetência, importa em diferenciação injustificável, capaz de comprometer a livre concorrência e impor restrições à liberdade de iniciativa.

Entretanto, com muita propriedade, José Alexandre Corrêa Meyer, em seu artigo, alerta:

O mesmo não se dirá, entretanto, quanto à sociedade de economia mista e as empresas públicas que tenham como objeto a prestação de um serviço público. Parece não ter sido sem propósito que o parágrafo primeiro do artigo 173 da Constituição da República não faz referência às empresas que exploram atividade econômica de prestação de serviços públicos. Tais entidades têm o seu regramento estabelecido no artigo 175, que ao dispor sobre a forma indireta de exploração de atividade dessa natureza- concessão ou permissão – remete para a lei ordinária à fixação do regime jurídico aplicável as empresas concessionárias ou permissionárias. [07]

Nesse ponto, é preciso esclarecer que a utilização da expressão "atividade econômica de exploração de serviço público" também não é sem motivo. Segundo Roberto Eros Grau:

A prestação de serviço público está voltada à satisfação de necessidades, o que envolve a utilização de bens e serviços, recursos escassos. Daí podermos afirmar que o serviço público é um tipo de atividade econômica. Serviços Públicos - dir-se-á mais, é o tipo de atividade econômica cujo desenvolvimento compete preferencialmente ao setor público. Não exclusivamente, nota-se, visto que o setor privado presta serviço público em regime de concessão ou permissão. [08]

Em seu artigo sobre as sociedades de economia mista, José Alexandre Corrêa Meyer aduz:

A necessidade de se estabelecer distinção entre o regime jurídico aplicável às sociedades de economia mista prestadoras de serviços públicos e aquele próprio das que atuam na área da iniciativa privada se justifica pela evidente presença e predominância do interesse público naquelas.

E finaliza "Impõe-se então o entendimento de que, em tais entidades, princípios de direito público necessariamente irão se destacar". [09]

Dessa forma, a melhor interpretação que se dá é que as sociedades de economia mista e as empresas públicas nas condições acima, ou seja, que se dediquem à prestação de serviços públicos devem distanciar-se das empresas mercantis; logo, não se aplicaria a hipótese de falência, por se regerem pelas normas do direito público. Acrescentem-se, ainda, motivos ligados à exigência da continuidade da prestação dos serviços públicos visando aos interesses coletivos definidos em lei quando necessários aos imperativos da segurança nacional.

Ainda em relação à questão falimentar das empresas estatais, a legislação atribui às sociedades de economia mista e às empresas públicas a natureza de pessoa jurídica de direito privado, sem fazer distinção quanto ao objeto explorado. Miranda Valverde [10] opta pela possibilidade de falência, pelo menos das sociedades de economia mista, ainda sob a égide do DEC. - Lei n.: 2.627 de 1940, sob o fundamento de que, como a sociedade de economia mista invariavelmente se reveste da forma de Sociedade Anônima, qualquer que seja o seu objeto, ela é mercantil e se rege pelas leis do comércio.

De outro lado, há comercialistas que sequer admitem a possibilidade de tais entes irem à falência, como Fábio Ulhoa Coelho, comentando a Nova Lei de Falências:

A lei prevê, no art. 2°, a exclusão completa e absoluta dessas sociedades. Em relação às hipóteses albergadas no inciso I, isso é verdade desde logo. A sociedade de economia mista e a empresa pública não estão em nenhuma hipótese sujeitas à falência, nem podem pleitear a recuperação judicial. [11]

Nessa esteira, as lições de Sérgio Campinho:

A Lei n° 11.101/2005, em seu artigo 2°, exclui, explicitamente, a sociedade de economia mista e a empresa pública de sua incidência, retornando, em relação a primeira, ao conceito central traduzido na versão original da Lei n° 6.404/76 (Lei das S/A). Assim, não podem ser sujeito passivo de falência ou de recuperação judicial extrajudicial ditas pessoas jurídicas. [12]

Acrescenta ainda que,

No caso de estarem insolventes, cabe ao Estado a iniciativa de dissolvê-las, arcando com os valores necessários à integral satisfação dos credores, sob pena de não se poder realizar uma dissolução regular, a que está obrigado, em obediência aos princípios da legalidade e da moralidade, inscritos no artigo 37 da Constituição Federal de 1988. [13]

No entanto, se considerarmos os dispositivos constitucionais inseridos no título destinados à ordem econômica e financeira, em especial os artigos 173 e 175, no sentido de se estabelecer, para a definição do regime jurídico aplicável, distinção entre as empresas estatais exploradoras de atividade econômica em sentindo estrito e as empresas estatais prestadoras de serviço público, tem-se como bastante duvidosa a constitucionalidade da regra que exclui do regime falimentar, sem qualquer ressalva, as sociedades de economia mista e as empresas públicas exploradoras de atividade econômica.

Essa segunda forma de interpretar o artigo 2º, inciso I, da Lei 11.101/05, ainda que não satisfaça àqueles que admitem a falência também da sociedade de economia mista e da empresa pública prestadora de serviço público, ressalvados os bens afetados à prestação desse serviço, é a que poderia salvar a norma de uma completa invalidade, já que favorece a sua aplicação em harmonia com o sistema constitucional vigente.

Como se afirmou no início da exposição, a norma do artigo 2º, inciso I, da lei n.º 11.101, de 9 de fevereiro de 2005, certamente fez voltar a atenção da doutrina e da jurisprudência para as sociedades de economia mista e para as empresas públicas, já que seu afastamento de falência, pelo menos no que se refere às empresas estatais exploradas de atividades econômica de produção e comercialização de bens ou prestação de serviços, desatende a um dos princípios em que se assenta a própria ordem econômica constitucional (artigo 170, IV) e parece não ser compatível com os ditames do artigo 173,§1º, II, da Constituição da República.

Corroborando essa mesma opinião hermenêutica, José dos Santos Carvalho Filho assim se pronuncia:

De plano, o dispositivo da Lei de Falências não parece mesmo consentâneo com a ratio inspiradora do art. 173, § 1º, da Constituição Federal. De fato, se esse último mandamento equiparou sociedades de economia mista e empresas públicas de natureza empresarial às demais empresas privadas, aludindo expressamente ao direito comercial, dentro do qual se situa obviamente a nova Lei de Falências, parece incongruente admitir a falência para estas últimas e não admitir para aquelas. Seria uma discriminação não autorizada pelo dispositivo constitucional. Na verdade, ficaram as entidades paraestatais com evidente vantagem em relação às demais sociedades empresárias, apesar de ser idêntico o objeto de sua atividade. Além disso, se o Estado se despiu de sua potestade para atuar no campo econômico, não deveria ser merecedor da benesse de estarem as pessoas que criou para esse fim excluídas do processo falimentar. [14]

Dessa forma, mediante uma análise sistemática do artigo 2º, inciso I, da lei de Falências e do art. 173, §1º, I, da Constituição da República, pode-se concluir pela possibilidade de a sociedade de economia mista e a empresa pública que explorem atividade econômica stricto sensu, em concorrência com o setor privado, virem a sofrer o processo falimentar.

Segundo ensinamentos de Luís Roberto Barroso "Por força da supremacia constitucional, nenhum ato jurídico, nenhuma manifestação de vontade pode subsistir validamente se for incompatível com a Lei Fundamental". [15]

Ainda quanto à falência das empresas estatais, numa interpretação do art. 173, §1º, II, CF, para o doutrinador Hely Lopes Meirelles,

A nova Lei de Falências (Lei 11.101, de 9.2.2005, que `regula a recuperação judicial, extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária’) dispõe expressamente, no art. 2º, I, que ela não se aplica às empresas públicas e sociedades de economia mista. Não obstante, a situação continuará a mesma. Tal dispositivo só incidirá sobre as empresas governamentais que prestem serviço público; as que exploram atividade econômica ficam sujeitas às mesmas regras do setor privado, nos termos do art. 173, §1º, II, da CF [...]. [16]

Também ensina Celso Antônio Bandeira de Mello:

Quando se tratar de exploradoras de atividade econômica, então, a falência terá curso absolutamente normal, como se de outra entidade mercantil qualquer se tratara. É que a Constituição, no art. 173, §1º, II, atribui-lhes sujeição "ao regime jurídico próprio das empresas privadas inclusive quanto aos direitos e obrigações civis, comerciais (...).

Quando, pelo contrário, forem prestadoras de serviço ou obra pública, é bem de ver que os bens afetados ao serviço e as obras em questão são bens públicos e não podem ser distraídos da correspondente finalidade, necessários que são ao cumprimento dos interesses públicos a que devem servir.

Com efeito, não faria sentido que interesses creditícios de terceiros preferissem aos interesses de toda a coletividade no regular prosseguimento de um serviço público. O mesmo se dirá em relação a obras servientes da coletividade. Assim, jamais caberia a venda destes bens em hasta pública, que seria o consectário natural da penhora e execução judicial em caso de falência. [17]

Como salienta Juarez Freitas, as melhores interpretações constitucionais sempre procuram zelar pela soberania da vitalidade do sistema sem desprezar o texto, mas indo além dele, como exige o próprio texto constitucional.

Ilustra-se:

O próximo preceito ilustrativo de interpretação constitucional sistemática, intimamente associado ao anterior, reza que, sem desprezo da intenção do constituinte originário ou derivado, importa zelar pela soberania da vitalidade do sistema constitucional em sua inteireza, adotando, quando necessário e com extrema parcimônia, a técnica da exegese corretiva, sem incorrer na prática da amputação afoita. [18]

Assim, numa interpretação sistemática, projeta-se eventual inconstitucionalidade do disposto no art. 2º, I, da Lei 11.101/05 frente ao art. 173, §1º, II da CF. Esse último mandamento equipara as sociedades de economia mista e as empresas públicas de natureza empresarial às demais empresas privadas, aludindo expressamente ao direito comercial, dentro do qual se situa a nova Lei de Falências. Destarte, vislumbra-se certa incoerência da Lei 11.101/05 quanto à possibilidade da falência para as empresas do âmbito privado e a não possibilidade da falência para as sociedades de economia mista e empresas públicas que explorem a atividade econômica stricto sensu de produção ou comercialização de bens ou de prestações de serviços.

Segundo o doutrinador lusitano José Carlos Vieira de Andrade:

Se a inconstitucionalidade for evidente, deve prevalecer o princípio da vinculação constitucional directa das autoridades administrativas. Um suporte dogmático para a solução poderá ser constituído pela aplicação da teoria da evidência em matéria de invalidade, ligando a um vício de inconstitucionalidade desse tipo a conseqüência da nulidade-inexistência. Não haverá conflito, porque a lei, em rigor, não existe, não produz efeitos e não obriga a Administração. [19]

Analisando o nosso sistema constitucional vigente, deduz-se que a interpretação da questão falimentar das empresas estatais passa pela diferenciação na atuação das que prestam serviço público das que exploram atividades econômicas.

A interpretação que parece mais aceitável seria que as estatais que prestam serviço público não praticam atividade econômica para fins constitucionais; todavia, aquelas que exploram atividade econômica não podem imaginar-se inseridas em um regime jurídico diverso de qualquer outra empresa privada. Isso, por si só, tornaria viável a falência das sociedades de economia mista e das empresas públicas que explorem atividade econômica forte no art. 173, §1º, II da CF.


ii. INFERÊNCIAS SOBRE A JURISPRUDÊNCIA EXISTENTE NO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA E NO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

As decisões a respeito do tema são raríssimas. Assim, no plano jurisprudencial, as análises relativas à possibilidade ou não de falência das empresas estatais têm de ser inferidas de decisões que tratam de tema próximo, mas diverso, relativo a execuções judiciais individuais propostas contra as sociedades de economia mista e as empresas públicas.

Ao começar pelo Superior Tribunal de Justiça, encontramos o entendimento do Ministro Ari Pargendler, que diferencia as estatais prestadoras de serviços públicos das estatais exploradoras de atividade econômica para permitir, somente no segundo caso, a penhora de seus bens.

Segue-se sua ementa:

PROCESSO CIVIL. EXECUÇÃO DE TÍTULO EXTRAJUDICIAL. PENHORA EM BENS DE SOCIEDADE DE ECONOMIA MISTA QUE PRESTA SERVIÇO PÚBLICO.

A sociedade de economia mista tem personalidade jurídica de direito privado e está sujeita, quanto cobrança de seus débitos, ao regime comum das sociedades em geral, nada importando o fato de que preste serviço público; só não lhe podem ser penhorados bens que estejam diretamente comprometidos com a prestação do serviço público.

Recurso especial conhecido e provido [20].

Ainda nessa esteira, preocupado com a continuação do serviço público, mas ignorando a diferenciação acima sobre prestação de serviço público ou exploração da atividade econômica das paraestatais, o Ministro Luiz Fux ressalta que nada importa se a sociedade de economia mista presta serviço público ou não, todavia permite a penhora de bens desde que a execução da função da empresa estatal não reste comprometida pela constrição. Em outras palavras, o Ministro privilegia a continuidade do serviço público, mas não se preocupa com a distinção entre as empresas prestam serviços públicos e as que exploram a atividade econômica:

PROCESSUAL CIVIL. PENHORA. BENS DE SOCIEDADE DE ECONOMIA MISTA. POSSIBILIDADE.

1. A sociedade de economia mista, posto consubstanciar personalidade jurídica de direito privado, sujeita-se, na cobrança de seus débitos ao regime comum das sociedades em geral, nada importando o fato de prestarem serviço público, desde que a execução da função não reste comprometida pela constrição. Precedentes.

2. Recurso Especial desprovido [21].

Extrai-se dos julgados acima que, embora não tenha sido apreciada especificamente a possibilidade de falência das sociedades de economia mista em questão, é possível ilacionar que o STJ deve aceitar a falência das que exploram a atividade econômica em regime de concorrência com o setor privado, se esta vier a ser submetida à sua análise. Nos julgamentos mais recentes sobre temas semelhantes, restou firmado o entendimento que direciona, em nossa ótica, a solução da questão para a aceitação da falência das sociedades de economia mista que explorem atividade econômica, mas o mesmo não se dirá das que prestam serviços públicos.

O mesmo parece ser o direcionamento do STF, cujo posicionamento, ainda antes da Emenda Constitucional nº 19/98, considerando que o artigo 173, da CF, não é aplicável a toda e qualquer sociedade de economia mista.

Especificando o acima exposto, no julgamento do Recurso Extraordinário nº 172.816 – Rio de Janeiro, em que atuou como relator o eminente Ministro Paulo Brossard, o Tribunal Pleno, por maioria, vencido o Ministro Marco Aurélio, ao analisar a questão em que se discutia a possibilidade de desapropriação, por ente da federação, de bem de propriedade de sociedade de economia mista federal, assim decidiu quanto à interpretação do artigo 173, §1º, da CF:

EMENTA: DESAPROPRIAÇÃO, POR ESTADO, DE BEM DE SOCIEDADE DE ECONOMIA MISTA FEDERAL QUE EXPLORA SERVIÇO PÚBLICO PRIVATIVO DA UNIÃO. 1 (...). 5. A Companhia Docas do Rio de Janeiro, sociedade de economia mista federal, incumbida de explorar o serviço portuario em regime de exclusividade, não pode ter bem desapropriado pelo Estado. 6. Inexistência, no caso, de autorização legislativa. 7. A norma do art. 173, par. 1., da Constituição aplica-se as entidades publicas que exercem atividade econômica em regime de concorrência, não tendo aplicação as sociedades de economia mista ou empresas publicas que, embora exercendo atividade econômica, gozam de exclusividade. 8. O dispositivo constitucional não alcanca, com maior razão, sociedade de economia mista federal que explora serviço público, reservado a União. (...) RE não conhecido. Voto vencido [22].

Da leitura do trecho acima, depreende-se que a discussão envolvia o desempenho de serviço público em regime de exclusividade. Então, não é desarrazoada a conclusão de que também o Egrégio Supremo Tribunal Federal levou em consideração, para restringir a aplicação do artigo 173, da CF, às sociedades de economia mista que atuam na exploração de atividade estritamente econômica, a proteção ao princípio da livre concorrência estatuído no artigo 170, IV, da Carta Magna. Destacando a forte controvérsia existente na doutrina, o Ministro Carlos Velloso pronunciou-se, acompanhando o voto do eminente relator, reiterando posicionamento já defendido em sede doutrinária, no sentido de distinguir empresas públicas e sociedades de economia mista que exploram atividade econômica em sentido estrito daquelas que não exploram a atividade econômica, mas que executam serviços públicos. Vejam-se os trechos:

[...] Sustento o entendimento de que é possível a distinção entre empresas públicas e sociedades de economia mista que exploram atividade econômica daquelas outras empresas públicas ou sociedades de economia mista que não exploram atividade econômica, mas que executam serviços públicos [...]. [23]

Embora transpareça não considerar a prestação de serviço público como uma espécie do gênero atividade econômica, a orientação seguida pelo eminente Ministro confirma a adoção de um regime jurídico híbrido e está em absoluta consonância com o nosso entendimento que defende tal distinção, no sentido de que os bens da sociedade de economia mista que estejam afetados à prestação de um serviço público devem ser considerados como bens públicos por natureza, insuscetíveis de penhora ou excussão para pagamento de credores. O principal fundamento alegado em defesa da tese é o de que, caso fosse possível a alienação dos bens afetados ao serviço público, invertida estaria a regra da prevalência do interesse público, sobre o particular. Nesse sentido, segue o voto do eminente Ministro Carlos Veloso:

Então, parece-me razoável, parece-me possível sustentar que, no caso, é também possível distinguir aqueles bens da sociedade de economia mista, que estão comprometidos com a realização imediata de uma necessidade pública, daqueles outros bens que não estão comprometidos imediatamente com a realização de uma necessidade pública [24].

Em consonância, a discussão jurisprudencial tem posto ênfase particular na distinção das empresas estatais, públicas ou mistas, conforme exerçam atividade econômica em caráter subsidiário da livre iniciativa ou prestem serviço público por delegação do Estado.

Sobre as dimensões da Jurisdição Constitucional, J. J. Canotilho já alertava:

O Tribunal Constitucional é um órgão de jurisdição. É, nos termos constitucionais, um tribunal. Isso não significa que a jurisdição constitucional exercida pelo Tribunal Constitucional esteja desprovida de especificidades metódicas em relação à actividade jurisdicional desenvolvida por outros tribunais. Em primeiro lugar, o Tribunal trabalha com um parâmetro de controlo – os princípios e regras constitucionais – com fortes cambiantes políticas. Esta dimensão política do direito constitucional acabará, de forma mais ou menos explícita, por tornar o Tribunal Constitucional num regulador político. Num processo contínuo de concretização e desenvolvimento das normas constitucionais, o Tribunal decide questões políticas de grande relevância político-constitucional. [25]

Corroborando novamente o debate relativo à questão da diferenciação das paraestatais que prestam serviço públicos com as que exploram atividade econômica, em decisão monocrática de relatoria, o Ministro Sepúlveda Pertence, no RExt 234173 – MG, relembra trechos da decisão do RExt 172816 /RJ, da relatoria Ministro Paulo Brossard – Pleno do STF –, quando da questão da tentativa de penhorabilidade de bens de sociedade de economia mista que explora serviço público. Vejam-se trechos do RExt 234173 – MG:

Para concluir, sempre com as vistas sobre o art. 173 e §§ 1º e 2º: "Somente as empresas estatais que explorem atividade econômica em regime de mercado - setor reservado primariamente para a iniciativa privada - "reger-se-ão pelas normas aplicáveis às empresas privadas". Ou seja, tal se dará se o Estado, via seus entes, agir no mercado como Estado- empresário." Recordo, aliás, que a tese já foi expressamente acolhida por este Plenário, com as únicas exceções dos Ministros Marco Aurélio - que a rejeitou - e Rezek - que, no caso, com ela não se quis comprometer. É ver o RE 172816, 09.02.94, relator o em. Ministro Paulo Brossard; no acórdão - para decidir da expropriabilidade pelo Estado de bem afeto ao serviço portuário delegado a empresa mista federal - recusou-se a pertinência ao caso do art. 173 e seu § 1º, da Constituição, fundamento do RE, conforme sintetizado na ementa. [26]

Pela interpretação jurisprudencial, é de se ver que a norma do art. 173, § 1º, da Constituição Federal, aplica-se às entidades públicas que exercem atividade econômica em regime de concorrência, não tendo aplicação às sociedades de economia mista ou empresas públicas que, embora exercendo atividade econômica, gozam de exclusividade. O dispositivo constitucional não alcança, com maior razão, sociedade de economia mista federal que explora serviço público, reservado à União.

Ainda, sob análise das correntes interpretativistas do Judiciário, J. J. Canotilho alerta:

As correntes interpretativistas consideram que os juízes, ao interpretarem a constituição, devem limitar-se a captar o sentido dos preceitos expressos na constituição, ou, pelo menos, nela claramente implícitos. O interpretativismo, embora não se confunda com o literalismo – a competência interpretativa dos juízes vai apenas até onde o texto claro da interpretação lhes permite –, aponta como limites de competência interpretativa a textura semântica e a vontade do legislador. Estes limites são postulados pelo princípio democrático – a decisão pelo judicial não deve substituir a decisão política legislativa da maioria democrática -, isto é, o papel da rule of Law não pode transmutar-se ou ser substituída pela Law of judges. [27]

Em relação ao voto do Ministro Sepúlveda Pertence, no RExt 234173 – MG, são citadas na decisão brilhantes considerações de Maria Sylvia di Pietro sobre a diferenciação dessas estatais:

[...] dentre as entidades de administração indireta grande parte presta serviços públicos", parte de sua vez a Prof. Maria Sylvia di Pietro para afirmar que ( ) "a mesma razão que levou o legislador a imprimir regime jurídico publicístico aos bens de uso especial, pertencentes à União, Estados e Municípios, tornando-os inalienáveis, imprescritíveis, insuscetíveis de usucapião e de direitos reais, justifica a adoção de idêntico regime para os bens de entidades da administração indireta afetados à realização de serviços públicos." "É precisamente essa afetação" - acentua - que fundamenta a indisponibilidade desses bens, com todos os demais corolários". A conclusão tem sido aceita pacificamente com relação às autarquias e fundações públicas - observa a autora ilustre - mas "é também aplicável às entidades de direito privado, com relação aos seus bens afetados à prestação de serviços públicos". "É sabido" - prossegue - "que a Administração Pública está sujeita a uma série de princípios, dentre os quais o da continuidade dos serviços públicos. Se fosse possível às entidades da Administração Indireta, mesmo empresas públicas, sociedades de economia mista e concessionárias de serviços públicos, alienar livremente esses bens, ou se os mesmos pudessem ser penhorados, hipotecados, adquiridos por usucapião, haveria uma interrupção do serviço público. E o serviço é considerado público precisamente porque atende às necessidades essenciais da coletividade. Daí a impossibilidade de sua paralisação e daí a sua submissão a regime jurídico publicístico". Tudo para concluir que "são bens públicos de uso especial os bens das autarquias, das fundações públicas e os das entidades de direito privado prestadoras de serviços públicos desde que afetados diretamente a essa finalidade [...] [28].

Enfim, o posicionamento dos Tribunais Superiores está inclinado no sentido de tratar diferentemente as estatais que exploram atividade econômica daquelas que prestam serviços públicos, aceitando a penhora de seus bens e permitindo deduzir com segurança que a conclusão sobre a falência das empresas públicas e sociedade de economia mista é possível, desde que explore a atividade eminentemente econômica em concorrência com o setor privado.


CONCLUSÃO

O presente artigo surgiu da expectativa de discutir uma solução constitucionalmente viável que possibilite corroborar com a possibilidade da falência das empresas públicas e das sociedades de economia mista.

Quando as sociedades de economia mista e as empresas públicas exercem atividades econômicas, como são dotadas de personalidade jurídica de direito privado, podem operar como verdadeiros particulares no campo mercantil.

As empresas estatais só se justificariam quando suas congêneres particulares forem insuficientes para atender à demanda do mercado. O Poder Público só deveria competir com a indústria ou o comércio, por meio das empresas públicas e sociedades de economia mista, quando as atividades fossem necessárias aos imperativos da segurança nacional ou houvesse relevante interesse coletivo, a teor do art. 173, da CF/88.

Entretanto, a inserção do Estado em atividade típicas da iniciativa privada ocorre há muito tempo, beneficiando-se dessa prática sem sofrer as consequências às quais estão sujeitas as empresas particulares, como, por exemplo, a aplicação do regime falimentar.

A revogação do art. 242, da Lei 6.404/76 (Lei S/A), que expressamente dispunha estarem excluídas do regime falimentar as sociedades de economia mista, propiciou terreno fértil para discussões sobre a aplicação ou não da falência a tais sociedades, mormente agora, quando a nova Lei de Falências dispõe que as sociedades de economia mista e as empresas públicas estarão fora do alcance do regime falimentar, no seu art. 2, II.

O artigo 2º, I, da Lei 11.101/05, que trouxe expressa menção às sociedades de economia mista e às empresas públicas, tratando-as em bloco único, apenas por serem estatais, declara não serem elas atingidas pelas regras falimentares. Isso despertou a atenção para uma possível inconstitucionalidade, se interpretado sistematicamente com o artigo 173, §1º, inciso II, da CF.

Dessa forma, a possível inconstitucionalidade da norma falimentar passa necessariamente por uma análise da diferenciação da finalidade das sociedades de economia mista e das empresas públicas: se prestam serviço público, concedido pelo ente federativo titular do serviço, nos termos do art. 175, da CF, ou se exercem atividade econômica, quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou de relevante interesse coletivo, nos termos do art. 173 da Constituição Federal.

De acordo com essa diferenciação, apresentou-se a idéia de que não se aplicam às sociedades de economia mista e às empresas públicas prestadoras de serviço público as mesmas regras destinadas àquelas que exercem atividade econômica em concorrência com a iniciativa privada, pois estas últimas se sujeitariam ao regime jurídico próprio das empresas privadas, inclusive no âmbito do Direito Comercial, a teor do art. 173, da CF, no qual se insere a Lei de Falências.

Dessa forma, aceitar a diferença entre a exploração de atividade econômica e a prestação de serviço público permite que os fins buscados pela regra constitucional no art. 173 sejam atingidos, sem trazer a noção de inconstitucionalidade da lei falimentar.

Caso contrário, acredita-se que a novel norma falimentar estaria fadada a uma possível inconstitucionalidade, por proibir a falência das empresas estatais, sem nenhuma ressalva.

O artigo 173, da CF/88, tem por finalidade evitar que as estatais logrem disputar o mercado em que atuam, com alguma vantagem sobre quaisquer outras empresas privadas. Entendemos tal privilégio de intolerável convivência com o espírito da Constituição Federal, quando esta exige que, ao desempenhar uma exploração de atividade econômica stricto sensu, o Estado deverá fazê-lo em regime de estrita concorrência leal com as empresas privadas.

Essas indagações fazem sentir a necessidade de que seja afinal regulado por lei o estatuto jurídico das sociedades de economia mista e das empresas públicas de que fala o art. 173, §1º, da CF, extremando-se, definitivamente, as diferenças de regime entre aquelas exclusivamente vocacionadas para a prestação de serviços públicos e as que exploram a atividade econômica stricto sensu.

É lamentável que o legislador, quando estabelece normas sobre empresas estatais, não leve em conta tal distinção, pois as empresas estatais que prestam serviço público não praticam atividade econômica para fins constitucionais. Todavia, aquelas que exploram atividade econômica em regime de concorrência com o setor privado não podem imaginar-se inseridas em um regime jurídico diverso de qualquer outra empresa privada. Isso, por si, tornaria viável a falência das sociedades de economia mista e das empresas públicas que explorem atividade econômica, baseado no art. 173, §1º, II da CF.

Reforçando essa opinião, as ilações jurisprudenciais dos Tribunais Superiores vão ao encontro dessa diferenciação, inclinando-se no sentido de tratar diferentemente as estatais que exploram atividade econômica daquelas que prestam serviços públicos, aceitando, por exemplo, a penhora de seus bens e permitindo deduzir com segurança que a conclusão sobre a falência das empresas públicas e das sociedades de economia mista é possível, desde que explorem a atividade eminentemente econômica em concorrência com o setor privado.

Assim, a particularidade reside no fato de que o dispositivo da Lei de Falências não parece mesmo consentir com o artigo 173, § 1º, da Constituição Federal, quando as paraestatais exploram atividade eminentemente econômica. Esse último mandamento equiparou sociedades de economia mista e empresas públicas de natureza empresarial às demais empresas privadas, acenando de forma expressa ao direito comercial, dentro do qual, por corolário óbvio, se encontra a Lei de Falências.

Incongruente seria admitir a falência para sociedades empresárias e não admiti-la para as sociedades de economia mista e as empresas públicas que exploram a atividade econômica.

Seria uma discriminação não avalizada pelo dispositivo constitucional (art. 173), pois ficaram as empresas estatais com evidente vantagem em relação às demais sociedades empresárias, apesar de ser idêntico o objeto de sua atividade.


REFERÊNCIAS

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Notas

  1. REQUIÃO, Rubens. Curso de direito falimentar. 15. ed. São Paulo: Saraiva, 1993, v. 1, p. 55.
  2. SOUTO, Marcos Juruena Villela. Aspectos do planejamento econômico. 2. ed. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2000, p. 117-118.
  3. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Parcerias na administração pública. São Paulo: Atlas, 1996, p. 40-41.
  4. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 23. ed. São Paulo: Atlas, 2009, p. 444.
  5. MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional. Tomo II. 3. ed. Coimbra: Coimbra, 1996, p. 253.
  6. BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. 10. ed. Brasília: Universidade de Brasília, 1999, p. 107-108.
  7. MEYER, José Alexandre Corrêa. A sociedade de economia mista e sua exclusão da nova lei de falências. In: SANTOS, Paulo Penalva ... [et al.]. (Coord.). A nova lei de falências e de recuperação de empresas: Lei 11.101/05. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 24.
  8. GRAU, Eros Roberto, A ordem econômica na Constituição de 1988. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1990, p. 138-139.
  9. MEYER, José Alexandre Corrêa. A sociedade de economia mista e sua exclusão da nova lei de falências. In: SANTOS, Paulo Penalva ... [et al.]. (Coord.). A nova lei de falências e de recuperação de empresas: Lei 11.101/05. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 25.
  10. VALVERDE, Miranda. Comentários à lei de falências. Rio de Janeiro: Forense, 1999, v. 1, p. 18.
  11. COELHO, Fábio Ulhoa. Comentários à nova lei de falências e de recuperação de empresas: (Lei n. 11.101, de 9-2-2005). 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 27.
  12. CAMPINHO, Sérgio. Falência e recuperação de empresa: o novo regime da insolvência empresarial. Rio de Janeiro: Renovar, 4 ed. 2009, p. 24.
  13. Ibidem, p. 24.
  14. CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 23. ed. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2010, p. 559.
  15. BARROSO, Luís Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas normas: limites e possibilidades da constituição brasileira. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 1993, p. 150.
  16. MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 36. ed. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 387.
  17. MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 25. ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 206.
  18. FREITAS, Juarez. A interpretação sistemática do direito. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 206.
  19. ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976. Coimbra: Almedina, 1987, p. 216-217.
  20. BRASÍLIA. Superior Tribunal de Justiça. T2 - Segunda Turma. REsp. 176078/SP. Ministro Ari Pargendler. DJ 08/03/1999, p. 200 (Grifo nosso).
  21. BRASÍLIA. Superior Tribunal de Justiça. T1 - Primeira Turma. REsp 521047/SP. Ministro Luiz Fux. DJ 16/02/2004, p. 214 (Grifo nosso).
  22. BRASÍLIA. Supremo Tribunal Federal. RExt 172816/RJ - Rio de Janeiro. Relator(a): Min. Paulo Brossard. Órgão Julgador: Tribunal Pleno. DJ 13-05-1994, p. 11365.
  23. BRASÍLIA. Supremo Tribunal Federal. RExt 172816 /RJ. Ministro Paulo Brossard. Tribunal Pleno. DJ 13-05-1994, p. 11365.
  24. BRASÍLIA. Supremo Tribunal Federal. RExt 172816 /RJ. Ministro Paulo Brossard. Tribunal Pleno. DJ 13-05-1994, p. 11365.
  25. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 4. ed. Coimbra: Almedina, 2001, p. 1305.
  26. BRASÍLIA. Supremo Tribunal Federal. RExt 234173-MG. Relator(a): Min. Sepúlveda Pertence. Julgado em: 01/02/2001, publicado em DJ 01/03/2001, p. 00146.
  27. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 4. ed. Coimbra: Almedina, 2001, p. 1195.
  28. BRASÍLIA. Supremo Tribunal Federal. RExt 234173-MG. Relator(a): Min. Sepúlveda Pertence. Julgado em: 01/02/2001, publicado em DJ 01/03/2001, p. 00146.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ZAGO, Felipe do Canto. A falência das empresas públicas e das sociedades de economia mista. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2720, 12 dez. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/18021. Acesso em: 24 abr. 2024.