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Mundo proibido: histórico, vertentes e soluções para o tráfico de seres humanos e prostituição, sob a égide do Direito Internacional Público

Mundo proibido: histórico, vertentes e soluções para o tráfico de seres humanos e prostituição, sob a égide do Direito Internacional Público

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O tráfico de pessoas é a terceira espécie de crime mais rentável do planeta, atrás apenas do tráfico de drogas e de armas. A união de esforços entre os vários países da sociedade internacional constitui-se em atitude fundamental para desestabilizar suas quadrilhas organizadas

RESUMO: com o intuito de ampliar o diálogo em torno das implicações jurídicas do tráfico de seres humanos no Direito Penal e na Disciplina Internacional, seja para venda ilegal de órgãos ou, principalmente, para a prostituição internacional, este artigo científico aborda diversas questões teóricas acerca da prostituição como fenômeno social e jurídico no Direito Comparado, indica casos concretos em que se violam flagrantemente as normas internacionais na prática literal de sequestro para fins de escravidão sexual em outros países, e apresenta possíveis soluções para tão lamentável problemática.

Palavras-Chave: Direito, Prostituição, Internacional, Penal, Crime.

RESUME: with the view to intensified the dialogue in the judicial implications of the human being traffic in the Criminal Law and International Discipline, for illegal sell of human parts or, especially, for  international prostitution, this scientific article presents many theoretical questions above the prostitution as a social and judicial phenomenon in Comparative Law, indicates real cases when the violation of international law is clearly seen, in the literal practice of kidnap for sexual slavery in another countries, and also presents possible solutions for such lamentable problem.

Key Words: Law, Prostitution, International, Criminal, Crime.


1. INTRODUÇÃO

O presente trabalho científico elencou como matéria principal assunto de extrema relevância na Sociedade Internacional Contemporânea, que desperta rico interesse entre as autoridades doutrinárias, os órgãos de segurança e a Função Judiciária. Sua temática diz respeito à questão do Tráfico Internacional de Seres Humanos, com especial ênfase na problemática da exploração internacional da prostituição e escravidão sexual. Este estudo possuirá como base fontes históricas, entrevistas escolhidas através de pesquisa em meios de informação e mídia de massa (mass media), e se norteará pela disciplina do Direito Internacional (notadamente o DIP), fonte sempre utilizada tanto para fundamentar a apresentação de legislação específica envolvendo o tráfico ilegal de seres humanos, quanto para desenvolver a abordagem da situação jurídica dos indivíduos submetidos ao regime de escravidão por dívidas no mercado do sexo e propor sanções a serem aplicadas aos praticantes de tão horrendo delito.

O estudo se iniciará com uma pequena reminiscência histórica acerca da temática da escravidão e do tráfico internacional de seres humanos, na qual serão destacados os fundamentos sociológicos para tal espécie deformada de relacionamento humano, e também onde serão abordadas as subdivisões do tráfico ilegal de pessoas. Desde a Antiguidade até a atualidade, narraremos uma breve história da escravidão, este terrível mal que aflige parcela da sociedade humana.

Após, iniciaremos a abordagem do específico ponto de nosso trabalho: a exploração da prostituição alheia, ou Rufianismo. Serão fundamentadas preliminares noções sobre o desenvolvimento da exploração da prostituição no cenário internacional, destacando-se as três principais posições adotadas pelos países em matéria legislativa acerca do tema.

Também serão descritos os métodos utilizados pelos aliciadores do tráfico internacional de pessoas no recrutamento de suas vítimas, dentro da realidade brasileira. Mostraremos alguns dos mais significativos focos geográficos da prática deste crime no Brasil, onde são recrutadas mulheres pretensamente para trabalharem como garçonetes ou atendentes de casas noturnas no exterior, as quais são ludibriadas para acreditar nessa versão, quando na verdade estão sendo iniciadas em um processo de escravidão por dívidas, e se transformarão nas mais novas vítimas do tráfico internacional de seres humanos.

Logo após, abordaremos a situação jurídica do “escravo moderno” frente aos seus recrutadores, ao Estado onde se encontra, ao seu país de origem e quais são as atitudes que a vítima de escravidão por dívidas deve tomar a fim de se desvencilhar do mal que a persegue, qual seja, os chefões do tráfico internacional de pessoas. Muitas das vítimas acreditam piamente que, caso paguem a quantia que devem, serão libertadas; ou que, caso tentem fugir, mesmo que escapem dos capangas do rufião internacional, serão presas pelas autoridades do Estado em que se encontram, por não possuírem passaporte ou documentos que as identifiquem (pois estes são detidos pela quadrilha de traficantes). Será provada a esta parte do estudo que esses pensamentos são errôneos do ponto de vista do Direito Internacional Público, e que as vítimas estarão muito mais protegidas e seus direitos fundamentais resguardados caso fujam de seu cárcere com vida.

Depois de discorrer sobre a situação jurídica da vítima do tráfico internacional de seres humanos, explicaremos uma série de medidas sancionadoras que já existem para punir os praticantes do crime de tráfico de pessoas, além de propor soluções para a problemática analisada, em todas as suas esferas e especificamente no que tange à exploração internacional da prostituição através do recrutamento de “escravos sexuais”. Segundo nossas concepções, com medidas de conscientização das famílias de baixo nível socioeconômico nas áreas de recrutamento (como o estado do Pará, por exemplo), intensa fiscalização nos aeroportos e fronteiras internacionais no Brasil e uma política de repressão aos indivíduos que cometem o delito do tráfico ilegal de seres humanos com a celebração de acordos e tratados multilaterais com os demais Estados da Sociedade Internacional, poderá ser possível em médio prazo uma reversão do atual e crítico cenário da prática desse desprezível crime.

Por fim, concluiremos o trabalho com um resumo de nossas ideias, demonstrando de que forma podemos combater o tráfico internacional de pessoas, através do auxílio do Estado e da sociedade civil. Temos em mente que este é um antigo fenômeno, existente em várias partes do mundo e em diferentes sociedades. Desde os primórdios da história humana a escravidão assombra a mente dos estadistas mais sensíveis à promoção dos Direitos e Garantias Fundamentais (estabelecidos pelo artigo 5º da Constituição da República Federativa do Brasil - CRFB). Entretanto, é hora de empreender maiores esforços e agir mais frente a essa horrenda prática, e pôr efetividade no texto constitucional através de uma política de celebração de tratados com os Estados que recepcionam (infelizmente) as vítimas do tráfico internacional de seres humanos. Provaremos que a união de esforços entre os vários países da sociedade internacional constitui-se em atitude fundamental para desestabilizar as quadrilhas organizadas que atuam na execução desse crime que vai diretamente de encontro com os primordiais valores estabelecidos na Constituição Brasileira de 1988, e nos diversos tratados celebrados perante a Organização das Nações Unidas (ONU).

O tráfico de pessoas é a terceira espécie mais rentável do planeta, apenas sucumbindo para o tráfico de drogas e de armas. Entretanto, de longe é o mais rentável, uma vez que a mercadoria comercializada nesse tipo de negócio escuso é utilizada ininterruptamente, até seu colapso total (e, como estamos discorrendo sobre seres humanos, considera-se para isso sua morte ou loucura). O grande transtorno decorrente dessa lamentável prática se constitui no Direito Internacional Público em instabilidade nas relações políticas entre dois Estados: onde se encontram os criminosos e no qual nasceram e foram capturadas as vítimas. Logo, o assunto em análise possui extrema importância nos campos institucional, político, jurídico, acadêmico e social, e atualmente encontra-se em voga em diversos meios midiáticos, sendo desmerecidamente ignorados pelas obras e pesquisas desenvolvidas por estudiosos do Direito, muito mais pelo preconceito e subestimação existentes no tema da prostituição e do tráfico de órgãos em países “subdesenvolvidos” (nomenclatura atualmente incorreta, mas adequada para a exposição em questão) do que por uma falta de relevantes resultados nas pesquisas sobre tal temática, os quais, pelo contrário, são latentes e extremamente significativos.


2. O FENÕMENO DO TRÁFICO DE SERES HUMANOS: NOTÍCIA HISTÓRICA

Antes de uma análise histórica do fenômeno do tráfico de seres humanos, são necessárias algumas remissões a doutrinadores de diversos campos do saber humano para nos indicar o que leva determinados grupos de homens a buscar obter lucros financeiros com a exploração dos corpos alheios, sob diferentes matizes. Michel Foucault, em sua clássica obra “O Sujeito e o Poder”, nos descreve que em todos os agrupamentos humanos existem relações de poder entre os indivíduos que os compõem, de diversas formas: desde a organização militar de uma civilização até mesmo a organização profissional de uma empresa atual, verificamos diferentes e intrincadas relações de poder entre as pessoas. Podemos, de forma rudimentar mas plausível, transferir estas relações de poder para as organizações criminosas e mesmo suas vítimas, em alguns casos. No que tange ao tráfico de órgãos humanos, os grupos criminosos valem-se da situação financeira de suas vítimas para retirar-lhes ilegalmente os órgãos com o intuito de revendê-los a uma coletividade de indivíduos que possui poder aquisitivo superior para adquirir a ilícita mercadoria. Nas relações de meretrício, isso se estabelece de forma mais intensa: a prostituta sente-se aprisionada e submetida ao rufião, que em muitos casos (notadamente nos que envolvem o tráfico internacional de mulheres), detém poder sobre sua vida ou morte, caso tente escapar da casa de prostituição onde se encontra encarcerada. Muitas vezes, mesmo na prática interna a cada país de tal crime, mulheres prostituem-se e oferecem parcela de sua renda para os rufiões de forma voluntária, uma vez que acreditam ter a “proteção” do agente.

De forma semelhante, verificamos nos estudos do renomado Francisco Rezek[1], que os Estados da Sociedade Internacional regem-se sob três primas normativos: do Costume Internacional, da Moral Internacional e da Norma Internacional (esta personificada pelos Tratados). A Moral é vista entre os Estados de forma bastante significativa, e se constitui como elemento fundamental para um bom relacionamento entre eles. Caso um determinado país verifique que nacionais seus são especiais vítimas de grupos criminosos localizados em outro Estado, e que as autoridades deste nada realizam para impedir a ocorrência do ilícito, o relacionamento internacional entre os dois Estados poderá cessar por decorrência ao desrespeito aos preceitos de Moral Internacional, e poderá inclusive se intensificar caso haja Tratado que envolva o auxílio mútuo entre eles em setores jurídico-penais.

O tráfico de pessoas, para os mais diversos fins, é uma das práticas mais antigas da humanidade. Durante milênios, essa prática se conjugou com uma instituição basilar em diversas civilizações antigas e modernas: a escravidão. Relatos do tráfico de sudaneses para trabalhar nas obras da antiga civilização egípcia como escravos são registros que remontam há milênios, e denotam quão intrínseca é esta problemática na sociedade humana.

Por diversos motivos, a escravidão como instituição nas civilizações ocidentais teve seu término por volta do século XIX. Dentre eles, o período histórico conhecido como Revolução Industrial ofereceu novo sentido à questão da mão-de-obra. Já não era mais lucrativa a escravidão, uma vez que o trabalhador e operário livre e assalariado poderia ser bem mais produtivo que um escravo, até mesmo por se caracterizar como parcela do mercado consumidor da maioria dos produtos que ele mesmo auxiliava a desenvolver.

Entretanto, o tráfico de pessoas ainda se mantém nas civilizações contemporâneas. Por que tal anacrônico e primitivo fenômeno permanece a assombrar a sociedade humana? Ora, as atuais necessidades são outras. Algumas são motivadas pelo avanço científico da humanidade (principalmente no que tange ao tráfico de pessoas com finalidade de transplante ilegal de órgãos); no entanto, determinadas práticas que remontam à barbárie humana ainda são utilizadas como subsídio para o tráfico de pessoas (vide o tráfico de mulheres e a prostituição internacional escrava).

Embora existam casos de real escravidão moderna (no sentido de trabalhadores submetidos à condição análoga a de escravos), no âmbito do Direito Internacional esse fenômeno ainda não possui a amplitude que existe dentro do cenário interno de cada Estado. Por exemplo, é notório o regime de escravidão a que diversos trabalhadores são submetidos na região Norte do Brasil, tendo o Ministério Público do Trabalho empreendido diversas iniciativas na citada região a fim de diminuir a incidência desse crime na região (veremos mais adiante cada um dos dispositivos legais que disciplinam as sanções referentes às práticas de crimes relativos à escravidão moderna). No cenário internacional, no entanto, é mais comum o tráfico de seres humanos para atuar em outras realidades, tais como serem mortos a fim de que seus órgãos sejam retirados para venda ilegal; ou no caso de atuarem compulsoriamente na prostituição em países estrangeiros (notadamente no Leste Europeu, como veremos a seguir), em condição de escravidão e correndo riscos para sua integridade física caso tentem fugir.

No que se trata de uma notícia histórica, focaremos o fenômeno do tráfico internacional de mulheres para a prostituição escrava, ou seja, primeiramente apontaremos algumas informações referentes à prostituição como instituição social humana, e logo após retomaremos o raciocínio do crime cometido nesse cenário de mentiras e sequestros, normalmente mascarado por um regime de escravidão por dívidas entre as vítimas e o rufião.

A gênese da prostituição perde-se nos tempos, pois desde a Antiguidade eram conhecidas as práticas ritualísticas de prostituição entre a civilização da Babilônia e a prostituição hospitaleira entre povos do Oriente Médio, na qual oferecia-se uma das filhas para os forasteiros que se hospedavam na casa d’algum morador de cidade como forma de agradar a visita e mostrar hospitalidade. No entanto, os primeiros relatos sobre alienação do prazer corporal datam da antiga civilização Grega. Porné era a nomenclatura dada às escravas que se prostituíam em troca de dinheiro para seus senhores, chamados Pornoboskoi. Sabe-se que os atenienses foram os primeiros a legalizar formalmente a prática e exploração da prostituição, cobrando inclusive tributos das casas de prazer, denominados Pornokontelas. Sólon, famoso legislador ateniense, mandou construir uma casa de prazeres com o intuito de “satisfazer as necessidades do povo”.

No período de dominação do Império Romano, os Edis Curis, governantes das cidades, possuíam registros das meretrizes locais e reprimiam as que tentavam levar a vida clandestinamente. Chamavam-se, de acordo com o local onde realizavam o comércio, suas preferências e nível social: Alicariae, Casoritae, Copae, Dilatrolae, Porariae, Libtidae, Noctunigitae, Prosedae, Pregrinae, Putae, Quadrantariae, Seratiae, Scrotae, Vagae, etc. Eram obrigadas por lei a utilizar uma toga viril, com mitra e véus amarelos, para que fossem distinguidas na sociedade.

Durante o período medieval, após a queda do Império Romano Ocidental, a Igreja Católica tomou as rédeas no controle social e econômico do rufianismo, com o pretexto de resguardar esse setor da sociedade e impedir sua expansão. Foi o papa Bento IX o primeiro a construir um Lupanar (Casa de Prostituição) pontifical, administrado pelos clérigos. Conhecidos eram os conventos como casas ocultas de prazeres e locais onde moravam as principais amantes dos poderosos nobres europeus da Idade Média. Popular na época era o boato que cercava a vida do conhecido escritor Petrarca: possuía ele uma bela irmã, de nome Selvaggia, a qual era imensamente desejada pelo papa Bento XII, o qual prometeu o cardinalato ao poeta caso liberasse sua irmã para visitar os aposentos do pontífice. Proposta recusada, Petrarca acabou sendo denunciado ao Tribunal da Inquisição, o que o fez fugir de Roma e deixar sua irmã aos cuidados de seu irmão Gerardo, o qual, menos escrupuloso que Petrarca, entregou em uma madrugada Selvaggia ao velho clérigo, que acabou por deflorá-la. Roma na época era muito mal vista pela quantidade massiva de lupanares administrados por padres, cujos frequentadores eram o próprio povo e membros do clero, os quais quebravam sistematicamente seus votos de castidade e sucumbiam às femininas tentações das meretrizes.

Entretanto, principalmente após a Reforma Protestante, a Contrarreforma Católica e outros movimentos de moralização das instituições da sociedade europeia nos séculos subsequentes, a prostituição passou a ser extremamente mal quista pela civilização ocidental, e notadamente após o século XIX, terminou por cair nas sombras e no ostracismo da sociedade, em diversos continentes (pois com a colonização europeia vieram seus costumes, estereótipos e preconceitos, principalmente no continente americano).

Atualmente, diversos Estados divergem sobre como tratar da temática da prostituição em suas legislações internas (como veremos adiante, existem três correntes acerca da legalização do meretrício). Isso faz com que não haja consenso em diversos assuntos, como no tráfico ilegal de mulheres, pois cada país adota uma posição diferente sobre como tratar a prostituição. O que podemos afirmar é que, no que tange a um estímulo dos governos ao respeito da sociedade pela condição em que as prostitutas sobrevivem e formas de evitar que mulheres sucumbam a essa atividade, muito pouco ainda foi realizado, o que torna cada vez mais intrincada, complexa e organizada a rede mundial de exploração e tráfico de mulheres, principalmente na Europa, e notadamente em relação ao caso brasileiro no país vizinho do Suriname.

Quanto ao tráfico de órgãos, trata-se de uma prática desenvolvida ao longo do século XX, sendo bastante recente (ressalte-se que o estudo da anatomia humana teve efetivo início no século XVIII, e o transplante de órgãos é inovação do século passado), mas não menos grave e significativa quanto o tráfico de mulheres. Com o avanço científico da medicina, principalmente no que tange às cirurgias de transplante de órgãos, a procura pelos mesmos por diversos indivíduos aumenta a cada dia, principalmente pelos crescentes casos de câncer motivados pela baixa qualidade de vida das sociedades atuais. Isso faz com que muitos grupos pratiquem raptos de pessoas saudáveis, a fim de assassiná-las para assim retirar seus órgãos e vendê-los pelos mais variados preços no mercado negro internacional de órgãos. Trata-se de uma vertente mais violenta do tráfico de pessoas, em que não há uma motivação em manter a vítima viva, pois o interesse é puramente físico (os órgãos do sujeito).


3. A PROBLEMÁTICA DA PROSTITUIÇÃO NO CENÁRIO INTERNACIONAL

Como abordado anteriormente, o tráfico de pessoas é realizado por diversas sociedades ao redor do mundo. Desde as mais remotas épocas, a escravidão e o tráfico de seres humanos são praticados, para os mais diferentes propósitos. Também foi dito que nosso trabalho se destina especialmente à infeliz realidade da prostituição internacional, na qual em diversos casos mulheres são submetidas a um regime de escravidão por dívidas, muitas destas criadas e expandidas intencionalmente com o objetivo de manter a vítima enredada na maléfica trama desenvolvida pelas quadrilhas do tráfico internacional de pessoas. Embora tenham sido empreendidos intensivos esforços a fim de evitar o fenômeno do tráfico de seres humanos e a prostituição no cenário global, estas duas práticas longe estão de serem erradicadas, muito mais por se tratarem de verdadeiras instituições na sociedade ocidental (a prostituição, especialmente, é uma realidade cômoda demais para que determinados governos possuam vontade política necessária para erradicá-la). Nesta parte de nosso trabalho, abordaremos a problemática da mesma no âmbito da Sociedade Internacional: como os Estados tratam de fenômeno tão arraigado no cotidiano da sociedade?

Em diversos Estados, notadamente naqueles que não estão em um patamar de desenvolvimento socioeconômico satisfatório (países em desenvolvimento), a prostituição constitui-se como uma válvula de escape para as dificuldades financeiras em que se encontram os indivíduos de baixa renda. Trata-se, pois, de uma estrutura tipicamente ligada ao papel social de cada sujeito na sociedade, pois dificilmente observaremos a prática da prostituição nas classes mais favorecidas (embora a mesma seja existente com um reduzido grupo de “prostitutas de luxo” denominadas Escort Girls). Logo, em diversos países, a prostituição é encarada como um ato não relacionado com os preceitos morais, porém lícito (no Brasil, por exemplo, apenas a exploração da prostituição alheia – rufianismo – é crime previsto no Código Penal Brasileiro). Isso nos leva a expor uma conhecida classificação científica envolvendo a licitude da prática de prostituição:

· Legislações Reguladoras ou Liberatórias: alguns países, notadamente os europeus (como a Holanda), permitem a prática e exploração da prostituição em seu território, e tratam-na como um empreendimento empresarial qualquer, cobrando inclusive taxas e outros tipos de tributos sobre o funcionamento de estabelecimentos que exploram a prostituição alheia;

· Legislações Repressivas ou Proibitivas: outros países, a maioria localizada no Oriente Médio, proíbem a prática e exploração da prostituição, comumente prescrevendo pesadas sanções para os criminosos que realizam o ilícito (a pena da morte é comum em diversos desses Estados para aqueles que praticam a prostituição). Curioso notar que existem exemplos de países ocidentais que também adotam essa vertente legislativa sobre o trato da prostituição na esfera jurídica: os Estados Unidos da América (EUA), por exemplo, dispõem como crime a prática e exploração da prostituição, detendo indivíduos que infringem essa norma penal.

·Legislações Permissivas: a maioria dos Estados da Sociedade Internacional adota essa vertente legislativa acerca do trato jurídico da prostituição: sua prática não constitui crime, mas a exploração da prostituição alheia (Rufianismo) é considerado um ilícito penal, sendo proibida a existência de casas e estabelecimentos que promovam, incitem ou explorem diretamente a prostituição alheia.

Entretanto, a análise acima se relaciona com a realidade interna de cada Estado no âmbito da Sociedade Internacional, considerando a prática da prostituição única e exclusivamente para os sujeitos com capacidade de exercício civil (no caso brasileiro, os maiores de 18 anos com plena sanidade mental). Proíbe-se terminantemente a prostituição de menores e incapazes, na esmagadora maioria dos países. Trata-se de um consenso global o repúdio à prostituição infantil, e como veremos mais à frente, existem diversas disposições jurídicas internacionais sobre o tema, também no que concerne ao tráfico de crianças e adolescentes para a prostituição internacional.

O que se verifica, pois, é um esforço das organizações internacionais no sentido de ao menos tentar regulamentar certas práticas aberrantes envolvendo a prostituição, enquanto se permite a realização da mesma, com determinadas condições. Através da celebração de acordos e tratados (os quais serão vistos mais adiante), tenciona-se diminuir a prática de crimes envolvendo essa esfera na realidade global. Entretanto, em diversos países em desenvolvimento (especialmente asiáticos e latino-americanos), ainda se configura em um trabalho deveras complexo desmanchar as redes criminosas do tráfico internacional de seres humanos e da prostituição infantil, pois se sabe que os dois ilícitos complementam-se no cenário internacional, pois uma significativa parcela das vítimas do tráfico de pessoas encontram-se em baixas faixas etárias, e muitas ainda são adolescentes ou mesmo crianças.

Incentiva-se também que no âmbito interno de cada Estado sejam implementadas medidas de fiscalização e conscientização da sociedade no tocante ao repúdio da prostituição ilegal (no Brasil, notadamente o Ministério Público Federal tem atuado de forma intensa no que tange à conscientização através de palestras educativas em instituições de ensino e pesquisa nacionais; enquanto os Ministérios Públicos de cada estado empreendem esforços para fiscalizar e atuar de forma direta na repressão à prostituição infantil, com o auxílio das instituições policiais, como as divisões de Delegacias de Proteção à Criança e ao Adolescente – DPCA’s – da Polícia Civil estadual).


4. O MÉTODO UTILIZADO PELOS TRAFICANTES NO RECRUTAMENTO

Atualmente, podem ser apontados dois grandes casos envolvendo tráfico de pessoas e prostituição internacional no Brasil, os quais chamaremos para fins didáticos de “Conexões”: a Conexão Espanha e a Conexão Suriname. Passemos agora a discorrer de forma mais dedicada a cada um dos casos em análise.

A problemática da prostituição internacional envolvendo Brasil e Espanha pode ser considerada como sendo um antigo e funesto relacionamento entre os dois Estados. Principalmente nos grandes centros urbanos, como São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte e em muitas cidades mineiras, adolescentes e mulheres são aliciadas para trabalhar na prostituição local. Até este ponto, verificamos a existência de uma esfera local do crime de Rufianismo (art. 230, CP). Como veremos adiante, também na esfera nacional poderá incorrer o rufião em tráfico interno de pessoas para fins de prostituição (nova configuração trazida pela Lei 12015/2009). Logo, até este ponto o ilícito se configura meramente em âmbito interno do Estado.

Entretanto, após essa preliminar abordagem e aliciamento para prostituição em âmbito local, normalmente surge a figura do “aliciador internacional” (termo pelo qual passaremos a denominar a função mais básica da quadrilha de rufiões internacionais). O aliciador internacional é o posto mais baixo na hierarquia das quadrilhas que exploram a prostituição alheia em âmbito global. Na maioria dos casos, este indivíduo é caracterizado como um sujeito comunicativo, simpático e otimista em relação ao futuro e à “carreira” da menina aliciada. Pode ser homem ou mulher, sendo que esta normalmente é contratada pela quadrilha para inspirar maior confiança na mente da vítima, uma vez que um elemento feminino na quadrilha faz com que a jovem aliciada sinta-se segura em relação a seu futuro no exterior. Esta é um dos dois casos de aliciamento mais comuns: o da jovem que se prostitui já no Brasil, e é levada para o exterior, sendo ludibriada posteriormente e sujeitando-se à condição de escrava sexual no Estado que a recebe (na situação em análise, Espanha, portão de entrada para muitas jovens na Europa, em que muitas vezes apenas são mantidas transitoriamente, a fim de serem trasladadas para os países do Leste Europeu, onde serão ainda mais exploradas, caso em que muitas encontram a morte nos nefandos prostíbulos tchecos).

Outro caso, com uma abordagem ainda mais dissimulada, é o da mulher que não está na “vida” (termo utilizado entre as garotas de programa para se referirem ao seu trabalho), e recebe uma proposta de emprego no exterior, normalmente de garçonete, faxineira de hotéis ou empregada de boates sem relação com o proibido mundo da prostituição. Aceitando tais propostas, a mulher segue para o país em que o aliciador internacional indicou como sendo o local onde a mulher encontraria uma excelente oportunidade de emprego. Entretanto, a lamentável surpresa a aguarda no Estado que a recebe: ela é sequestrada pela quadrilha e mantida na casa de prostituição, e caso tente fugir seu destino será uma dolorosa morte.

Estes são os casos mais comuns de aliciamento de mulheres pelos rufiões internacionais, tanto na Conexão Espanha e na Conexão Suriname: apenas o destino modifica-se, pois as formas de atuação, aliciamento, intimidação e exploração das quadrilhas são extremamente semelhantes.

O caso de maior repercussão em termos de tráfico internacional de mulheres na atualidade é a Conexão Suriname. Tal caso tem seu início na cidade de Altamira, no estado do Pará. Considerada a maior cidade em extensão do mundo, Altamira também é uma das mais violentas do Brasil. Os tipos de ilícitos penais mais praticados nessa cidade são os que atingem a dignidade sexual humana, os denominados popularmente “Crimes Sexuais”: Estupro, Rufianismo, Pedofilia são realidades comuns dentro do universo criminal de Altamira. E nesta cidade paraense, tem início a Conexão Suriname, pelo que meninas aliciadas nas ruas de Altamira são enviadas a esse Estado, vizinho ao Brasil e discreto no que tange a comentários nos noticiários e na mídia brasileira, para serem escravizadas, na mais literal acepção da palavra. As jovens na maioria das vezes são aliciadas pelo primeiro modo apresentado: já são prostitutas nas ruas de Altamira, e o tráfico internacional de pessoas é apenas uma extensão de suas vidas como garotas de programa. Comumente o segundo modo de aliciamento é utilizado em mulheres entre 20 e 30 anos de idade, já plenamente capazes. Insistimos em mencionar essa ressalva para ressaltar que a quadrilha de rufiões internacionais não faz distinção entre menores ou maiores de idade, incorrendo em diversos delitos dentro do ordenamento jurídico penal brasileiro, como veremos adiante.

Uma vez pisando em território estrangeiro, os passaportes das vítimas são apreendidos por integrantes da quadrilha e as mesmas são levadas para as casas de prostituição da capital do país, Paramaribo, onde irão ser exploradas em um regime de escravidão por dívidas formal. Diga-se “formal” pelo fato de que tais dívidas não correspondem com a realidade, pois as vítimas para tudo que fazem nas casas de tolerância deverão pagar quantias superfaturadas, que são incluídas no “formulário da dívida” que cada uma delas possui. Muitas das vítimas, meninas de pouca formação intelectual e provenientes das mais baixas camadas socioculturais do Brasil, piamente acreditam que possuem dívidas, e que trabalhando na prostituição internacional, pagarão o que devem e serão libertadas! Outras, com mais idade, maturidade e experiência de vida, sabem que estão sendo exploradas e que devem fugir o mais rapidamente possível da casa de prostituição. Entretanto, para esses casos, a quadrilha utiliza-se de seguranças armados, e preparados para matar todas aquelas que tentem fugir para avisar às autoridades locais sobre o que ocorre dentro das boates de Paramaribo. Entretanto, extraoficialmente ousamos afirmar que, sendo o Suriname um país em que o Jogo é permitido (existem muitos cassinos em Paramaribo), e onde a prostituição é explorada livremente, às vistas das autoridades policiais locais, muitos dos integrantes dos quadros da Polícia são subornados pelas quadrilhas de rufiões internacionais. Tal prática deve ser intensamente reprimida, e o Direito Internacional Público possui supedâneos jurídicos para a repressão das condutas perpetradas por agentes públicos dos Estados que compõem a Sociedade Internacional: os Tratados de Garantias dos Direitos Humanos (visão internacionalista para os Direitos Fundamentais da Pessoa Humana) devem ser rigidamente observados pelos membros da Sociedade Internacional, sob pena de receberem sanções dos demais Estados e de enfraquecerem as relações internacionais com determinados países que constituirão auxílio estratégico futuro. No caso do Suriname, notoriamente reconhecido como Estado de pouca expressão político-econômica internacional, o rompimento de relações com o Brasil constituiria séria punição pela omissa conduta realizada no tocante à exploração sexual de inúmeras brasileiras ludibriadas pelos fantasiosos e maléficos contos dos rufiões internacionais que atuam nesse país. São necessárias medidas mais enérgicas do que uma simples investigação criminal promovida pelo Ministério Público Federal: cremos que o Estado Brasileiro, através de seu Chefe de Estado (o Presidente da República), deve entrar em negociações com o governo do Suriname para implementar uma política de repressão ás condutas delituosas perpetradas em Paramaribo, ou mesmo em quaisquer outras cidades do país onde se abrigam as quadrilhas de traficantes de seres humanos.


5. SITUAÇÃO JURÍDICA DO “ESCRAVO MODERNO” NO EXTERIOR

Antes de quaisquer considerações acerca da temática em análise, devemos nos remeter a uma pequena classificação subjetiva acerca do tráfico de pessoas: como titular ativo desse crime encontra-se o rufião internacional, a quadrilha especializada no aliciamento e sequestro de crianças, adolescentes e jovens para trabalhar no proibido mundo da prostituição clandestina internacional; no polo passivo de tal relação, encontra-se o indivíduo desprotegido pelo Estado e que certamente será privado de sua dignidade ao se deixar seduzir pelas belas e mortíferas palavras do raptor. A partir do momento em que o titular passivo do crime de Tráfico Internacional de Pessoas para Fins de Prostituição (nova nomenclatura estabelecida pela recente Lei 12015/2009, da qual discorreremos mais adiante) adentra em território estrangeiro, encontra-se consumado o delito, e a vida desse sujeito nunca mais será a mesma.

Quando a vítima encontra-se em outro Estado, a praxe nesse ato delituoso é a retenção se seu passaporte, sua remessa para uma casa de prostituição local e a conjugação com os crimes de Sequestro e Cárcere Privado (art. 148 do Código Penal Brasileiro), e Redução à Condição Análoga a de Escravo (art. 149 do mesmo dispositivo). Ou seja, o crime torna-se complexo a partir do momento temporal em que a vítima adentra em território estrangeiro. Sob o pretexto de que a mesma será detida pelas autoridades locais caso tente fugir, ou mesmo utilizando-se do uso da violência para impedir sua fuga, a quadrilha de rufiões internacionais impede que a vítima escape da casa de prostituição em que se encontra. Por receio de que sua situação jurídica naquele determinado Estado seja irregular e enseje tratamento violento por parte das autoridades nacionais, ou mesmo por medo das atitudes violentas do rufião, o titular passivo do crime de Tráfico de Pessoas para Fins de Prostituição cede à coação e mantém-se no local; algumas vítimas ainda contam com a boa vontade de seus raptores para remitir a “dívida” que aquelas fizeram com estes (na verdade, tais dívidas não estimulam de forma alguma o seu “pagamento através da escravidão”, e tal atitude constitui-se como uma ofensa a todos os atuais Tratados relativos a Direitos Humanos pactuados na Organização das Nações Unidas, e mesmo em quaisquer outras Organizações Internacionais).

Pois então, a partir de tais considerações surge a dúvida sobre qual a situação jurídica da vítima do crime de Tráfico de Pessoas para Fins de Prostituição, a qual não possui passaporte nem visto consigo (os mesmos encontram-se retidos com a quadrilha), e nem sequer o mínimo de documentação para identificá-la (até mesmo porque, na maioria dos casos estudados, as vítimas do crime são mulheres jovens que residem em áreas de risco social, as quais não possuem o mínimo de instrução necessária para ter conhecimento dos documentos que as poderiam identificar, e muitas vezes são orientadas pelos raptores no sentido de deixarem em seu poder documentos ou objetos pessoais que as possam identificar antes de realizarem a funesta viagem internacional que as levará à escravidão sexual). Certa e inicialmente podemos afirmar que, por não possuírem identificação alguma, são consideradas estrangeiras irregulares nos países que as recebem, ensejando nesse caso o procedimento da Deportação: trata-se de procedimento administrativo em que estrangeiros irregulares em um país são remetidos ao seu Estado de origem, com o auxílio do consulado ou embaixada (em Estados que não possuam consulado do país de origem do deportado). Utilizando-se de uma concepção mais clara para o conceito em análise:

“A Deportação ocorre quando se promove a retirada de estrangeiro que, ingressando no país ou neste se encontrando irregularmente, não se retirar voluntariamente no prazo que lhe for determinado. Na deportação não há prática de um crime por parte do estrangeiro e sim a não observância de determinados requisitos legais para sua permanência no Estado”(GUERRA, 2007, p. 169).

Cremos na situação da vítima de tráfico internacional de pessoas como estrangeiro irregular, principalmente pelo fato de que os raptores requisitam na maioria das vezes visto de turista para as vítimas, o qual expira-se em poucos meses e não permite exercício de emprego no país acolhedor; enquanto a realidade é a manutenção de cárcere privado por anos em um prostíbulo local (e, mesmo nos países que reconhecem a prostituição como profissão, tratam-se as vítimas da pior forma possível, como estamos a analisar no presente trabalho). Entretanto, como veremos agora, de forma alguma o tratamento dispensado a elas pelas autoridades locais deve ser violento ou ilegal.

Consideremos a hipotética situação da fuga de uma jovem das garras de seus raptores, no Suriname (um dos polos da exploração ilegal de prostituição de brasileiras no mundo). Caso a jovem consiga fugir da casa de prostituição onde compulsoriamente trabalha, o procedimento correto que ela deverá realizar será o de se dirigir ao posto policial mais próximo e relatar sua situação, como adentrou em território estrangeiro e de que forma foi tratada pelos seus raptores. Deverá contar das falsas promessas que escutou em seu país de origem, e que deseja retornar ao mesmo e fugir daquele real pesadelo o mais rápido possível. O que acontecerá daqui para frente, de forma bastante simplificada, é a remessa dela às autoridades competentes para acolhê-la naquele Estado, as quais reportarão a situação daquela jovem à Embaixada do Brasil no Suriname, que tomará todas as medidas necessárias para garantir seu retorno em segurança de volta para casa. Dependendo do país em que a vítima se encontre, talvez seja encaminhada para um centro de detenção provisória até que seja enviada de volta para seu país de origem (tal centro de detenção em nada se confunde com uma penitenciária; ainda que existam casos de centros de detenção com aparência bem relacionada a esse tipo de local nos EUA). Ou seja, percebe-se claramente que o procedimento será o mais correto possível e condizente com todos os acordos diplomáticos realizados entre o Brasil e o país em que se encontra a vítima (no exemplo em análise, no Suriname). Ela não será tratada com violência pelas autoridades locais: afinal de contas, trata-se da vítima de um crime, um ilícito penal que ambos os Estados querem extirpar de suas respectivas sociedades.

Portanto, com isso observamos que de forma alguma o tratamento dispensado a uma vítima do crime de Tráfico de Pessoas é violento. O Brasil é signatário de diversos Tratados que disciplinam questões sobre Direitos Humanos, muitos dos quais registrados na Organização das Nações Unidas, o que fornece um peso na Sociedade Internacional, notadamente nos países que também foram signatários de tais tratados. Entretanto, aproveitando-se da ignorância dos titulares passivos do ato delituoso, os criminosos manipulam suas mentes para fazê-los crer que estarão mais desprotegidos do lado de fora das casas de prostituição do que inseridos no ilegal regime escravocrata. Claro se mostra que em diversos casos, as vítimas acabam por descobrir que fugindo estarão livres da quadrilha, mas para tais situações os rufiões internacionais também resguardaram seus interesses, ao promover atos de extrema violência a todas as vítimas que intentem escapar do cárcere privado que se personifica nas casas de prostituição, em que muitas vezes terminam em homicídios, para servirem de “exemplo” para os demais “escravos modernos”. Como veremos a seguir, foram necessários diversos dispositivos de caráter penal para qualificar as condutas ilícitas perpetradas pelos criminosos, a fim de ao menos sancionar suas atitudes de forma correta e rígida, de acordo com os padrões jurídicos brasileiros.


6. AÇÕES SANCIONADORAS PARA O TRÁFICO ILEGAL DE SERES HUMANOS

Primordialmente, devemos realizar uma importantíssima ressalva no tocante à pátria legislação criminal acerca da temática do tráfico de pessoas: no corrente ano de 2009, entrou em vigor a Lei nº 12015/2009, a qual modificou significativamente os institutos do Código Penal Brasileiro (Decreto-Lei 2848, de 7 de Dezembro de 1940) relativos aos vetustos “Crimes Contra os Costumes”.

A primeira mudança a ser destacada refere-se ao próprio título supracitado, o qual atualmente denomina-se “Crimes Contra a Dignidade Sexual”. Entendeu o legislador nacional que o antigo Código Penal deve estar adequado aos novos paradigmas constitucionais, representando a ascensão do chamado “Direito Penal-Constitucional” ou “Direito Penal das Garantias”; logo, o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana deve atingir de forma direta o diploma sancionador dos crimes sexuais, a saber, o Código Penal. Logo, modificou-se a denominação da ordenação a fim de adequá-la à realidade Neoconstitucional. Para muitos, a mera mudança de denominação pode não possuir aplicação no campo dos fatos, mas para os estudiosos e intérpretes do Direito, significativa e notadamente importante foi a citada modificação.

Além dessa, outras notáveis criações da Lei 12015/2009 foram, a saber, a modificação do instituto do crime de Tráfico Internacional de Pessoas (que agora se denomina “Tráfico Internacional de Pessoas para Fim de Exploração Sexual”, inserindo-se a elementar do tipo na descrição penal típica) e o denominado “Estupro de Vulnerável” (modificação oportuna para encerrar discussões acerca da presunção de estupro em menores de 14 anos, o que se configurará de extrema importância no tocante à prostituição de crianças e adolescentes).

Sob a égide da Lei 12015/2009, e com as necessárias e corretas atualizações, listam-se os principais institutos sancionadores, nacionais e internacionais, referentes aos crimes de Exploração da Prostituição Alheia e Tráfico Internacional de Seres Humanos para Fins de Prostituição:

· Sequestro e Cárcere Privado (art. 148, CP), no que tange à prisão perpetrada nas casas de prostituição internacional às vítimas;

·   Redução à Condição Análoga de Escravo (art. 149, CP), podendo incorrer em sua forma qualificada pelo §2º em caso da vítima ser criança ou adolescente;

· Favorecimento da Prostituição (art. 228, CP), no que tange à conduta praticada pelo aliciador internacional;

· Casa de Prostituição (art. 229, CP), pela existência do ambiente físico de dominação das vítimas, onde as mesmas compulsoriamente satisfazem à lascívia de outrem;

·   Rufianismo (art. 230, CP), como pressuposto de toda a teleologia da atuação criminosa da quadrilha de rufiões internacionais;

·Tráfico Internacional de Pessoa para Fim de Exploração Sexual (art. 231, CP, com redação dada pela Lei 12015/2009), como específico instituto disciplinador das sanções impostas à quadrilha de traficantes de pessoas;

·  Tráfico Interno de Pessoa para Fim de Exploração Sexual (art. 231-A), quando os criminosos incorrem no primeiro dos casos de aliciamento, desde que a vítima seja movimentada dentro do território nacional para trabalhar na prostituição em âmbito interno.

·  Declaração Universal de Direitos Humanos (1948): basilar diploma internacional, fundamenta toda a atuação da Organização das Nações Unidas (ONU) na defesa dos Direitos Fundamentais da Pessoa Humana, e serve de paradigma a todos os governos dos Estados que compõem a Sociedade Internacional para que os mesmos observem atentamente ao princípio comezinho de qualquer Estado Democrático de Direito. A exploração da prostituição alheia mediante ameaças, intimidações e redução à condição de escravidão da vítima pode ser considerada uma afronta a todos os valores do Direito Internacional no que concerne às instituições de Direitos Humanos, representadas essencialmente pela Declaração Universal de Direitos Humanos, de 1948.

·  Convenção das Nações Unidas Contra o Crime Organizado Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão e Punição ao Tráfico de Pessoas: tratado realizado no seio da ONU, destaca pormenorizadamente a problemática da prostituição internacional ilegal, cujas vítimas são especialmente mulheres e crianças, e tenciona estabelecer uma política repressiva nos Estados componentes da Sociedade Internacional que sofrem com a ocorrência dessa espécie delituosa, cujo gênero é o dos Crimes Sexuais, promulgado no Brasil sob a forma do Decreto Nº 5017, de 12 de Março de 2004.

Certo se afirma que o rol supracitado de nenhuma forma esgota a quantidade de diplomas jurídicos que legitimam o repúdio e incentivam a repressão contra o crime de tráfico de seres humanos (diversas convenções, tratados e acordos ratificados pelo governo brasileiro no âmbito da OEA e de outras organizações internacionais atestam a simpatia de nossa democracia pela valorização da dignidade humana). Entretanto, como a maioria dos institutos do Direito Internacional Público, o Estado brasileiro ainda não criou mecanismos necessários para materializar uma política criminal eficiente contra o tráfico de pessoas. O Ministério Público Federal cuida especialmente do tráfico internacional de seres humanos, enquanto tenta conscientizar a comunidade acadêmica nacional e a população com maior esclarecimento educacional a promover uma mobilização de condutas convergentes na repulsa ao rufianismo e ao tráfico internacional de mulheres. Os Ministérios Públicos Estaduais, e principalmente nas cidades que convivem com o lamentável título de polos do “turismo sexual” como o Rio de Janeiro, atuam intensamente junto às DEAM (Delegacias de Atendimento à Mulher) e às DPCA (Delegacias de Proteção à Criança e ao Adolescente) para reprimirem os Crimes Contra a Dignidade Sexual cometidos inclusive contra crianças. Entretanto, o que se verifica é uma total falta de conscientização pública para o tema, como na maioria das relevantes problemáticas no Brasil: o governo não incentiva parcela da população (no caso em análise, as prostitutas), e o número de tal grupo tende a aumentar e a incidência dos crimes possui tendências de intensificação a cada dia que passa.

O esforço empreendido pelos órgãos jurisdicionais e policiais têm obtido significativos resultados, mas não é apenas necessária uma atuação meramente repressiva e discreta: deve-se divulgar ao povo brasileiro informações sobre a brutal, horrenda e lamentável realidade de mulheres que são enganadas por falsas esperanças de mudanças da miserável vida que levam em zonas de risco social ao redor do Brasil, e que, ao chegarem em território estrangeiro, são despidas de toda e qualquer dignidade ao se submeterem ao regime de escravidão sexual dos prostíbulos controlados pelas quadrilhas de rufiões internacionais. Seja no Suriname, na Espanha, na República Tcheca ou em qualquer lugar do mundo, sempre ocorrerão similares violações aos Direitos e Garantias Fundamentais da Pessoa Humana (os internacionais “Direitos Humanos”), ferindo todo e qualquer ordenamento jurídico dos Estados Civilizados, lembrando obscuros e nefastos períodos da história da humanidade, nos quais a vida humana valia tanto quanto um mero pedaço de pão. É necessário, pois, empreender esforços através de Tratados Internacionais, e mobilizar atuações das polícias federais de cada Estado juntamente com a Interpol, a fim de descobrir em que partes do globo escondem-se as grandes quadrilhas do tráfico internacional de pessoas, pois é notória a estratégia de que, derribando-se a cabeça da criatura, o restante de seu corpo torna-se mais fácil: da mesma forma, quando forem desarticuladas as grandes organizações criminosas que controlam a prostituição internacional ilegal, o restante do esquema será exposto e repreendido.


7. CONCLUSÃO

O reduzido número de trabalhos propostos para os cursos de graduação em Ciências Jurídicas sobre a atual temática do tráfico internacional de seres humanos, notadamente no âmbito da prostituição internacional, nos possibilitou uma explanação com um menor número de citações dos doutrinadores do Direito Internacional. Desejávamos ter contribuído com um número maior de trechos encontrados em reconhecidas obras do gênero que expõem o grande saber dos juristas internacionalistas; entretanto, de certa forma se constituiu como benefício para a originalidade do trabalho institucional em questão, e esperamos que o mesmo tenha contribuído para situar o leitor em uma pequena introdução ao tema do tráfico de pessoas.

Como visto no decorrer do trabalho, o tema possui colossal interdisciplinaridade com diversos ramos do Direito e da Sociologia, em especial com o Direito Penal-Internacional e com o estudo dos Tratados. Infelizmente, a Organização das Nações Unidas não cuida da problemática com tanto vigor como gostaríamos que fosse, por diversos motivos especulativos que não nos cabe descrever em um trabalho acadêmico embasado em fatos concretos. Discutir a conveniência de determinados governos em não implementar políticas públicas pra solucionar determinadas transgressões sociais não é matéria cabível ao Direito Internacional Público, mas à Sociologia ou Ciência Política. Logo, o que podemos fazer é demonstrar nosso descontentamento com a atual situação em que se encontra a disciplina internacional no tocante ao Tráfico de Pessoas, e pleitear que a ONU destaque uma maior quantidade de tempo para tratar de assuntos relativos aos crimes contra os Direitos Humanos, uma vez que o tráfico humano é apenas uma das pedras da pirâmide de afrontas que esses fundamentais direitos têm sofrido ao longo dos últimos anos. Cremos ser assunto mais válido e imediato a implementação de políticas públicas a fim de solucionar a lamentável situação em que se encontram determinados Estados no globo no âmbito do respeito e observância dos Direitos Humanos, do que discutir questões institucionais, como indicações para novos membros permanentes no Conselho de Segurança, as quais merecem atenção mais demorada e terminam por se constituir o centro das atenções na mídia sobre as ações promovidas pela magna Organização Internacional. Não apenas no âmbito externo devem ser promovidas políticas repressivas (no que tange ao desmantelamento de grupos criminosos especializados no tráfico de seres humanos); também no Direito Interno e nas instituições jurídicas nacionais de cada Estado da Sociedade Internacional devem ser promovidas mudanças no sentido de intensificar o combate a essa horrenda atrocidade contra a vida humana. Felizmente verificamos recentemente essa preocupação por parte do legislador pátrio, ao redimensionar todo o vetusto título dos “Crimes Contra os Costumes”, formulando uma moderna sistematização das sanções penais contra os novos “Crimes Contra a Dignidade Sexual”. Ansiosamente esperamos que tal mudança também se reflita no campo da efetividade social, pois a produção de leis apenas formalmente efetivas não deve ser uma marcante característica do Direito Brasileiro: é necessária uma maior conscientização da sociedade civil para que a mesma esteja a par das mudanças legislativas, para que seu próprio comportamento se modifique frente a determinadas situações que atualmente constituem práticas delituosas.

Portanto, constitui-se como essencial e extremamente relevante a importância oferecida para a problemática do Tráfico de Pessoas; verifica-se imediatamente que, caso as corretas disposições no sentido de evitar tamanha transgressão aos Direitos Humanos (a saber, ratificação de Tratados promovendo a íntima relação entre os corpos policiais de Estados atingidos pelo problema, passiva ou ativamente) não sejam feitas, poderá se desencadear em longo prazo instabilidade política na sociedade internacional, o que em nada é benéfico para nosso planeta.


BIBLIOGRAFIA ESPECÍFICA

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GUERRA, Sidney (Org.). Temas Emergentes de Direitos Humanos. Coleção José do Patrocínio. Campos dos Goytacazes: Editora Faculdade de Direito de Campos, 2007.

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JESUS, Damásio E. de. Tráfico Internacional de Mulheres e Crianças. Rio de Janeiro: Editora Saraiva, 2003.

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REZEK, José Francisco. Direito Internacional Público – Curso Elementar. 12ª Edição. Rio de Janeiro: Editora Saraiva, 2010.

TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Tratado de Direito Internacional dos Direitos Humanos. Volume I. 2ª Edição. Porto Alegre: Editora Sérgio Antônio Fabris, 2003.


Notas

[1] REZEK, Francisco. Direito Internacional Público – Curso Elementar. 12ª Edição. Rio de Janeiro: Editora Saraiva, 2010.


Autor

  • Divo Augusto Cavadas

    Divo Augusto Pereira Alexandre Cavadas é Advogado e Professor de Direito. Procurador do Município de Goiânia (GO). Doutorando em Direito pela Faculdade Autônoma de Direito de São Paulo (FADISP). Mestre em História pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC/GO). Especialista em Direito Penal e Filosofia. Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (FND/UFRJ). Realizou estudos junto à Universidad de Salamanca (Espanha), Universitá di Siena (Itália), dentre outras instituições. Membro do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB). Diplomado pela Câmara Municipal de Goiânia e Comendador pela Associação Brasileira de Liderança, por serviços prestados à sociedade.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CAVADAS, Divo Augusto. Mundo proibido: histórico, vertentes e soluções para o tráfico de seres humanos e prostituição, sob a égide do Direito Internacional Público. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3173, 9 mar. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/21249. Acesso em: 20 abr. 2024.