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O novo rito da audiência no processo penal e sua aplicabilidade ao processo sócio-educativo (para apuração de ato infracional).

A incompatibilidade conglobante do ECA com o ordenamento jurídico superveniente

O novo rito da audiência no processo penal e sua aplicabilidade ao processo sócio-educativo (para apuração de ato infracional). A incompatibilidade conglobante do ECA com o ordenamento jurídico superveniente

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Analisa-se a aplicação da Lei nº 11.719/2008, que alterou o procedimento adotado nas audiências criminais, ao processo de apuração de ato infracional, disciplinado pelo ECA.

A Lei nº 11.719/2008 introduziu mudanças no Código de Processo Penal (CPP), dentre as quais, o interrogatório do acusado após a instrução do feito, consoante a nova redação estabelecida para os arts. 400 e 531, inclusive com previsão do direito das Partes formularem perguntas diretamente às testemunhas, conforme o art. 212, do mesmo CPP, com redação dada pela Lei. 11.690/2008.

Por sua vez, o processo sócio-educativo trata da apuração de ato infracional, crime ou contravenção, praticado por adolescente, conforme arts. 103, 104, 180, III e 201, III, todos do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), a Lei nº 9.069/90.

No ECA consta previsão da oitiva do réu-adolescente ainda conforme o antigo modelo, em etapa antecedente à denominada produção da prova, como se observa dos seus arts. 184, 186, caput e §4º.

Sumariamente, as disposições da Reforma Processual Penal, pertinentes ao momento da ouvida do acusado, não teriam incidência ao Processo Sócio-educativo, de apuração de ato infracional, em face do preceito do art. 152 do ECA, o qual dispõe:

Art. 152 - Aos procedimentos regulados nesta lei aplicam-se subsidiariamente as normas gerais previstas na legislação processual pertinente.

Então, ocorreria um conflito de normas ou antinomia de 2º grau, solucionado pelo critério da especialidade, acarretando a prevalência do ECA.

Todavia, a compreensão do próprio “microssistema jurídico do ECA”, mediante interpretação constitucional validante, impõe reexame e postura coincidente com o Processo Garantista, compatível com o Estado de Direito.

Inicialmente é preciso compreender o que significa realmente antinomia em Direito. MARIA HELENA DINIZ, citando o Mestre alemão ULRICH KLUG, ensina que a antinomia jurídica “é uma lacuna de conflito ou colisão, porque em sendo conflitantes, as normas se excluem reciprocamente, por ser impossível a remoção da contradição, pela dificuldade de destacar uma como uma mais forte ou decisiva, por não haver uma regra que permita decidir entre elas, obrigando o magistrado a solucionar o caso sub judice, segundo os critérios do preenchimento de lacunas”. (in Conflito de Normas, Saraiva, 2003, pgs. 19/20).

Adiante, a Eminente Jurista e Professora, conclui resumindo que “para haver antinomia real será preciso a concorrência de três condições imprescindíveis, que são: a) incompatibilidade; b) indecidibilidade; e c) necessidade de decisão.” (idem pg. 24).

Todavia, é preciso atentar que somente é possível a utilização de determinado critério de 2º grau para solução de conflito de normas quando houver colisão entre os critérios comuns existentes (hierárquico - lex superior derogat legi inferiori; cronológico - lex posterior derogat legi priori; e da especialidade - lex specialis derogat legi generali).

Mais uma vez a Drª. MARIA HELENA DINIZ vem socorrer quando se apresenta dificuldade de compreensão e são feitas mistura de conceitos:

Ter-se-á antinomia de antinomias, ou seja antinomia de segundo grau, quando houver conflito entre os critérios: (...)" (idem, pg. 49)

Portanto, o pressuposto lógico para que possa existir antinomia de 2ª grau, é a existência de ANTINOMIA. Neste caso em exame o que ocorre é a previsão EXPRESSA de aplicação de norma complementar DETERMINADA, por reenvio ou remessa, como fonte subsidiária.

E o recurso à aplicação subsidiária ou complementar diversa somente é possível quando não haja previsão na legislação originária ou remetente; não ocorra incompatibilidade ou prejuízo com o objeto a ser regulado, e, PRINCIPALMENTE, quando tal incidência normativa seja necessária para assegurar a observância de PRINCÍPIOS GERAIS adotados pela Ordem Jurídica vigente.

A Legislação Processual Civil tem aplicação direta e imediata apenas naquelas hipóteses em que o Estatuto da Criança e do Adolescente determina sua aplicação direta, como no caso do sistema recursal.

No caso, o próprio ECA estabeleceu a legislação complementar processual pertinente, determinada, líquida e certa, a ser observada ou respeitada:

A legislação processual ordinária tem aplicação supletiva em relação ao ECA (art. 152). Ainda que o ECA tenha desenhado um sistema processual próprio e autônomo, permitiu, não obstante, que se aplicassem, quando necessário, normas gerais do processo.

Evidentemente, só se permite a aplicação da legislação processual quando adequada à autonomia do processo previsto no ECA. (...)

O ECA não descreve um sistema de investigação próprio para os ilícitos cometidos por adolescentes. Por isso, a investigação deve, em linhas gerais, seguir o disposto no CPP (art. 152 do ECA). (ROBERTO BARBOSA ALVES, Direito da Infância e Juventude, Saraiva, 2005, pgs. 12 e 79).

E a Doutrina NUNCA DIVERGIU quanto à aplicação da Legislação Processual Penal ao Processo de Apuração de Ato Infracional, chegando a ser enfadonha e repetitiva acerca do assunto:

Aos procedimentos regulados pelo Estatuto aplicam-se subsidiariamente as normas gerais previstas na legislação processual civil ou penal que forem pertinentes.

O Estatuto se refere em diversas disposições não só à legislação processual civil e penal, como também à legislação ordinária. (PAULO LÚCIO NOGUEIRA, Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado, Saraiva, 4a. ed., 1998, pg. 267).

Seguindo a regra legislativa de não repetir disposições legais desnecessariamente, o Estatuto da Criança e do Adolescente dispõe, em seu art. 152, que, aplicar-se-ão subsidiariamente às suas regras, as normas gerais previstas na legislação processual pertinente. Esta legislação nada mais é do que o CPC e o CPP.(...)

Mesmo proceder foi adotado na formulação do CPP que, ao regulamentar os processos especiais (arts. 503 e ss.), remete aos Capítulos I e III do Título I do Livro II, que cuidam, respectivamente, da instrução criminal em geral e do processo e julgamento dos crimes de competência do juiz singular.

Será utilizado o subsidiariamente o CPC para os processos e procedimentos que tratem de crianças e adolescentes e o CPP para as ações socioeducativas. No que diz respeito aos recursos, o ECA optou por aplicar subsidiariamente o CPC, conforme regra do art. 198, assunto que será desenvolvido em capitulo próprio. (GALDINO AUGUSTO COELHO BORDALLO, As Regras Gerais do Processo, in Curso de Direito da Criança e do Adolescente – Aspectos Teóricos e Práticos, Org. Kátia Regina F. L. A. Maciel, Lúmen Júris/IBDFAM, 2006, pg. 555.)

É certo, porem, que a regra da legalidade, aplicada aos jovens entre 12 e 18 anos de idade, infere, sobretudo, em perquirir, se os atos infracionais por eles praticados podem receber o mesmo tratamento processual previsto no CPP.

Em primeiro lugar, observa-se que o art. 152 do Estatuto dispõem expressamente, que aos procedimentos regulados nesta lei aplicam-se subsidiariamente as normas gerais previstas na legislação processual pertinente.

As regras processuais penais gerais, para o processamento da apuração de infração penal, são as mesmas para menores e maiores de 18 anos de idade, agregando-se as específicas, deferidas aos inimputáveis pela menoridade, para atender ao mandamento constitucional previsto na parte final do art. 228. (WILSON DONIZETI LIBERATI, Processo Penal Juvenil, Malheiros, 2006, pgs. 155/156.)

Determina, pois, a Lei Estatutária a aplicação subsidiária das Legislações Processuais Civis ou Penais, conforme o caso, como norma obrigatória, cuja inobservância acarreta nulidade. (WILSON DONIZETI LIBERATI, Comentários ao Estatuto da Criança e Adolescente. Malheiros, 6 ed., 2001, pg. 137.)

A utilização subsidiária da Legislação Processual Penal realmente melhor se adequa aos Atos Infracionais e às Decisões a eles relacionadas. (VALTER KENJI ISHIDA, Estatuto da Criança e adolescente- Doutrina e Jurisprudencia. Atlas, 3. Ed., 2001, pg. 246.)

Por sua vez, a Jurisprudência indica que a fonte subsidiária do processo de apuração de Ato Infracional do adolescente, por envolver privação de liberdade, é conferida ou remetida à Legislação Processual Penal, senão vejamos:

Esta E. Câmara Especial tem-se orientado no sentido de que... melhor se ajusta a aplicação analógica da disciplina Processual Penal, à permitir ao infrator menor o pleno exercício do direito de Defesa e o amplo acesso à Instancia Recursal."(TJ-SP, C. Esp., Ap. 18385-0, Relator Des. Yussef Cahali, julgado em 23/06/94.

“O Estatuto determina a aplicação subsidiária do Código de Processo Civil, mas tal como sucede no que toca ao processo de apuração do ato infracional perpetrado por criança ou adolescente, em especial pelo fato de que guarda ele alguma similitude com o processo penal, de tal arte que no caso de rigor a incidência nos preceitos de ordem processual penal, não se olvidando, outrossim, no império da Sexta Carta Republicana.

A questão relativa à prevalência de vontade, equivocada a premissa fixada pelo Juízo 'a quo”.(...).” (TJ-SP, C. Esp., AI. 76.759-0/0018385-0, Relator Des. Hermes Pinotti, julgado em 19/04/2001.

O Egrégio STJ, quando julgou recurso atinente a ato infracional sempre aplicou à matéria a Legislação Processual Penal, senão Vejamos:

PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. PORTE ILEGAL DE ARMA. PRISÃO EM FLAGRANTE. PEDIDO DE LIBERDADE PROVISÓRIA INDEFERIDO. RÉU QUE DEIXOU DE CUMPRIR ORDEM DE INTERNAÇÃO PROVISÓRIA EM OUTRO FEITO POR SE ENCONTRAR FORAGIDO. CONSTRIÇÃO JUSTIFICADA PARA ASSEGURAR A APLICAÇÃO DA LEI PENAL E POR CONVENIÊNCIA DA INSTRUÇÃO CRIMINAL.ORDEM DENEGADA.1. O fato de o paciente não ter sido localizado para cumprir medida de internação provisória em feito em que se apurava a prática de ato infracional realizado quando ainda era menor de idade equivalente à tentativa de homicídio, evidencia a necessidade da prisão preventiva, a fim de assegurar a eventual aplicação da lei penal. 2. As condições subjetivas favoráveis do paciente, tais como primariedade, bons antecedentes, residência fixa e trabalho lícito, por si sós, não obstam a segregação cautelar, quando preenchidos seus pressupostos legais. 3. O MPF manifesta-se pelo indeferimento do writ.4. Habeas Corpus denegado.(HC 87.250/CE, Rel. Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, QUINTA TURMA, julgado em 20/05/2008, DJe 09/06/2008)

HABEAS CORPUS. ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. ATO INFRACIONAL EQUIPARADO AO ROUBO MAJORADO. MEDIDA SÓCIO-EDUCATIVA DE INTERNAÇÃO.EMPREGO DE ARMA DE FOGO E GRAVE AMEAÇA À PESSOA. NÃO APREENSÃO DA ARMA. DISPENSABILIDADE. UTILIZAÇÃO PROVADA POR OUTROS MEIOS. DECISÃO JUDICIAL FUNDAMENTADA. CONSTRANGIMENTO ILEGAL INOCORRENTE.1. Estando a decisão judicial devidamente fundamentada, a aplicação de medida sócio-educativa de internação encontra amparo legal quando o ato infracional é cometido mediante violência e grave ameaça à pessoa, inclusive com o emprego de arma de fogo, a teor do disposto no art. 122, inciso I, do Estatuto da Criança e do Adolescente. 2. A despeito de não ter sido a arma apreendida, o seu efetivo uso quando da ação delituosa restou devidamente comprovado, nos termos do art. 167 do Código de Processo Penal. O laudo pericial, diante do desaparecimento dos vestígios, pode ser suprido pela prova testemunhal.3. Irrelevante, de todo modo, a comprovação do uso de arma de fogo, para fins de aplicação de medida sócio-educativa, porquanto, mesmo afastada a circunstância, subsiste o ato infracional grave, análogo ao roubo, cometido mediante grave ameaça à pessoa, e que justifica a medida de internação por prazo indeterminado, prevista no Estatuto da Criança e do Adolescente.4. Precedentes do Superior Tribunal de Justiça.5. Ordem denegada.(HC 95.873/SP, Rel. Ministra LAURITA VAZ, QUINTA TURMA, julgado em 06/03/2008, DJe 07/04/2008).(destaquei).

Portando, se não há lacuna a ser colmatada pela aplicação de legislação subsidiária, uma vez que tal rotina somente seria possível quando, após exame do ECA, fosse constatada a inexistência de norma pertinente ao assunto em questão, todavia, a previsão de procedimento específico que conduz ao tratamento mais gravoso que o contido na legislação comum ou geral, afasta a incidência do primeiro, em razão da interpretação capaz de conferir máxima efetividade dos Direitos e Garantas Fundamentais.

Seria uma incongruência ou um contra-senso admitir que a Ordem Jurídica venha autorizar que determinada Legislação editada justamente para proteção (no caso, da Infância e Adolescência), deixe de atingir tais objetivos tão somente em razão de uma vigência mecânica ou formal.

Tal situação revela o grave descompasso principiológico, pois, CONTINUA VIGENTE O DISPOSITIVO DO ART. 152, do ECA e prescrevendo a aplicação das normas gerais da Legislação Processual PERTINENTE, sem outorgar margem discricionária.

Então cabe indagar se o cumprimento de disposições processuais garantistas aos maiores de 18 anos de idade, como o interrogatório ao final da instrução, NÃO SÃO APLICÁVEIS AOS INFRATORES MENORES DE 18 ANOS DE IDADE? INCLUSIVE QUANDO HÁ DISPOSIÇÃO ESPECÍFICA ORDENANDO A APLICAÇÃO DA LEGISLAÇÃO PROCESSUAL PERTINENTE.

Com a nova redação do art. 400 do CPP, conferida pela Lei n. 11.719/2008, transferiu-se o interrogatório do réu imputável para a audiência de instrução e julgamento, após as declarações do ofendido, a oitiva das testemunhas, esclarecimento dos peritos, acareações e eventual reconhecimento de pessoas e coisas.

Diz a redação da norma introduzida no Ordenamento Jurídico:

Art. 400. Na audiência de instrução e julgamento, a ser realizada no prazo máximo de 60 (sessenta) dias, proceder-se-á à tomada de declarações do ofendido, à inquirição das testemunhas arroladas pela acusação e pela defesa, nesta ordem, ressalvado o disposto no art. 222 deste Código, bem como aos esclarecimentos dos peritos, às acareações e ao reconhecimento de pessoas e coisas, interrogando-se, em seguida, o acusado. (GRIFO NOSSO)

O dispositivo mencionado finalmente reconheceu o interrogatório como meio de defesa, como já explicava o Prof. Prof. Rômulo de Andrade Moreira:

Já no Capítulo II regula-se o procedimento ordinário, determinando-se, no art. 400, que na “audiência de instrução e julgamento, a ser realizada no prazo máximo de trinta dias, proceder-se-á à tomada de declarações do ofendido, se possível, à inquirição das testemunhas arroladas pela acusação e pela defesa, nesta ordem, bem como aos esclarecimentos dos peritos, às acareações e ao reconhecimento de pessoas e coisas, interrogando-se, em seguida, o acusado. Vê-se que o interrogatório do acusado será o último ato processual após a instrução criminal, o que vem a fortalecer a idéia daqueles que o vêm como um autêntico meio de defesa e não mais como mais um meio probatório.

Assim, “prevalece outra orientação: o interrogatório é o momento mais importante da auto-defesa; é a ocasião em que o acusado pode fornecer ao juiz sua versão pessoal sobre os fatos e sua realização após a colheita da prova permitirá, sem dúvida, um exercício mais completo do direito de defesa, inclusive pela faculdade de permanecer em silêncio (art. 5º., LVIII, CF).”141, in REFORMA DO DÓDIGO DE PROCESSO PENAL, Revista Diálogo Jurídico, n. 11, fevereiro de 2002, Salvador, Bahia, extraído do site http://www.direitopublico.com.br/pdf_11/DIALOGO-JURIDICO-11-FEVEREIRO-2002-ROMULO-MOREIRA.pdf, acesso em 05/07/2008.

O que passou a valer para o procedimento comum, cf. o referido art. 400, e com igual teor ou vigência para o procedimento sumário, v. art. 531, de acordo com a nova redação conferida pela mesma Lei n. 11.719/08, constituía exceção do procedimento sumaríssimo, estabelecida no art. 81, da Lei n. 9.099/95:

Art. 531. Na audiência de instrução e julgamento, a ser realizada no prazo máximo de 30 (trinta) dias, proceder-se-á à tomada de declarações do ofendido, se possível, à inquirição das testemunhas arroladas pela acusação e pela defesa, nesta ordem, ressalvado o disposto no art. 222 deste Código, bem como aos esclarecimentos dos peritos, às acareações e ao reconhecimento de pessoas e coisas, interrogando-se, em seguida, o acusado e procedendo-se, finalmente, ao debate. (NR).

Art. 81. Aberta a audiência, será dada a palavra ao defensor para responder à acusação, após o que o Juiz receberá, ou não, a denúncia ou queixa; havendo recebimento, serão ouvidas a vítima e as testemunhas de acusação e defesa, interrogando-se a seguir o acusado, se presente, passando-se imediatamente aos debates orais e à prolação da sentença.

Ora, não é possível assegurar ampla defesa ao réu imputável e não o fazer, nos mesmos termos, ao adolescente autor de ato infracional, cf. o art. 103, do ECA, sob pena de criação de situação desfavorável e de desequilíbrio a quem goza de proteção especial, em razão das próprias condições pessoais, e deveria receber amparo, no mínimo em patamar de igualdade, de nos termos do art. 227, §3º., IV, da Constituição Federal:

Art. 227 - É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

(...)

§ 3º - O direito a proteção especial abrangerá os seguintes aspectos:

(...)

IV - garantia de pleno e formal conhecimento da atribuição de ato infracional, igualdade na relação processual e defesa técnica por profissional habilitado, segundo dispuser a legislação tutelar específica.

Quando existem padrões mais favoráveis, os mesmos apresentam inteira aplicabilidade, pois as Disposições Normativas do Direito Internacional assinalam o direito ao tratamento em igualdade de condições sempre que tal situação for mais favorável para a realização do Direito da Criança e do Adolescente. Senão vejamos:

A) CONVENÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS SOBRE OS DIREITOS DA CRIANÇA – UNICEF (Aprovada pelo Decreto Legislativo nº 28, de 14 de setembro de 1990 e Promulgada pelo Decreto 99.710 de 21 de novembro de 1990):

ARTIGO 40 (...)

1. Os Estados Partes reconhecem o direito de toda criança, a quem se alegue ter infringido as leis penais ou a quem se acuse ou declare culpada de ter infringido as leis penais, de ser tratada de modo a promover e estimular seu sentido de dignidade e de valor, e fortalecerão o respeito da criança pelos direitos humanos e pelas liberdades fundamentais de terceiros, levando em consideração a idade da criança e a importância de se estimular sua reintegração e seu desempenho construtivo na sociedade .

2. Nesse sentido, e de acordo com as disposições pertinentes dos instrumentos internacionais, os Estados Partes assegurarão, em particular:

a) que não se alegue que nenhuma criança tenha infringido as leis penais, nem se acuse ou declare culpada nenhuma criança de ter infringido essas leis, por atos ou omissões que não eram proibidos pela legislação nacional ou pelo direito internacional no momento em que foram cometidos;

b) que toda criança de quem se alegue ter infringido as leis penais ou a quem se acuse de ter infringido essas leis goze, pelo menos, das seguintes garantias: (...)

iv) não ser obrigada a testemunhar ou a se declarar culpada, e poder interrogar ou fazer com que sejam interrogadas as testemunhas de acusação, bem como poder obter a participação e o interrogatório de testemunhas em sua defesa, em igualdade de condições;

ARTIGO 41

Nada do estipulado na presente Convenção afetará disposições que sejam mais convenientes para a realização dos direitos da criança e que podem constar:

a) das leis de um Estado Parte;

b) das normas de direito internacional vigentes para esse Estado .

Resumo - Respeito por Padrões Estabelecidos

O principio de que se houver um padrão na legislação nacional ou em outro instrumento internacional aplicável, mais alto que os estabelecidos nesta Convenção, o padrão mais alto será utilizado.”

B) REGRAS MÍNIMAS DAS NAÇÕES UNIDAS PARA A ADMINISTRAÇÃO DA JUSTIÇA DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE (REGRA DE BEIJING):

3. Ampliação do âmbito de aplicação das regras

3.1 As disposições pertinentes das regras não só se aplicarão aos jovens infratores, mas também àqueles que possam ser processados por realizar qualquer ato concreto que não seria punível se fosse praticado por adultos.

7. Direitos dos jovens

7.1 Respeitar-se-ão as garantias processuais básicas em todas as etapas do processo, como a presunção de inocência, o direito de ser informado das acusações, o direito de não responder, o direito à assistência judiciária, o direito à presença dos pais ou tutores, o direito à confrontação com testemunhas e interrogá-las e o direito de apelação ante uma autoridade superior.

9. Cláusula de salvaguarda

Nenhuma disposição das presentes regras poderá ser interpretada no sentido de excluir os jovens do âmbito da aplicação das Regras Mínimas Uniformes para o Tratamento dos Prisioneiros, aprovadas pelas Nações Unidas, e de outros instrumentos e normas relativos ao cuidado e à proteção dos jovens reconhecidos pela comunidade internacional

C) DIRETRIZES DAS NAÇÕES UNIDAS PARA PREVENÇÃO DA DELINQÜÊNCIA JUVENIL – DIRETRIZES DE RIAD.

54. Com o objetivo de impedir que se prossiga à estigmatização, à vitimização e à incriminação dos jovens, deverá ser promulgada uma legislação pela qual seja garantido que todo ato que não seja considerado um delito, nem seja punido quando cometido por um adulto, também não deverá ser considerado um delito, nem ser objeto de punição quando for cometido por um jovem.

No mesmo sentido as disposições do próprio ECA:

Art. 3º - A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade.

Art. 5º - Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais.

Art. 6º - Na interpretação desta lei levar-se-ão em conta os fins sociais a que ela se dirige, as exigências do bem comum, os direitos e deveres individuais e coletivos, e a condição peculiar da criança e do adolescente como pessoas em desenvolvimento.

Por fim, a Constituição Federal não deixou dúvida acerca dos direitos fundamentais:

Art. 5º. (...)

§ 1º - As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata.

§ 2º - Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.

§ 3º Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004)

A negativa de vigência ao art. 152 é a própria perda da noção de complementariedade do ordenamento jurídico, apontada por MIGUEL REALE, de acordo com o pressuposto de que toda norma jurídica é:

a) um modelo operacional que tipifica uma ordem de competência, ou disciplina uma classe de comportamentos possíveis;

b) devendo ser interpretado no conjunto do ordenamento jurídico; e

c) a partir dos fatos e valores que, originariamente, o constituíram. (in Fontes e Modelos do Direito, Saraiva, Saraiva, 1ª. Ed., 2ª. T.,pg. 109.)

Mas o pior ainda está por vir e decorre da descontinuidade de entendimentos, que conduz à falta de coerência, vacilação e contradição na aplicação do Direito.

Já ensinava o Bom e Velho CARLOS MAXIMILIANO, com equilíbrio habitual:

Em geral, a função do juiz, quanto aos textos, é dilatar, completar e compreender; porém não alterar, corrigir, substituir. Pode melhorar o dispositivo, graças à interpretação larga e hábil; porém não – negar a lei, decidir o contrário do que a mesma estabelece. (...) Não cria, reconhece o que existe (...) porém tudo procura achar e resolver com a lei; jamais com a intenção descoberta de agir por conta própria, proeter ou contra legem. (in Hermenêutica e Aplicação do Direito, Forense, 19ª. Edição, pg. 65.)

Por fim, o Douto Magistrado e doutrinador JOÃO BATISTA COSTA SARAIVA, assinala com propriedade:

Há que se ter em mente que o arbítrio deve ser combatido pelo garantismo. Que a existência da norma traz segurança e afirma o direito. A ausência de norma tende a produzir a discricionariedade, o subjetivismo, e daí para o autoritarismo é um passo. Como diz Emílio Garcia Mendez, citando Luigi Ferraioli: “a ausência de regras nunca é tal; a ausência de regras sempre é a regra do mais forte”. A discricionariedade e o subjetivismo são sempre um mal, não existem discricionariedades e subjetivismos bons. A questão conceitual aqui exposta se faz fundamental.

Não há cidadania sem responsabilidade e não pode haver responsabilização sem o devido processo e o rigor garantista.

Faz-se impositivo o reconhecimento de tal situação, sob pena de uma suposta autonomia do Direito da Criança vir justificar o não reconhecimento de todas as garantias constitucionais e penais asseguradas ao adolescente quando se lhe atribui a prática de ato infracional. Não é admissível que se lhe negue, por exemplo, os benefícios introduzidos no Sistema Penal adulto em face as condições de processabilidade incluídas no chamado Processo Penal dos adultos pela Lei 9.099 e mais recentemente pela Lei dos Juizados Especiais Federais, todos diplomas legais posteriores ao Estatuto. Não é possível que em decorrência da dita “autonomia” do Direito da Criança, justificadora de um discurso que visa a não admissão de um conceito de Direito Penal Juvenil, sob o pífio argumento de que medida socioeducativa não é pena – que deve ser compreendida como sancionamento do Estado frente a uma conduta descrita na Lei como Crime ou Contravenção; seja o adolescente, na mesma situação de um imputável, tratado com desfavor, em flagrante violação da Normativa Internacional. Não é razoável que na remissão, composta perante o Ministério Público, em verdade uma transação, esteja o adolescente desassistido por Defensor, pretendendo atribuir-se uma autonomia do Direito da Infância ao ponto de se fazer autônomo frente ao próprio texto constitucional que o fundamenta e legitima.

Não há dúvida que a Constituição Federal e o Estatuto da Criança e do Adolescente, ao estabelecerem um sistema de responsabilização do adolescente a que se atribui a prática de ato infracional, afirmou este Direito Penal , que será Juvenil, porque especial, próprio da condição peculiar de pessoa em desenvolvimento do sujeito desta norma, porém presidido por todo o conjunto garantista do Direito Penal visando a consumação de seu fim sócio-educativo.

A suposta autonomia do Direito da Criança, sustentada por alguns, resulta por reeditar, de forma travestida, o festival de eufemismos e de desrespeito ao direito de cidadania que marcou o Código de Menores, fazendo a operação do Estatuto da Criança e do Adolescente com a lógica da Doutrina da Situação Irregular, fazendo das medidas socioeducativas instrumentos de política “de bem estar de menores”, de triste experiência nestes Brasis. (in O adolescente em conflito com a lei e sua responsabilidade: nem abolicionismo penal, nem direito penal máximo. in REVISTA AJURIS, Porto Alegre, 1996, n. 67, p. 60. Disponível tb. em:http://www.mpes.gov.br/conteudo/CentralApoio/conteudo6.asp?tipo=3&cod_centro=17&menu_p=121, Acesso em: 27 de novembro de 2008).

Ademais, diante das consequências e implicações da recusa de aplicação da norma do art. 152, nem é possível tratar do assunto reconhecendo na Decisão a velha retrógrada e conhecida interpretação retrospectiva,

Deve-se rejeitar uma das patologias crônicas da hermenêutica constitucional brasileira, que é a interpretação retrospectiva, pela qual se procura interpretar o texto novo de maneira que ele não inove nada, mas, ao revés, fique tão parecido quanto o possível com o antigo. (LUÍS ROBERTO BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição. 2ª ed., Ed. Saraiva, 1998, p. 67. ou ed. 2001, pg 71.)

O Mestre NORBERTO BOBBIO, já ensinava a compreender o caráter estrutural do Direito de forma descomplicada:

Não está excluído que um dado ordenamento recorra, para operar a própria integração, a outros ordenamentos positivos. Podemos distinguir:

(...)

b) o reenvio a ordenamentos vigentes contemporâneos, como no caso em que um ordenamento estatal cita normas de um outro ordenamento estatal (...) (in Teoria do Ordenamento Jurídico, EdUnb, 4a ed., 1994, pg. 148).

E ao MINISTÉRIO PÚBLICO foi atribuído como instituição permanente e essencial à função jurisdicional do Estado o papel de zelar pela manutenção da ordem jurídica com absoluta obediência aos PRINCÍPIOS DA LEGALIDADE E DO DEVIDO PROCESSO LEGAL, pilares sobre os quais se sustenta o ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO.

Assim, a Constituição Federal e a legislação infraconstitucional (art. 127, da CF, Lei 8.625/93 e Lei Complementar nº 75/93) cercaram o MINISTÉRIO PÚBLICO de várias atribuições, e, nesse passo cabe destacarmos a a função de GUARDIÃO DA ORDEM JURÍDICA e dos Direitos Fundamentais.

Com o escopo de refutar tais pretensões é que o MINISTÉRIO PÚBLICO continuará atuando como incansável sentinela, de forma a garantir que as disposições legais serão aplicadas de forma JUSTA, ADEQUADA e NECESSÁRIA à devida prestação jurisdicional, uma vez tendo por norte sua missão institucional conferida pela Constituição Federal de 1988 e legislação pertinente. (art. 127, da CF, Lei nº 8.625/93, Lei Complementar nº 75/93, arts. 200 e 201, do ECA, 81 a 85, do CPC) e por fim com nova redação trazida pela lei nº 11.719/2008, o art. 257 do Código de Processo Penal, o qual destacamos abaixo:

Art. 257. Ao Ministério Publico cabe:

I- Promover, privativamente, a ação penal pública, na forma estabelecida neste Código; e

II- Fiscalizar a execução da lei.

Cabe ainda ressaltar, que o Promotor de Justiça atua no processo concomitantemente como parte em sentido formal e como fiscal da lei, sendo que tais atribuições não se anulam, mas se complementam, o que, no processo penal ou de apuração de ato infracional, apresenta uma feição toda especial, além de oficiar como autor, também funciona como CUSTUS LEGIS, devendo, neste mister, zelar pelo fiel cumprimento da lei e garantir que o devido processo legal seja obedecido nos seus estritos termos, ainda que para isso tenha que pugnar em favor do réu ou do adolescente representado (pedindo a sua absolvição e/ou improcedência, recorrendo em seu favor, etc.).

Pois, de acordo com o sólido precedente jurisprudencial:

Não compete ao magistrado escolher o rito processual que entende adequado para o caso, ou aplicá-lo somente em parte. Tampouco cabe às partes tal escolha, eis que o rito é determinado por lei, in casu, a Lei n.º 8.069/90, devendo ser rigorosamente observado. (HC 45.558/SP, Rel. Ministro GILSON DIPP, QUINTA TURMA, julgado em 06/10/2005, DJ 24/10/2005 p. 363)

Portanto, os dispositivos do ECA pertinentes à oitiva do réu-adolescente, no processo sócio-educativo, decorre do que poderíamos denominar INCOMPATIBILIDADE CONGLOBANTE COM O ORDENAMENTO JURÍDICO SUPERVENIENTE, neste caso em exame, decorrente das normas modificativas do interrogatório no Código de Processo Penal, contidas na Lei nº 11.719/2008.

A situação difere do PRINCÍPIO DA PROIBIÇÃO DO RETROCESSO, porque a Legislação mais benéfica ou que confere maior garantia no âmbito do devido processo legal foi editada em caráter geral e a posterior. Pela PROIBIÇÃO DE RETROCESSO, cf. Ensina LUÍS ROBERTO BARROSO “entende-se que se uma lei, ao regular um mandamento constitucional, instituir determinado direito, ela se incorpora ao patrimônio jurídico da cidadania e não pode ser arbitrariamente suprimido”, pois ocorreria abolição de direito com respaldo constitucional. (O Direito Constitucional e a Efetividade de Suas Normas, Limites e possibilidades da Constituição Brasileira. 5ª ed., Ed. Renovar, 2001, p. 158.)

E máxime quanto a aplicação das normas do ECA significam a restrição de Direitos Fundamentais, especialmente com a oitiva do infrator antes do conhecimento do contexto probatório produzido.

Diante de todo o exposto, e não obstante o farto entendimento doutrinário, jurisprudencial sobre o assunto, bem como zelando pelos PRINCÍPIOS DA SEGURANÇA JURÍDICA, DO DEVIDO PROCESSO LEGAL, DO CONTRÁDITÓRIO E DA AMPLA DEFESA, resta CONCLUIR: pelo reconhecimento da cogente aplicabilidade ao procedimento de apuração de ato infracional previsto no ECA (LEI Nº 8.069/90 - arts. 184, 186, caput e §4º) do novo rito procedimental do interrogatório incorporado aos arts. 400, 531, DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL pela LEI Nº 11.719/2008, que prescreve e garante o direito de defesa com oitiva do acusado/adolescente infrator após a instrução .


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

EUZÉBIO, Silvio Roberto Matos. O novo rito da audiência no processo penal e sua aplicabilidade ao processo sócio-educativo (para apuração de ato infracional). A incompatibilidade conglobante do ECA com o ordenamento jurídico superveniente. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3246, 21 maio 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/21749. Acesso em: 26 abr. 2024.