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Crimes militares praticados por civil contra as instituições militares estaduais.

Competência para julgamento no direito brasileiro

Crimes militares praticados por civil contra as instituições militares estaduais. Competência para julgamento no direito brasileiro

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Persiste ainda o entendimento doutrinário e jurisprudencial de que não há outra solução para o caso do cometimento de crime militar por civil contra as instituições militares, ainda que com previsão exclusiva no CPM, que não seja sua submissão ao foro civil.

Resumo: Trata-se de uma abordagem acerca dos crimes militares que sejam praticados por civis contra as instituições militares estaduais, nos termos do art. 9, inciso III do Código Penal Militar brasileiro. A discussão gira em torno da definição da competência para o processo e julgamento do agente no caso em tela, à luz da constituição e da legislação infra-constitucional, observada a doutrina e jurisprudência pátria.

Palavras-chave: crime militar; justiça militar; instituições militares estaduais; competência.

Sumário: 1 Introdução; 2 Dos crimes militares: aspectos conceituais e hipóteses de cometimento por agente civil; 2.1 Crime militar: aspectos conceituais; 2.2 Hipóteses em que um civil pode figurar como sujeito ativo de crime militar contra as instituições militares estaduais; 3 Da competência para processo e julgamento dos crimes militares definidos somente no Código Penal Militar cometidos por civil contra as instituições militares estaduais; 3.1 Da estrutura e competência da Justiça Militar; 3.2 A competência para julgamento dos crimes militares cometidos por civil contra as instituições militares estaduais: análises e proposições; 4 Conclusão.


1. Introdução

O presente artigo tem por escopo trazer à baila uma questão que não é objeto de muitas publicações no cenário brasileiro, qual seja a prática de crimes militares por agentes que não sejam integrantes das forças militares estaduais contra as instituições militares dos Estados. Qual seria a situação jurídica em que se encontraria tal fato? Seria uma questão de atipicidade ou se trataria de uma lacuna de competência no sistema jurídico brasileiro? Tais questionamentos sempre intrigaram este autor e talvez figurem como as principais motivações para a realização deste trabalho, vez que o cometimento de ilícitos penais tipificados no Código Penal Militar (CPM) por civis não é raro, ao contrário, ocorrem com certa frequência conforme fica demonstrado, por exemplo, pelos atentados às bases policiais militares na cidade de São Paulo no ano de 20121 ou pelo atentado à Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) da Polícia Militar em uma comunidade do Rio de Janeiro no mês de Julho do mesmo ano2.

O tema ora debatido encontra-se em estado de quase vazio doutrinário, tanto que não foi localizado por este autor durante sua pesquisa sequer um artigo que abarcasse exclusivamente o assunto em tela, de modo aprofundado, e que trouxesse a lume uma resposta contundente sobre o assunto. Tal situação talvez se explique pelo fato de a matéria já estar sumulada pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) desde o ano de 1992, conforme súmula de número 53 que declara que “Compete à Justiça Comum Estadual processar e julgar o civil acusado de crime contra as instituições militares estaduais” (ASSIS, 2008, p. 48). Não obstante a existência de decisão do STJ com relação à matéria, esta decisão não é peremptória e não é de acatamento obrigatório pelos órgãos judiciais, já que não que possui natureza vinculante no sistema jurídico brasileiro, não sendo suficiente, portanto, para esgotar a discussão sobre o tema ora sob análise.

Lado outro, muito embora já tenham decorrido duas décadas da edição da súmula supramencionada, verifica-se que processos em que a justiça comum tenha processado um civil pela prática de um crime caracterizado como militar não são fáceis de serem encontrados, pelo menos com remissão expressa aos dispositivos do CPM, havendo maior incidência no Estado do Rio Grande do Sul, o qual inclusive juntamente com o Estado de São Paulo são os únicos em que foi possível encontrar jurisprudência a respeito da temática em comento.

Essas considerações iniciais demonstram a relevância do estudo do tema que será deslindado daqui em diante, pois sendo de grande relevância ainda carece de maior estudo, principalmente com vistas a suscitar o debate acerca da temática, contribuindo para o seu esclarecimento, para a desconstrução da realidade de desconhecimento do ramo do Direito Penal Militar, além de adensar o arcabouço doutrinário nesta área, o qual, como já mencionado e como ficou evidenciado nos estudos que subsidiaram este escrito, mostra-se ainda escasso e árido não só no Brasil, mas em todo o mundo, o que é corroborado por Zaffaroni apud Assis (2004, p. 77), à guisa de exemplo, ao afirmar que “en torno del derecho penal militar argentino se han producido vários malentendidos y, en general, dado que está parcial o deficientemente estudiado en nuestras universidades”. (grifo do autor)

Para o alcance do seu intento, o presente trabalho apresentará inicialmente uma exposição sobre o conceito de crime militar sob os pontos de vista legal, doutrinário e jurisprudencial e as hipóteses em que este tipo de infração pode ser cometida por civil, considerando sempre o sistema jurídico pátrio. Logo após, se encarregará da discussão que constitui seu objeto nuclear, qual seja o da definição da competência para processo e julgamento do agente, à luz da legislação vigente, bem como dos posicionamentos doutrinários e jurisprudências dos tribunais brasileiros.


2. Dos crimes militares: aspectos conceituais e hipóteses de cometimento por agente civil

Para a real compreensão da possibilidade do cometimento de um ilícito militar por um agente civil, necessário se faz inicialmente conceituar o que vem a ser uma infração penal denominada como crime militar. A complexidade para a definição do que seja um crime militar perpassa pela interpretação sistemática de um rol de dispositivos constitucionais e legais e é condição sine qua non para a correta aplicação da lei penal militar seja aos integrantes das forças militares, seja para o civil, quando for o caso.

2.1. Crime militar: aspectos conceituais

O primeiro conceito que se deve ter de crime militar está consignado no Código Penal Militar, em seu art. 9º ao descrever os crimes militares em tempos de paz, devendo-se mencionar ainda que há também os crimes em tempos de guerra, mas estes não são objeto de estudo deste artigo. O art. 9º então prescreve, in verbis:

Art. 9º Consideram-se crimes militares, em tempo de paz:

I - os crimes de que trata êste Código, quando definidos de modo diverso na lei penal comum, ou nela não previstos, qualquer que seja o agente, salvo disposição especial; (grifo do autor)

II - [...] (Suprimido pelo autor por não ser de grande relevância para este estudo)

III - os crimes praticados por militar da reserva, ou reformado, ou por civil, contra as instituições militares, considerando-se como tais não só os compreendidos no inciso I, como os do inciso II, nos seguintes casos: (grifo do autor)

a) contra o patrimônio sob a administração militar, ou contra a ordem administrativa militar;

b) em lugar sujeito à administração militar contra militar em situação de atividade ou assemelhado, ou contra funcionário de Ministério militar ou da Justiça Militar, no exercício de função inerente ao seu cargo;

c) contra militar em formatura, ou durante o período de prontidão, vigilância, observação, exploração, exercício, acampamento, acantonamento ou manobras;

d) ainda que fora do lugar sujeito à administração militar, contra militar em função de natureza militar, ou no desempenho de serviço de vigilância, garantia e preservação da ordem pública, administrativa ou judiciária, quando legalmente requisitado para aquêle (sic) fim, ou em obediência a determinação legal superior.

Parágrafo único. Os crimes de que trata este artigo quando dolosos contra a vida e cometidos contra civil serão da competência da justiça comum, salvo quando praticados no contexto de ação militar realizada na forma doart. 303. da Lei no 7.565, de 19 de dezembro de 1986 - Código Brasileiro de Aeronáutica. (BRASIL, 1969)

Verifica-se pela leitura do artigo supra que para a configuração de um crime considerado como militar em tempos de paz3, a lei penal castrense traz uma fórmula que implica na combinação das disposições do art. 9º com os tipos penais constantes na parte especial do Código, ou seja, para que um crime seja considerado militar é preciso que haja além da subsunção da conduta com a descrição típica constante do CPM, a comprovação de que esta tenha se dado nas situações expressamente elencadas nos incisos do mencionado artigo. Nas palavras de Assis (2008, p. 40) “[...] para conceituar o ‘crime militar’, em si, o legislador adotou o critério ratione legis; isto é, ‘crime militar’, é o que a lei considera como tal. Não define: enumera”.

Isso posto, considerado o critério ratione legis, havendo o enquadramento objetivo do fato às disposições do art. 9º, ali estaria um crime militar, independente de qualquer outro aspecto. Todavia, a jurisprudência moderna tem apresentado entendimento contrário, como pode ser verificado em julgados recentes do Supremo Tribunal Federal (STF), como no julgamento do Habeas Corpus (HC) n. 110.286/RJ em que mesmo havendo um homicídio praticado por um militar da ativa contra outro militar da ativa, o que se enquadraria nas disposições do inciso II, alínea “a” do citado dispositivo, o crime foi entendido como de natureza comum e não militar:

COMPETÊNCIA – HOMICÍDIO – AGENTE MILITAR. Inexistente qualquer elemento configurador, a teor do disposto no artigo 9º do Código Penal Militar, de crime militar, a competência é da Justiça Comum, do Tribunal do Júri.

(HC 110286, Relator(a): Min. DIAS TOFFOLI, Relator(a) p/ Acórdão: Min. MARCO AURÉLIO, Primeira Turma, julgado em 14/02/2012, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-064 DIVULG 28-03-2012 PUBLIC 29-03-2012) (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2012)

Denota-se, pois, que no entendimento do STF para que um crime seja considerado como militar, necessário se faz que a condição do agente ou a situação fática seja considerada como de natureza militar ou atente contra as instituições militares. Tal acepção ainda é bastante nova, mas tem tomado força, tanto que também em sede de julgamento de HC a egrégia Corte mais uma vez decidiu da seguinte forma:

HABEAS CORPUS. DIREITO PENAL MILITAR. PACIENTES POLICIAIS MILITARES DENUNCIADOS POR EXTORSÃO MEDIANTE SEQUESTRO COM RESULTADO MORTE E OCULTAÇÃO DE CADÁVER. ALEGAÇÃO DE INCOMPETÊNCIA DA JUSTIÇA COMUM. IMPROCEDÊNCIA. ORDEM DENEGADA. I – Hipótese em que os fatos imputados ao denunciados não se enquadram em nenhuma das situações previstas pelo Código Penal Militar para caracterizar crime militar e, por conseguinte, fixar a competência da Justiça Castrense. II – Da leitura dos autos, verifica-se que a conduta criminosa não possui qualquer conotação militar e que a condição de policial militar não foi determinante para a prática do crime, de modo que não vejo como classificá-lo como militar. III - Esta Corte já firmou entendimento no sentido de que a condição de militar ou a circunstância de o agente estar em serviço no momento da prática do crime não são suficientes para atrair a competência da Justiça Castrense. Precedentes. (grifo do autor) IV – Ordem denegada.

(HC 109150, Relator(a): Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Segunda Turma, julgado em 20/09/2011, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-196 DIVULG 11-10-2011 PUBLIC 13-10-2011). (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2011)

Não obstante os novos posicionamentos jurisprudenciais citadas, a doutrina, embora escassa neste ponto, continua a definir os crimes militares, como assevera Assis (2008, p. 42) “como toda violação acentuada ao dever militar e aos valores das instituições militares”. a despeito da definição do autor retromencionado, a maioria dos doutrinadores, como afirma Fernandes Neto (2009) não emitem um conceito ou definição exata do que seja um crime militar, embora reconheçam a importância desta definição, se restringindo praticamente a interpretaram as disposições do art. 9º, donde se extrai que uma infração penal é militar a partir dos critérios de matéria (ratione materiae), de pessoa (ratione personae), lugar (ratione loci) e tempo (ratione temporis), nos seguintes termos:

O critério ratione materiae exige que se verifique a dupla qualidade militar – no ato e no agente.

São delitos militares ratione personae aqueles cujo sujeito ativo é militar, atendendo exclusivamente à qualidade militar do agente.

O critério ratione loci leva em conta o lugar do crime, bastando, portanto, que o delito ocorra em lugar sob administração militar.

São delitos militares ratione temporis os praticados em determinada época, como por exemplo, os ocorridos em tempo de guerra ou durante o período de manobras ou exercícios. (ASSIS, 2004, p. 81)

Nesta esteira, depreende-se que são considerados crimes militares, conforme a lei penal militar e a doutrina dominante aqueles que o Código Penal Militar define como tais em seu art. 9º (tempo de paz) ou em seu art. 10. (tempo de guerra), a despeito de já haver alguns julgados novéis do STF em sentido diverso, o que ainda não tem aspecto vinculante, não sendo, pois, de observância obrigatória, apesar de terem sido exarados pela Corte Suprema do país, com a devida vênia, embora representem uma contundente baliza aos órgãos jurisdicionais.

2.2. Hipóteses em que um civil pode figurar como sujeito ativo de crime militar contra as instituições militares estaduais

Para o ingresso na abordagem das possibilidades em que o civil pode figurar como agente de crime militar necessário faz antes de trazer à baila uma classificação doutrinária da tipologia dos crimes militares. Diz-se doutrinária porque esta não decorre da lei ou da Constituição, embora estas lhe façam referências, como exemplificam os excertos a seguir:

Art. 5º - [...]

LXI - ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei;(grifo do autor) (BRASIL, 1988)

Art. 64. - Para efeito de reincidência:

[...]

II - não se consideram os crimes militares próprios e políticos; (BRASIL, 1940)

A inexistência de definição legal do que seja um crime militar próprio ou propriamente militar, nos dizeres de LIMA (2011, p. 498) obrigou que a doutrina o fizesse, “haja vista que a Constituição Federal e o Código Penal apontam para a importância de se estabelecer o conceito de crime propriamente militar”.

Neste diapasão, a doutrina classifica hodiernamente os crimes militares, ressalvadas as divergências entre os autores quanto aos termos, em dois grandes grupos: crimes propriamente militares e crimes impropriamente militares.

Segundo Romeiro apud Lima (2011, p. 498) o crime propriamente militar, também denominado como crime militar próprio, é aquele que só pode ser praticado por militar, pois consiste na violação de deveres restritos, que lhe são próprios, sendo identificado por dois elementos: a qualidade do agente (militar) e a natureza da conduta (prática funcional). O mesmo entendimento é apresentado por Assis (2008, p. 43):

Considerando-se, portanto, que a caracterização de crime militar obedece atualmente, ao critério ex vi legis, entendemos que s.m.j, crime militar próprio é aquele que só está previsto no Código Penal Militar e que só pode ser praticado por militar, exceção feita, ao de INSUBMISSÃO (sic), que, apesar de só estar previsto no Código Penal Militar (art. 183), só pode ser cometido por civil.

Noutro viés, são considerados como crimes impropriamente militares ou militares impróprios, segundo Lima (2011, p. 500) “[...] a infração penal prevista no Código Penal Militar que, não sendo específica e funcional do soldado, lesiona bens ou interesses militares. É aquele delito cuja prática é possível a qualquer cidadão (civil ou militar), passando a ser considerado militar porque praticado em certas condições (art. 9º do CPM)”. Ainda segundo o autor:

O art. 9º do CPM distingue 3 (três) espécies de crimes impropriamente militares: a) os previstos exclusivamente no Código Penal Militar (ex.: ingresso clandestino – CPM, art. 302); b) os previstos de forma diversa na lei penal comum (ex.: desacato a militar – CPM, art. 299); c) os previstos com igual definição na lei penal comum (ex.: furto – CPM, art. 240). (LIMA, 2011, p. 500-501)

Em sentido semelhante, embora com pequena divergência, posiciona-se também Assis (2008, p. 43) ao dispor que crimes militares impróprios “são aqueles que estão definidos tanto no Código Penal Castrense (sic) quanto no Código Penal comum e, que, por um artifício legal tornam-se militares por se enquadrarem em uma das várias hipóteses do inc. II do art. 9º do diploma militar repressivo”.

No entendimento deste autor a classificação dos crimes acima disposta, a qual figura como dominante na doutrina atual, mostra-se como insuficiente para abarcar todas as hipóteses em que um crime militar é comissível, pois deixam de considerar as disposições do art. 9º, inciso III, que também preveem situações em que tanto um civil quanto um militar podem ser agentes de um crime militar quando atentarem contra as instituições militares. Outro aspecto importante, trata-se da desconsideração da teoria monista adotada pelos Códigos Penais brasileiros, tanto comum quanto o militar, os quais dispõem, respectivamente:

Art. 29. - Quem, de qualquer modo, concorre para o crime incide nas penas a este cominadas, na medida de sua culpabilidade.

Art. 30. - Não se comunicam as circunstâncias e as condições de caráter pessoal, salvo quando elementares do crime. (BRASIL, 1940)

Art. 53. Quem, de qualquer modo, concorre para o crime incide nas penas a êste (sic) cominadas.

§ 1º A punibilidade de qualquer dos concorrentes é independente da dos outros, determinando-se segundo a sua própria culpabilidade. Não se comunicam, outrossim, as condições ou circunstâncias de caráter pessoal, salvo quando elementares do crime. (grifo do autor) (BRASIL, 1969)

Disto isto, não soa inteiramente correto dizer que crimes militares são próprios ou impróprios simplesmente pelo fato de poderem ser ou não cometidos somente por militares, pois a lei admite o concurso de agentes e muito mais, admite que as circunstâncias pessoais quando forem elementares para o crime (caso dos crimes que atentam contra a hierarquia e disciplina) se comuniquem aos consortes, sendo possível, portanto que um civil se veja, por exemplo, como co-autor em um crime tipicamente militar. O próprio STF já emitiu julgado neste sentido, conforme se verifica pela transcrição a seguir:

HABEAS CORPUS. PENAL. PROCESSO PENAL. CRIME MILITAR. DENÚNCIA. ATIPICIDADE. CONCURSO DE AGENTES. MILITAR E FUNCIONÁRIO CIVIL. CIRCUNSTÂNCIA DE CARÁTER PESSOAL, ELEMENTAR DO CRIME. APLICAÇÃO DA TEORIA MONISTA. Denúncia que descreve fato típico, em tese, de forma circunstanciada, e faz adequada qualificação dos acusados, não enseja o trancamento da ação penal. Embora não exista hierarquia entre um sargento e um funcionário civil da Marinha, a qualidade de superior hierárquico daquele em relação à vítima, um soldado, se estende ao civil porque, no caso, elementar do crime. Aplicação da teoria monista. Inviável o pretendido trancamento da ação penal. HABEAS indeferido.

(HC 81438, Relator(a): Min. NELSON JOBIM, Segunda Turma, julgado em 11/12/2001, DJ 10-05-2002 PP-00068 EMENT VOL-02068-01 PP-00133)

Isto posto, infere-se, com a devida vênia, que estaria colocado de modo mais acertado que um crime seria propriamente militar ou impropriamente militar na medida em que fosse ou não, respectivamente, atentatório aos princípios militares da hierarquia e disciplina, os quais são basilares e caracterizadores das instituições militares e dos seus integrantes.

Inobstante as divergências, passa-se a então a discutir as hipóteses em que o civil poderá cometer crimes contra as instituições militares estaduais. Neste intento, é imperioso destacar uma vez mais o disposto no inciso III do art. 9º do CPM, o qual cuida da matéria em tela. De acordo com o mencionado dispositivo:

Art. 9º Consideram-se crimes militares, em tempo de paz:

[...]

III - os crimes praticados por militar da reserva, ou reformado, ou por civil, contra as instituições militares, considerando-se como tais não só os compreendidos no inciso I, como os do inciso II, nos seguintes casos:

a) contra o patrimônio sob a administração militar, ou contra a ordem administrativa militar;

b) em lugar sujeito à administração militar contra militar em situação de atividade ou assemelhado, ou contra funcionário de Ministério militar ou da Justiça Militar, no exercício de função inerente ao seu cargo;

c) contra militar em formatura, ou durante o período de prontidão, vigilância, observação, exploração, exercício, acampamento, acantonamento ou manobras;

d) ainda que fora do lugar sujeito à administração militar, contra militar em função de natureza militar, ou no desempenho de serviço de vigilância, garantia e preservação da ordem pública, administrativa ou judiciária, quando legalmente requisitado para aquêle (sic) fim, ou em obediência a determinação legal superior.

Considerando o acima exposto, resta irrefutável que, considerado apenas o aspecto legal, o civil comete crime militar, desde que atente contra as instituições militares, inclusive as estaduais. Neste particular, é importante ressaltar que alguém menos avisado poderia entender que somente as Forças Armadas e seus integrantes seriam sujeitos passivos de um crime militar que tivesse como autor um civil, como é o caso inclusive de Lima (2011, p. 540) que assim se expressa:

O art. 9º, inc. III, do Código Penal Militar, versa sobre os crimes militares cometidos por militar da reserva, ou reformado, ou por civis.

Como esse inciso tem como sujeito ativo tão somente o civil (reiteramos que, para fins de aplicação da lei penal militar, o militar da reserva ou reformado é considerado civil), forço é concluir que o dispositivo referido tem aplicação exclusiva na Justiça Militar da União, na medida em que, de acordo com a própria Constituição Federal, a Justiça Militar só tem competência para processar e julgar os militares dos Estados (CF, art. 125, §4º)

Com a devida vênia aos entendimentos contrários, denota-se que o indigitado doutrinador equivoca-se na medida em que utiliza uma lei de natureza processual para asseverar uma espécie de derrogação da lei penal material. O fato de a Constituição Federal ter sonegado da Justiça Militar Estadual a competência para o julgamento de civis não traduz em nenhuma medida a inaplicabilidade do Código Penal Militar para a proteção das instituições militares estaduais, tanto assim o é que a própria Súmula n. 53. do STJ declara apenas que “caberá à Justiça Comum Estadual processar e julgar civil quando acusado de prática de crime contra as instituições militares estaduais”, não retirando estas últimas da proteção do CPM no caso em comento.

Ademais, no sentido de demonstrar que os militares da reserva ou reformado não são considerados civis para fins de aplicação da lei penal militar, mostra-se pertinente exibir julgado do Tribunal de Justiça Militar de Minas Gerais, nos seguintes termos:

Se a vítima é Major PM QOS e exercia a sua função de dentista, em unidade sujeita à Administração Militar, ao ser ameaçada por um Major da reserva, configurou-se a prática de crime militar e competente é a Justiça Militar para processar e julgar o feito, apurado pelo instrumento próprio, que é o IPM.- Razão assiste à irresignação do Ministério Público, eis que houve violação ao dever militar e aos preceitos de hierarquia e disciplina, que são essenciais nas instituições militares, que se estendem e se aplicam inclusive, aos militares da reserva e reformados. - Provimento do recurso. Decisão: Unânime. DERAM PROVIMENTO AO RECURSO DO MINISTÉRIO PÚBLICO PARA RECONHECER A COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA MILITAR PARA PROCESSAR E JULGAR O FEITO.

(Recurso em sentido estrito n. 248. – Relator: Juiz Cel PM Rúbio Paulino Coelho (TRIBUNAL DE JUSTIÇA MILITAR DE MINAS GERAIS, 2008)

Na mesma esteira pronunciou-se o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul em exame de apelação criminal, também decidindo pela aplicação da lei penal militar e consequente competência da Justiça Militar Estadual:

Apelação. Falso testemunho. Auditoria militar. Policial militar reformado. Competência da egrégia justiça militar estadual. À unanimidade declinaram da competência. Acordam os magistrados integrantes da quarta câmara criminal do tribunal de justiça do estado, à unanimidade, em anular o processo, nos termos dos votos emitidos em sessão, determinando sua remessa à justiça militar.

(TJRS - Apelação Criminal n. 70019210012/2007) (TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO GRANDE DO SUL, 2007)

Mas voltando ao tema central que move o presente debate, é cediço que as instituições militares estaduais são consideradas desde a Constituição de 1988 como instituições militares, tanto que são consideradas como reservas e auxiliares do Exército Brasileiro, nos termos do art. 144, §6º, da Constituição Federal de 19884, sendo seus integrantes considerados militares dos Estados e do Distrito Federal nos exatos dizeres do art. 42. da mesma Carta5, o que segundo os ensinamentos de Assis (2008) põe fim a uma discussão que sempre lhe pareceu desnecessária, incluindo definitivamente as polícias e os corpos de bombeiros militares no rol das instituições militares.

Depreende-se, por todo o exposto, que as instituições militares estaduais gozam em todos os aspectos da proteção penal estatuída pelo inciso III do art. 9º do CPM, podendo sim figurar como sujeito passivo de crime militar próprio ou impróprio, ainda que praticado por civil singularmente ou em concurso de agentes, aqui devendo ser aquele entendido como a pessoa não integrante dos quadros das instituições militares6 sejam federais ou estaduais, ainda que da reserva ou reformado, cabendo apenas discutir sobre a competência para processo e julgamento do agente, o que será discutido adiante.


3. Da competência para processo e julgamento dos crimes militares definidos somente no Código Penal Militar cometidos por civil contra as instituições militares estaduais

A restrição da discussão em torno da competência para processar e julgar o civil que venha a ser agente de delito militar contra as instituições militares estaduais apenas àqueles tipificados exclusivamente no CPM (art. 9º, inciso I c/c III do mesmo artigo) tem fundamento no fato de que nos demais casos, há uma aparente pacificação na doutrina e jurisprudência majoritária que em havendo um crime militar com igual descrição na lei penal comum, caberá à Justiça Comum Estadual processar e julgar o agente, é o que depreende-se da leitura de posicionamentos como de Lenza (2007, p. 542) ao dizer que “[...] se um civil pratica crime de furto em um quartel da Polícia Militar do Estado, ele será processado e julgado pela justiça comum e com fundamento no CP e CPP”, muito embora o argumento de todos os doutrinadores encontrados é de que a transferência para a Justiça Comum é a ausência de competência para julgar os civis por parte da Justiça Militar Estadual, como se exemplifica pelos trechos abaixo:

c) a Justiça Militar Estadual não tem competência para julgar crimes praticados por civil, ainda que este atente contra as instituições militares ou contra militares no exercício de suas funções. [...] Assim ficou nítida a competência exclusiva da Justiça Militar Estadual para o julgamento de militares, mas jamais de civis. Estes devem ser julgados pela Justiça Estadual Comum, a teor da Súmula 53 do STJ; (NUCCI, 2008, p. 276-277)

[...] a Justiça Militar Estadual só tem competência para processar e julgar os militares dos Estados (CF, 125, §4º). Logo, se um civil cometer um crime contra as instituições militares estaduais (v.g., furto de armamento de um Policial Militar), deverá ser processado e julgado perante a Justiça Comum Estadual. Nessa Linha, aliás, dispõe a Súmula n. 53. do STJ [...] (LIMA, 2011, p. 540)

A própria Súmula n. 53. do STJ invocada tão reiteradas vezes pelos autores supramencionados foi editada após o exame em incidentes de conflito de competência suscitados entre a Justiça Militar e Comum Estadual do Rio Grande do Sul e de São Paulo7, sendo que em todos os casos a decisão foi pela competência da Comum sob o único fundamento de que a Justiça Militar Estadual não tinha competência para o julgamento de civis, não havendo maior aprofundamento, embora em nenhum dos casos o crime tenha sido descaracterizado de sua natureza militar.

Pelas razões expostas, não se cuidará aqui dos crimes militares com idêntica previsão na lei penal comum, mesmo porque não se tem o objetivo de se esgotar a discussão em torno do tema, mas sim de levantar uma discussão. Destarte, passa-se então a analisar a situação em que o civil vier a cometer crime militar tipificado exclusivamente na lei penal militar.

3.1. Da estrutura e competência da Justiça Militar

A Justiça Militar brasileira apresenta uma estrutura que nas palavras de Assis (2008, p. 52) é sui generis, na medida em que se divide em Federal e Estadual. A Justiça Militar Federal tem previsão nos art. 122. da Constituição Federal e é composta pelo Superior Tribunal Militar e pelos Tribunais e Juízes militares definidos em lei. Sua competência está definida em linhas gerais no art. 124. do próprio texto constitucional como a de processar e julgar os crimes militares definidos em lei.

Embora não haja no texto constitucional ou mesmo na Lei de Organização da Justiça Militar8 previsão de restrição de julgamento de membros das instituições militares estaduais ou de civis quando da prática de crimes contra estas instituições, há o entendimento doutrinário de que a Justiça Militar da União tutela unicamente os interesses das Forças Armadas. É o que afirma Assis (2008, p. 50) ao dizer que a Justiça Militar da União, por sua vez, tutela as instituições das Forças Armadas, julgando os crimes contra ela cometidos e dela (Justiça Militar federal) escapando os crimes contra os valores das Corporações estaduais.

Lado outro, a Justiça Militar Estadual tem igual previsão constitucional, mas em seu art. 125, §3º, o qual dispõe “A lei estadual poderá criar, mediante proposta do Tribunal de Justiça, a Justiça Militar estadual, constituída, em primeiro grau, pelos juízes de direito e pelos Conselhos de Justiça e, em segundo grau, pelo próprio Tribunal de Justiça, ou por Tribunal de Justiça Militar nos Estados em que o efetivo militar seja superior a vinte mil integrantes”.

A competência da Justiça Militar Estadual está delineada no §4º do mesmo artigo 125, nos seguintes termos:

Art. 125. – [...]

§ 4º Compete à Justiça Militar estadual processar e julgar os militares dos Estados, nos crimes militares definidos em lei e as ações judiciais contra atos disciplinares militares, ressalvada a competência do júri quando a vítima for civil, cabendo ao tribunal competente decidir sobre a perda do posto e da patente dos oficiais e da graduação das praças. (BRASIL, 1988)

Verifica-se, portanto por uma leitura meramente perfunctória dos dispositivos constitucionais que a competência da Justiça Militar e Estadual e Federal são distintas. Abstraída a competência cível da Justiça Estadual, a competência criminal ficou restrita, na medida em que somente pode processar e julgar os militares estaduais, frise-se, aqueles que pertençam às corporações dos seus respectivos Estados9, não havendo previsão constitucional para o julgamento de civis. É neste último aspecto que reside a problemática aqui debatida.

3.2. A competência para julgamento dos crimes militares cometidos por civil contra as instituições militares estaduais: análises e proposições

Conforme já fora exposto, diante da inexistência de previsão legal para que a Justiça Militar Estadual possa julgar civis, as decisões do Superior Tribunal de Justiça foram no sentido de que a competência seria então da Justiça Comum Estadual.

A Constituição Federal ao tratar da Justiça dos Estados, dispõe em seu art. 125. que estes organizarão sua justiça, respeitados os princípios constitucionais. Por se mostrar inviável citar aqui as disposições das 27 constituições dos Estados e as respectivas leis que estruturam seu Poder Judiciário, foram eleitos para subsidiar a presente análise as legislações oriundas dos Estados de Minas Gerais, São Paulo e Rio Grande do Sul, por serem os únicos que possuem uma estrutura completa de Justiça Militar Estadual e por serem os principais irradiadores de doutrina sobre o Direito Militar no Brasil.

Ao analisar as Constituições dos Estados retromencionados constata-se que todas são lineares em delegar às leis de organizações judiciárias a definição de competência dos juízes de direito da Justiça Comum, estes considerados então competentes pelo STJ para julgar os feitos militares que tenham por sujeito ativo um agente civil. Colimando as respectivas leis de organização judiciária, constata-se que há nos casos de Minas Gerais e do Rio Grande do Sul uma previsão bastante ampla quanto à competência dos Juízes de Direito, não havendo, contudo, nenhuma previsão na lei do Estado de São Paulo delimitando a competência do juiz de primeiro grau em matéria criminal10 .

Nos termos da lei complementar estadual de Minas Gerais n. 59. (Lei de Organização Judiciária), em seu art. 55, “Compete ao Juiz de Direito: processar e julgar: a) crime ou contravenção não atribuídos a outra jurisdição; [...]. Na mesma esteira a lei estadual n. 7.356. que organiza o Poder Judiciário no Rio Grande do Sul define em seu art. 73. que aos “Juízes de Direito compete: [...] II - a jurisdição criminal, em geral, [...].

O principal fundamento para as decisões que culminaram na Súmula 53 do STJ foi de que o fato de o civil ser julgado na Justiça Militar Estadual, segundo a doutrina, atentaria contra o princípio do juiz natural estatuído pela Constituição Federal de 1988. Segundo os ensinamentos de Nucci (2008, p. 85) “o Estado, na persecução penal, deve assegurar às partes, para julgar a causa, a escolha do juiz previamente designado por lei e de acordo com as normas constitucionais (art. 5º, III, CF: ‘Ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente’)”.

Observado o mandamento constitucional, verifica-se que o estado lacônico que foi criado pela própria Constituição ao deixar de delimitar, ainda que em linhas gerais, a competência da Justiça Comum Estadual e ao restringir a da Justiça Militar nos exatos termos do §4º do art. 125, produz uma situação de insegurança jurídica para as instituições militares, deixando as situações em que estas forem sujeito passivo de crimes militares ao alvedrio dos tribunais, podendo culminar com a sua desproteção pela lei penal militar, colocando-as em situação de desequilíbrio em relação às instituições militares federais, principalmente nos casos em que não há previsão clara de competência criminal geral. Em um possível processo, poderia haver questionamento acerca da competência para o processo e julgamento dos crimes militares praticado por civil pelo juízo comum, diante da omissão da lei, invocando-se o princípio do juiz natural. Se o princípio do juiz natural implica na prévia previsão legal de quem será a autoridade competente para julgar o feito, resta óbvio que a omissão da lei desatende a este princípio.

No entendimento deste autor, a solução mais adequada à espécie, seria a aplicação das disposições do art. 82. do Código de Processo Penal Militar, in verbis, em combinação com o prescrito no art. 124. da Constituição:

Art. 82. O foro militar é especial, e, exceto nos crimes dolosos contra a vida praticados contra civil, a ele estão sujeitos, em tempo de paz:

[...]

§ 1° O fôro militar se estenderá aos militares da reserva, aos reformados e aos civis, nos crimes contra a segurança nacional ou contra as instituições militares, como tais definidas em lei. (grifo do autor)

Embora não exista na doutrina sequer cogitação desta medida, esta não se mostra como impossível sob o ponto de vista constitucional e legal. Basta considerar, para tanto, que nos termos do art. 124. da Constituição de 1988 a competência da Justiça Militar no âmbito da União é a de processar e julgar os crimes militares definidos em lei, não havendo distinção de quais sejam os sujeitos passivos da infração penal. O mesmo dispositivo constitucional remete à necessidade da disposição de lei que delimite o poder jurisdicional da Justiça Militar da União, o que é cumprido pela Lei de Organização Judiciária Militar da União11, do qual se extrai o seguinte:

Art. 27. Compete aos Conselhos:

I - Especial de Justiça, processar e julgar oficiais, exceto oficiais-generais, nos delitos previstos na legislação penal militar;

II - Permanente de Justiça, processar e julgar acusados que não sejam oficias, nos delitos de que trata o inciso anterior, excetuado o disposto no art. 6º, inciso I, alínea b, desta Lei. (BRASIL, 1992)

Constata-se, pois, que a própria Constituição Federal não impôs restrições à tutela das instituições militares estaduais pela Justiça Militar da União, de modo que as restrições encontradas são de origem doutrinária, como fora citado anteriormente. A lei que organiza o judiciário militar da União não contempla a participação de integrantes das instituições militares na composição dos Conselhos de Justiça, o que no ponto de vista do autor não prejudica, data máxima vênia, o julgamento dos processos em que estas corporações figurassem no polo passivo, pois apesar de não ser a ideal, se mostraria como mais coerente do que a submissão ao juízo comum, dadas as semelhanças entre as instituições.

A despeito de tais argumentos, autores como Assis (2008, p. 52) afirmam que a solução definitiva para a questão ora debatida seria realmente a instituição de uma Justiça Militar unificada, nos seguintes termos:

No campo ideal, cremos que deveria haver apenas uma Justiça Militar, Federal, julgando inclusive os militares estaduais e do DF, auditorias mistas onde coexistissem os Conselhos de Justiça das Forças Armadas e Auxiliares; com Tribunais Regionais Militares e o Superior Tribunal Militar como órgão de cúpula. [...]

E complementa indo ao encontro do argumento deste autor de que a tutela das instituições militares estaduais é possível, sendo a restrição uma questão de entendimento da lei, ao asseverar que “Essas são ideias. Na situação atual, continuamos entendendo que cada Justiça Militar, deve tutelar os bens e valores que são preciosos para as Instituições Militares que lhe dizem respeito [...]” (ASSIS, 2008, p. 52).

Muito embora não seja objeto deste ensaio, não se pode deixar mencionar uma tendência que torna toda a discussão travada neste artigo, a qual reputa-se da maior relevância, na verdade, em algo desnecessário, qual seja a da exclusão do civil do foro militar. Neste sentido, países como Portugal chegaram a extinguir a justiça militar em tempos de paz, conforme apontado pelo Capitão de Mar e Guerra português em palestra ministrada durante Congresso no Superior Tribunal Militar no ano de 201112 e também em outros países da América Latina, como é citado por Assis (2004, p. 81) ao citar que “O art.5º do Código Penal Militar colombiano assevera ainda que ‘em nenhum caso os civis poderão ser investigados ou julgados pela justiça penal militar’”.

No Brasil , já há julgados do STF no sentido de excluir o civil da jurisdição militar, mas sob o fundamento de que o delito praticado não constitui crime militar, como no caso do julgamento de Habeas Corpus n. 106.171, transcrito adiante:

“HABEAS CORPUS” – CRIME MILITAR EM SENTIDO IMPRÓPRIO - FALSIFICAÇÃO/USO DE CADERNETA DE INSCRIÇÃO E REGISTRO (CIR), EMITIDA PELA MARINHA DO BRASIL - LICENÇA DE NATUREZA CIVIL - CARÁTER ANÔMALO DA JURISDIÇÃO PENAL MILITAR SOBRE CIVIS EM TEMPO DE PAZ – OFENSA AO POSTULADO DO JUIZ NATURAL - INCOMPETÊNCIA DA JUSTIÇA MILITAR - PEDIDO DEFERIDO. A QUESTÃO DA COMPETÊNCIA PENAL DA JUSTIÇA MILITAR DA UNIÃO E A NECESSÁRIA OBSERVÂNCIA, PELOS ÓRGÃOS JUDICIÁRIOS CASTRENSES, DO PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DO JUIZ NATURAL. – [...] A REGULAÇÃO DO TEMA PERTINENTE À JUSTIÇA MILITAR NO PLANO DO DIREITO COMPARADO. - Tendência que se registra, modernamente, em sistemas normativos estrangeiros, no sentido da extinção (pura e simples) de tribunais militares em tempo de paz ou, então, da exclusão de civis da jurisdição penal militar: [...] POSTULADO DO JUIZ NATURAL REPRESENTA GARANTIA CONSTITUCIONAL INDISPONÍVEL, ASSEGURADA A QUALQUER RÉU, EM SEDE DE PERSECUÇÃO PENAL, MESMO QUANDO INSTAURADA PERANTE A JUSTIÇA MILITAR DA UNIÃO. [...]

(HC 106171, Relator(a): Min. CELSO DE MELLO, Segunda Turma, julgado em 01/03/2011, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-071 DIVULG 13-04-2011 PUBLIC 14-04-2011)

Resta demonstrado que é fato, inclusive no Brasil, que a extensão da aplicação da lei penal militar, principalmente no que concerne ao civil, tende a estar cada vez mais restrita com o passar do tempo. Há de considerar, contudo, que a situação ainda se encontra no campo da dialética jurídica, sendo objeto de discussão, principalmente entre as instâncias judiciais militares e o STF, estando ainda vigentes todas as disposições do Código Penal Militar abordadas neste trabalho, o que, reitera-se, torna a discussão ainda necessária e pertinente.

Por fim, tem-se por todo o exposto, que persiste ainda o entendimento doutrinário e jurisprudencial de que não há outra solução para o caso do cometimento de crime militar por civil contra as instituições militares, ainda que com previsão exclusiva no CPM, que não seja sua submissão ao foro civil, devendo-se ressaltar que tal situação não descaracterizará a natureza do crime militar, mas tão somente implicará no julgamento pela Justiça Comum dos Estados.13


4. Conclusão

A questão do julgamento dos crimes militares praticados por civis contra as instituições militares estaduais, aqui discutida de forma superficial, dadas as limitações de espaço, representam uma matéria importante e que não tem sido objeto da devida atenção por parte da própria Justiça Militar Estadual e também dos legisladores. Nota-se que no que concerne a estas instituições, a discussão da temática encontra-se estagnada, sendo que todas as referências jurisprudenciais já contam com quase 20 anos de sua edição. Em pesquisas realizadas tantos nos sítios eletrônicos da Justiça Comum quanto da Justiça Militar dos Estados, não são encontrados quaisquer registros de decisões recentes em torno de fatos envolvendo civis na condição de agentes de crimes militares, muito embora a ocorrência de tais ilícitos não sejam raros.

O presente artigo não tem condições de esgotar a discussão acerca do tema, que é importante, principalmente diante das alegações de suposta desnecessidade da existência da Justiça Militar, considerada por alguns como um resquício do Regime Militar de 196914 e em alguns países já deixou de existir ou, quando não, teve sua competência restrita ao extremo.

Finalmente, o que ficou demonstrado é que para a solução adequada do debate que aqui se encerra seria necessário haver uma mudança na legislação, inclusive no plano constitucional, a fim de promover a necessária atualização do Direito Penal Militar, vez que este não tem acompanhado a evolução verificada na legislação penal e processual comum. Enquanto isso não ocorre, permanece o estado de estagnação em que se encontra o tema ora debatido, fundado ainda em entendimentos que já contam com quase duas décadas, os quais não atendem os interesses das instituições militares estaduais e da Justiça Militar que as tutela.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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________. (Constituição). Constituição da República Federativa do Brasil de 05 de outubro de 1988. Atualizada até a EC. n. 70/2012. Brasília: Diário Oficial, 1988. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/ConstituicaoCompilado.htm. Acessado em: 26 Jul 2012.

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NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de processo penal e execução penal. 5. ed. rev, atual, ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008.

RIO GRANDE DO SUL. Lei n. 7.356. de 1º de fevereiro de 1980. Dispõe sobre o Código de Organização Judiciária do Estado. Disponível em: https://www.al.rs.gov.br/LegisComp/arquivo.asp?Rotulo=Lei%20n%C2%BA%207356&idNorma=948&tipo=pdf. Acessado em: 26 Jul 2012.


Notas

1 Disponível em: https://ultimosegundo.ig.com.br/brasil/sp/2012-07-03/mais-uma-base-da-policia-militar-e-atacada-em-sao-paulo.html. Acessado em: 26 Jul 2012

2 Disponível em: https://noticias.terra.com.br/brasil/noticias/0,,OI[601]4372-EI5030,00-RJ+policial+morre+apos+ataque+contra+UPP+no+Complexo+do+Alemao.html Acessado em: 26 Jul 2012.

3 O termo, embora não tenha definição legal, deve ser compreendido como a situação em que o país não está em um contexto de guerra declarada nos termos do art. 84. c/c o art. 137. da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

4 Art. 144. A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos: (...) § 6º - As polícias militares e corpos de bombeiros militares, forças auxiliares e reserva do Exército, subordinam-se, juntamente com as polícias civis, aos Governadores dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios.

5 Art. 42. Os membros das Polícias Militares e Corpos de Bombeiros Militares, instituições organizadas com base na hierarquia e disciplina, são militares dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios.

6 Alguns doutrinadores entendem que os membros das Forças Armadas quando praticam crimes contra as instituições militares estaduais e vice-versa, como é o caso de Lima (2011), são considerados civis, mas este é o posicionamento sustentado neste trabalho. (Nota do autor)

7 CC 2117 RS 1991/0011257-7 DECISÃO:03/10/199; CC 1525 RS 1990/0011428-4 DECISÃO:20/11/1990 e CC 1258 SP 1990/0004890-7 DECISÃO:02/08/1990. Disponível em: https://www.stj.jus.br/SCON/pesquisar.jsp#DOC1. Acessado em: 26 Jul 12.

8 Lei federal n. 8.457. de 04 de setembro de 1992.

9 Súmula 78 – STJ: COMPETE A JUSTIÇA MILITAR PROCESSAR E JULGAR POLICIAL DE CORPORAÇÃO ESTADUAL, AINDA QUE O DELITO TENHA SIDO PRATICADO EM OUTRA UNIDADE FEDERATIVA. (Súmula 78, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 08/06/1993, DJ 16/06/1993 p. 11926)

10 Decreto-Lei n° 158, de 28 de janeiro de 1969.

11 Lei federal n. 8.457, de 04 de setembro de 1992.

12 Disponível em: https://www.seminariodedireitomilitar.com.br/2011/11/30/debate-sobre-crimes-militares-em-portugal/. Acessado em: 26 Jul 12.

13 Neste sentido, vide CC 1258/SP, Rel. Ministro CID FLAQUER SCARTEZZINI, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 02/08/1990, DJ 20/08/1990, p. 7956). Disponível em: https://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/toc.jsp?tipo_visualizacao=null&processo=1258&b=ACOR#DOC9. Acessado em: 26 Jul 2012.

14 Disponível em: https://veja.abril.com.br/blog/ricardo-setti/politica-cia/supremo-diz-que-justica-militar-nao-pode-julgar-civis-eu-acho-que-a-justica-militar-deveria-ser-extinta.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, João Paulo Fiuza da. Crimes militares praticados por civil contra as instituições militares estaduais. Competência para julgamento no direito brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3327, 10 ago. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22380. Acesso em: 20 abr. 2024.