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A perda automática do mandato de João Paulo Cunha (PT-SP) e o desprezo à Constituição: reflexões da Assembleia Nacional Constituinte

A perda automática do mandato de João Paulo Cunha (PT-SP) e o desprezo à Constituição: reflexões da Assembleia Nacional Constituinte

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A perda do mandato do parlamentar depende de deliberação da Casa respectiva, mesmo que a sentença expressamente declare a perda do mandato como efeito acessório da condenação.

1)Introdução

A controvérsia sobre a perda automática do mandato de congressista como efeito automático da condenação decorrede emendas mal-ajambradas na Constituinte. Consulta aos anais da Assembleia Nacional Constituinte demonstra a “lógica” que culminou na redação do dispositivo previsto no art. 55, §2, da CF – que condiciona a perda do mandato dos congressistas, nesse caso, à deliberação da Casa Legislativa a que pertencem.

 Há quem considere a redação do dispositivo um lapso do Constituinte.  Não se deu conta de que em dispositivos anteriores já estabelecera a suspensão dos direitos políticos como efeito automático da condenação. Segundo a norma que se extrai do art. 15, III, da CF: quem for condenado penalmente por decisão transitada em julgado terá suspensos seus direitos políticos. Já o art. 14, §3º, II, da CF, afirma que o gozo dos direitos políticos é condição para elegibilidade. Pela combinação dos dois preceitos, a condenação criminal, ao acarretar a suspensão dos direitos políticos, implicaria também – por tabela – a perda do mandato dos deputados federais ou senadores.  Não caberia à Casa Legislativa respectiva resolver sobre a perda. A sentença penal irrecorrível já teria, por força constitucional, eficácia constitutiva-negativa[i], fulminando o mandato eletivo desses parlamentares.

Essa é a corrente que ganha força no Supremo Tribunal Federal a partir do voto do ex-ministro Cezar Peluso no caso “mensalão”. Ao condenar o Deputado Federal João Paulo Cunha (PT-SP) pelos crimes de corrupção passiva e peculato; determinou a perda imediata do mandato.  Já o ministro Marco Aurélio, do STF, em declaração à imprensa, também aderiu à tese. Segundo Mello: “Um pronunciamento condenatório do Supremo fica submetido a uma condição resolutória, que seria a ótica em sentido contrário de uma das Casas do Parlamento? Creio que a resposta é negativa”.

Sob o ponto de vista jurídico, apesar do desprezo do dispositivo que condiciona a perda do mandato do parlamentar condenado por crime em decisão irrecorrível à deliberação da Casa respectiva, não há como aceitar a existência de duas normas jurídicas que atribuam os mesmos efeitos em relação a determinado fato. O princípio hermenêutico segundo o qual não há palavras inúteis no corpo legislativo cederia lugar à natureza das coisas. Não há como perder o mandato duas vezes. Além disso, sob pena de atentar contra a separação dos poderes; seria preciso, em caso de decisões conflitantes proferidas pelo Poder Legislativo e Judiciário, considerar qual delas prevaleceria.

No entanto, para a maioria da doutrina, o aparente conflito de normas é resolvido pelo conhecido critério da especialidade. O conflito entre os dispositivos da Constituição seria apenas aparente, pois cada um teria seu âmbito de aplicação adequado. A norma especial que privilegia os Parlamentares, ao prescrever que a perda do mandato por condenação criminal irrecorrível depende de deliberação da Casa Legislativa a que pertence, teria âmbito de aplicação restrito aos destinatários previstos na norma (deputados federais e senadores) – o qual não se confundiria com o âmbito de aplicação da norma geral destinada aos demais cidadãos, para os quais a suspensão dos direitos políticos é gerada pela condenação penal irrecorrível.

Esse é o entendimento de José Cretella Júnior, segundo o qual a perda do mandato do parlamentar depende de deliberação da Casa respectiva, mesmo que a sentença expressamente declare a perda do mandato como efeito acessório da condenação, conforme previsão expressa do artigo 92, do Código Penal. Segundo o autor[ii]: “[…] A pena de perda do mandato eletivo, porém, não pode ser aplicada, pois a suspensão dos direitos políticos é de natureza constitucional, escapando a incidência da lei ordinária”.

Esclarecida a controvérsia a partir do texto atual da Constituição, o que se busca, ao investigar a origem do dispositivo previsto na atual redação do art. 55,§2º, da CF, não é a vontade pura e simples do Constituinte como fundamento para a solução do problema. O objetivo é investigar se a norma especial não foi incluída por desleixo do Constituinte, que não se atentou ao fato de já ter estabelecido, em dispositivos anteriores do texto constitucional, normas com efeitos semelhantes. Só a prova cabal do descuido do Constituinte permitiria fazer vista grossa do dispositivo que condiciona a perda do mandato do parlamentar condenado criminalmente por decisão irrecorrível à deliberação de seus pares.


2)A Assembleia Nacional Constituinte: emenda do bem, remendo do mal

O projeto da Constituição de 1988 não previa, antes das sugestões populares e emendas, a hipótese de condenação criminal por decisão irrecorrível como hipótese de perda de mandato o parlamentar.

Entre as hipóteses de perda de mandato, havia a suspensão de direitos políticos, que abarcava a condenação penal irrecorrível. De fato, o gozo dos direitos políticos era condição para o exercício do mandato. Como a condenação criminal transitada em julgado implicava a suspensão dos direitos políticos, não havia mesmo razão para considerar a condenação criminal transitada em julgado como hipótese autônoma de perda do mandato dos parlamentares.  

Não obstante, um cidadão propôs sugestão de incluir como hipótese autônoma de perda do mandato do Parlamentar a condenação criminal transitada em julgado. O argumento era a desigualdade entre os cidadãos e os parlamentares. Enquanto o cidadão perderia automaticamente os direitos políticos em decorrência de condenação penal irrecorrível; o parlamentar, diante da mesma conduta,ficaria com os direitos políticos intactos, permanecendo no exercício do mandato – argumentou.

A sugestão tomou a forma de emenda, e foi apresentada pelo Constituinte Roberto Torres (PTB-AL)[iii],  sendo aprovada pela Comissão da Organização dos Poderes e Sistema de Governo. Segundo o parecer da Comissão, o objetivo de incluir a sentença penal irrecorrível como hipótese autônoma de perda do mandato: “[...]Se a Casa a que pertence o parlamentar permitir o processo, deve dar consequência aoresultado do julgamento”.

O fundamento adotado para a aprovação da emenda, além de nada provar, demonstra que os membros da Comissão ignoravam que a condenação penal irrecorrível já estava contida em hipótese prevista no texto constitucional de perda do mandato: suspensão dos direitos políticos.

Após a aprovação da emenda e sua sistematização, a redação do dispositivo ficou desse modo:

Art. 111 - Perderá o mandato o Deputado ou o Senador:

I- que infringir qualquer das proibições estabelecidas no artigo anterior;

II-cujo  procedimento  for  declarado incompatível com o decoro parlamentar;

III- que deixar de comparecer, em cada sessão legislativa, à terça parte das sessões ordinárias das Comissões e da  Casa  a  que pertencer, salvo  licença ou missão por esta autorizada;

IV- que perder ou tiver suspensos os direitos políticos;

V-quando  o  decretar  a  Justiça  Eleitoral, nos casos previstos em lei;

VI-que sofrer condenação criminal em sentença definitiva e irrecorrível.

4- Nos casos previstos nos itens IV, V e VI, a perda ou suspensão será declarada pela respectiva Mesa.

A redação do dispositivo, após a inserção da emenda, demonstra a ineficácia da alteração. Tanto a condenação criminal irrecorrível como a suspensão dos direitos políticos implicava a perda automática do mandato parlamentar, cabendo à Casa Legislativa a que pertencer o parlamentar apenas declarar o fato.


3)Assembléia Nacional Constituinte: a aprovação deliberada da emenda em favor dos parlamentares

Apesar da inofensiva emenda, debate no Plenário da Constituinte demonstra que os Parlamentares ficaram bastante receosos com sua aprovação. Segundo o deputado Nélson Carneiro, o parlamentar condenado por crime culposo, cuja conduta não demonstraria inaptidão para o exercício do mandato, poderia perder o mandato por decisão irrecorrível. Segundo o Constituinte[iv]: “[...] acho que isso é uma ameaça a todos os Deputados e Senadores que guiam automóveis nas grandes cidades e estão sujeitos a atropelar alguém e serem condenados por crime culposo, em sentença irrecorrível e definitiva [...]”Além disso, o Código Penal previa que os funcionários públicos só perderiam o cargo em caso de condenação superior a dois anos. Já os parlamentares, eleitos pelo povo, perderiam o mandato em caso de condenação por qualquer período.

 O argumento convenceu o Constituinte Antero de Barros (PMDB-MT), que propôs emenda no sentido de condicionar a perda do mandato do parlamentar à aprovação de seus pares na Casa Legislativa. Segundo afirmado no relatório do parecer dessa emenda: “[...]algumas condutas, mesmo sendo objeto de condenação criminal, não incidem, moral ou politicamente, no exercício do mandato[...]”[v] . A emenda foi aprovada, e a condenação criminal irrecorrível de parlamentar passou a depender de aprovação da Casa Legislativa para implicar a perda do mandato do parlamentar.


4) Conclusão

A consulta aos anais da Constituinte demonstra que o dispositivo previsto no art. 55, § 2º, da CF, foi instituído de forma deliberada pelo Poder Constituinte. O objetivo era proteger os parlamentares contra a perda automática do mandato em caso de decisão penal irrecorrível.

Não há por que desconsiderar a aplicação da norma que se extrai desse dispositivo com base em argumento calcado no princípio da separação dos poderes ou no fato de que há casos em que a relação entre o crime e o mandato é tão estreita que dispensaria a apreciação do Parlamento. Os dois argumentos padecem do mesmo mal, desrespeitando as regras do raciocínio jurídico. Segundo Carl Schimitt[vi], a discussão meta-jurídica depende de um vazio normativo. Só quando a norma não oferece solução, devemos pular para as Instituições, para o decisionismo ou para a racionalidade sistemática do ordenamento jurídico.


Notas

[i] MIRANDA, Pontes. Comentários à Constituição Federal de 1967, tomo III, arts. 34-112. São Paulo: RT, p. 41.

[ii] CRETELLA JÚNIOR, José. Comentários à Constituição Brasileira de 1988, vol. V, arts. 38- 91. Rio de Janeiro: Forense, p. 2664

[iii] Emenda: 00244, apresentada no dia 09/06/1987, cf.: <http://www2.camara.gov.br/atividade-legislativa/legislacao/Constituicoes_Brasileiras/constituicao-cidada/publicacoes/anais-da-assembleia-nacional-constituinte>, acesso 04/09/2012.

[iv] Reunião do plenário da Constituinte ocorrida em 1987, tópico encontrado em:  .: <http://www2.camara.gov.br/atividade-legislativa/legislacao/Constituicoes_Brasileiras/constituicao-cidada/publicacoes/anais-da-assembleia-nacional-constituinte>, acesso 04/09/2012.

[v] Emenda: 01895, apresentada em 13/01/1988, cf.: <http://www2.camara.gov.br/atividade-legislativa/legislacao/Constituicoes_Brasileiras/constituicao-cidada/publicacoes/anais-da-assembleia-nacional-constituinte>, acesso 04/09/2012.

[vi] MACEDO JÚNIOR, Ronaldo Porto. Carl Schmitt e a fundamentação do direito.

São Paulo: São Paulo: Saraiva, p. 57.



Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CASTRO, João Paulo Rodrigues de. A perda automática do mandato de João Paulo Cunha (PT-SP) e o desprezo à Constituição: reflexões da Assembleia Nacional Constituinte. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3354, 6 set. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22568. Acesso em: 23 abr. 2024.