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A existência de unidades de conservação federais como limite ao poder de disposição espacial dos Municípios no plano diretor

A existência de unidades de conservação federais como limite ao poder de disposição espacial dos Municípios no plano diretor

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O Município não pode, no seu plano diretor, efetuar a livre disposição do seu território, por não ter competência para tanto, uma vez que a existência de unidades de conservação federais lhe impele a observar e se adequar às políticas nacionais sobre o meio ambiente.

Resumo: O Município não pode, no seu plano diretor, efetuar a livre disposição do seu território, por não ter competência para tanto, uma vez que a existência de unidades de conservação federais lhe impele a observar e se adequar às políticas nacionais sobre o meio ambiente.


A conservação da natureza e a defesa do meio ambiente são matérias de competência comum da União, dos Estados, dos Municípios e do Distrito Federal. O ambiente natural que, por essência, envolve aspectos inerentes à dispersão do homem pelo território, acaba por ter pontos de intersecção com outras competências a exemplo da utilização de recursos hídricos, do parcelamento do solo ou da política de expansão urbana das cidades.

Não é incomum a sobreposição de atribuições de entes federados sobre um mesmo assunto. No particular, convém se aproximar da distribuição constitucional das competências em matéria ambiental, destacando, em especial, a existência de unidades de conservação, que são espaços especialmente protegidos em razão de sua importância, como instrumentos de proteção do ambiente.

Com efeito, a Constituição, ao mesmo tempo em que erigiu no seu art. 225 o ambiente sadio como um macrobem que “não está na disponibilidade particular de ninguém, nem da pessoa privada nem da pessoa pública”[1], criou instrumentos para tutelá-lo, conforme incisos do art. 225, § 1º da Constituição Federal, in verbis:

“Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá- lo para as presentes e futuras gerações.

§ 1º - Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público:

I - preservar e restaurar os processos ecológicos essenciais e prover o manejo ecológico das espécies e ecossistemas;

II - preservar a diversidade e a integridade do patrimônio genético do País e fiscalizar as entidades dedicadas à pesquisa e manipulação de material genético;

III - definir, em todas as unidades da Federação, espaços territoriais e seus componentes a serem especialmente protegidos, sendo a alteração e a supressão permitidas somente através de lei, vedada qualquer utilização que comprometa a integridade dos atributos que justifiquem sua proteção;

IV - exigir, na forma da lei, para instalação de obra ou atividade potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente, estudo prévio de impacto ambiental, a que se dará publicidade;

V - controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente;

VI - promover a educação ambiental em todos os níveis de ensino e a conscientização pública para a preservação do meio ambiente;

VII - proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade”

Se todos os instrumentos de proteção ao meio ambiente – o licenciamento ambiental, a existência de unidades de conservação, a preservação da integridade do patrimônio genético etc – são veiculados em regras constitucionais, não há hierarquia entre eles: todos têm a mesma dignidade constitucional. De outro lado, se esses mesmos instrumentos visam assegurar a efetividade do direito ao meio ambiente sadio, devem ser conjugados de maneira que um não se sobreponha a outro, desvirtuando seu intuito principal que é defesa do ambiente natural.

Nesse contexto, a gestão das unidades de conservação devem observar as regras de direito administrativo, sob pena de um ente federado esvaziar a competência do outro. No caso brasileiro, a distribuição de competências faz prevalecer sempre as regras federais sobre as estaduais e municipais e as regras mais restritivas sobre as regras mais benéficas.

No plano federal, incumbe ao Instituto Chico Mendes da Conservação da Biodiversidade – ICMBio incumbe, principalmente, a execução das ações da política nacional das unidades de conservação federais, conforme reza o art. 1º, I da Lei nº 11.516/2007, in verbis:

“Art. 1º  Fica criado o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade - Instituto Chico Mendes, autarquia federal dotada de personalidade jurídica de direito público, autonomia administrativa e financeira, vinculada ao Ministério do Meio Ambiente, com a finalidade de:

I - executar ações da política nacional de unidades de conservação da natureza, referentes às atribuições federais relativas à proposição, implantação, gestão, proteção, fiscalização e monitoramento das unidades de conservação instituídas pela União;”

Por outro lado, a Constituição Federal remete ao plano diretor, cuja elaboração é de competência dos Municípios, a disciplina da política de desenvolvimento urbano das cidades:

“Art. 182. A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem- estar de seus habitantes.

§ 1º - O plano diretor, aprovado pela Câmara Municipal, obrigatório para cidades com mais de vinte mil habitantes, é o instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana. (...)”

No entanto, segundo a Constituição, o planejamento e controle do uso, parcelamento e ocupação do solo, é matéria atribuída indicativamente aos Municípios apenas “no que couber”, consoante art. 30 da CF, in verbis:

“Art. 30. Compete aos Municípios:

(...)

VIII - promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano; (...)”

A Constituição Federal, portanto, não deu competência aos Municípios para dispor, livremente, sobre o zoneamento, o uso e ocupação do solo urbano ou mesmo a “gestão compartilhada” de uma unidade de proteção integral instituída pela União. Destarte, se o plano diretor ou qualquer lei municipal que se arvore a disciplinar áreas especialmente protegidas pela legislação federal serão, a toda evidência, inconstitucionais.

Em primeiro lugar, o plano diretor do Município de Itatiaia não pode traçar regras sobre o território nacional porque não se trata de zona urbana. Em áreas rurais, os Municípios somente têm o poder de aprovar alterações do uso do solo rural para fins urbanos, por força do art. 53 da Lei nº 6.766/79, in litteris:

“Art. 53 - Todas as alterações de uso do solo rural para fins urbanos dependerão de prévia audiência do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária - INCRA, do Órgão Metropolitano, se houver, onde se localiza o Município, e da aprovação da Prefeitura Municipal, ou do Distrito Federal quando for o caso, segundo as exigências da legislação pertinente”.

No mesmo sentido, o item 2.2 da Instrução Normativa nº 17-b do INCRA:

“2. PARCELAMENTO, PARA FINS URBANOS, DE IMÓVEL RURAL LOCALIZADO EM ZONA URBANA OU DE EXPANSÃO URBANA

-912322555.  O parcelamento, para fins urbanos, de imóvel rural localizado em zona urbana ou de expansão urbana, assim definidas por lei municipal, rege-se pelas disposições da Lei n.º 6.766, de 19/12/79, e das legislações estaduais e municipais pertinentes.

2.2 Em tal hipótese de parcelamento, caberá ao INCRA, unicamente, proceder, a requerimento do interessado, à atualização do cadastro rural, desde que aprovado o parcelamento pela Prefeitura Municipal ou pelo Governo do Distrito Federal, e registrado no Registro de Imóveis” (grifo nosso).

Outrossim, o art. 4º do Estatuto das Cidades, instrumentalizando a política de desenvolvimento urbano, estipulou aos Municípios o dever de observância de “planos nacionais, regionais e estaduais de ordenação do território e de desenvolvimento econômico e social” e ao “planejamento das regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões”. São matérias, portanto, que subordinam o poder legislativo municipal em prol do macroplanejamento sobre o território nacional, afinal a solução para muitos problemas como a captação de água, o depósito de lixo, transporte urbano ou poluição transcende os limites políticos de um Município. Daí a necessidade, no Estado Federal, da observância.

No mesmo sentido, o art. 9º da LC nº 140/2011 previu, como ações administrativas dos Municípios, no exercício da competência comum de proteção ao meio ambiente, “executar e fazer cumprir, em âmbito municipal, as Políticas Nacional e Estadual de Meio Ambiente e demais políticas nacionais e estaduais relacionadas à proteção do meio ambiente”, “promover a integração de programas e ações de órgãos e entidades da administração pública federal, estadual e municipal, relacionados à proteção e à gestão ambiental”, bem como “elaborar o plano diretor, observando os zoneamentos ambientais”.

Por sua vez, a Resolução nº 34, de 1º de julho de 2005 do ConCIDADES, que traz parâmetros para a elaboração dos planos diretores municipais, assim dispõe em relação às zonas especiais:

“Art. 1º O Plano Diretor deve prever, no mínimo,

(...)

III – os objetivos, temas prioritários e estratégias para o desenvolvimento da cidade e para a reorganização territorial do município, considerando sua adequação aos espaços territoriais adjacentes. (...)”

Art. 5º. A instituição das Zonas Especiais, considerando o interesse local, deverá:

(...)

II – demarcar os territórios ocupados pelas comunidades tradicionais, tais como as indígenas, quilombolas, ribeirinhas e extrativistas, de modo a garantir a proteção de seus direitos;

(...)

VII – demarcar as áreas de proteção, preservação e recuperação do meio ambiente natural e construído, do patrimônio cultura, histórico, artístico, paisagístico e arqueológico. (...)”

Diante desse arcabouço legal, o Procurador Federal Henrique Varejão, já havia concluído, no Parecer nº 19/2012, que “o zoneamento específico dessas áreas dar-se-á de acordo com o regime jurídico específico que a acolha: se unidade de conservação, pelo plano de manejo, conforme previsão do SNUC; se terra indígena, pelo regime indigenista sob a gestão da Funai; se quilombola, pela criação de um território quilombola pelo Incra; se população tradicional, pela criação de uma unidade de conservação de uso sustentável ou mesmo pela criação de projetos de desenvolvimento sustentável por parte dos diversos entes federativos. Mas o que é preciso ficar assente é que essas áreas gozam de regime jurídico específico, que limita a competência municipal para dispor sobre a ocupação do solo”.

Mesmo assim, é possível que, em alguns dos milhares do Municípios brasileiros, leis municipais pretendam disciplinar a gestão de territórios sob a tutela federal. Nestes casos, a inconstitucionalidade, em abstrato, somente poderá ser arguida, perante a Constituição Federal, por meio de ação de descumprimento de preceito fundamental, que pode ser proposta pelo Advogado-Geral da União. Ou então perante a Constituição do Estado, já que as regras de competência são de repetição obrigatória, embora as autoridades federais não sejam legitimadas a questionar a lei, no Tribunal de Justiça, o que dependerá da interlocução com autoridades locais, a exemplo do Governador ou do Procurador-Geral de Justiça.

Enfim, esse arquétipo é o que melhor harmoniza as políticas e ações administrativas, evitando a sobreposição de atuação entre os entes federativos, de forma a evitar conflitos de atribuições e garantir uma atuação administrativa eficiente, que constituem um dos objetivos fundamentais da União e dos Municípios no exercício da competência comum, conforme preceitua o art. 3º, III da LC nº 140/2011.


Nota

[1]     SILVA, José Afonso. Direito ambiental constitucional. 8ª ed., São Paulo: Malheiros, 2010, p. 52.


Autor


Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALMEIDA, Ricardo Marques de. A existência de unidades de conservação federais como limite ao poder de disposição espacial dos Municípios no plano diretor. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3526, 25 fev. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/23785. Acesso em: 19 abr. 2024.