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Perspectivas brasileiras para uma regulação estatal da publicidade de alimentos

Perspectivas brasileiras para uma regulação estatal da publicidade de alimentos

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Apesar de juristas, legisladores e setores da sociedade civil proporem meios normativos de regulamentação publicitária mais precisos, existe uma forte resistência dos setores que prezam pelo sucesso financeiro das indústrias de alimentos.

Resumo: O presente artigo trata da legitimidade e da legalidade de uma regulação estatal da publicidade infantil de alimentos, tendo em vista que o anúncio de produtos deste gênero está ligado à elevação nas taxas de obesidade infantil. Através de uma revisão bibliográfica de livros, artigos e textos legais, o estudo aborda o tema a partir de pontos distintos, mas complementares: primeiramente, analisamos a vulnerabilidade da criança frente aos comerciais e os meios existentes para protegê-las; em seguida, apresentamos evidências da relação entre publicidade infantil e o mau comportamento alimentar das crianças, algo que aumenta as taxas de obesidade. Conclui-se que tais pontos são fundamentos para uma regulação governamental da publicidade de alimentos no Brasil, sobretudo aqueles destinados ao público infantil.

Palavras-chave: Direito do Consumidor; Publicidade de Alimentos; Obesidade Infantil; Regulamentação Estatal.

Sumário: 1. Introdução; 2. Consumo e Publicidade – evolução histórica; 3. Criança – sua vulnerabilidade e a necessidade de proteção jurídica frente à publicidade comercial; 4. Obesidade infantil e Publicidade; 5. A regulamentação publicitária nos países desenvolvidos; 6. Perspectivas Brasileiras para uma Regulação Estatal da Publicidade de Alimentos; 7. Conclusão.


1. Introdução

A Organização Mundial da Saúde afirma que, atualmente, as doenças e agravos não transmissíveis (DANT) – dentre elas: doenças cardiovasculares, câncer, diabetes e obesidade – consistem em grave problema para saúde humana e para o desenvolvimento sócio-econômico dos países (OMS, 2010, p. 4). Além da elevada morbidade proveniente dessas patologias, a maioria das mortes causadas por elas são prematuras e poderiam ser evitadas. No mundo, elas já são responsáveis por mais de 60% das mortes, fundamentando uma atuação a nível global no plano normativo e de saúde pública (WHO, 2006, p. 3).

A obesidade está entre as DANT que mais vêm ampliando sua incidência na população mundial. Estima-se que os gastos públicos com a enfermidade consumam de 2% a 7% dos orçamentos de saúde nos países desenvolvidos (FERREIRA, 2006, p. 71). A própria OMS a considera como a epidemia global do século XXI, havendo estimativas de que quase 50% da população mundial será obesa em 2025. Os números são preocupantes, pois a obesidade, patologia que pode ser evitada, consiste em fator de risco para inúmeras outras DANT, dentre elas as doenças cardiovasculares e o câncer, as duas campeãs em mortalidade.

A obesidade afeta pessoas de todas as faixas etárias, inclusive a infantil. No Brasil, estima-se que a patologia afete 15% das crianças, sabendo-se que o sobrepeso já se encontra presente em 30% da população infantil brasileira (HENRIQUES, 2010, p. 75), índices que se elevam a cada ano. A obesidade infantil não só está relacionada com maiores riscos de obesidade e outras DANT na vida adulta, mas também com problemas imediatos (OMS, 2010, p.4), como resistência a insulina, hipertensão, alergias e distúrbios de ordem psicológica e social.

A OMS tem por conclusivo que a publicidade de alimentos dirigida às crianças é um dos pontos centrais a serem considerados na luta contra a obesidade infantil, entendendo que: (a) a maioria dos anúncios destinados a esse público é de alimentos ricos em gordura, açúcar ou sódio; (b) o público infantil é vulnerável à capacidade persuasiva da publicidade comercial. No ano de 2004, a OMS, em conjunto com a Assembléia Mundial da Saúde (AMS), direcionou seus esforços para a necessidade dos países membros criarem ou aperfeiçoarem os meios regulatórios da publicidade voltada para as crianças. Atendendo recomendações desses órgãos, governos de diversos países têm criado diferentes mecanismos regulatórios (GOMES, 2011, p. 48), de modo a restringir ou excluir o conteúdo publicitário destinado às crianças.

Na realidade brasileira, onde as crianças são recordistas mundiais em número de horas diante da TV – 4 horas e 54 minutos (HENRIQUES, 2010, p. 72) – a tentativa de regulação da publicidade infantil de alimentos tem sido tema de inúmeras polêmicas, dentre elas a suspensão da RDC nº 24/2010 da Anvisa1 dias após sua entrada em vigor, além da dificuldade de tramitação de projetos de lei de conteúdo regulatório que circulam na Câmara e no Senado. Comparado a outras democracias, o Brasil é caracterizado por ser extremamente liberal quanto à regulação da prática publicitária. Apesar de seu sistema jurídico considerar a vulnerabilidade da criança frente aos anúncios comerciais e determinar a sua proteção integral, possibilitando a regulação da publicidade, não existem dispositivos legais específicos que orientem a aplicação das restrições. Quando esses tipos de dispositivos são propostos, esbarram nos interesses das indústrias de alimentos e bebidas não alcoólicas e das agências publicitárias, setores do mercado responsáveis por altos e sempre crescentes faturamentos.

O CONAR (Conselho Nacional de Autorregulação Publicitária), órgão de controle constituído pelas próprias empresas, tem se posicionado contra qualquer tipo de regulamentação legal à publicidade. Para o conselho, a atividade de autorregulação já seria suficiente para um controle efetivo do conteúdo abusivo que emanem dos anúncios publicitários. Além disso, costumam utilizar o termo “liberdade de expressão comercial” para alegar que a atividade da publicidade comercial deve ser considerada como direito fundamental, e restringi-la seria atentar contra os princípios de um Estado democrático de Direito.

No extremo oposto, a sociedade civil tem se organizado no sentido de buscar meios de comprovar a legitimidade e a legalidade da regulação publicitária no Brasil. No que se refere à legitimidade, uma gama de estudos científicos têm sido utilizados não apenas para demonstrar os efeitos deletérios que uma alimentação inadequada provoca na infância, mas também para revelar o quanto as crianças são influenciáveis pelos anúncios publicitários.

A legalidade de uma regulação estatal da publicidade infantil é fundamentada em diferentes documentos legais brasileiros, dos quais se destacam a Constituição Federal, o Código de Defesa do Consumidor e o Estatuto da Criança e do Adolescente. Esses diferentes textos normativos são tidos, por muitos, como motivadores da produção de normas que venham a regular de forma específica a publicidade comercial. Com base nisso, diferentes mecanismos legais estão sendo desenvolvidos com o objetivo de realizar tal regulação, seja direta ou indiretamente. São eles: (a) projetos de lei do Congresso Nacional; (b) a RDC nº 24/2010 da ANVISA; e (c) o Marco Regulatório das Comunicações que está sendo amplamente discutido pela sociedade brasileira.

O presente estudo objetiva analisar os aspectos relacionados com a legitimidade e a legalidade de uma regulação estatal da publicidade de alimentos no Brasil. No que concerne à legitimidade, serão utilizados fundamentações científicas que demonstram a fragilidade da criança frente aos anúncios publicitário, bem como as graves conseqüências da obesidade infantil. A legalidade, por sua vez, será abordada com base em documentos legais, publicações de especialistas do meio jurídico, pareceres, projetos de lei, artigos científicos e livros.


2.Consumo e Publicidade – evolução histórica

O século XVIII vivenciou céleres modificações sociais e econômicas nunca antes vistas na história da humanidade. Até então, as comunidades produziam o suficiente para suprir suas necessidades e a sua organização social e político-econômica era inteiramente baseada na produção artesanal, agrícola e feudal (LIMA, 2010, p. 1687). As famílias formavam uma mesma unidade econômica de produção (TOFFLER, 2005), sendo constituídas por uma variedade de indivíduos de diferentes gerações, o que permitia a divisão interna de trabalho.

Quando, em 1767, o escocês James Watt aperfeiçoou a máquina a vapor e a introduziu nas fábricas de tecidos, o mundo conheceu um ritmo de produção extremamente eficaz (LISBOA, 2011,p. 3). Este foi o marco da Revolução Industrial, que teve como primeiro grande impacto a enorme aceleração do ritmo de produção. Não havia mais espaço para o retrógrado modelo de produção agrária artesanal. Deste modo, ocorreu um intenso movimento migratório que levou as populações rumo aos centros urbanos industriais, modificando definitivamente uma série de paradigmas até então vigentes.

O trabalho, que antes era desempenhado conjuntamente pela família “dentro de casa” seria agora executado nas fábricas. Talvez seja esse o primeiro impacto sentido na estrutura familiar: de indivíduos que agiam cooperadamente visando à sobrevivência comum, passaram a ser sujeitos que se encontram nos horários de folga do trabalho. Surge a família monoparental (formada por pai, mãe e filhos, apenas; e não mais primos, tios e avós).

O desenvolvimento tecnológico seguiu em ritmo intenso. Em breves exemplos: a produção de algodão para fiação aumentou doze vezes nos trinta anos seguintes à introdução da máquina de tear; a produção do carvão decuplicou em quarenta anos; a de ferro gusa cresceu quase vinte vezes, em cinqüenta anos (LISBOA, 2011, p. 3). O resultado disto: uma grave crise provocada por considerável excedente de bens, devido uma produção que superava o consumo. Assolini (2008, p. 3) expõe que a saída dessa crise estaria na estimulação das compras; em deixar o consumo superar a produção. Mas como isso ocorreria de modo efetivo?

Eis que se implanta na sociedade o hábito de consumo, fundamentado em uma lógica: diferente dos tempos remotos, onde um indivíduo pobre terminaria seus dias sem possibilidade de ascender socialmente, a era industrial permitiria que as pessoas pudessem obter o sonhado status. Para isso, bastaria adquirir os “bens de luxo” que estavam sendo barateados pela produção em massa. É o surgimento da publicidade comercial, tal como conhecemos hoje. Seu objetivo fundamental foi criar nas mentes dos indivíduos o que Cristóvão Buarque (1990) chamou de “ânsia consumista”, que seria o impulso de comprar algo não por necessidade, mas por desejo; a crença de que, deste modo, o sujeito será reconhecido socialmente; o grande domínio do ter sobre o ser. Este foi o cerne da publicidade comercial: criar o hábito de se adquirir os excedentes da produção.

Nas palavras de Ana Karmen Lima (2010, p. 1688):

“Nesse intenso e complexo processo, há a coisificação do homem. O cidadão perde tal qualidade para se transformar em simples receptor da demanda empresarial. Acarreta, ainda, a discriminação social, pelos “estilos de vida” que são criados, o incentivo ao desperdício e ao descartável, banalizando valores e esvaziando o sentido das coisas. O ato de consumir se exaure como um ato completo de significado, sem se cogitar do que ou para o que se consome. A produção e os serviços não se baseiam nas necessidades individuais, mas na possibilidade de lucro”.

Para fins de desenvolvimento deste trabalho, é necessário diferenciar os conceitos de publicidade comercial, publicidade (não adjetivada) e propaganda. Conforme a diferenciação de Vidal Nunes (2008, p. 275):

a) Publicidade Comercial: atividade desenvolvida para fomentar o consumo, seduzindo o consumidor para a aquisição de determinado produto ou serviço;

b) Publicidade: meio pelo qual o Estado dá transparência às suas decisões e informa a população;

c) Propaganda: visa a divulgação de idéias, teorias e princípios.

Portanto, a publicidade comercial não tem cunho ideológico ou político, sendo considerada mero instrumento da atividade econômica.

A indústria da publicidade é responsável por aproximadamente 1% do PIB mundial – movimentou aproximadamente US$ 582 bilhões em 2009, segundo informações do Banco Mundial (BM – Banco Mundial, 2010). De todos os países do mundo, o Brasil é o terceiro que mais investe em publicidade, fato que proporciona grande poder econômico aos grupos que atuam na área.

Verifica-se hoje que parte considerável dos recursos destinados a publicidade são investidos em comerciais infantis, fato verificado também no Brasil, onde 250 milhões de dólares são movimentados. Mas por que as crianças, que não costumam ter independência para realizar grandes compras, estão sendo alvos da publicidade comercial? É o que veremos no tópico que se segue.


3. Criança – sua vulnerabilidade e a necessidade de proteção jurídica frente à publicidade comercial

No mundo, o consumo infantil gera lucros de cerca de US$ 15 bilhões por ano e o poder de persuasão das crianças nas compras dos adultos aproxima-se de US$600 bilhões (SANTOS, 2007, p. 6). Isso se explica pelo fato das crianças influenciarem cerca de 80% do consumo doméstico, seja de produtos infantis ou não. Quando as agências de publicidade direcionam sua atenção aos meninos e meninas, estão interessados tanto no seu poder de influência quanto no fato de que eles serão o público consumidor de amanhã. Promover a fidelidade dos pequenos a uma marca é garantir que eles tenham preferência por seus produtos no futuro.

A sociedade pós-moderna é marcada pelo distanciamento nas relações sociais, inclusive dentro da família. Enquanto os pais estão ausentes durante grande parte do dia, as crianças ficam cada vez mais expostas aos meios de comunicações, dentre os quais, a TV encontra-se em primeiro lugar. Como dito anteriormente, a criança brasileira é a campeã mundial em horas diante da telinha: são quase cinco horas dedicadas a ela, número superior ao da quantidade de horas diárias que passam nas escolas (apenas quatro). Para 80% das crianças, assistir TV é a principal atividade de lazer (HENRIQUES, 2010, p. 73). Essa situação torna-se mais drástica se considerarmos que a criança tem uma vulnerabilidade natural frente aos anúncios publicitários. Pesquisas comprovam que bastam apenas 30 segundos para uma marca influenciar uma criança (ASSOLINI, 2008, p. 7).

Algumas características básicas tornam a criança altamente influenciável pelos produtos expostos diante de si. Sabe-se que até os oito anos elas não têm capacidade de distinguir a publicidade do conteúdo de programação televisiva. Até os 12 anos não são capazes de compreender o caráter persuasivo dos anúncios comerciais. Sobre essas características é que agem as técnicas de marketing que são dirigidas às crianças: seduzem-nas através de elementos conhecidos do seu cotidiano. Cenários, personagens e roteiros são provenientes do seu mundo íntimo, que transita entre o real e o imaginário, o que facilmente acaba por despertar nelas o desejo pelos produtos anunciados (RODRIGUES, 2007).

A pesquisadora Corinna Hawkes, em estudo comissionado pela OMS, avaliou os mecanismos regulatórios de mais de 70 países, demonstrando ao final que a maioria das regulamentações publicitárias das nações estudadas reconhece as crianças como um grupo especial que necessita de considerações específicas e estipula que a publicidade não deve ser prejudicial ou exploradora da sua credulidade (HAWKES, 2006, p.35).

O ordenamento jurídico brasileiro, ao mesmo tempo em que reconhece a fragilidade do público infantil frente aos anúncios comerciais, carece de mecanismos mais precisos voltados à efetivação de seus dispositivos legais, o que acaba por provocar um distanciamento do que a lei expressa e de como sociedade se comporta (neste caso: de como a publicidade comercial se difunde pelos meios de comunicação sem encontrar limites significativos à sua prática).

A Constituição Federal de 1988 elenca no caput do seu artigo 227:

Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

Alguns elementos importantes podem ser retirados das linhas supracitadas, com o fim de desenvolvermos a linha teórica deste estudo: (a) o Poder Constituinte direciona o dever de cuidado das crianças e adolescentes não apenas à família, entendendo que a sociedade e o próprio Estado têm um papel indispensável no seu desenvolvimento; (b) a menção à “absoluta prioridade” demonstra a primazia que esta faixa etária possui no que se refere à proteção de seus interesses; (c) expõe que não será admitida qualquer forma de exploração.

O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), Lei nº 8.069 de 1990, reforça o caráter prioritário que têm as crianças e os adolescentes, sabendo-se que a sua condição peculiar como pessoas em desenvolvimento deve ser respeitada acima de tudo. O ECA, porém, não disciplina a publicidade de forma específica.

O Código de Defesa do Consumidor (CDC), Lei nº 8.078 de 1990, é mais preciso sobre como disciplinar a questão. Em seu artigo 37, § 2º, ele explicita que é inadmissível a publicidade que se aproveite da deficiência de julgamento da criança, assim como a que é capaz de induzi-la a se comportar de forma prejudicial à sua saúde.

CDC, art. 37, § 2° É abusiva, dentre outras a publicidade discriminatória de qualquer natureza, a que incite à violência, explore o medo ou a superstição, se aproveite da deficiência de julgamento e experiência da criança, desrespeita valores ambientais, ou que seja capaz de induzir o consumidor a se comportar de forma prejudicial ou perigosa à sua saúde ou segurança (grifou-se).

O modelo brasileiro de regulamentação à atividade publicitária é centrado na auto-regulação, mecanismo de controle realizado pelas próprias empresas do ramo publicitário. O Código Brasileiro de Autoregulamentação Publicitária discorre sobre os interesses de crianças e adolescentes e informa que “nenhum anúncio publicitário dirigirá apelo imperativo de consumo diretamente à criança”, conforme previsão do artigo 37:

Art. 37, II - Quando os produtos forem destinados ao consumo por crianças e adolescentes seus anúncios deverão:

a. procurar contribuir para o desenvolvimento positivo das relações entre pais e filhos, alunos e professores, e demais relacionamentos que envolvam o público-alvo;

b.respeitar a dignidade, ingenuidade, credulidade, inexperiência e o sentimento de lealdade do público-alvo;

c. dar atenção especial às características psicológicas do público-alvo, presumida sua menor capacidade de discernimento;

d. obedecer a cuidados tais que evitem eventuais distorções psicológicas nos modelos publicitários e no público-alvo;

e. abster-se de estimular comportamentos socialmente condenáveis.”

(grifou-se)

Apesar de estar compatível com a CF, ECA e CDC, questões inerentes à própria concepção do CONAR impede que estes dispositivos sejam realmente efetivos. A primeira delas é que a adesão ao conselho é optativa, ou seja, o CONAR não envolve todas as agências de publicidade ou veículos de comunicação do país2. Em segundo lugar, por ser um conselho de iniciativa privada, o CONAR não tem o poder coativo que possui o Estado. Em decorrência disto as decisões tomadas por tal Conselho não são sancionadoras (SILVA, 2011, p. 5). Dentre advertências e recomendações, nada garante que o anúncio que fira dispositivos legais seja retirado de circulação e, muito menos, que exista responsabilização civil ou criminal. Mariana Ferraz, representante do IDEC (Instituto de Defesa do Consumidor), relatou que publicitários entrevistados por uma pesquisa do Instituto comentaram um método eficiente para burlar o CONAR: transmitem as mensagens de publicidade potencialmente agressivas na sexta feira à noite (ou na véspera de feriados prolongados), sendo que o CONAR só retornará às suas atividades na segunda feira, dia em que a mensagem é retirada do veículo de comunicação. Deste modo, a publicidade já causou seus efeitos persuasivos no público, e o CONAR nada poderá fazer (relato proferido em Audiência Pública realizada na CDEIC em 18/06/2009, que tratou do PL 5.921/2001).

Enquanto não são criados mecanismos regulatórios que coloquem em prática o que prediz a CF e outras tantas normas existentes no sistema jurídico brasileiro, as crianças permanecem expostas aos efeitos nocivos que a publicidade comercial é capaz de provocar em seu desenvolvimento. E esses efeitos não são poucos: ampliação do consumismo, erotização precoce, a violência pela busca de produtos caros ou de marcas conhecidas, o materialismo excessivo, o desgaste das relações sociais e, por fim, o aumento da incidência de obesidade infantil (HENRIQUES, 2009, p. 3), que será especificado no próximo tópico.


4. Obesidade Infantil e Publicidade

A prevalência de doenças e agravos não transmissíveis vem aumentando e, no Brasil, é a principal causa de óbito em adultos. Dentre os fatores que desencadeiam as patologias categorizadas como DANT, a obesidade se destaca.

Segundo a OMS, a obesidade é uma doença crônica definida como um acúmulo excessivo de tecido adiposo num nível que compromete a saúde dos indivíduos. A obesidade é capaz de provocar prejuízos fisiológicos na maioria dos órgãos e sistemas, dentre eles variados tipos de câncer e doenças cardiovasculares, ambos geradores de altos índices de mortalidade. Em termos gerais, a patologia não é apenas responsável por provocar outras doenças, mas também por reduzir a qualidade e a quantidade de vida. Ela compromete a socialização dos indivíduos obesos e, finalmente, gera custos excessivos na saúde pública.

Informações do Sistema Único de Saúde indicam que os custos totais com a hospitalização de obesos foram de 3,02% para homens e de 5,83% para mulheres (MELO, 2011). Sabe-se, porém, que a obesidade é capaz de provocar inúmeros danos indiretos, principalmente quando interage com outras doenças, dificultando a aferição precisa do seu custo real, estando o obeso internado ou não. De qualquer modo, estudos têm concluído que a obesidade é um importante motivo de internação, que ela tem custo total bastante significativo e que gera prejuízos sociais, na medida em que reduz os dias trabalhados dos sujeitos que sofrem da doença. A saúde pública, que passa por uma profunda crise mundial (conseqüência dos altos custos necessários para o atendimento de uma população que envelhece cada dia mais, gerando quadros clínicos cada vez mais complexos), se vê sobrecarregada com doenças que na maioria das vezes poderiam ser evitadas, como é o caso da obesidade.

A prevenção e o diagnóstico precoce da obesidade são formas de abordagem importantes para a redução de sua incidência. Para que se tornem efetivas, essas abordagens devem ser empregadas desde a infância, pois hábitos saudáveis implantados nos primeiros anos de vida tendem a ser mais definitivos. A despeito disto, a incidência da obesidade infantil aumenta progressivamente, comprometendo a qualidade da saúde dos homens e mulheres do futuro.

A prevalência de obesidade infantil vem apresentando um rápido aumento nas últimas décadas, sendo caracterizada como uma verdadeira epidemia mundial (OLIVEIRA, 2003, p. 107). No Brasil, a obesidade infantil, seguindo essa tendência, tem progredido rapidamente. Estima-se que a patologia afete 15% das crianças, sabendo-se que o sobrepeso já se encontra presente em 30% da população infantil brasileira (HENRIQUES, 2010, p. 75)3. A obesidade infantil não só está relacionada com maiores riscos de obesidade e outras DANT na vida adulta, mas também com problemas imediatos (OMS, 2010, p. 4), como resistência a insulina, hipertensão, alergias e distúrbios de ordem psicológica e social4. Na saúde pública brasileira, os custos econômicos da obesidade na infância são extremamente significativos: Entre os anos de 1979 e 1981, o custo anual de hospitalização relacionado à obesidade em crianças e adolescentes foi de equivalentes 35 milhões de dólares. Entre 1997 e 1999, este custo apresentou um aumento significativo, atingindo 127 milhões de dólares (MELO, 2011). Atualmente, com base no progressivo aumento de incidência da obesidade na população infantil, há uma tendência de custos cada vez mais elevados, prejudicando a qualidade do sistema de saúde.

Há muito se sabe que a obesidade envolve uma interação complexa entre o corpo e o alimento. Hoje, porém, sabe-se que o fator social é elemento integrador dessa relação, interferindo no desenvolvimento da patologia. “A globalização, o consumismo, a necessidade de prazeres rápidos e respostas imediatas contribuem para o aparecimento da obesidade como uma questão social” (BRASIL – SUS, 2006). A própria OMS reconhece que as políticas de prevenção baseadas apenas na questão biológica da doença não têm eficácia significativa. Verificando os fatores circundantes que são co-causadores da obesidade, especialistas de diversos países identificaram na publicidade comercial um alto potencial agressivo para a saúde das crianças, perpassando dois pontos: (a) o seu conteúdo; (b) o alto poder persuasivo que provocam em meninos e meninas.

Quanto ao conteúdo da publicidade comercial: a maior parte dos anúncios é de alimentos ricos em gordura e açúcar e contrasta fortemente com os requisitos para uma alimentação saudável (FAGUNDES, 2008, p. 48). No Brasil, mais de 70% das campanhas publicitárias de alimentos veiculadas na televisão é de produtos considerados não saudáveis, (HENRIQUES, 2010, p. 74).

No ponto em que se refere ao abuso persuasivo que a publicidade comercial de alimentos possui sobre as crianças, a questão é mais complexa. Um documento da OMS5 busca divulgar uma realidade aterradora: as empresas estão se utilizando de recursos técnicos para promover os seus produtos, se valendo da deficiência de julgamento e experiência da criança.

Existem evidências fortes de que a promoção de alimentos influencia as preferências alimentares de crianças, suas escolhas e também as escolhas de seus pais (influenciados por essas) por alimentos ricos em gordura, sal e açúcar (FAGUNDES, 2008, p. 48). Alguns dos estudos trouxeram aspectos muito reveladores e merecem ser mencionados:

a) Pesquisa estadunidense (VEERMAN, 2009) concluiu que as taxas de obesidade na população infantil reduziram com a diminuição da exposição à TV, sugerindo que se a publicidade de alimentos for banida, redução significativa da prevalência de obesidade seria visualizada. O estudo concluiu que os anúncios de alimentos voltados para crianças são responsáveis por entre 15 e 40% da prevalência da obesidade em indivíduos de seis a 12 anos.

b)  De acordo um estudo realizado em 1987, a exposição à publicidade pode levar a criança a seguir menos a opinião dos pais ou educadores, mesmo se lhe recordarem no momento da escolha; assim como pode acentuar a importância do critério prazer na hora da decisão, levando a um certo esquecimento temporário das regras e normas nutricionais de que ela está consciente (GALINDO, 2011)6. Esses dados comprovam a importância de algo que a CF defende com clareza: que os cuidados com o desenvolvimento saudável das crianças não podem ficar adstritos à esfera familiar; que promover os hábitos alimentares saudáveis e restringir a exposição à TV dos pequenos é responsabilidade também da sociedade e do Estado.

Um estudo chileno (MOYANO, 2008, p. 12) identificou, ao se analisar grande número de anúncios de alimentos não saudáveis voltados para criança, as principais técnicas de persuasão utilizadas pelas empresas de publicidade:

·   Mistura de pessoas em situações cotidianas com personagens de fantasia;

·  Utilização de personagens de histórias infantis para anunciar os produtos (muitas vezes durante os programas protagonizados pelos próprios);

·  Cenários que mesclam realidade com ficção;

·  Transições rápidas de cenas, as quais provocam hiper-estimulação em crianças, com posterior ansiedade;

·  Recorrem a promessas de que o produto confere capacidades superiores, como tornar-se mais valente, forte, rápido, ou até desenvolver poderes sobre-humanos;

·  Utilizam efeitos visuais chamativos, abusando de cores e sons;

·  Mensagens que despertam emoções e sentimentos;

· Uso de publicidade de alimentos para crianças fora do horário infantil, procurando convencer os pais de que o produto é saudável.

Embasadas nas pesquisas que demonstram a que as crianças não possuem maturidade cognitiva suficiente para lidar com os apelos de marketing utilizados para promover alimentos, a OMS, em conjunto com a AMS passaram a emitir recomendações aos países membros para que fossem criados ou aperfeiçoados meios regulatórios da publicidade voltada para as crianças. Atendendo recomendações desses órgãos, governos de diversos países têm criado diferentes mecanismos regulatórios (GOMES, 2011, p 48), de modo a restringir ou excluir o conteúdo publicitário.

As principais empresas de bebidas e alimentos processados, percebendo que medidas estatais surgiriam para restringir a atividade publicitária, fixaram acordos com governos da União Européia e com os Estados Unidos no sentido de não mais serem utilizados conteúdos abusivos dirigidos ao público infantil. Diante de países como Brasil e México, porém, as mesmas transnacionais que abrandaram sua atuação diante dos países desenvolvidos, continuam adotando a prática de uma publicidade altamente persuasiva. Incluem-se dentre elas: Coca-Cola, PepsiCo, Nestlé, Kellogg e Unilever (GOMES, 2011, p. 48).

No fórum da OMS realizado em 2006 na cidade de Oslo, especialistas reconheceram que a influência econômica advinda das grandes empresas consiste em um dos grandes obstáculos para a adoção de abordagens resolutivas do problema da obesidade infantil. Os representantes do setor empresarial defendem que a questão da publicidade infantil não deve sofrer restrições estatutárias, sempre organizando poderosas resistências quando elas são propostas. Para o setor, o CONAR cumpre seu papel de forma exemplar, não havendo necessidade de outra coisa se não a autorregulação. Nas palavras de Octávio Florisbal, executivo da Rede Globo7: “Compete exclusivamente aos pais e, em segundo plano, à família e à escola, decidir e orientar o que as crianças devem assistir na televisão. A sociedade não necessita da tutela do Estado”. E na mesma oportunidade em que expôs essa opinião, citou uma frase de D. Eugênio Salles, um arcebispo carioca: “Educar as crianças para o bom uso da radiodifusão cabe aos pais, à escola e à igreja, sem a ação tutelar do Estado”.

Muitos acreditam que o seguimento da publicidade comercial não pode ficar suscetível às regras do livre mercado. Se isso ocorrer, ficaremos distantes de uma abordagem que promova o bem-estar das pessoas, pois, na prática, seu enfoque privilegia as necessidades de consumo de determinados produtos (FAGUNDES, 2008, p. 49), mesmo que para isso a sociedade, em suas diversas dimensões, sofra perdas.

Fábio Gomes (2011, p. 50) relaciona o impacto negativo causado pela publicidade de alimentos, enquanto inexistirem mecanismos regulatórios efetivos, entregando a questão à lógica de livre mercado:

a) Concentração de etapas do sistema alimentar (ex: produção de insumos, produção de alimentos ultra processados prontos para consumo, comércio varejista, indústria de comunicação) em um número reduzido de corporações transnacionais com poder econômico maior do que de muitos países;

b)  Intensa degradação de ecossistemas sustentáveis em função de processos adotados pelo sistema alimentar em escala global;

c)  Profunda deterioração das culturas alimentares locais, na medida em que os jovens tendem à substituir as dietas típicas locais por produtos industrializados;

d) Deslocamento do consumo de alimentos in natura e minimamente processados para o de alimentos ultra processados que, além de composição nutricional indesejável sob o ponto de vista da saúde, induzem um padrão alimentar que contribui para o aumento da ocorrência de doenças crônicas como o diabetes, as doenças cardiovasculares e vários tipos de câncer;

e) Complexificação das relações entre direitos individuais e processos coletivos.

Percebe-se que os impactos que a publicidade de alimentos é capaz de provocar, não apenas na vida particular das crianças, mas nas estruturas econômicas e sociais da coletividade, e isso justifica nós classificarmos o assunto como de interesse público. É o que entende as democracias mais estabilizadas do mundo: restringir a atividade publicitária, impedindo que interesses econômicos de particulares venham a comprometer o bem-estar de um povo, é sim papel do Estado. Vejamos como esses países têm lidado com a questão.


5.  A regulação publicitária nos países desenvolvidos

O limite ou a restrição da publicidade comercial são vistos por muitos países como peça chave para evitar que a veiculação de anúncios prejudique o desenvolvimento dos jovens. A tabela a seguir descreve, basicamente, as medidas regulatórias para a publicidade infantil em alguns países (HENRIQUES, 2010, ):

País

Medidas regulatórias

Canadá (lei federal)

Não pode haver publicidade com bonecos, pessoas ou personagens conhecidos, exceto para campanhas sobre boa alimentação, segurança, educação, saúde etc.

 

Suécia, Noruega, Quebec e região flamenga da Bélgica

Proíbem toda e qualquer publicidade dirigida ao público infantil

 

Estados Unidos

Determina o tempo máximo de publicidade por hora de programação

 

Dinamarca e Holanda

Proíbem a publicidade durante a programação televisiva infantil.

 
     
           

No campo da regulação da publicidade de alimentos, houve significativo avanço após a 61ª Assembléia Mundial da Saúde, onde foi elaborada a Resolução WHA 61.14, que diz, dentre outras coisas, que os Estados membros:

“(...) devem elaborar e colocar em prática mecanismos para promover a comercialização responsável de alimentos e bebidas não alcoólicas para crianças, a fim de reduzir as conseqüências dos alimentos ricos em gordura saturada, ácidos graxos trans, açúcar e sal” (OMS, 2010, p. 5, tradução livre).

Nota-se que a resolução mencionada orienta que a regulação deve ser elaborada e colocada em prática pelos Estados, justificando o surgimento de regras cada vez mais rígidas com relação à publicidade infantil. E para que suas políticas de atuação obtenham o máximo impacto, a mesma resolução recomenda que haja um processo de aplicação normatizado, pautado na criação de leis claras e precisas. Deste modo os órgãos reguladores agirão com independência e força coercitiva.

Importante ressaltar que os países já se encontram em fase mais avançada quanto às técnicas regulatórias empregadas. Para promover a integralidade da ação, outras mídias já estão sendo alvo da regulação, dentre elas rádio e anúncios em escolas. Modos de impor limites à publicidade infantil de alimentos veiculada pela internet também estão sendo desenvolvidos (OMS, 2010, p. 7).


6. Perspectivas brasileiras para uma regulação publicitária de alimentos infantis

Parece que as orientações emanadas pelos órgãos internacionais de saúde não têm alcançado as fronteiras brasileiras. Fixa-se um grande paradoxo: em um país que reconhece constitucionalmente o dever do Estado de assegurar um complexo de direitos fundamentais (reconhecendo a atuação da esfera pública na vida privada como sendo algo indispensável para proporcionar a igualdade entre os cidadãos e até mesmo uma liberdade que não se restrinja à formalidade), emprega-se justificativas exageradamente liberais para impedir a limitação da publicidade comercial.

O Brasil, porém, possui algumas perspectivas para que em futuro próximo sejam adotas práticas regulatórias estatais voltadas para o controle da publicidade infantil de alimentos: (a) projetos de lei do Congresso Nacional criados para os devidos fins; (b) a RDC nº 24/2010 da ANVISA; e (c) o Marco Regulatório das Comunicações que, apesar de buscar mudanças sistêmicas na comunicação brasileira, estipula expressamente a limitação da prática publicitária infantil.

6.1.  Projetos de lei

Esta sessão tratará do conteúdo dos projetos de lei (PL) que atualmente tramitam pelas casas legislativas federais. Serão verificando, em alguns deles, as razões jurídicas para a sua aplicação, as alegações contrárias, os fundamentos que os legisladores dão ao apresentar emendas ou substitutivos do projeto ou, simplesmente, tentativas de arquivá-lo.

PL que tramitam no Senado Federal (dados de 2012):

PL (nº e ano)

Principais propostas

Situação Atual do PL

25/2003

Dispõe sobre a publicidade comercial de alimentos.

A publicidade de alimentos será permitida apenas entre as vinte e uma e às seis horas; Será proibida em meios eletrônicos, inclusive internet; Os anúncios conterão advertências sobre os riscos decorrentes do consumo exagerado dos produtos; Imposição de sanções diversas em caso de descumprimento da norma. (Senador Tião Viana)

Arquivada

 

26/2003

Altera o Decreto-Lei nº 986/ 1969, para proibir a atribuição de destaque às declarações de qualidades e de características nutritivas, tanto nas embalagens quanto na publicidade de alimentos. (Senador Tião Viana)

Arquivada

 

282/2010

Altera o CDC para dispor sobre publicidade de alimentos ao público infantil.

Acrescenta mais uma hipótese de propaganda abusiva: mensagens publicitárias que induzam a criança a adotar padrões alimentares incompatíveis com a saúde (como o consumo de bebidas com baixo teor nutricional ou de alimentos ricos em açúcar, gordura ou sódio. (Comissão de Meio Ambiente, Defesa do Consumidor e Fiscalização e Controle)

CDHL

 

431/2003

Dispõe sobre as restrições à propaganda comercial de refrigerantes

A propaganda comercial conterá, obrigatoriamente, advertência sobre os riscos que o consumo excessivo pode provocar à saúde. (Senadora Lúcia Vânia)

CCJC

 

150/2009

Dispõe sobre a regulação da propaganda de alimentos.

A divulgação ou promoção de alimentos deverão explicitar o caráter comercial da mensagem; Quanto aos alimentos ricos em gordura, açúcar e sódio, ou bebidas com baixo teor nutricional: Sua publicidade será permitida apenas entre as vinte e uma e às seis horas; Os anúncios conterão advertências sobre os riscos decorrentes do consumo exagerado dos produtos; não poderão sugerir, por meio do uso de expressões ou de qualquer outra forma, que o alimento é saudável ou benéfico para a saúde; Imposição de sanções diversas em caso de descumprimento da norma; Não poderão sugerir, por meio do uso de expressões ou de qualquer outra forma, que o alimento é saudável ou benéfico para a saúde; Não poderão ser veiculados em instituições de ensino.

CMA

 
 

Fonte: www.senado.gov.br

     
               

Objetivando discussão exemplificativa, alguns detalhes acerca da tramitação de dois PL serão mencionados a seguir.

O PL 26/2003, hoje arquivado, teve sua legalidade confirmada pela Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania. Eis um trecho do parecer emitido pelo órgão:

“O PLS nº 26, de 2003, está em consonância com os dispositivos constitucionais, visto que é competência da União legislar concorrentemente sobre proteção e defesa da saúde (inciso XII do art. 24 da Constituição Federal) e que compete à lei federal estabelecer os meios que garantam à pessoa e à família a possibilidade de se defenderem da propaganda de produtos práticas e serviços que possam ser nocivos à saúde (inciso II do § 3º do art. 220 da CF) (...). Cabe salientar que o direito do consumidor à informação nutricional é preservado. A alteração legal proposta pelo projeto impede tão somente o uso inapropriado de características nutritivas como meio de promover a venda de produtos alimentícios.

A análise acima permite concluir que o PLS nº 26, de 2003, é constitucional, jurídico e vazado em boa técnica legislativa”. (Parecer da CCJ, de 02/03/2005)

No ano seguinte, entretanto, a Comissão de Assuntos Sociais (CAS) reprovou o PL com base em argumentos na seara da legitimidade, já que a legalidade havia sido comprovada pela CCJ. Nas palavras extraídas do parecer da CAS:

“(...) a proposição legislativa em apreço implica a restrição do acesso dos consumidores à informação e o desestímulo da indústria para aprimorar seus produtos alimentícios, visto que suas qualidades não mais poderão ser convenientemente divulgadas. Patente está, portanto, o prejuízo econômico a ser causado pela aprovação do projeto em análise, na medida em que inibe o investimento das indústrias de alimentos em novas tecnologias para aprimorar o valor nutricional de seus produtos”.

(Parecer da CAS, de 17/05/2006)

O parecer da CAS tem uma fundamentação inapropriada, pois aborda dois temas de modo muito parcial: (a) a restrição dos consumidores à informação explicitada é carente de lógica, pois o PL não procura abolir as já tradicionais tabelas nutricionais, mas sim o grande destaque que é dado aos nutrientes mais saudáveis, que acaba por dissimular as taxas elevadas de sódio, gordura e açúcar contidas nos alimentos; (b) no que se refere a um suposto desestímulo que a adoção do PL provocaria na inovação industrial, por que não pensar que a sua entrada em vigor poderia levar a outros tipos estímulos? As indústrias não se veriam obrigadas a melhorar a qualidade dos seus produtos, no sentido de deixá-los mais saudáveis? Será que o melhor alimento é o tecnologicamente mais desenvolvido? Muito pelo contrário: sabe-se que a alimentação de produtos naturais é mais benéfica ao organismo humano, enquanto os alimentos processados industrialmente, em geral, são potencialmente lesivos à saúde.

Dos projetos de lei que atualmente tramitam no Congresso Nacional, pode-se dizer que o mais relevante é o PLS nº 150/2009. Ele propõe um mecanismo extremamente eficiente de controle da publicidade infantil de alimentos. Caso seja aprovado, o Brasil figuraria entre os países que seguem as recomendações da OMS no que se refere à regulação eficiente das mídias que promovem alimentos não saudáveis.

Eis um artigo proposto pelo projeto:

Art. 23-C. A propaganda, a publicidade e outras práticas semelhadas cujo objeto seja a divulgação ou promoção de alimentos com quantidades elevadas de açúcar, de gordura saturada, de gordura trans, de sódio, e de bebidas com baixo teor nutricional deverão observar as seguintes determinações:

I – somente poderão ser veiculadas em rádio ou televisão entre vinte e uma e seis horas;

II – serão acompanhadas de mensagens de advertência sobre os riscos associados ao consumo excessivo de alimentos;

III – não poderão sugerir, por meio do uso de expressões ou de qualquer outra forma, que o alimento é saudável ou benéfico para a saúde;

IV – não poderão ser direcionadas às crianças e aos adolescentes, seja mediante a utilização de imagens ou personagens associados a esses públicos-alvo, seja por meio de sua vinculação a brindes, brinquedos, filmes, jogos eletrônicos ou por outros meios a eles dirigidos; (...)”.

O PL 150/ 2009 sofreu duas tentativas de emenda, todas buscando excluir do projeto o dispositivo que promove a limitação do horário da publicidade de alimentos não saudáveis (Inciso I do artigo 23-C):

“Limitar o horário seria uma dissonância com os princípios da Liberdade de Expressão Comercial, até porque não há consenso – muito ao contrário – no âmbito da ciência, de que um consumo parcimonioso venha a provocar malefícios desproporcionalmente avocados (...). Ademais, é importante ressaltar que os produtos que se pretende restringir a publicidade são livremente produzidos e comercializados, não havendo coerência em restringir a pertinente publicidade” (grifou-se). (Senador Wellington Salgado)

“O artigo 23-C, (...) trazendo restrições ao horário de veiculação de mensagens publicitárias, resta em dissonância com os princípios da Liberdade de Expressão Comercial até porque não há consenso – muito ao contrário – no âmbito da ciência, de que um consumo parcimonioso venha a provocar malefícios (...)”(grifou-se). (Senador Jose Nery)

Ambas as emendas possuíram algo em comum: trataram de uma Liberdade de Expressão adjetivada de Comercial, termo carente de fundamentação jurídica, pois limitar o horário de veiculação de mensagens comerciais é uma mera forma de regulação da atividade econômica e não uma espécie de censura.

Por fim, o discurso de que um consumo parcimonioso não gera danos à saúde é amplamente discutível. Os dois senadores reproduzem o que Fábio Gomes chama de o “mantra das indústrias de alimentos”: o discurso de que nenhum alimento faz mal se consumido moderadamente (GOMES, 2011, p. 49). A grande difusão de alimentos industrializados é relativamente recente para que conheçamos as suas reais conseqüências de longo prazo na saúde humana. Diante disto, acredita-se que mais vale adotar a precaução, já que os produtos alimentares das indústrias são facilmente substituíveis por alimentos mais saudáveis e seguros para a saúde.

Infelizmente, os argumentos expostos nas emendas que procuraram desconstruir o propósito do PL 150/2009 continuam a ser reproduzidos diante de outros projetos de lei que procuram criar meios regulatórios para a publicidade comercial.

PL que tramitam da Câmara dos Deputados (dados de 2012):

PL (nº e ano)

Principais propostas

Situação Atual

5.921/2001

Proíbe a publicidade para a venda de produtos infantis. (Deputado Luiz Carlos Hauly)

Aguarda parecer da CCTCI

 

1.637/2010

Dispõem sobre regras para a publicidade de alimentos com quantidades elevadas de açúcar, de gordura saturada, de gordura trans, de sódio, e de bebidas com baixo teor nutricional.

Os produtos alimentícios com potencial para prejudicar a saúde deverão conter mensagens de advertência quanto aos riscos que poderão causar se consumidos excessivamente. Veiculação na mídia televisiva e eletrônica restrita das 21 às seis horas. Proibição da concessão de brindes pelas empresas que comercializam os produtos. Proibição do uso de personagens que sejam cativos do público infantil. Proibição de sua veiculação em instituições de ensino. (Deputado Carlos Bezerra)

Aguarda parecer da CCTCI

 

6.693/2009

Dispõe sobre a proibição de publicidade nos meios de comunicação de produtos voltados ao público infantil em horários compreendidos entre seis horas da manhã e oito horas da noite. (Deputado Capitão Assunção)

Arquivada

 

4.315/2008

Aumenta a pena prevista em caso de divulgação de publicidade que sabe ou deveria saber enganosa ou abusiva, incorrendo o infrator no dobro da pena quando a publicidade for dirigida a crianças. (Deputado Vinícius Carvalho)

Arquivada

 
       
 

Fonte: www.camara.gov.br

   
           

A Câmara dos Deputados é palco de um intenso debate acerca do PL 5.921/2001. Apesar de não tratar exclusivamente da publicidade de alimentos, esse projeto é de extrema importância para o presente estudo, pois ela visa abolir toda a publicidade voltada às crianças, inclusive as de produtos alimentícios. Vale ressaltar que a obesidade infantil não é a única conseqüência negativa da publicidade comercial. Acrescenta-se aqui: a ampliação do consumismo, a erotização precoce, a violência pela busca de produtos caros ou de marcas conhecidas, o materialismo excessivo e o desgaste das relações sociais (HENRIQUES, 2010, p. 3).

De autoria do Deputado Luiz Carlos Hauly, o PL 5.921 propõe acrescentar ao artigo 37 do CDC o seguinte §2ºA:

“§2ºA. É também proibida a publicidade destinada a promover a venda de produtos infantis, assim considerados aqueles destinados apenas à criança.

Na justificação do projeto, Hauly ressalta a importância de se efetivar os dispositivos elencados no art. 221 da CF, alegando que:

“(...) uma das questões que precisa ser avaliada é a da relação entre publicidade e criança, principalmente com o envolvimento de ídolos da população infantil, com a veiculação de matérias que se transformam em verdadeira coação ou chantagem para a compra dos bens anunciados, embora desnecessários, supérfluos ou até prejudiciais, além de incompatíveis com a renda familiar”.

O texto normativo que o PL em questão pretende acrescentar forneceria ao CDC a especificidade necessária para que este código possa regular diretamente a prática da publicidade comercial, sem a intermediação de nenhum outro instrumento legal.

Embora pareça um radical ceifador de liberdades, o PL 5.921 está em conformidade com o ordenamento jurídico brasileiro. Tendo em vista que a criança não tem maturidade suficiente para se deparar com a publicidade comercial sem se deixar influenciar, os anúncios endereçados para este público sempre serão ilegais, já que colidirão com os princípios da CF, do CDC e do ECA (mencionados anteriormente no presente estudo).

Atualmente o PL 5.921 tramita na CCTCI (Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática), onde sofre resistência por parte de alguns parlamentares. Nos depoimentos que circulam pelos debates da comissão, é perceptível o desnível existente entre os que apóiam o PL, sempre muito embasados em estudos científicos e recomendações de órgãos internacionais, e os que são contrários. Estes, no geral, adotaram um discurso sem profundidade não centrado no bem estar das crianças, mas apenas em aspectos econômicos, na defesa do enfraquecimento da interferência estatal na esfera privada e na suposta “liberdade de expressão comercial”. Além disso, ironizam os achados científicos que comprovaram a fragilidade das crianças frente aos anúncios publicitários.

Antes de ser votado em plenária, o PL 5.921/2001 deve concluir sua passagem pela CCTCI (Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática) e seguir para a CCJC (Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania). 

6.2. O caso da RDC nº 24 da ANVISA

A resolução da diretoria colegiada - RDC nº 24 da ANVISA, de 15 de junho de 2010, foi publicada no dia 29 de junho de 2010, apresentando critérios para a divulgação de produtos alimentícios. Para criação deste mecanismo de regulamentação, a ANVISA iniciou um debate intenso com representantes da sociedade civil e dos setores industriais, havendo, inclusive, a abertura de Consulta Pública (FERRAZ, 2010, p. 3).

Sua criação esteve centrada no seguinte ponto: apesar do ordenamento jurídico brasileiro já condenar a publicidade abusiva de alimentos agressivos para a saúde, ainda não existe dispositivos legais específicos que delimitem um efetivo controle. Essa imprecisão dá margem a interpretações pautadas em interesses particulares, comprometendo a segurança jurídica e a eficácia nas ações dos órgãos que realizam a fiscalização. Com base nisto, surgiu a RDC nº 24/2010, que objetivou a regulação da oferta, propaganda, publicidade, informação e outras práticas correlatas cujo objetivo seja a divulgação e a promoção comercial de alimentos considerados com quantidades elevadas de açúcar, de gordura saturada, de gordura trans, de sódio, e de bebidas com baixo teor nutricional. Uma das principais determinações contidas na resolução trata da necessidade dos produtos virem acompanhados de advertências quanto aos prejuízos causados pelo seu consumo excessivo.

A RDC nº 24/2010 foi suspensa cerca de duas semanas após sua publicação pela Advocacia Geral da União (AGU), órgão que anteriormente já havia apoiado publicamente a ação da ANVISA. Essa mudança de posicionamento se deu após consulta formulada pelo CONAR. Daí em diante, a AGU tornou-se antagonista da RDC nº24/2010, alegando uma suposta ilegalidade e inconstitucionalidade na resolução, já que a ANVISA não teria competência para regular sobre o tema.

Mariana Ferraz (2010, p. 3), do IDEC, acredita que não se pode falar em incompetência da ANVISA para a regulação da publicidade de alimentos. Em suas palavras:

“A Lei 9782/99, em seus artigos 7º e 8º, determina ser de competência expressa da Agência ‘controlar, fiscalizar, acompanhar, sob o prisma da legislação sanitária, a propaganda e publicidade de produtos submetidos ao regime de vigilância sanitária’, sendo que se submetem ao controle da Anvisa os alimentos, bebidas, insumos, embalagens e aditivos alimentares”.

A Lei 9.782/99 conferiu à ANVISA o poder normativo sobre produtos e serviços que envolvam risco à saúde pública, dentre eles, o de controlar a publicidade comercial de produtos potencialmente lesivos. E dentre esses produtos, incluem-se alimentos e bebidas não alcoólicas, ao contrário do que é exposto pelos representantes das indústrias de alimentos e empresas de publicidade (estas costumam apontar que as ações da ANVISA ficariam restritas a produtos como tabaco, bebidas alcoólicas, dentre outros).

A RDC nº 24 da ANVISA, então, possui clara fundamentação legal, não se podendo classificá-la nem mesmo de inconstitucional, já que a CF delega que a regulação publicitária será regulada por lei federal, caso da Lei 9.782/99, que dispõe sobre a estrutura e competências da agência. Além disso, é importante frisar que ela não cria novos mecanismos legais dentro do ordenamento jurídico brasileiro, apenas tendo a função de balizar elementos já explicitados pelas normas nacionais. A resolução proporciona métodos precisos que dão concretude à defesa dos bens jurídicos protegidos constitucionalmente, tais como a vida, o desenvolvimento saudável, dentre tantos outros.

6.3. Marco Regulatório das Comunicações

O Marco Regulatório das Comunicações é produto de debates acumulados ao longo das últimas décadas e sistematizados no seminário Marco Regulatório – Propostas para uma Comunicação Democrática, realizado no Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação, realizado em 20 e 21 de maio de 2011, no Rio de Janeiro. Tal evento contou com a participação de inúmeras entidades nacionais e regionais, abrindo espaço, inclusive, para consulta pública já realizada no ambiente virtual, que proporcionou a todo cidadão brasileiro a possibilidade de atuar na sua construção.

Dentre as principais razões que justificam a adoção de um Marco Regulatório das Comunicações, está o fato da legislação brasileira no setor de comunicação ser arcaica e defasada, não contemplando as inovações tecnológicas e convergência de mídia, além de ser fragmentada, gerando normas conflitantes entre si. A CF/88 continua carecendo de regulamentação da maioria dos artigos dedicados à comunicação, provocando um cenário de ausência de regulação. Associado a uma concentração de recursos em poucas empresas de comunicação, a ausência de mecanismos regulatórios gera prejuízos na liberdade de expressão do conjunto da população, pois favorece que a opinião dominante da mídia pertença a uma minoria. Quando o pleno exercício do direito de comunicação é prejudicado, há prejuízos na própria democracia brasileira.

Os objetivos do Marco Regulatório estão voltados para a promoção da democratização da comunicação brasileira, buscando mecanismos que assegurem a pluralidade de idéias e opiniões. Porém, a regulação da publicidade infantil não escapa às suas propostas. Reconhecendo a vulnerabilidade da criança conforme o ECA e o CDC, o Marco Regulatório busca aprimorar a proteção a esse segmento realizando, dentre outras medidas, a proibição da publicidade dirigida a crianças de até 12 anos.

Para dar eficácia às suas disposições, o Marco Regulatório propõe a criação de um Conselho Nacional de Comunicação que englobará órgãos reguladores com poder de estabelecer normas infralegais, realizar fiscalização e aplicar sanções. Tal conselho, composto por representantes dos poderes públicos e da sociedade, estabelecerá diretrizes normativas para as políticas públicas e regulação do setor, podendo gerar a especificidade que as leis atualmente não possuem (no que tange, por exemplo, ao balizamento da atividade publicitária comercial). O Marco Regulatório, caso venha a ser consolidado, deverá ser uma alternativa viável para a defesa da população infantil frente à pressão midiática.


7. Conclusão:

A despeito de o sistema jurídico brasileiro prezar pela proteção da criança diante dos possíveis abusos provenientes da publicidade comercial, a ausência de normas reguladoras específicas retiram a eficácia de tais dispositivos. Na realidade prática, portanto, as crianças seguem expostas às influências lesivas advindas dos anúncios publicitários, situação diante da qual os órgãos estatais pouco podem intervir. Apesar de juristas, legisladores e setores da sociedade civil proporem meios normativos de regulamentação publicitária mais precisos, existe uma forte resistência dos setores que prezam pelo sucesso financeiro das indústrias de alimentos. Representantes desses interesses chegam a distorcer interpretações normativas, criando conceitos desprovidos de juridicidade, e que, infelizmente, costumam estar presentes nas linhas dos pareceres de alguns parlamentares.

Ao longo do processo de análise do material estudado, percebeu-se que uma colocação foi recorrente nos que são contrários à regulação estatutária da publicidade: dizer que são os pais os principais responsáveis por “dar limites” aos filhos. Muitos políticos e empresários do ramo publicitário costumam, em audiências, citar experiências exemplares de educação que realizam com os seus próprios filhos. Esses sujeitos, porém, desconsideram que a maioria das famílias brasileiras sofre com problemas econômicos e sociais que dificultam a promoção do desenvolvimento de suas crianças, onde é comum a ausência paterna e/ou materna na maior parte da sua rotina. Tal particularidade impede que os adultos participem devidamente do controle do conteúdo assimilado pelos filhos, o que torna a família vulnerável à influência prejudicial dos meios publicitários.

Mesmo diante famílias que possuem uma estrutura mais adequada para a criação dos filhos, Luiz Carlos Hauly fez sensata consideração:“Os pais não conseguem, sozinhos, vencer a TV, que é o maior meio de comunicação da história da humanidade”8.

Outra particularidade presente nos discursos de quem é contrário a prática de regulação estatal: são incontáveis as tentativas de considerar a publicidade comercial como um alicerce da imprensa livre, já que ela se consiste no principal sustentáculo financeiro das empresas de comunicação. Através de justificativas como esta, os setores interessados criaram o termo “liberdade de expressão comercial”, uma ficção jurídica que visa classificar a regulação publicitária como uma espécie de censura. Para Mariana Ferraz9 esse discurso é improcedente, pois a regulação da atividade publicitária não está voltada para nenhum tipo de restrição a idéias ou opiniões morais e religiosas. Visa apenas a eliminação de técnicas abusivas utilizadas para que indivíduos em desenvolvimento adquiriram produtos prejudiciais  à sua saúde.

Defender um Estado menos participativo na tutela pelo desenvolvimento das crianças é discurso incompatível com um país democrático de Direito que ostenta a supremacia da CF. A proteção das crianças não pode ficar adstrita à esfera privada, pois, como mencionado em tópicos anteriores, a própria Constituição define que a sociedade e o Estado são corresponsáveis pelo cuidado delas. A família brasileira não tem condições de arcar sozinha com tal responsabilidade, por isso tem o direito a essa proteção jurídica.

É verificável, com base em análise sistematizada, que os projetos de lei que tramitam no Congresso Nacional, as resoluções da ANVISA que determinam restrições à prática da publicidade infantil de alimentos, além do Marco Regulatório das Comunicações, estão em consonância com o ordenamento jurídico brasileiro. Tais medidas restritivas da publicidade são meios de efetivação jurídica da CF, do CDC e do ECA, documentos legais que carecem de maiores precisões quanto ao balizamento da atividade publicitária comercial. Ademais, podem se constituir importante instrumento de combate às altas taxas de obesidade que atualmente afetam as crianças.

A obesidade infantil é um grave problema de saúde que se propaga velozmente, dia após dia, o que requer meios de intervenção capazes de evitar um prejuízo incalculável para o futuro do país, tendo em vista suas devastadoras conseqüências sociais e econômicas. Compreender que uma solução sustentável para os problemas de saúde não depende única e exclusivamente de políticas sanitárias, mas também de intervenções sociais sistêmicas é ponto central de fundamentação para a adoção de efetiva regulação publicitária.

Isabella Henriques, jurista que é referência nacional em proteção da criança frente à publicidade comercial, defende que o objetivo de limitar a publicidade infantil não é abolir a anúncio de produtos de criança. Na ocasião de uma audiência pública realizada em 200910, a jurista alegou que é necessária apenas uma mudança de paradigmas: o que não deve existir mais é a publicidade que “fala” com a criança. Produtos podem ser anunciados, mas em uma linguagem que não se direcione a persuasão infantil. A mensagem deve ter como destino os pais, avós ou qualquer pessoa apta a realizar as escolhas mais seguras para a criança. Alguns opositores mencionaram que essa seria uma forma de “criar nossos filhos em uma redoma de vidro”, forma esta extremamente superficial de enxergar o universo infantil, pois se opõe ao óbvio saber popular: que o adulto deve escolher pelos filhos, para que estes aprendam, a partir da observação, a realizar suas próprias escolhas no futuro. Entregar à criança um poder de escolha maior do que ela está pronta não fará dela mais preparada para se determinar no futuro, pois ninguém aprende fazendo errado.


8.  Notas:

[1]: A Resolução da Diretoria Colegiada (RDC) nº 24 da ANVISA, publicada em 29 de Junho de 2010, dispõe sobre a oferta, propaganda, publicidade, informação e outras práticas correlatas cujo objetivo seja a divulgação e a promoção comercial de alimentos considerados com quantidades elevadas de açúcar, de gordura saturada, de gordura trans, de sódio, e de bebidas com baixo teor nutricional. Atendendo à consulta formulada pelo Conselho Nacional de Autorregulação Publicitária (CONAR), a Advocacia Geral da União suspendeu a RDC nº 24 no dia 13 de Julho do mesmo ano (cerca de duas semanas após a publicação da resolução). Os aspectos jurídicos que envolvem a questão serão abordados no decorrer do presente estudo.

[2]: Se comerciais agressivos forem veiculados na Bandeirantes ou Rede TV, por exemplo, o CONAR, que comumente já não tem possibilidades de aplicar punições efetiva, nada poderão fazer, pois as empresas em questão não são vinculadas ao órgão.

[3]: Neste ponto, vale um adendo sobre o tradicional método de diagnóstico da obesidade: o Índice de Massa Corpórea (IMC). Para muitos nutricionistas, este método é impreciso quanto à quantidade absoluta de tecido adiposo nos seres humanos. Muitos indivíduos, mesmo fora da faixa de obesidade, podem ter taxa de gordura que levem ao desenvolvimento de doenças. O simples fato de possuir gordura localizada em algumas regiões, como o abdômen, pode ser considerado um fator de risco importante para uma série de doenças, das quais se destacam as cardiovasculares. (NONINO-BORGES).

[4]: Hoje se sabe que muitos problemas de saúde antes tidos como “doenças de velho” começam a ser instaladas nos primeiros anos de vida, devido exposição precoce a fatores de risco diversos. Apenas sua manifestação clínica é que ocorrerá mais tarde. Dentre os problemas, destaca-se a doença cardiovascular conhecida como aterosclerose, que pode surgir a partir dos dois anos de vida, vindo a acarretar graves sintomas na vida adulta (dentre eles: infarto cardíaco, acidente vascular cerebral e gangrena).

[5]: OMS – Organización Mundial de La Salud. Conjunto de recomendaciones sobre la promoción de alimentos y bebidas no alcohólicas dirigida a los niños, 2010.

[6]: Para citar um estudo que chegou a essa conclusão: em estudo canadense, crianças teriam que optar entre o produto anunciado por anúncio publicitário e o que a mãe recomendou. Quando a mãe estava ausente, boa parte deles contrariava sua vontade, escolhendo o produto “proibido” (GALINDO, 2011, p. 8).

[7]: Entrevista dada por Octávio Florisbaldo ao CENP em Revista (nº 11, abr. de 2007), uma publicação do Conselho Executivo das Normas-Padrão. A entrevista foi intitulada como: “A sociedade não precisa da tutela do Estado”.

[8, 9, 10]: Conteúdo extraído na ocasião da Audiência Pública realizada na CDEIC em 18/06/2009, que tratou do PL 5.921/2001.


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RODRIGUES, Raoni. Perspectivas brasileiras para uma regulação estatal da publicidade de alimentos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3551, 22 mar. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/24016. Acesso em: 19 abr. 2024.