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Um breve estudo acerca do abuso processual à luz de um caso concreto da jurisprudência do STF

Um breve estudo acerca do abuso processual à luz de um caso concreto da jurisprudência do STF

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Apresentam-se as medidas mais utilizadas para repressão da litigância de má-fé, com estudo de um caso julgado pelo STF.

SÊ LEAL - Leal para com o teu cliente, a quem não deves abandonar até que compreendas que é indigno de ti.  Leal para com o adversário, ainda que ele seja desleal contigo.  Leal para com o juiz, que ignora os fatos e deve confiar no que tu lhe dizes; e que quanto ao direito, alguma outra vez, deve confiar no que tu lhe invocas. [1]

- Eduardo Juan Couture (1904 - 1956)

Resumo:O presente trabalho tem por escopo analisar e discutir o tema do abuso processual, especificamente, no tocante ao direito de recorrer, no ordenamento jurídico brasileiro através de um estudo de caso trazido pela Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal confrontado às lições da doutrina, bem como demonstrar as medidas repressivas mais usadas em consequência. Também tratará da aplicabilidade do princípio da fungibilidade recursal em casos de erro grosseiro nos recursos interpostos. Por fim, abordará as clássicas medidas repressivas utilizadas pela Jurisprudência visando o afastamento da ocorrência do abuso processual.

Palavras-Chave: Abuso Processual; Supremo Tribunal Federal; Doutrina; Princípio da Fungibilidade recursal.


1. INTRODUÇÃO - SUMA DO EXCERTO JURISPRUDENCIAL E TESE DECISÓRIA DA EXCELSA CORTE ACERCA DO TEMA

O presente caso jurisprudencial trata-se de recurso de “Embargos de nulidade e infringentes nos Embargos de declaração no Agravo regimental no Agravo de Instrumento de nº 342.393”, interposto por parte reiteradamente vencida em recursos anteriores.

O recurso imediatamente anterior – os Embargos de Declaração – havia sido rejeitado pelo douto Tribunal por unanimidade em virtude de sua discrepância em relação à destinação processual do mesmo e consequente caráter nitidamente protelatório.

Como ditado pelo ordenamento jurídico processual, os Embargos de Declaração são cabíveis tão somente para desfazer obscuridades, afastar contradições e suprir omissões provenientes de erro material constante em Acórdão proferido por Tribunal, como roga o artigo 535 do atual Código de Processo Civil.

Malgrado a clareza do supracitado artigo, tal recurso olvidou sua real destinação. Irresignada, a parte recorrente deflagrou novo recurso com o escopo de nulificar decisão acerca do anterior, com fundamento no artigo 333 do Regimento Interno do STF[3] (RISTF).

Aprioristicamente, o Excelentíssimo Ministro Celso de Mello, a quem coube a Relatoria, em sede preliminar, considerou o recurso impertinente, pois fugia a orbe de seu cabimento processual conforme à lei, sendo, portanto, absolutamente impossível a análise do mesmo; afinal, a decisão recorrida havia sido unânime e não divergente como seria indispensável para a devida cognoscibilidade pelo Relator.

Outrossim, tendo o supracitado artigo que regula o cabimento de tal recurso, rol taxativo, o desatendimento às suas condições estritamente explícitas implica ao não conhecimento dos embargos infringentes.

Ainda, por se tratar de erro - sob ponto de vista do magnânimo Relator – grosseiro, impossível seria admitir o princípio da fungibilidade recursal a fim de admitir o recurso de tal monta inadequado.

In fine, conclui-se pela litigância de má-fé por parte do Embargante em vista do reiterado comportamento protelatório no uso do direito de recorrer, o que nas palavras do Ministro configura “evidente abusividade”.

Com isto, visando neutralizar tal conduta incompatível e impedir nova ocorrência, decidiu-se no presente Acórdão, punir a Embargante com a multa processual, nos termos do artigo 18 do Código de Processo Civil[4]. Ademais, gize-se que o fato da parte Embargante ser detentora da prerrogativa da Assistência Judiciária Gratuita, não impede que lhe seja imputada tal multa inibitória, como refletiu o douto Relator e concordou o Tribunal.


2. O ABUSO PROCESSUAL NO DIREITO DE RECORRER CONFORME A OPINIO JURIS DOCTORUM

2.1 Da prática incompatível ao ordenamento jurídico do recurso protelatório – o dever da probidade processual

A todos numa demanda judicial cabe a observância pela probidade no agir processualmente. É uma regra única e máxima, aonde a legalidade vai ao encontro da moralidade. Pode ser vista como a fronteira entre a harmonia e o caos no processo judicial, limitando as armas das partes em questão. A demanda judicial deve ter por horizonte “a obtenção dos resultados justos que dele é lícito esperar.”[5] Além disso, existe o abuso no processo.

Segundo o impoluto entendimento do prosélito jusprocessualista HUMBERTO THEODORO JÚNIOR:

consiste o abuso de direito processual nos atos de má-fé praticados por quem tenha uma faculdade de agir no curso de processo, mas que dela se utiliza não para seus fins normais, mas para protelar a solução do litígio ou para desviá-la da correta apreciação judicial, embaraçando, assim, o resultado justo da prestação jurisdicional.[6]

Insofismável reconhecer que a Justiça possui uma dignidade, uma alma proba, que não pode simplesmente ser desconsiderada por aqueles que interagem com o processo, até porque, como diz ADA PELLEGRINI GRINOVER, “há muito o processo deixou de ser visto como instrumento meramente técnico, para assumir a dimensão de instrumento ético voltado a pacificar com justiça”.[7]

Na linha de conferir autoridade à atividade jurisdicional, buscando impor às partes uma conduta ética no processo, desenvolveu-se no direito americano, a figura do contempt of court, que “é a prática de qualquer ato que tenda a ofender um tribunal na administração da justiça ou a diminuir sua autoridade ou dignidade, incluindo a desobediência a uma ordem”.[8]

O ordenamento jurídico pátrio, nesta esteira de boa-fé à demanda judicial, contém vários dispositivos cuja natureza integra ao universo probo da Justiça.

O dever de honestidade é tanto das partes como dos seus procuradores. É uma obrigação de todos originária da própria conduta humana pautada em princípios morais incontestes à sobrevivência de uma Sociedade de valores, sem os quais, de certo, aquela só pode soçobrar.[9]

Assim sendo, jamais poderá a parte se utilizar de argumentos inverídicos, tentadores de fraude ou dotados da má intenção em delongar a concreção da Justiça através do cumprimento das ordens judiciais.

Por lógico, isto nunca pode ser visto como uma restrição ao direito absoluto de recorrer. É errôneo imaginar que o abuso processual, em algum momento, torna-se uma ameaça a esta faculdade procedimental em interpor recursos.

O direito de recorrer é uma faculdade legal que nada pode obstar. Porém, como todo direito, tem regulação. O excesso em recorrer forma o que se discute neste trabalho: o abuso processual.

Para se recorrer de uma decisão é imprescindível o fundamento material e formal – o qual pode ser analisado por diferentes quesitos adiante demonstrados. Aquele que litiga, que protesta, que recorre sem fundamento, faz de má-fé e seu recurso não deve prosperar, como ocorreu no julgado em foco.

É claro ainda que a parte punida pelo abuso, muitas das vezes, sequer superficial conhecimento jurídico detinha para incorrer no excesso de seu direito. Paga pela conduta de seu patrono, este sim, presumivelmente, detentor da ciência jurídica.

Nosso Código de Processo Civil não pune, inobstante, o advogado. Pune a parte, porque aquele é somente o porta-voz deste; na imputação da sanção, o prejuízo atingirá exclusivamente “o bolso do representado”.

Não se diga, por isso, que o procurador judicial ficará impune. Este tem responsabilidade sobre seus atos e responderá ante o Estatuto da OAB (Lei nº 4.215, de 27.04.63) que considera infração disciplinar, e sujeita o advogado às penalidades nele previstas, transgredir preceito do Código de Ética Profissional. Urge trazer as lições de CARNELUTTI (2001: 222)[10]:

o defensor, que busca a vitória e não a justiça, e conhece melhor do que a parte o valor jurídico dos fatos, pode ser tentado, por sua vez, de ocultar aqueles, cujo conhecimento por parte do juiz considera nocivo para seu cliente

Óbvio, contudo, que os abusos devem ser averiguados conforme o grau de culpa ou dolo da parte – fatores esses que são considerados pela doutrina como indispensáveis para caracterizar o abuso no processo. Paulo Henrique dos Santos Lucon[11] entende como um imperativo a presença de culpa ou dolo para punir o abuso processual e sua percepção pelo Magistrado no momento da sanção, restringindo a aplicação punitiva somente aos que tiverem o animus, sem mais ampliações.

Por todo exposto, só se pode concluir que a má-fé processual, seja de quem for, na lide, deve ser sancionada, a fim de fazer valer a exigível probidade ao processo pelas partes litigantes.

2.2 As características do abuso processual

Para a constatação cristalina do abuso processual, plêiade doutrinária tem pronunciado alguns critérios de aferição, dos quais aqui trazemos em síntese os mais significantes:

a) A aparência de legalidade

Em excelente estudo, CAVALI[12] ensina que o primeiro requisito para a verificação de abuso processual é a aparência de legalidade do ato abusivo. Assim, não basta que o ato seja dotado da improbidade, ele deve cumular seu sua natureza viciosa nos moldes padrões da legalidade.

E nisso, inexiste qualquer paradoxo, posto que, se há um ato que foge dos moldes legais, sua mácula não jaz no abuso em proceder, mas na própria inexistência do ato. Ora, se o abuso é o excesso do devido, aquilo que está fora dos quadros legais, em nada tem de excesso, ao revés, nele se falta o necessário – a validade permitida em lei.

A aparência de legalidade é um critério subsidiário, pois necessita de outros fatores para esclarecer o abuso processual. Logo, continuemos a síntese.

b) O desvio de finalidade

O mais avultante fator à percepção de abuso processual é o desvio do fim colimado do ato. É agir no intuito de se conseguir o que não é permitido conseguir, visando-se surtir efeitos não objetivados na natureza do ato processual. CALAMANDREI (1999:230) é costumeiramente brilhante ao ensinar que “A má-fé processual, nas suas variadas configurações, vai sempre dirigida a conseguir no processo um efeito jurídico que sem o engano não poderia se conseguir”.[13]

De fato, o desvio de finalidade é irrefragável no julgado ora em estudo. Os Embargos interpostos pela parte escaparam totalmente de sua finalidade processual taxativamente prevista na lei de embargar decisão em que houvesse dissonância, haja vista ter sido unânime a decisão embargada (!!!).

Nas palavras do Exmº Relator “o ora recorrente, no entanto, a despeito de qualquer previsão legal ou regimental, veio a opor recurso absolutamente inadequado às hipóteses de cabimento elencadas no dispositivo em que fundamenta sua petição recursal”. (grifos nossos)

Como se extrai, os próprios fundamentos utilizados pelo Recorrente para fundamentar seu petitório, contradizem-se com a tessitura processual – a unanimidade da decisão embargada – de modo a viciar a ratio do recurso, tornando-o inconcebível. Há a flagrante cizânia entre o fim pretendido e o fim previsto. É justamente dessa divergência entre o querer e o poder em que surge o desvio de finalidade.

c) Demais critérios: falta de seriedade do ato, a ilicitude e ilegitimidade do escopo visado pelo agente, a lesividade causada à administração da Justiça e a presença de dolo ou culpa.

Os demais critérios doravante discorridos são frutos da pesquisa de Helena Najjar ABDO (2007)[14], para quem, sendo difícil identificar a finalidade de determinados instrumentos processuais, faz-se mister esmiuçar o desvio do escopo conforme os fatores citados em epígrafe.

Para a citada doutrinadora, a falta de seriedade do ato seria o despropósito no agir frente aos fins do processo[15].

A ilicitude e ilegitimidade do escopo visado pelo agente estão em ser o escopo do ato daquele reprovado pelo ordenamento. Pode parecer contraditório ao fator da aparente legalidade, porém, aqui a ilegitimidade ou ilicitude não está na forma, e sim na subjetividade do direito pleiteado, o qual não se conforma ao permitido na norma. Ademais, saliente-se que o ato processual abusivo não é legal, mas somente parece que o é.

A lesividade causada à administração da Justiça reside exatamente no abuso, em protelar o regular desenvolvimento, em embaraçar os trâmites da Justiça, em imputar-lhe mora.

No que tange a presença de dolo ou culpa, há divergências doutrinárias acerca deste critério, assim como se sua averiguação deveria ser de modo objetivo ou subjetivo. Sem perquirir muito o tema neste trabalho, comungamos do entendimento de CAVALI[16], não se devendo restringir o art. 17, mas a situação subjetiva exercida. Entendemos que nesse sentido concluiu o Min. Rel. Celso de Mello, pelo que se deduz de seu voto:

Tenho para mim, dessa maneira, que o processo da parte ora ‘embargante’ traduz hipótese de evidente abusividade, apta a justificar, por si só, a aplicação, ao caso ora em julgamento, das normas inscritas no art. 18 c/c o art. 17, VII do CPC. (grifos do original)


3. O PRINCÍPIO DA FUNGIBILIDADE RECURSAL E SEUS ENTRELACES EM SITUAÇÕES SIMILARES IN CASU

Fungibilidade significa, no conceito jurídico, a substituição de uma coisa por outra (Silva, 1993:336) [17]. Por sua vez, o princípio da fungibilidade indica que um recurso, mesmo sendo incabível para atacar determinado tipo de decisão, pode ser considerado válido, desde que exista dúvida, na doutrina ou jurisprudência, quanto ao recurso apto a reformar certa decisão judicial.

Em outras palavras, ressalvadas as hipóteses de erro grosseiro, a parte não poderá ser prejudicada pela interposição de um recurso por outro, devendo o processo ser conhecido pelo Tribunal ad quem (segundo se extraia da hermenêutica do Código de Processo Civil de 1939, em seu art. 810[18]).

O Código de Processo hodierno, na esteira das legislações modernas alhures, adotou o princípio da instrumentalidade das formas e dos atos processuais, consoante se vê do seu art. 244. Segundo esse preceito "o ato só se considera nulo e sem efeito se, além de inobservância da forma legal, não tiver alcançado a sua finalidade".[19] O interesse é no objetivo imanente do ato, não no ato de per si.

No caso sub examine, torna-se impossível louvar processualmente o axioma da fungibilidade, visto que o recurso interposto constitui flagrante erro procedimental que avulta aos olhos de qualquer um, conforme aduziu o então Ex.º Relator Min. Celso de Mello.

Este erro grosseiro do recurso, ao fugir da orbe taxativa de possibilidades arroladas pelo art. 333 do RISTF para sua real e permitida configuração, constituiu o grande óbice a reaproveitá-lo em recurso de natureza mais cabível. Visível, portanto, perceber a tentativa infame de procrastinar o andamento da lide.

Realce-se, outrossim, a assertiva do Relator ao indicar o referido erro como de cunho inescusável. Ora, com a existência de norma explícita e indicadora dos pressupostos passíveis para consagrar legal permissão do presente Embargos, não pode o patrono da parte, profissional detentor do saber jurídico necessário para postular em juízo - e continuar na demanda até esta fase – desconhecer a taxatividade normativa cuja observância impera erga omnes.

Desta feita, do erro inescusável não se pode admitir complacências, sob pena de se premiar o mau litigante. Um recurso com esta natureza ululante em procrastinar, como bem percebido pelo Tribunal, torna-se incognoscível, sendo impossível adotá-lo em outra modalidade ou substituí-lo por outro idôneo.

Todavia, impende trazer à baila as preciosas palavras do Mestre MEDINA, para quem a simples atecnia acerca da possibilidade do recurso ou seu mau uso, não enseja o famigerado abuso processual[20]. Ótima lição, afinal, punir aquele que erra com a mesma sanção daquele que sabe, mas ignora o certo, é uma desarrazoada medida que fere os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade.

Destarte, para a boa compreensão referente ao afastamento do princípio da fungibilidade ante a visível ocorrência de abuso processual, é imprescindível a ocorrência de erro grosseiro com o único intuito protelatório em sua natureza, isto é, há de haver o animus protelandi da parte em errar tão somente para delongar a andamento normal do feito.


4. AS MEDIDAS REPRESSIVAS A PRATICA DO ABUSO PROCESSUAL

O Juiz ou Tribunal, vendo-se diante de ato da parte com cunho de má-fé, não só pode, como deve proceder as devidas providências para responsabilizar a parte de má-índole bem como afastar nova conduta idêntica, afinal, é dever do Estado-Juiz manter a pureza da prestação jurisdicional sob sua exclusiva égide.

Por mais que se pense, sempre primeiramente, na multa como a sanção ao abuso processual, existem multifárias condutas capazes de refletir uma punição ao litigante ímprobo. Algumas delas foram visivelmente utilizadas no Julgado em estudo De modo sucinto, importa conhecê-las.

4.1 A devolução imediata dos autos

A devolução imediata dos autos, medida esta tomada pelo STF em Acórdão sub examine, não deve ser vista exatamente como uma punição, e sim como uma forma cautelar, preventiva, de evitar novos recursos interpostos com igual natureza procrastinatória.

Com a devolução dos autos ao Juízo de origem, o douto Supremo Tribunal demonstrou ter finalizado sua prestação jurisdicional, chegando a conclusão definitiva sobre o assunto, não cabendo mais qualquer dilação de discussão sobre a matéria.

Desta feita, ao processo caberá apenas a execução da sentença e o cumprimento dos demais trâmites judiciais.

4.2 A multa sancionatória

Eis a maior sanção ao improbus litigator.

Em muitas situações, a parte não somente embaraça de má fé a efetividade de provimento jurisdicional como também adentra com profundidade em sua contumélia processual a fim de frustrar o direito alheio e induzir a erro o juiz, buscando obter vantagem imérita, por meio da prática de viciosos atos procrastinatórios.

A sanção a quem age de má-fé, segundo o disposto no art. 16 do Código de Processo Civil, é a condenação a ressarcir a outra parte por prejuízo ocasionado, cujo valor será arbitrado em quantia não superior a 20% do valor da causa ou liquidado por arbitramento (CPC, art. 18, § 2º).

Sendo o valor do prejuízo sofrido superior a esse limite de 20%, o ofendido deverá demonstrar a extensão dos danos sofridos por meio de arbitramento do juiz.

Há parte da doutrina que opina ainda a favor do dano moral em decorrência da conduta abusiva, na linha de que, se todo processo deve ser probo, o desvio do caminho da integridade constitui ofensa à moral. Não se fala aqui da moral do processo, mas a moral ao processo, aquele caráter decoroso exigível reciprocamente das partes litigantes, onde seu descumprimento constituirá em aviltamento ao espírito da boa-fé do outro. No dizer de MEIRELLES DE OLIVEIRA:

Se o juiz afere a conduta ímproba e a parte prejudicada não alega prejuízos materiais, a indenização só é devida pelos danos morais, pois o litigante foi atingido no seu direito de ter um processo pautado pela probidade, e ainda, a indenização tem caráter nitidamente sancionador; pode, então, o juiz estabelecer, desde logo, a sanção em até 21% do valor da causa: 1% a título de multa e 20% a título de indenização. [21]

Gize-se a recente douta decisão proferida pela Exª juíza MYLENE PEREIRA RAMOS, da 63ª Vara do Trabalho, nos autos do processo n. 02784200406302004, denominando o tema ora tratado de assédio processual:

Praticou a ré 'assédio processual', uma das muitas classes em que se pode dividir o assédio moral. Denomino assédio processual a procrastinação por uma das partes no andamento de processo, em qualquer uma de suas fases, negando-se a cumprir decisões judiciais, amparando-se ou não em norma processual, para interpor recursos, agravos, embargos, requerimentos de provas, petições despropositadas, procedendo de modo temerário e provocando incidentes manifestamente infundados, tudo objetivando obstaculizar a entrega da prestação jurisdicional à parte contrária. (grifos nossos)

Lembre-se que muitos desses atos são praticados quando a parte já fora penalizada por litigância de má-fé e, assim, considera ter ganho nova oportunidade para reiterar, sem limites, na prática processual protelatória. No julgado em análise e comento o Min. Rel. Celso de Mello reconhece com nitidez o caráter procrastinatório do recurso diante do que chama de:

(...) quase interminável sucessão de impugnações recursais deduzidas na presente causa (sou relator de 3 (três) agravos de instrumento – AI 342.393/SP, AI 414.284/SP e AI 481.368/SP -, todos deduzidos pela mesma parte e no contexto da mesma controvérsia) -, evidencia-se o claro propósito de obstar-se, de modo indevido, o regular procedimento do litígio.

Por todos esses motivos, é importante que a condenação seja de caráter pedagógico, para o exercício abusivo do processo, não só punindo o ímprobo, como lhe ensinando, ainda que pelo temor da sanção, a não repetir o malfeito, tendo um caráter muito mais importante no sentido preventivo de novas incidências do gênero.

In fine, destaque-se que a multa, evidentemente, não tem qualquer caráter ressarcitório, mas apenas punitivo e inibitório, pois visa a impedir o exercício irresponsável do direito de recorrer uma vez que, sem o depósito prévio da multa, ausente está pressuposto objetivo de admissibilidade de novos recursos (v. § 2º do art. 557).[22]

E, em que pese o objetivo principal de preservar a boa administração da justiça, o beneficiário de todas essas sanções é a parte e não o Estado, não importando se a parte é favorecida pela Assistência Judiciária Gratuita, como se extrai do julgado em tela.


5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A lide é um prélio volitivo, com regras próprias e bem definidas, em que o árbitro é o Estado-Juiz. No entanto, está longe de ter aquela vileza da guerra, na qual todas as armas são válidas para alcançar a vitória. Assemelha-se mais a um jogo, como na excelente lição de CALAMANDREI[23], onde até mesmo a derrota, quando justa a competição, é digna de mérito. Aqui, a trapaça não pode ter vez.

Logo, o processo jurídico deve ser pautado sempre na honestidade do pleito, ser integro, probo; sem nunca se curvar ao sabor da vontade alheia. O instrumento processual quando utilizado em consonância ao simples alvedrio termina por perder sua natureza mais imanente – a de fazer Justiça. E nesse passo, ao exemplo do julgado em pesquisa, o que era uma prerrogativa – o direito de recorrer no caso – passa a um excesso de direito – o abuso processual em recorrer.

Para evitar esta jaça jurídica, há de existir um esforço mútuo entre todos os participantes do processo. Dos procuradores em nortear com integridade seus representados, auxiliando na condução de uma lide intemerata; das partes em proceder e instigar uma Justiça tal qual idealizada pela própria mente social, livre de conspurcações dos interesses pessoais; e, não se esqueça, do Estado, e da coletividade, personificados na demanda pelo Magistrado e Ministério Público, respectivamente, dotando o Direito daquela fração necessária de moralidade, fiscalizando a ordem para a lealdade processual.

Nesse sentido, o Supremo Tribunal Federal foi preciso no julgado, examinando o recurso e punindo com a potência necessária o abuso cometido de forma manifesta, acordando com todos os fatores de análise aqui discutidos ao descobrimento de uma conduta abusiva.

A ocorrência de tais condutas viciosas, acrescente-se, apenas confere ao Judiciário um agravamento de sua famigerada morosidade, ocupando plenos e julgados com atos processuais desmerecidos.

O acesso a Justiça, claro, deve ser amplo sem comportar quaisquer comezinhas restrições. Mas tal acesso também precisa ser fundado, com caráter leal a legalidade e objetividade do fim de cada ato, perfazendo da atuação judiciária um caminho para todos os legítimos interesses, excluindo-se aqueles voltados à protelação e tantas mais características não compatíveis á boa-fé jurídica.


REFERENCIAS:

a) Doutrina

BARBI, Celso Agrícola. Comentários ao Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: editora Forense, vol. 1

CAVALI, Luiz Octávio David. Abuso do processo civil: critérios para sua constatação. Revista da ESMESC, v. 16, n. 22, 2009.

DINAMARCO, Cândido Rangel, A Reforma do Código de Processo Civil, 3a ed., São Paulo, Malheiros, 1997, pág. 22.

GRINOVER, Ada Pellegrini. Paixão e morte do ‘contempt of court’ brasileiro” – art. 14 do Código de Processo Civil, in Direito Processual: inovações e perspectivas. Estudos em homenagem ao Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira. Coordenadores Eliana Calmon & Uadi Lammêgo Bulos. São Paulo, Saraiva, 2003, p.1.

LUCON, Paulo Henrique dos Santos. “Abuso do exercício do direito de recorrer”. in Aspectos polêmicos e atuais dos recursos cíveis. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001, v. 4.

MEDINA, Paulo Roberto Gouvêa. “O direito de recorrer e seus limites”, in Aspectos polêmicos e atuais dos recursos cíveis, São Paulo, Revista dos Tribunais, 2000.

OLIVEIRA, Ana Lúcia Lucker Meirelles de. Litigância de má-fé. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000.

SILVA, De Plácido e. Vocabulário Jurídico. 3ª. ed., Rio de Janeiro: Forense, 2001.

THEODORO JÚNIOR, Humberto. O Processo Civil Brasileiro no Limiar do Novo Século. Rio de Janeiro: Forense, 1999.

---------------. “Abuso de Direito Processual no Ordenamento Jurídico Brasileiro”, in Abuso dos direitos processuais, Rio de Janeiro, Forense, 2000, coord. José Carlos Barbosa Moreira.

-----------------. “As alterações do Código de Processo Civil introduzidas pela Lei n. 9.756, de 17.12.98”, in Ciência Jurídica, v. 85, Síntese, Porto Alegre.

b) Jurisprudência

MYLENE PEREIRA RAMOS, Juíza Federal, da 63ª Vara do Trabalho, da Seção Judiciária da Comarca de São Paulo, in processo nº 02784200406302004.

CELSO DE MELLO, Ministro do Supremo Tribuna Federal, in AI 342.393 – AgR – ED – EI/SP.


Notas

[1] COUTURE, Eduardo. Os Mandamentos do Advogado. Tradução de Ovídio Baptista da Silva e Carlos Otávio Athayde. Sérgio Antonio Fabris Editor, Porto Alegre, 1979.

[2] Graduando em Direito pela Universidade Estadual de Feira de Santana.

[3] Vale transcrever a letra da lei: Art. 333. Cabem embargos infringentes à decisão não unânime do Plenário ou da Turma:

I - que julgar procedente a ação penal;

II - que julgar improcedente a revisão criminal;

III - que julgar a ação rescisória;

IV - que julgar a representação de inconstitucionalidade;

V - que, em recurso criminal ordinário, for desfavorável ao acusado.

Parágrafo único. O cabimento dos embargos, em decisão do Plenário, depende da existência, no mínimo, de quatro votos divergentes, salvo nos casos de julgamento criminal em sessão secreta.

[4] Art. 18. O juiz ou tribunal, de ofício ou a requerimento, condenará o litigante de má-fé a pagar multa não excedente a um por cento sobre o valor da causa e a indenizar a parte contrária dos prejuízos que esta sofreu, mais os honorários advocatícios e todas as despesas que efetuou.

[5] DINAMARCO, Cândido Rangel, A Reforma do Código de Processo Civil, 3a ed., São Paulo, Malheiros, 1997, pág. 22.

[6] THEODORO JÚNIOR, Humberto. “Abuso de Direito Processual no Ordenamento Jurídico Brasileiro”, in Abuso dos direitos processuais, Rio de Janeiro, Forense, 2000, coord. José Carlos Barbosa Moreira.

[7] GRINOVER, Ada Pellegrini. Paixão e morte do ‘contempt of court’ brasileiro” – art. 14 do Código de Processo Civil, in Direito Processual: inovações e perspectivas. Estudos em homenagem ao Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira. Coordenadores Eliana Calmon & Uadi Lammêgo Bulos. São Paulo, Saraiva, 2003.

[8] Cleon Oliphant Swaysse, apud Ada Pellegrini Grinover, op. cit., p. 5

[9] Assim aquiesce COUTURE apud CAVALI, Luiz Octávio David. Abuso do processo civil: critérios para sua constatação. Revista da ESMESC, v. 16, n. 22, 2009: “Em  nosso modo de ver, o dever de dizer a verdade existe, porque é um dever da conduta humana. Porém, o que o processo precisa não é somente a verdade formal, precisa da lealdade, do jogo limpo e não do subterfúgio”.

[10] Apud CAVALI, Op. Cit.

[11] LUCON, Paulo Henrique dos Santos. Abuso do exercício do direito de recorrer. In Aspectos polêmicos e atuais dos recursos cíveis. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001: “(...) se é certo que muitas vezes o advogado se envolve excessivamente com a causa, colaborando com isso o cliente que a todo momento pressiona seu constituinte, é também certo que o julgador deve levar em conta esses elementos no momento de decidir por impor ou não determinada sanção processual. É preciso lembrar, mais uma vez, que a efetiva constatação do dolo ou da culpa grave é imperativa para a aplicação de toda e qualquer sanção por abuso de direito processual.”

[12] CAVALI, Luiz Octávio David. Abuso do processo civil: critérios para sua constatação. Revista da ESMESC, v. 16, n. 22, 2009.

[13] Apud CAVALI, Op. Cit. p. 16.

[14] Apud CAVALI, Op. Cit. p. 17.

[15] Idem, ibidem: “A falta de seriedade encontra semelhança com o dispositivo do mero capricho do Código de Processo Civil de 1939 (art. 3º). O que caracteriza essa conduta é o propósito injustificado que, obviamente, não se coaduna com os fins do processo.”

[16] Idem, p.20: “(...) entendemos que as hipóteses de abuso processual não podem ser taxativas, podendo vir a ocorrer um abuso do processo não previsto no art. 17 do CPC. Nessa situação, como o legislador não presumiu a má-fé, deverá ser verificado se houve desvio de finalidade na situação subjetiva exercida. Ocorrendo tal desvio, há de ser verificado qualquer dos outros elementos que em conjunto com o desvio de finalidade configuram abuso do processo.”

[17] SILVA, De Plácido e. Vocabulário Jurídico. 3ª. ed., Rio de Janeiro: Forense, 2001.

[18] O Código de Processo Civil passado, Decreto-Lei nº. 1.608, de 18 de setembro de 1939 em seu artigo 810 estatuía que: "Salvo a hipótese de má-fé ou erro grosseiro, a parte não será prejudicada pela interposição de um recurso por outro, devendo os autos ser enviados à Câmara, ou Turma, a que competir o julgamento."

[19] THEODORO JÚNIOR, Humberto. O Processo Civil Brasileiro no Limiar do Novo Século. Rio de Janeiro: Forense, 1999.

[20] MEDINA, Paulo Roberto Gouvêa. “O direito de recorrer e seus limites”, in Aspectos polêmicos e atuais dos recursos, São Paulo, Revista dos Tribunais, 2000.

[21] OLIVEIRA, Ana Lúcia Lucker Meirelles de. Litigância de má-fé. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000.

[22] Nesse sentido, relacionando o recolhimento da multa como condição para a interposição de novo recurso, THEODORO JÚNIOR, Humberto. “As alterações do Código de Processo Civil introduzidas pela Lei n. 9.756, de 17.12.98”, p. 359.

[23] Apud BARBI, Celso Agrícola. Comentários ao Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: editora Forense, vol. 1, p. 99: “O processo não é apenas a ciência do direito processual, nem somente a técnica de sua aplicação prática, mas também leal observância das regras desse jogo, isto é, fidelidade aos cânones não escritos da correção profissional, que assinalam os limites entre a habilidade e a trapaça”.


A BRIEF STUDY ABOUT THE ABUSE OF PROCEDURE IN THE LIGHT OF A PARTICULAR CASE OF THE JURISPRUDENCE OF THE SUPREME COURT

Abstract:The present work aims to analyze and discuss the subject of procedural abuse, specifically referring to the right to appeal, in the Brazilian legal system through a case study brought by the jurisprudence of the Supreme Court confronted to the lessons of the doctrine, as well as demonstrate the repressive measures used more as a result. Also treats the applicability of the fungibility of appeals in cases of gross error in appeal. Finally, will the classic repressive measures used by-law aimed at the removal of the occurrence of abuse of procedure.

Keyes-words: Procedural Abuse; Supreme Court; Doctrine; Fungibility of Appeals.


Autor

  • Lucas Correia de Lima

    Possui graduação em Direito pela Universidade Estadual de Feira de Santana (2015). Pós-Graduado em Direito Processual Civil pela Faculdade Damásio (2017). Mestre pelo Instituto de humanidades, Artes e Ciências Professor Milton Santos, da Universidade Federal da Bahia (2019). Doutorando em Direito pela UFBA. Foi advogado do Município de Ipirá no ano de 2015, aprovado em primeiro lugar na seleção, saindo das atividades para exercer a função de Conciliador do Tribunal de Justiça do Estado da Bahia (2015-2016), também aprovado em primeiro lugar. Articulista com obras publicadas em variados boletins informativos e revistas jurídicas, em meio físico e eletrônico. Membro associado do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM). Membro da Associação Brasileira de Direito Educacional (ABRADE). Membro colaborador do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (IBRAJUS). Professor da Uninassau, na disciplina de Direito das Obrigações e Tópicos Integradores II. Integra atualmente o Tribunal de Justiça de Justiça. Conferencista, pesquisador e palestrante. Tem experiência na área de Direito, atuando principalmente nos seguintes temas: sociedade, universidade, políticas afirmativas, negro, mulher, educação, crime, lei e violência.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LIMA, Lucas Correia de. Um breve estudo acerca do abuso processual à luz de um caso concreto da jurisprudência do STF. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3738, 25 set. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/25391. Acesso em: 25 abr. 2024.