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Protestos no Brasil: o direito também brota das ruas

Protestos no Brasil: o direito também brota das ruas

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Fontes materiais do Direito em xeque. Reflexões sobre o caso emergente em 2013: balanço dos movimentos populares de rua e dos direitos afirmados à margem do sistema representativo e institucional.

Resumo

A proposta deste texto é responder à indagação do porquê as providências institucionais falharam em impedir a decadência das ações do Estado para manter uma ordem jurídica, assim aceita majoritariamente, como sendo aquela que reconhece e responde de modo efetivo ao exercício regular dos direitos de cidadania.

Acaso as principais funções, de governar, legislar e julgar, foram bloqueadas pela própria inoperância das instituições?

O painel traçado a seguir também procura responder por que as manifestações públicas que atravessaram o país tomaram a feição de uma democracia direta revoltada, diante da democracia formal representativa, quando esta passou a ser produtora de um pastiche de leis, de julgamentos e de atos administrativos que visam a interesses particulares e corporativos, seguidamente escusos, atentando contra o interesse público.

O outro propósito do texto é o de que a resposta esteja compreendida dentre os instrumentos de análise de que dispõe o Direito para se mostrar operativo, enfrentando assim as contingências históricas momentâneas exatamente para resguardar a permanência que é própria do conhecimento jurídico.


ABORDAGEM

Partamos do que é de nossa específica competência científica, como propôs o professor Goffredo da Silva Telles Jr. no notável texto que redigiu em 1977 e leu nas arcadas da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, em São Paulo. Trata-se do escrito mais emblemático produzido no período do estado de exceção vivido no Brasil entre 1964 e 1985, com o título singelo de Carta aos Brasileiros (Fonte: www.goffredotellesjr.adv.br), que pode servir de paradigma como um pronunciamento crítico das legítimas elites intelectuais do país, as quais não querem e não devem ser confundidas com o elitismo discriminatório ou com políticas elitistas, que tanta revolta causam em uma república que - antes de tudo - deveria ser a “république des égaux” (república dos iguais) preconizada por Gracchus Babeuf.

Ocorre que é necessária uma reflexão mais profunda sobre as manifestações de rua que incendiaram, metafórica e literalmente, muitas cidades do Brasil desde o início de junho de 2013 (em Porto Alegre, onde tudo começou, a partir do mês de março), captando a atenção do mundo e daquela que deveria formar a intelligentsia nacional? e esteve acuada na sua perplexidade?, seja ela formada pelos representantes políticos, seja pelos analistas sempre prontos a reivindicar um saber especializado a mais das vezes em “especialidades” inexistentes, seja, por fim, pela imprensa, ainda que esta se mostre mais apta para reagir em seguida à precipitação incontrolável dos fatos, praticando o jornalismo investigativo.

É motivo justificado para incredulidade inicial imaginar que uma reivindicação de estudantes, escudados embora na militância de partidos políticos menores e em grupos de ação política não orgânica que acreditam na desobediência civil (seria ingenuidade ignorar esse dado importante), dirigida inicialmente contra o aumento do custo no transporte urbano, tenha destampado a caixa de Pandora e exposto todos os vícios da República. Como e por que um protesto inicial contra o valor elevado das passagens dos ônibus urbanos ganhou corações e mentes? Como e por que agora um movimento de massa importante pôde ser organizado com base no atomismo, sem lideranças carismáticas e sem a intermediação das elites?  Como e por que os males dos governos e das instituições receberam a maldição daquela desobediente Pandora que, ousando em sua curiosidade sobre os segredos do mundo dos deuses, descumpriu a recomendação recebida e, segundo conta Hesíodo, abriu o jarro que os continha? A resposta, tal como na mitologia, está na constatação primeira do surgimento de uma recusa. No caso localizado dos transportes urbanos, recusa de que a conta fosse repassada à população por uma lógica de transferência, decorrente do funcionamento do Estado clientelista, corporativo, muito seguidamente corrupto e leniente com crimes e mau atendimento nos serviços públicos. E, sobretudo, pouco reformador, apesar da retórica insistente propagando o contrário. A recusa teve, portanto, tal como a atitude de Pandora em ceder à curiosidade de conhecer o segredo dos deuses, o efeito de desencadear o questionamento radical centrado nesta indagação: o Estado tem necessariamente de funcionar assim? A negativa obstinada em mais uma vez “pagar a conta”, embora se trate de um valor pequeno dentre tantos preços públicos, e o desejo intenso de substituir-se à recomendação dos que têm o poder (simbolicamente, os deuses), para que tudo continue como está, indicam que não. Daí ter surgido nas manifestações uma longa e criativa série de cartazes “não é pelos 20 centavos, mas por...”

De todo modo, a lição que vem com simplicidade dos séculos, propagada desde Confúcio, é esta: “a experiência é como uma lanterna dependurada nas costas que apenas ilumina o caminho já percorrido”. Ou seja: ilumina para trás. Há presentemente tantas coisas novas como aquelas que, na segunda revolução industrial, motivaram o pronunciamento do Papa Leão XIII na sua encíclica “Rerum Novarum”. Há tecnologias novas, vontades novas, recusas novas, condições sociais novas, novas descrições do que seja digno e indigno à luz de um conhecimento imediato e universalizado dos fatos, e essas realidades não podem ser iluminadas pela luz da experiência. Eis a primeira razão para a perplexidade. A segunda diz respeito à linguagem. As reivindicações não podem ser desprezadas porque resultam de vozes a esmo, ou porque não foram “pautadas” por algum editor, como os jornalistas gostariam que acontecesse, por cacoete da sua profissão. Não há uma clara relação de causa e efeito, nem todas as consequências dos pleitos foram dimensionadas em sua repercussão econômica. Também não parece inteligível porque nos centros históricos das cidades prédios tombados viraram alvos inertes da fúria predatória, nem que veículos destinados ao transporte público – tal qual acontece em ações episódicas do crime organizado – tenham sido queimados.

É bem de ver, inicialmente, que a linguagem tem um substrato simbólico. Seria preciso que todas essas coisas fossem traduzidas em palavras precisas, e gerassem consequência, para que não viessem a ser “ditas” com paus, pedras, fogo e ferro. Acontece que já foram ditas com palavras até a exaustão e não produziram resultado convincente. Ao contrário, os processos de controle institucional das atividades de governo, de legislação e de jurisdição foram e continuam sendo sistematicamente fraudados, de sorte que há uma grande impostura, uma imensa contrafação nas ações do Estado, que sucumbe à função principal de instituir e defender o bem comum, sem realizá-la.

Ora, a linguagem que se estabeleceu para contestar a grande pantomima dos ritos custosos, numa república formal cujo deficit de cidadania é abismal, não poderia ser aquela dos requerimentos, das petições públicas, da intermediação dos representantes políticos, da espera por julgamentos reparadores, sendo que estes últimos geralmente são insuficientes em repor os bens sociais dilapidados, quando não vêm tarde demais. A linguagem a ser considerada, sendo a única capaz de levar a um entendimento das razões da mobilização, é aquela que decorre do funcionamento modular da mente, e se capacita pela função neuronal diante de questões tópicas. Não se há de esperar que pessoas se mobilizem com um elevado grau de motivação exclusivamente por aspectos racionais, tanto mais em assuntos complexos, que só podem ser dominados por aqueles que tenham conhecimentos profissionais avançados, ou se mostrem acessíveis através de demorados estudos. O que se viu foi a falência do discurso cedendo à ação, e não se podia esperar que a ação tivesse a natureza de um discurso.

A linguagem praticada é aquela da inteligência emocional, obviamente sem o engodo em que implica o uso místico ou capcioso dessa expressão, como é tão comum na prática da autoajuda impostora. O que interessa aqui é a valoração científica dessa expressão da inteligência humana, que não decorre dos métodos lógicos e dedutivos conhecidos no processo civilizatório. O que está em jogo são razões que não podem ser tidas como estritamente razoáveis, nem atitudes que se contenham inteiramente em explicações demonstrativas de uma causa determinada. Por igual, não se pode esperar que os efeitos sejam correspondentes simetricamente ao motivo que ensejou a ação. A lógica argumentativa já cedeu seu lugar para o ímpeto emotivo, pois há um novo ponto de partida: não é mais possível o diálogo e, ainda assim, existe a sensação difusa de que é impossível calar.

Se tudo isso for considerado com seriedade, é possível entender porque há uma aparente quebra da ordem institucional exatamente em nome de restaurá-la. Em primeiro lugar, é acessível a compreensão do que seja uma grande recusa, ainda que ela não se explique em termos estritos de lógica. A recusa abrange a própria lógica, uma vez que o resultado inexorável desta passou a não ser mais aceito. A constatação básica, portanto, tomada como o já mencionado novo ponto de partida é: o sistema não tem nenhuma lógica aceitável. Em segundo lugar, a mobilização envolve um impulso em torno de uma solidariedade que não está destinada a ninguém, mas a todos. É preciso entender o uso dessa inteligência que se manifesta de acordo com grandes impulsos, inspirações profundas, inclusive nos autores iconoclastas que a humanidade afinal reverenciou. Recusa e desejo, portanto, são as palavras que têm de ser entendidas agora, diante do dinamismo dos fatos históricos, para além do seu sentido literal e óbvio.

As manifestações acabaram formando uma procissão improvável, mas presente, que reúne os espectros de Nietzsche, Tolstoi, Orwell, Maquiavel, Bakunin e Jean Genet, dando eco aos seus clamores ainda que eles sejam mal percebidos, de forma indistinta, como se retumbassem numa imaginária unidade. Os manifestantes podem não ter a ciência das questões pormenorizadas aqui expostas, mas também não estão em busca do conhecimento de sala de aula. É verdade que esse conhecimento liberta, mas trata-se agora de engajar o resultado do que se tornou conhecido e assumir a condição de libertado. Nesse ponto, não é a apatheia dos estoicos que poderia motivar alguma ação. Se há uma consciência presente de que existe um alijamento do interesse popular nas ações do governo representativo, a apatheia perderia o sentido superior característico do estoicismo, de aceitar serenamente a condição humana, e ganharia a acepção de apatia, palavra dela derivada. Portanto, o mais próprio seria esperar que a potência (recusa + desejo) se transformasse em ato e que uma natureza mais autêntica se revelasse, de modo que houvesse de fato uma realização. É esse o entendimento que a palavra enteléquia, proposta por Aristóteles, proporciona. Esta é - bem sumária - a lição dos gregos.       

Com isso fica mais fácil fazer uma aproximação histórica das manifestações deste 2013 com os episódios de maio de 1968, tanto na França como na Califórnia. Dentre as originais divisas daquele movimento, ainda ecoa “não sabemos o que queremos, mas sabemos o que não queremos”, mas – como tudo na vida – com uma atualização não menos lírica, mas necessária e realista: “não sabemos o que queremos em nosso próprio interesse, mas sabemos o que não queremos, no interesse de todos”.           

Não fazer nada, uma vez assumida a consciência de todo esse processo de entendimento, o qual não se compreende unicamente na inteligência que opera com a lógica linear, significaria exigir uma situação de acomodado sofrimento, verdadeiro masoquismo apático, que não é minimamente decente esperar dos outros ou de coletividades inteiras. Como todas as coisas da vida, a espera também deve ter um fim.                 


OUTRA FORMA DE PODER

Foi salientada no início deste texto a recomendação da Carta aos Brasileiros: “fiquemos no que é da nossa competência”. É importante, nesse propósito, retomar as lições dos clássicos. A divisão metodológica do Direito entre objetivo e subjetivo é largamente conhecida. Enquanto o direito objetivo é aquele que decorre da ordem jurídica estabelecida, da legislação, com suas práticas de aplicação, mediante o funcionamento dos órgãos que têm a incumbência de velar para que ela não seja violada, o direito subjetivo, menos percebido fora do meio jurídico, ainda pode ser apresentado pela conceituação do jurista francês da área de direito público Léon Duguit: “é um poder do indivíduo que vive em sociedade. É um poder para o indivíduo obter o reconhecimento social do objeto que pretende, quando o motivo que determinar o seu ato de vontade é um fim considerado legítimo pelo direito objetivo.” O grande mestre ainda completa: “parte-se assim do direito subjetivo para nos elevarmos ao direito objetivo: fundamenta-se o direito objetivo no direito subjetivo”.

O que aconteceu no Brasil – e terá ainda desdobramentos - tem a ver com uma percepção aguda do obscurecimento insustentável do direito subjetivo como poder e como ato de vontade, embora formalmente – vale dizer, de modo não operativo na prática – ele esteja inscrito na Constituição e nas leis como legítimo. No caso que interessa, há um alijamento e uma sufocação visíveis dos direitos subjetivos públicos, embora vivamos em uma era de francas reivindicações das prerrogativas de cidadania.

O que temos são atores sociais que não atuam, pois a intermediação decisória, isto é, aquela que forma as instâncias várias do poder, exerce uma força de inércia que paralisa todas as reivindicações que se mostram marginais aos interesses genéricos estabelecidos pelos agentes do mesmo poder. Assim, se existe a escolha de realizar determinada política pública, seja ela a de transpor ou alterar o curso de um rio, ou patrocinar o futebol na copa do mundo, ou de criar ministérios desnecessários, todas as objeções são sufocadas e não suscitam nunca uma avaliação qualitativa que, quando menos, permitisse o exame crítico das consequências das ações de governo.

O silêncio das bocas de quem pode exercer o direito do voto – sob as manipulações admitidas por uma legislação cheia de falhas e, mais ainda, de campanhas eleitorais maçantes e viciadas no jogo de intrigas, sob patrocínios caros – resulta numa exata privação do direito de voz. Não foi um acaso que o presidente do STF, chamado ao Palácio do Planalto para fazer suas conjecturas sobre a crise, tocou num ponto que parece esquecido e, no entanto, é espantoso em suas implicações: como podem os tribunais eleitorais ser compostos por juristas que são advogados em atividade e, em consequência, patrocinadores legítimos de interesses de políticos e outros envolvidos nos processos eleitorais? As manifestações populares em curso trouxeram, nos seus cartazes variadíssimos e criativos, observações claras sobre a percepção popular de alguns problemas. A respeito da PEC 37, por exemplo, houve um que fez a síntese de toda a discussão que as corporações mantiveram e o Congresso alimentou difusamente, num impasse artificial, antes de decidir por grande maioria arquivar o projeto. Dizia o cartaz: “Os políticos comandam a polícia. Quem vai investigar os políticos?”.

Ora, para responder a essas duas perguntas simples, à maneira socrática, caberia fazer outras: não devem os juízes eleitorais ser exatamente juízes, isto é, estarem proibidos de advogar interesses? A polícia, por outro lado, não pode apresentar deficiências no seu trabalho investigativo, de modo que convenha seja ele completado por outros órgãos que disponham de meios, seus próprios, para apreciar os mesmos fatos sob uma óptica diferente, que não foi suficientemente explorada? Estas questões deixam clara uma situação de anomia em que as normas decorrentes das leis, da ação administrativa do Estado e dos pronunciamentos judiciais deixam de ser aplicadas, exatamente em virtude de uma situação de desorganização que desgarante, na prática, o reconhecimento dos bens jurídicos que deveriam ser protegidos. É a constatação da “lei ausente”. A lei que foi concebida, mas não opera.

As mobilizações, que iniciaram como protesto fundado na recusa de um aumento, e ganharam o corpo de uma rebelião social, têm subjacente uma compreensão percebida e sentida como efeito de um erro insuportável em um sistema de representação: a anomia impede a satisfação dos direitos subjetivos. O “uomo della strada” (homem da rua) mencionado pelo grande Carnelutti não saberia dizer isso, mas ele pode senti-lo. E agir.                 


O EXEMPLO DA LEI DA FICHA LIMPA

A sabotagem de uma iniciativa popular - O histórico da Lei da Ficha Limpa (Lei Complementar 135/2010) não precisa ser recontado pois se refere a fatos recentes e está narrado em muitos registros na internet.  Basta lembrar que iniciou com uma petição de 1 milhão e 300 mil eleitores, dando origem  ao Projeto de Lei Popular 519/2009. Esse ensaio exitoso de democracia direta combinado com democracia representativa logo suscitou impasse nos tribunais. Teve sua aplicação protelada. Levado o caso ao Supremo (que na época contava com dez ministros), deu-se o empate. Finalmente, nomeado o 11º, o desempate foi no sentido de postergar a vigência até as eleições seguintes. Mal a lei tornou-se de eficácia plena, já surgiram iniciativas legislativas para restringir essa iniciativa que – na linguagem imprópria mas divulgada “ad nauseam” – é “moralizadora”. Melhor seria dizer: restauradora da legitimidade da representação.

A mudança da Lei da Ficha Limpa marcará o êxito de uma armadilha, um engodo ao esforço de pessoas e instituições que mobilizaram a população para que, ao menos, os políticos condenados em segundo grau perdessem a condição de elegíveis. Esse revés nas aspirações populares, que leva as massas à frustração, pois nada de reformador pode ser feito com resultado permanente, é sem dúvida um motivo de revolta. E quando esta brota contra um todo indistinto, tudo o que está errado, vem à lembrança uma velha canção já incrustada no imaginário popular: O que será, que será/ O que não tem certeza/ Nem nunca terá/ O que não tem conserto/Nem nunca terá ...” O projeto para afrouxar as regras da Lei da Ficha Limpa, no sentido de autorizar as candidaturas de políticos condenados, é a definitiva frustração no uso dos métodos de reforma legislativa e da crença neles (Fonte: Blog  josiasdesouza.blogosfera.com.br, de 29/05/3013;www.jusbrasil.com.br/ Projeto de lei altera ficha limpa; www. oabmg.org.br, Notícias de 05/06/2013).                                                                                                                


PARLAMENTO FALIDO (OU COMO FALSIFICAR VONTADES)

A intermediação política é necessária pelo menos depois que os gregos, tendo inventando a democracia com os traços fundamentais que hoje conhecemos, foram absorvidos pelo império alexandrino. Não foi mais possível reunir-se na ágora, a praça dos encontros dos cidadãos, na cidade-estado. Portanto, mesmo nas situações de profunda ruptura, como na comuna de Paris em 1871 ou na revolução soviética de 1917, não foi postulado o retorno da democracia direta, nos moldes da Grécia clássica. Ao invés, os parâmetros de representação buscados então, e a partir daí de modo crescente também em todas as formas de governo representativo liberal ou conservador, foram os de uma legitimidade crescente nos processos de escolha dos representantes, seja ampliando o alcance do voto (com o aumento do universo de eleitores e guardando a exatidão do sufrágio) ou compromissando os políticos com os postulados partidários, tanto os ideológicos e classistas como os relativos aos direitos civis. Este é o resumo do que passa como sendo a evolução havida no sistema da democracia representativa e é do conhecimento comum. Em dissonância com isso, os aspectos seguintes mostram a situação concreta da representação política e da atividade legislativa em nosso país:

1.         O saque na boca do caixa em nome da democracia representativa - Observada em junho de 2013, época das grandes manifestações de rua no Brasil, a situação do nosso parlamento é desapontadora. O Senado é a casa legislativa mais cara do mundo. Para os 81 senadores, emprega mais de 5 mil e 200 funcionários, efetivos ou comissionados, além de remunerar  mais de 2 mil e 400 aposentados e pensionistas, sem contar os serviços terceirizados. O custo de cada senador (relação da despesa orçamentária anual dividida pelo número de representantes) é de 33 milhões e 100 mil reais por ano. Portanto, o preço pago pelo brasileiro para ter um só senador por ano, ou muito poucos deles, poderia ressarcir e reparar os estragos que todos os atos de vandalismo, praticados na esteira das manifestações, causaram em Brasília, Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte, Vitória ou Porto Alegre (Fonte:  www.transparencia.org.br/docs/parlamentar.pdf).

Ainda que seja assim, o Senado está realizando presentemente concurso público para preencher 242 vagas de funcionários, com salários que variam de R$ 18.440,00 a R$ 23.826,00, para nível superior, e de R$ 13.833,00, para nível médio. Ou seja, funcionários iniciarão suas carreiras já percebendo perto do teto da remuneração do serviço público federal, que é o valor dos subsídios de um ministro do Supremo Tribunal Federal, sendo que ainda no curso de seu tempo de serviço acumularão vantagens, incorporações, adicionais, auxílios, retribuições e indenizações variadas. Como será possível fazer a contenção de seus ganhos dentro do limite fixado pelo teto? Além disso, os servidores de nível médio começarão recebendo vencimentos próximos aos de um delegado da Polícia Federal (R$ 14.037,00) e superiores aos de um cientista das fundações de pesquisa ou de um professor de universidade federal, ou de um médico responsável pelo controle de epidemias ou ainda de um engenheiro que fiscaliza a construção de obras públicas (Fonte: www.concursosenado.org). A comparação é impactante. Na ordem das prioridades para o país, a importância social e política de qualquer dos casos exemplificados é imensamente maior do que a de um servidor público de nível médio do Senado, considerando que o mesmo nunca terá (ou não deveria ter) competência decisória nenhuma. Além disso, suas exigências no trabalho serão muito menores, limitadas a funções burocráticas. Pois a lógica que impera é esta, a da inversão na importância funcional. Porém, cada vez mais, ela se mostra absurda. Como já existe uma consciência pública a respeito dessa distorção, outra face é agora exposta: ela também é inaceitável.

2.         Uma Constituição móvel para garantir interesses de grupo - A Constituição brasileira conta com aproximadamente 250 artigos (são aproximados porque foi introduzida a classificação alfanumérica e existem, por exemplo, os artigos 103, 103-A e 103-B). Além deles há 97 artigos nas disposições finais e transitórias. Já foram produzidas 74 emendas constitucionais e muitas delas são volumosas, não só transformando os artigos originais mas acrescentando muitos outros, que ficam paralelos, a latere do texto primitivo feito pelos constituintes. Ainda existem 6 emendas de revisão. Tudo isso foi produzido em menos de vinte e cinco anos, desde a promulgação da Carta em outubro de1988. Por fim, há emendas das emendas.

Cada país tem sua história e os sistemas constitucionais variam, mas – feitas essas ressalvas – são úteis as comparações. A Constituição americana data de 1787 e contém 7 artigos originais, é bem verdade que divididos em várias seções. Suas emendas, em mais de duzentos anos, somam apenas 27, sendo que as dez primeiras foram realizadas nos cinco anos iniciais de vigência, para integrar os termos da Bill of Rights de Virgínia, o texto da declaração de direitos redigido por Thomas Jefferson em 1776, ano da independência. A Constituição francesa da Quinta República data de 1958 e é também estável. Em cinco décadas teve 36 emendas. A Lei Fundamental da Alemanha previa a elaboração de uma Carta Magna quando o país voltasse a ser unificado. Transcorridos mais de vinte anos da unificação, continua a vigorar como sendo o texto constitucional, possivelmente em virtude da grande estabilidade jurídica que alcançou com sua interpretação sistemática pela Suprema Corte.

O que almeja nosso Congresso Nacional instituindo no Brasil uma Constituição móvel? Por outro lado, como esperar uma estabilidade jurídica no país se as regras básicas de funcionamento do Estado e da sociedade são mudadas intensa e seguidamente? Há de fato uma obsessão por reescrever o texto legal básico do país, como se sua suposta atualização apaziguasse tendências inovadores e, com essa ilusão, muitíssimas vezes se retrocede em relação ao que já havia sido disposto pelo constituinte originário. A irresponsabilidade do Parlamento para com a permanência razoável dos dispositivos constitucionais – pois eles afinal resultam de um grande pacto político que estabeleceu as bases do querer e do não querer coletivos mostra que saímos de um regime de exceção, que “movia” a Constituição para satisfazer interesses ditatoriais, ou para suprir sua incompetência de representação, para um “estado de dispersão”, supostamente democrático por abrigar múltiplas tendências, mas carente de um compromisso afirmativo de políticas públicas, de implantação de práticas democráticas, tanto no nível centralizado dos governos, como dos núcleos atomizados de manifestação da vontade baseada na vivência comunitária e nas opiniões técnicas ou científicas.

Em resumo, o que pode ser sentido por todos, como irremediável alienação, é que temos uma Constituição que não garante a todos, mas patrocina interesses que mudam, ou se sobrepujam, e têm de ser atendidos para favorecer grupos de pressão. Mesmo com a exigência do quorum qualificado, os congressistas descobriram que é melhor recorrer a uma PEC para atender a seus interesses banais, grupos trânsfugas ou clientelas de ocasião do que utilizar o projeto de lei, pois então se submeteriam ao veto presidencial, enquanto a emenda não passa pela presidência da República. De repente foi percebido pela população que a ação poderosa dos lobbies só pode ser compensada por mobilização de massa. Afinal, também é clara a percepção de que o Brasil não tem porque ser, no concerto das nações, aquele solitário país que insiste em ter uma Constituição móvel e, ao mesmo tempo, aspira tornar-se uma sociedade estável. Talvez ainda surja ainda um cartaz muito compatível com o que as manifestações  havidas já disseram: “Chega de PECs! Queremos uma Constituição permanente!”.

3.         Partidos e concessões públicas para patrocínio proselitista - Certamente é difícil para um estrangeiro entender porque o Brasil mantém mais de vinte partidos políticos sem identidade ideológica ou programática definível e com uma atuação oportunista que atrai o epíteto de partido de aluguel para muitos deles.  A chantagem política, manifestada na reticente fidelidade às bases de apoio das composições partidárias, tornou-se a regra. O funcionamento de partidos religiosos numa sociedade que se proclama laica ou bem traz para dentro do Estado um debate que não lhe diz respeito, nem se destina a alcançar o bem comum, ou faz do Estado um patrocinador da proposta de cooptar adeptos para confissões espirituais, mal disfarçadas em entidades que recebem subvenções para supostas ações assistencialistas, que pouco ou nunca realizam.

Serviços públicos de comunicação também são concedidos para doutrinação religiosa diretamente, por meio da cessão de canais de rádio ou TV, ou através de “aluguel de espaço”, que empresas laicas concessionárias fazem para igrejas ou entidades que se dedicam à pregação ou proselitismo de todo tipo.  Isso resulta na lobotomia coletiva que se assiste nos meios que, afinal, resultaram de conquistas científicas demoradas ou até espetaculares só alcançadas no século XX. As pregações podem ser examinadas por vários enfoques críticos, o que aqui não interessa, mas em qualquer situação são frequentes cenas constrangedoras que todos conhecem, de milagres, doenças curadas e descrição de dramas verdadeiros ou inventados acerca de tudo, com intimidades expostas e um longo e aplastante rito de bestificação. Isto nada tem a ver com liberdade de culto, que a Constituição assegura, nem com a confissão de fé através das diversas liturgias nos locais próprios, destinados a esse fim, bem como de comemorações em lugares públicos. Ora, se alguém é concessionário de serviço público, como pode alugar espaço para fins que não são do interesse público? Se uma empresa de comunicações não tem condições de produzir seus próprios programas então não está apta, isto é, não possui idoneidade técnica e financeira para explorar uma concessão. Por outro lado, tal serviço não tem porque ser entregue para a atividade confessional.

Porém, fica sobremodo difícil corrigir esse descontrole administrativo das funções públicas em um Estado laico se os já mencionados partidos de aluguel dispõem todos os anos, no ano inteiro, de espaço gratuito para suas próprias arengas inconsistentes no rádio e TV. O tempo por ele despendido é pago em alto preço através de renúncia fiscal dos poderes públicos, que deixam de arrecadar impostos incidentes em valor correspondente ao do tempo pago, sob patrocínio comercial. E há políticos que ainda querem financiamento público a campanhas eleitorais. É através desses meios que fazem a pregação em programas vazios de conteúdo e que outro objetivo não têm a não ser o de marcar presença ativa, para o fim de integrar coalizões oportunistas e preparar as eleições seguintes para a partilha do governo em um condomínio de verdadeiros vândalos, cuja única especialidade é saquear os cofres do Estado. Por isso, lia-se em um cartaz dos mais fotografados das manifestações: “os vândalos estão no poder”. Caberia talvez acrescentar: “Há muito tempo!”

4.         Um Congresso que sistematicamente legisla mal - Há uma situação evidente, bem percebida pelos manifestantes de junho de 2013, de quase irremediável embaraço legislativo. No mundo formal, no Brasil do arcabouço jurídico, as leis feitas com o propósito confessado de melhorar o país (mas que não escondem o inconfessado de promover interesses de grupos ou criar estruturas de poder nocivas ao interesse social) estão em franca dissintonia com o país real, o país das necessidades e das aspirações coletivas há muito conhecidas.

Um exemplo expressivo do embaraço legislativo se encontra na análise da tramitação da PEC 37, que visava a definir a autoridade policial como a única instância investigatória no processo penal. O argumento para defender a tese era de fato embaraçoso: aquele que acusa (o promotor) não poderia investigar. Ora, não há nenhum tipo de perseguição criminal, desde o seu início, que deixe de visar à apresentação (ou a não apresentação) de uma denúncia. Logo, toda a investigação visa à coleta dos elementos para amparar uma acusação e é, ela própria, desde seu início, a persecutio criminis, a forma legal de perseguir o crime. Depois de intermináveis debates, conduzidos por lobbies e não pela discussão parlamentar que definisse os rumos de uma política para a definição jurídica desejada, mas como resposta sôfrega às manifestações de rua, a Câmara dos Deputados rejeitou a proposta por 430 votos, contra 9 e 2 abstenções. Isso após inúmeros adiamentos e falsos impasses.

A questão principal, no entanto, não foi tratada. Qual é o rito a ser adotado nas investigações penais do Ministério Público? Atualmente ele está fixado em resolução do Conselho Superior dessa instituição. Mas isso não é possível, pois as regras têm de ser estabelecidas em lei, em nome das garantias públicas. O Ministério Público deve sem dúvida deter a competência investigatória complementar, como vem decidindo o STF, mas também deve ater-se a regras legais de procedimento a fim de que não seja possível a iniciativa voluntarista, que poderia decorrer de motivação pessoal. Afinal, como se verá em seguida, há mentes perigosas também dentro do MP.

Outro imbroglio mal conduzido pelo Congresso foi a aprovação da PEC 544/2002, resultando na EC 73, de 06/06/2013, que criou quatro novos Tribunais Regionais Federais. Na véspera da promulgação da emenda foram sancionadas pela presidente da República as leis que criaram quatro novas universidades federais, no sul do Pará, sul da Bahia, oeste da Bahia e em Cariri, no Ceará. Primeiro, qual é o país, salvo os riquíssimos, que pode criar em dois dias quatro novos tribunais e mais quatro universidades? O impacto orçamentário desses atos é muito grande e permanente. Em segundo lugar, o artigo 96, inciso II, alínea “c”, da Constituição Federal estabelece duas condições formais para a criação e extinção de tribunais: (I) a iniciativa está reservada ao próprio Poder Judiciário; (II) a matéria deve ser regida por lei. Terceiro: todos os argumentos “funcionais” indicando a necessidade de haver quatro novos TRFs soçobram, além de contrariarem todas as estatísticas, por esta constatação: já tramitam no Senado outras propostas para criar ainda mais dois tribunais, que terão sede em Belém e Fortaleza. Isso revela – na verdade, escancara - a única preocupação realmente existente: clientelismo político e vontade manifesta de beneficiar a “privilegiatura”, multiplicando-se cargos judiciais, acomodando-se milhares de funcionários. Por certo, dentre estes, muitos oriundos do numeroso grupo dos excluídos da advocacia pela restrição seletiva da OAB, a quem o Congresso e depois o Judiciário outorgaram o poder de definir quem pode e quem não pode exercer uma profissão que a Carta diz ser livre, atendidas as qualificações profissionais que somente as universidades deveriam proporcionar. Para a criação dos novos tribunais federais foi decisivo o lobby da AJUFE, Associação dos Juízes Federais, confessadamente em busca de vagas para ascensão funcional para os magistrados de primeiro grau. Eis a razão, pelo enfoque limitado e corporativo predominando sobre os interesses nacionais, da censura dirigida a essa entidade pelo presidente do STF. A verdadeira excrescência, que é a integração de um quinto dos tribunais por elementos de fora, os quais não prestam concurso para terem esse acesso, não é combatida por puro comodismo e falta de espírito público.

Ainda está no Congresso a PEC 33/2011, aguardando a formação de uma Comissão Especial Mista para seu exame, o que - muito provavelmente - será abortado pelas manifestações de rua. Ela submete as decisões do Judiciário a uma espécie de confirmação ou referendo do Legislativo. Ou seja: um Poder que vive seus impasses abismais sobre as escolhas políticas que deveria fazer, que está montado sobre uma verdadeira pirâmide de gastos, ineficiência e descontrole administrativo, quer exercer a supervisão de outro Poder, sem que possa superar as insuficiências reais deste – que são grandes – em implantar um efetivo regime de garantias públicas.                           


“NÃO ME REPRESENTA”. O COMPLEXO DE “EXCELÊNCIA”.

1. Um representante do povo que quer representar uma farsa -  Parece óbvio que um parlamentar eleito pelo povo, em qualquer tempo e lugar, exerce um papel de representação, o que não se confunde com representação de um papel. Ele não está investido em um personagem que vá desempenhar uma farsa ou outra forma de dramaturgia. Em que pese essa constatação simples, um capítulo à parte deve ser aberto a respeito ao ato de escolha do pastor Marco Feliciano para presidir a Comissão de Direitos Humanos e Proteção das Minorias da Câmara dos Deputados, em 07/03/2013, por 11 dos 18 votos do colegiado que a integra. A indicação partidária para o cargo decorreu do acordo que prevê a distribuição das comissões temáticas por todas as bancadas que compõem a maioria parlamentar. O PSC – Partido Social Cristão, legenda do deputado indicado, tem em sua composição membros da chamada “bancada evangélica”, agrupamento político que faz proselitismo religioso e está ligado a práticas de cooptação de fiéis para crenças neopentecostais.

No mesmo mês de março de 2013 iniciaram as manifestações de rua em Porto Alegre, de recusa do aumento das passagens de ônibus urbanos. A imprensa chegou a noticiar que participantes do movimento se deslocaram até Brasília, para ali reforçar outros grupos que já começavam a protestar contra a escolha de Feliciano que, por declarações públicas e ações tidas como discriminatórias, foi agraciado com o bordão “não me representa”. Esta segunda recusa, no redirecionamento da Comissão de Direitos Humanos para ações de fundo ou de pretexto religioso, mostra que havia uma mesma inspiração de sentido contestatório já na primeira, contra o aumento das passagens, e – na continuidade - com outras bandeiras que vieram depois, paulatinamente, num crescendo que levou os representantes políticos a uma crise de mudez. Da qual eles tentaram se recobrar fazendo propostas estapafúrdias freneticamente em torno de plebiscito ou referendo, reforma política e outras generalidades esotéricas. Iniciativas estas que não responderam de nenhum modo aos protestos,  mas deixaram expostos o medo e abalo que eles causaram.

A Mesa da Câmara dos Deputados saiu-se muito mal no episódio, primeiro dando ultimatos ao PSC, depois prometendo achar uma solução negociada, mas na prática não fez nada. Pudera, pelo “condomínio” utilizado como processo de escolha para os cargos de mando na Casa (da mesma forma como ocorre com os 39 Ministérios do Poder Executivo), cada grupo ou partido se acha dono do seu quinhão. O Ministério dos Esportes, por exemplo, é feudo do PC do B. O do Trabalho, do PDT. As Comissões temáticas do Legislativo não fogem a essa regra nefanda. Portanto, a ação direta foi percebida como a única forma de lidar com essa excrescência que foge a todas as regras de uma representação autêntica, bem assim aos compromissos de bem gerir a coisa pública. No auge das manifestações, a Comissão de Direitos Humanos ainda aprovou texto que patrocinava a chamada “cura gay” através de tratamento psíquico, por conta dos serviços públicos de saúde oferecidos à população – já péssimos, abaixo da crítica, no que se refere às doenças somáticas. Por fim, em virtude das manifestações, o autor do projeto (contra o qual se voltou seu próprio partido, o PSDB) pediu seu arquivamento. Mas Marco Feliciano continuou.

2. A pseudoelite recém-chegada em busca de prestígio - A par desse vaudeville, para se ter em conta o delírio das proposições legislativas,  emergindo dessa desorganização interna do Congresso, em 20/06/2013 a presidente da República promulgou a Lei 12.830 que trata de prerrogativas dos delegados de polícia. Foi vetado um parágrafo que assegurava a eles conduzir a investigação criminal de acordo com seu livre convencimento técnico-jurídico. A razão apresentada para o veto foi a de que tal preceito poderia causar conflito institucional ao ser feita a persecução penal. E poderia mesmo, tendo em vista as faculdades legais de outras autoridades requisitarem novas diligências. Os delegados poderiam simplesmente alegar seu convencimento técnico-jurídico em contrário para não realizá-las. Assim, a atividade administrativa policial passaria de vinculada a discricionária. O que ficou da nova lei, uma vez que os demais artigos não têm nenhum conteúdo normativo, formando um amontoado de bobagens que eram destinadas apenas a formar um “balão de ensaio” para a PEC 37, foi o artigo 3º, que assegura aos delegados “o mesmo tratamento protocolar que recebem os magistrados”.

Assim, no auge das manifestações de rua que fizeram tremer os Poderes, tudo o que a atividade legislativa tinha a dizer é que, fruto do lobby dos delegados, eles agora deverão ser tratados como excelência. Ora, os policiais, para o bem do país, não são atores da cena judiciária. Não atuam nos tribunais, salvo como testemunhas ocasionais. Por um ranço histórico, a “gente da justiça” – como foi chamada pelo gravurista francês Daumier, que a criticou profundamente em suas litografias – usa o protocolo do tratamento distanciado e circunspecto. Seria talvez preferível seguir o modelo da França, onde todos são tidos como cidadãos iguais, e os agentes públicos são chamados pelo nome do seu cargo [por exemplo, Monsieur le Président (senhor presidente) ou Monsieur Conseiller (senhor conselheiro), nos órgãos judiciais colegiados; Monsieur le Juge (senhor juiz), nos juízos individuais]. Os advogados são tratados como Maître  (mestre), assim como os chefes de cozinha, os açougueiros, os farmacêuticos, os confeiteiros, os notários, etc, segundo a herança das corporações, e ninguém se sente diminuído por isso. Não há nem mesmo uma reivindicação dos causídicos para serem tratados nos diálogos formais como avocat, talvez porque essa mesma palavra queira dizer tanto advogado como abacate. Não se tem notícia de que a OAB de lá (Conseil National des Barreaux), ao contrário do que certamente aconteceria no Brasil, tenha querido mudar o léxico. Quem sabe isso explique porque os advogados mais eminentes, que atuam na Court de Cassation, recebam a designação de avoué. Porém, cada povo segue seu caminho na História, por razões diferentes. Nos Estados Unidos, pátria da república moderna, somente o juiz – e ninguém mais, por pretensa equiparação – recebe o tratamento de your honour. Porque lá é percebido que no cargo e na pessoa nele investida está concentrado todo o poder decisório do Estado, num sentido simbólico para a democracia, em relação a direitos fundamentais e comportamento social.

No Brasil parecerá sempre, aos nossos próprios olhos, porém mais ainda, aos olhos dos estrangeiros, acentuadamente ridículo que procuradores, promotores, advogados, delegados (e, mais adiante, com absoluta certeza, oficiais superiores da polícia militar, que costumam ser beneficiados por legislação estadual que os equipara aos delegados) queiram gozar das prerrogativas dos juízes, sem nunca haver feito concurso para a magistratura, nem ter desempenhado as suas funções. Nenhuma dessas categorias faz parte, na maioria dos países, da magistratura togada e nunca incorpora ou personifica o exercício de um Poder do Estado. É curioso constatar que os oficiais das forças armadas, que mandaram tanto no país por vinte e um anos, sem estar submetidos a legislação alguma que lhes parecesse inconveniente, jamais aspiraram “equiparação” aos juízes... talvez porque só na democracia vicejem as vaidades mais grotescas, enquanto nas ditaduras os delírios são mais grandiosos e supostamente mais respeitáveis...

De tudo isso, resta o sentimento do “não me representa”, que aqui tornou-se muito grande e só tende a aumentar. Longa vida para ele.                                                                                                                                                                                                                       


AS VERDADEIRAS MENTES PERIGOSAS

Enquanto o país tem a evidente mostra de que faltam elites autênticas, que foram importantes em momentos históricos mais recentes (no movimento da legalidade, em 1961, por exemplo, ou na campanha das “diretas já”, como na da anistia, ou na convocação da Assembleia Constituinte e, não menos, no processo de impeachment), passaram a ter  presença ostensiva nos dias que correm pseudoelites arrogantes que desprezam a população. Dois exemplos são particularmente expressivos:

1. Quem são os verdadeiros portadores de ideias perigosas? -  Em 07/06/2013 foi realizada em São Paulo, capital, a primeira das grandes manifestações de rua que ali se sucederam. Houve bloqueio de avenidas importantes e surgiram logo problemas óbvios de trânsito. Um promotor público do Estado, que atua na Vara do Juri, postou mensagem extremamente agressiva em sua página no Facebook. A síntese do episódio foi assim descrita: “O promotor de Justiça Rogério Leão Zagallo, do Ministério Público de São Paulo, causou polêmica no Facebook na última semana, ao postar uma mensagem na qual disse que a Tropa de Choque poderia matar um grupo de manifestantes na capital que ele, mesmo assim, arquivaria qualquer possível processo contra os policiais.             O promotor, que já foi investigado pela Corregedoria do Ministério Público paulista, ainda xingou os manifestantes e os classificou como um bando de bugios (macacos). Diante da repercussão negativa, o promotor apagou a postagem ofensiva e publicou uma nova com esclarecimentos e pedindo desculpas.” (Fonte: Revista eletrônica Consultor Jurídico www.conjur.com.brNotícias – MP vai investigar promotor sobre incitação à violência, 10 de junho de 2013).

Na primeira mensagem constaram os seguintes trechos: “Estou há 2 horas tentando voltar para casa, mas tem um bando de bugios revoltados parando a Avenida Faria Lima e a Marginal Pinheiros. Por favor, alguém poderia avisar a Tropa de Choque que essa região faz parte do meu Tribunal do Juri e que se eles matarem esses (...) eu arquivarei o inquérito policial? (...) Que saudade da época em que esse tipo de coisa era resolvida com borrachada nas costas (...)”. Na segunda mensagem o promotor disse que não agiu em virtude da sua condição funcional, mas que fez um desabafo. Ainda assim, criticou a “falta de firmeza das autoridades (...) para não ficar mal perante os chamados movimentos sociais”. Criticou os transtornos causados por pequenos “grupos aguerridos” que promovem “manifestações selvagens (...) desconhecendo solenemente as proibições existentes”.

Na apuração que é esperada, e certamente será feita, é possível que haja uma tentativa – que provavelmente será exitosa  - de personalizar o caso, com a demonstração de que é um episódio isolado. Se for assim, a gravidade da situação não ficará atenuada. Ninguém pode ser portador de ideias perigosas, com a compulsão de torná-las públicas pelos meios de mais ampla difusão, senão quando tenha o objetivo de vê-las aplicadas. Logo, sendo um servidor, age contra a sua função. Por outro lado, a supina ignorância acerca da proporção de um fato social relevante, a dificuldade em perceber a profundidade e a expressão de problemas reais manifestados por um comportamento coletivo de ruptura, também são maus indicativos, quando alimentam a idéia de que deva existir uma guarda pretoriana, uma gendarmerie, unicamente para cumprir o papel de repressão, de modo a assegurar prioritariamente o bem estar de quem está alheio ao movimento. O egoísmo revoltado e o sentimento de perda do direito próprio, porque outros estão pleiteando direitos diferentes, têm sido indicadores da escalada dos regimes autoritários. Definitivamente, não é bom para o país associar a mente perigosa ao exercício da autoridade.

2. Como e por que agredir a lei e a consciência alheia? – Também no auge das manifestações de rua, um procurador de justiça do Rio Grande do Sul resolveu expressar sua forma de protesto contra a “Lei de Acesso à Informação” (Lei 12.527, de 18/11/2011), que finalmente o Ministério Público daquele Estado havia resolvido cumprir, depois de mais de seis meses de relutância, publicando os valores de sua folha de pagamento individualizada. O procurador escreveu um artigo, não se sabe bem se apenas com propósito desafiador, cujo título é expressivo: “E daí?” (Fonte: jornal Zero Hora, Editoria de Opinião, 11/06/2013). O articulista começa dizendo: “Bem, agora você já sabe, sem ter sido sequer necessário se dar o trabalho de procurar na internet, que, no fim do mês passado, eu ganhei, como procurador de Justiça, R$ 26.266,00 de vencimentos líquidos, ou R$ 847,30 por cada dia do mês, trabalhado ou não, útil ou feriado.” O comentário inicial que se impõe é este: ganhou mais que um ministro do Supremo Tribunal Federal, que recebe subsídio líquido menor. Em sequência do trecho inicial transcrito, o procurador desenvolve várias arengas; diz que paga pensão alimentícia, pois já teve três casamentos e tem agora uma namorada, sofre descontos, o valor que entra em sua conta bancária é bem menor, etc. Diz também que dá economia para o Estado pois, recebendo o adicional de permanência pouco superior a 3 mil reais, e tendo tempo para aposentadoria, faz com que a Procuradoria não precise contratar outro agente público, poupando-se assim de pagar o salário deste. Neste passo, o articulista fornece de novo uma informação insubsistente: se ele se aposentasse permitiria que fosse promovido um promotor que atua no primeiro grau e, portanto, já recebe os seus próprios vencimentos. A seguir, o procurador recompõe o esforço de sua vida, desde uma origem humilde. Anuncia que nos próximos dias dará o parecer sobre o valor das passagens de ônibus em Porto Alegre. O final de seu texto é um desafio: “Eu até não me importo que você ignore isso tudo. O que eu quero saber é, e agora?, o que você vai fazer? Vai me acusar de ladrão da pátria, ou vai recomendar a seus filhos que se inscrevam no concurso para promotor?”. Conclui assim: “Por fim, eu valho mais do que ganho.” O certo é que não vale a pena tecer considerações sobre essa autoavaliação, mas é necessário o registro de que, para o senso comum, para o fim de identificação do cidadão com as autoridades públicas, a arrogância nunca é esclarecedora. Nem boa conselheira. Provavelmente produz o efeito contrário ao desejado.

Estes dois casos mostram que existe algum espectro turvando a mente de importantes agentes públicos, os quais mostram a dificuldade na compreensão dos problemas com que lidam e para cuja solução deveriam contribuir com lucidez, enfoque objetivo e um pouco menos de egocentrismo. Os fatos ou interesses de sua vida pessoal, que voluntariamente trouxeram a público, são desinteressantes. Cada pessoa tem sua própria história de dificuldades, que sempre lhe parecem maiores do que as dos outros. As revelações feitas pelos procuradores acerca do que os preocupa na vida privada, principalmente, implicam em sentimentos e ambições que são irrelevantes para o exame concreto dos fatos que abordaram. Acresce que os dois casos aqui comentados contêm, de forma diferente, alto propósito de agressão ao que se tem chamado de ‘espírito público’. Pois é exatamente a sua falta, por parte de quem se reconhece como autoridade, que ajudou decisivamente a desencadear a recusa popular, o “não me representa”.

Nada – absolutamente nada - do que os agentes do Ministério Público disseram nos textos apontados tem a ver com o que deles se espera: (1) a representação dos cidadãos como alma e corpo da sociedade; (2) o cumprimento das funções públicas, com estrita observância das regras para sua atuação; (3) a legitimidade para sustentar os interesses coletivos; (4) a fiscalização das funções do Estado frente a uma ordem de legalidade e (5) a construção jurídica das proteções aos direitos individuais e comuns.

Ao estudar os costumes dos povos germânicos, sisudos em relação aos romanos, que praticavam o desperdício em nome de sua grandeza, o historiador Tacito escreveu: corrumpere et corrumpi saeculum vocatur – corruptores e corruptos, o século vos chama (por ‘século’, entenda-se o que há de passageiro no mundo). Seria uma esperança útil para nosso povo que autoridades de alta investidura tivessem nisso, principalmente nisso - no combate objetivo, infatigável e circunspecto a esse fenômeno - o foco de sua atuação.   


O SAQUE DO ESTADO

1. A administração dos tribunais como palco de conflagração - Sem muitos comentários, que se mostram desnecessários para deixar clara a intenção manifestada, convém fazer a transcrição parcial do que se contém no site de uma grande entidade representativa  de funcionários públicos. Ali está dito:

“A ANAJUSTRA possui uma das melhores assessorias jurídicas do país com várias ações já impetradas pela entidade em benefício de seus associados. O destaque vai para a vitória na ação dos quintos, que transitou em julgado e cuja sentença já beneficiou milhares de associados em todo país. A entidade também obteve vitória, em primeira instância, nas ações dos 13,23% e dos aposentados e pensionistas que se inativaram após a EC 41/2003. Se você ainda não é associado à ANAJUSTRA, filie-se aqui e participe das ações em aberto (Fonte: www.anajustra.org.br/acoes/acoes.asp)”.

A leitura que se faz dessa proposta é no sentido de que melhores advogados podem obter vantagens remotas ou até mesmo incríveis, de modo que essa é a motivação principal (obter ganhos extras) para filiação à entidade. A seguir, no mesmo site é apresentado um rol impressionante de ações propostas contra a administração pública, visando a desembolsos pelo Tesouro:

“AÇÕES NACIONAIS

Ação para receber a FC ou o DAS na aposentadoria

15,8% de aumento na remuneração geral – índice suprimido na Lei 12.774/12

Ação para devolução do PSSS incidente sobre o adicional de treinamento, adicional noturno e sobre demais verbas não incorporadas aos proventos de aposentadoria

Adicional de penosidade/localidade

Recálculo do valor das horas extras – fator de divisão

Ação para dedução integral dos gastos com educação no Imposto de Renda

Auxílio alimentação: Anajustra ingressará com ação coletiva

Direito de opção previsto no art. 193 da Lei 8.112/90

Ação de pagamento da GAS independente de aprovação em curso de reciclagem

Ação de pagamento da GAS cumulativamente com a função comissionada

Ação de pagamento da GAS aos servidores da área administrativa, especialidade transporte

Diferença da GAJ – reenquadramento isonômico

Isonomia da GAS ente ativos e inativos

Incorporação dos 11,98%

IR sobre o terço de férias

Abono permanência

Aposentadoria especial

Ação dos 13,23%

Restituição do IR sobre rendimentos recebidos acumuladamente

AÇÕES REGIONAIS

Cobrança do passivo da incorporação dos quintos até 2001 – TRT7

Cobrança do passivo da incorporação dos quintos até 2001 – TRT22

Cobrança do passivo da incorporação dos quintos até 2001 – TRT3

Cobrança do passivo da incorporação dos quintos até 2001 – TRT12

Cobrança do passivo da incorporação dos quintos até 2001 – TRT8

Ação URV 11,98% – TRT17

Ação URV 11,98% - TRT15

Ação URV 11,98% - TRT12

Ação URV 11,98% - TRT9

URV 11,98% - TRT4

URV 11,98% – TRT2

Juros moratórios URV – 11,98% - TRT1

URV 11,98% - TRT1

Diferença dos quintos – TRT18”

A lista dessas 19 ações nacionais e das 14 ações regionais, no total de 33, leva a algumas perguntas. (1) O serviço público é de tal modo caótico que não consegue implantar um sistema legal coerente e regular para remunerar seus servidores? (2)  As pessoas que atuam nos tribunais como ordenadores de despesas são mentecaptas ou quadrilheiras a ponto de não atender, nas épocas próprias, as regras de remuneração que, afinal, em se tratando de Direito Administrativo, estão todas elas fixadas em lei? (3) Os administradores e integrantes dos tribunais brasileiros estão mal comprometidos, seja pelo desconhecimento de leis que não cumprem, seja por terem comportamento leniente com chicanas processuais, a ponto de gerarem para o Tesouro um monumental rombo, em nome de erros inescusáveis ou de favorecimento a grupos privilegiados por interpretações estapafúrdias?

Em fevereiro do ano corrente, os tribunais eleitorais pagaram diferenças remuneratórias aos seus servidores, relativas à incorporação do que haviam percebido quando exerceram cargos comissionados, os chamados “quintos”. Embora a incorporação tenha sido extinta no longínquo ano de 1998, através da Lei 9.624, editada ainda no governo de Fernando Henrique Cardoso, predominou o entendimento de que ela deveria ser paga até 2001, como vantagem pessoal. Com isso, por exemplo, o TRE de São Paulo pagou 5 milhões e 300 mil para apenas 41 servidores beneficiários. Pouco antes, a partir de novembro de 2012, os tribunais eleitorais já haviam feito o desembolso de 3 milhões e 800 mil a título de pagamento de horas extras, o que deve ter decorrido de uma situação de descontrole, pois esta última quitação deu causa à dispensa do cargo comissionado ao diretor-geral do TSE, determinado pela sua presidente, Ministra Cármen Lúcia. O funcionário campeão no ressarcimento do “quinto” pelo TRE de S. Paulo recebeu R$ 300.089,00 e o melhor aquinhoado com as horas extras R$ 64.000,00. (Fonte: Jornal O Estado de S. Paulo, 17/02/2013).

Não estaria o serviço público pagando pelo trabalho regular “dividendos”, à maneira como eles são distribuídos para investidores privados no mais típico dos regimes capitalistas, sem que a população - embaraçada pelo viés de uma legislação distorcida por interpretações patrocinadoras de privilégios - saiba o porquê? Ou seja, os agentes da nomenklatura, que seguidamente reivindicam a posição de engajados no processo político em favor de lutas emancipatórias, teriam redescoberto a mais antiga fórmula burguesa para obter lucros, com a vantagem de fazer “investimentos” apenas nas “apostas” para exaurir o Tesouro mediante interpretações sibilinas e aproveitando a inépcia, verdadeira ou simulada, dos ordenadores de despesa.

Todas estas situações mostram que o Poder Judiciário não se administra da maneira eficiente e proba, que corresponda aos princípios previstos no art. 37 da Constituição Federal. Como exigir, portanto, que órgãos gigantescos como o INSS ou a CEF tenham uma administração eficaz? A CEF, por exemplo, é o maior litigante institucional nos tribunais do país. Embora seja compreensível que atue em áreas que podem suscitar conflitos, pois além das atividades bancárias cuida das loterias e de programas sociais extensos, como PIS, FGTS, Minha Casa Minha Vida e Bolsa Família, isso não quer dizer que a racionalidade exigida ao serviço público possa ser substituída pelo caos administrativo. Nem que o custo, representado afinal pela evasão dos recursos do tesouro, venha a ser suportado pela população carente dos serviços públicos. Carência esta que só a “privilegiatura” tem condições de superar.

2. A única fidelidade da nomenklatura é aos interesses próprios - Na verdade, não é mais possível ocultar que existe uma nomenklatura instalada na administração pública, tomando vantagens sobre vantagens, e para isso desenvolveu uma noção confessada de aparelhamento dos órgãos estatais, e os apparatchiks servem para manter um governo paralelo, voltado à obtenção de privilégios, status, poder decisório e, não menos, resultados econômicos vultosos, que resultam de pretensões discutíveis, quer nas ações ou omissões que as motivam, quer nas concessões que as atendem. Em resumo, o aparato do Estado não pertence ao povo ou ao país; a estrutura do Estado pertence ao “aparelho”.

Não passa despercebido o questionamento intenso que sofre a legislação relativa a três pontos, quando ferem os interesses corporativos e os submetem às garantias públicas de regular acesso e bom exercício dos cargos e funções do Estado: (a) as disposições constitucionais e legais que vedam o nepotismo, também expressas na Resolução 07/05 do Conselho Nacional de Justiça e na Súmula Vinculante nº 13; (b) a lei da ficha limpa e (c) a lei de livre acesso à informação. Não por acaso, os diplomas a respeito desses temas foram atacados à exaustão nos tribunais e tiveram, por muito tempo, sua vigência protelada, ou através de liminares suspensivas ou simplesmente por recusa de cumprimento. Muitas das vantagens estendidas a grupos de servidores públicos visaram como objetivo escuso privilegiar parentes de políticos, juízes e membros do Ministério Público, ainda que os benefícios tivessem de ser estendidos para toda a categoria funcional a que pertencia o privilegiado visado, com desastrosa consequência para os cofres públicos. Eis a causa de haver tanto interesse em ocultar essas manobras, descumprindo a lei da transparência e acesso às informações funcionais.

De qualquer forma, a existência dessa “privilegiatura” tem presença espessa e humilha a sociedade. A impressão que os privilegiados passam é a de que determinadas categorias detém a chave do cofre do Estado e estão mais preocupadas em usar os recursos que são de todos em interesse próprio. Para agravar, também fica a impressão de que há um patrocínio, isto é, um plano concebido para obter esse resultado e, por fim, de que o Direito é instrumentalizado para criar um Estado vassalo de interesses corporativos. Tal quadro de descalabro seria impossível imaginar na França, por exemplo, onde o Conseil d’État (criando ainda na administração do Cardeal Richelieu, ao tempo de Luis XIII) atua como tribunal administrativo para todas as causas com litígio envolvendo os poderes públicos, e regula normativamente o seu funcionamento. Este é o caminho para o Brasil? Talvez, mas o certo é que um caminho qualquer tem de ser encontrado, pois o poder público brasileiro se encontra, do ponto de vista da administração, num estado semelhante àquele descrito na Física como entropia, que – no sentido laico tomado por empréstimo – quer dizer algo como a desorganização interna dos elementos de um material depois de exaurido o trabalho para extrair dele a energia. Órgãos públicos que não têm autoridade científica em Direito Administrativo, ainda que em nome da autonomia, não podem continuar da deliberar sobre essa matéria, que mal conhecem e pior aplicam. Ou teremos um Estado eternamente pagador de precatórios intermináveis, com juros e honorários vultosos, sangrando os cofres públicos de recursos essenciais para programas sociais e reformas econômicas, enquanto a estrutura estatal permanece autoritária e proveitosamente ineficiente e indefesa para a nomenklatura.


JUDICIÁRIO CONTURBADO

1. Os juízes que não fazem concurso - Os cargos públicos são acessíveis a todos os brasileiros, mediante ingresso por concurso público, com exceção daqueles que são comissionados ou de confiança (temporários), e dos eletivos (com mandato).

Entretanto, exatamente nos tribunais, que deveriam primar por seguir essas regras fixadas para a universalidade dos cidadãos, subsiste a prática de entronizar advogados e membros do Ministério Público a título de compor um quinto das vagas de desembargadores e ministros (no STJ essa mesma participação chega a um terço). Diria Petrônio Portella, porta-voz dos militares durante o regime de exceção, do alto de sua imaginária cavalgadura, para onde foi alçado como testa de ferro para repetir as banalidades do Conselheiro Acácio, personagem ridículo de Eça de Queiróz: “o que está na Constituição não pode ser inconstitucional”. Efetivamente, foi o que ele disse e era assim que se procedia. Os atos ditatoriais eram inseridos na Carta Magna e, após conspurcada a Constituição de 1946, teve de ser outorgada a Constituição de 1967, depois a Emenda de 1969 (que a reescreveu), e ainda vigorou paralelamente o AI-5/68, na verdade um estatuto constitucional à parte. Outras emendas pontuais foram feitas, em tão grande número que, na campanha para uma Assembleia Constituinte, ficou consagrada a expressão “colcha de retalhos” para nossa lei fundamental deformada que vigorava antes de 1988.

Assim é que um Petrônio Portella-Conselheiro Acácio redivivo afirmaria que a composição do chamado quinto constitucional, por elementos estranhos à magistratura, está prevista na Constituição. Muito bem, se esta é a lógica a ser defendida, por que os candidatos não fazem concurso público para os cargos que almejam? Não é a própria Constituição que prevê a acesso a cargos públicos ou por eleição popular ou por concurso? A certeza que se afirma é esta: os integrantes do quinto são os únicos agentes do Estado, junto com os conselheiros e ministros dos tribunais de contas, que (1) não prestam concurso público para exercer cargo permanente; (2) não se submetem a exames das condições físicas e psicológicas para o bom desempenho de suas funções, previamente à investidura.

Na verdade, o quinto constitucional somente serve para inserir nos tribunais promotores públicos que têm sua própria carreira truncada porque não se abrem novas vagas para eles na segunda instância (pudera, no MP é comum constatar o pagamento de um “abono de permanência” e de outras vantagens de duvidosa legalidade, o que incentiva os integrantes mais antigos a aguardar em atividade até a aposentadoria compulsória) e advogados que atuarão por apenas cinco anos no Judiciário, retomando depois suas bancas de advocacia que, a mais das vezes, continuam funcionando todo esse tempo sob o comando de parentes ou amigos, enquanto eles judicam.

Como não há nada que esteja tão ruim que não possa piorar, segundo o adágio popular, tramita na Câmara de Deputados (está na Comissão de Constituição e Justiça, já sendo alvo de um intenso lobby para aprovação) a PEC 204/2012 que assegura à advocacia e ao Ministério Público, através de suas corporações, a formação das listas tríplices dos componentes do “quinto”, enviando-as diretamente aos governadores (no caso dos Tribunais de Justiça) e à presidência da República (no caso dos Tribunais Federais). Atualmente, as entidades de classe formam uma lista sêxtupla que é encaminhada aos tribunais onde existe a vaga, e estes selecionam, dentre os indicados, uma lista tríplice. Só então o chefe do Executivo faz a escolha. É bom recapitular que antes da Constituição de 88 (e desde que foi criado o “quinto”) a formação da lista cabia unicamente aos tribunais. A partir de então, os órgãos de classe foram incumbidos de formar um elenco preliminar de seis candidatos. Agora o que se pretende é alijar completamente os tribunais do processo de escolha. A iniciativa tem grande chance de dar certo, simplesmente porque não há ninguém que faça lobby em contrário. Os tribunais não acompanham ou interferem no processo legislativo. As associações de juízes também têm entre seus associados integrantes do quinto, que podem até presidi-las. A OAB chega ao ponto de fazer indicação formal de algum juiz que considera “inimigo da advocacia”, e sinaliza que não o receberá nos seus quadros depois de aposentado na magistratura, e já foi condenada judicialmente por isso. Os parlamentares agem sob a pressão de grupos de interesse. Assim, a maioria dos congressistas, pelo nível de conhecimento que têm, e pelas escolhas políticas que eles fazem, deixando o interesse do país por último, é formada por despachantes e não por mandatários. O risco de corrupção aumentará, pois ficará mais fácil comprar uma indicação (com dinheiro, ou com a moeda do tráfico de influência, patrocínio velado e advocacia administrativa). Até mesmo as PECs – ou melhor, principalmente elas – tornaram-se o mais indecoroso meio de corromper a República, pois levam a uma nova “colcha de retalhos”, tal como existia na ditadura.

A AJUFE, a poderosa entidade que reúne os juízes federais, avaliando que lutar contra o quinto é uma guerra perdida, pois as instâncias políticas e legislativas estão comprometidas em manter o status atual, quer por existir interesse em influenciar na escolha de seus preferidos, quer para atender ao lobby da OAB, preferiu investir na criação de novos tribunais federais e – nesse passo – se equiparou aos lobistas que privilegiam interesses de grupo sobre o interesse público. Por não querer lutar do lado certo, de resgate de uma condição de cidadania expressa no livre acesso a cargos públicos através de concurso ou eleição, escolheu a guerra suja em favor de novos TRFs, não importa quantos eles venham a ser, nem o quanto custem ao país, nem a utilidade prática que irão ter (ou não) para o sistema. Segundo anteprojeto de lei preparado pelo Conselho da Justiça Federal, para cumprir a Emenda Constitucional 73, que criou quatro novos TRFs, serão necessários 60 cargos de desembargador, 2027 de funcionários efetivos, 355 em comissão, sendo que 1449 funções também serão comissionadas. Os custos estão sendo levantados. Uma estimativa do IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) é de que o gasto operacional seria de 922 milhões por ano. Os gastos de instalação ainda são uma incógnita, não tendo sido divulgada nenhuma projeção. A tudo devem ser acrescentados outros custos do Ministério Público e da Advocacia da União, para funcionarem junto aos novos órgãos (Fonte: blogdofred.blogfolha.uol.com.br/‎ Frederico Vasconcelos, 29/06/2013).

2. A interferência de critérios pessoais ou políticos para formar tribunais - Outro ponto que conturba o funcionamento do Judiciário está no critério para a nomeação dos ministros. A escolha também resulta de lobbies cada vez mais constrangedores. Para que se tenha uma ideia aproximada das implicações desse problema com a independência funcional, que assim periclita, basta examinar este fato: em 6/03/2013, o plenário do Superior Tribunal de Justiça reuniu-se para formar as listas tríplices com indicações para suprir as vagas naquela corte. Para as três vagas reservadas pelo quinto constitucional ao Ministério Público, inscreveram-se nada menos do que 116 candidatos. Para a outra vaga restante, destinada a desembargadores de Tribunal de Justiça, mais 56 candidatos foram inscritos. A existência de 172 interessados em preencher 4 vagas de ministro mostra apenas o início da “corrida de obstáculos”, que culmina - após o ingresso na lista tríplice - em um lobby antropofágico para ser escolhido pela presidência da República. Mesmo a imprensa especializada noticiou o fato como “disputa” e “corrida de desembargadores”, além de referir que Fulano “corre por fora”, prevendo que “os ânimos podem ficar mais acirrados” (Fonte: Revista eletrônica Conjur, www.conjur.com.br, 6/03/201, Notícias: Mais de cem candidatos disputam três vagas no STJ).

Quando veio ao conhecimento público (em fins de janeiro de 2012) a Operação Porto Seguro da Polícia Federal, indiciando por tráfico de influência, advocacia administrativa e outros crimes praticados contra o regular funcionamento dos portos vários integrantes da administração pública federal, sendo os principais implicados Rosemary Noronha, chefe do Gabinete da Presidência da República em São Paulo, e José Weber Holanda Alves, Advogado-Geral Adjunto (o número dois) da Advocacia-Geral da União, ficou-se sabendo que foram encontrados – nas buscas realizadas no gabinete de trabalho do último, na AGU – currículos encaminhados por candidatos a ministros dos tribunais superiores e até do Supremo. Trata-se de notícia da imprensa diária. Mas não são conhecidos desmentidos. A situação é de tal modo constrangedora que, se o lobby político em si já deveria ser condenável, mais deplorável ainda é terem os candidatos recorrido ao número dois da AGU.

Por que não foram logo ao número um? Na verdade, na corrida de obstáculos qualquer padrinho serve, desde que tenha o telefone de quem decide. Daí, talvez, caber a pergunta do Evangelho: “O que adianta ao homem ganhar o mundo inteiro se perder a sua alma?” E, em seguida: “O que dará o homem em troca de sua alma?” (Mateus, 8, 36 e 37). Claro, pensarão os pragmáticos ou cínicos, “progredimos” o bastante pelos milênios para que tais perguntas sejam tidas por ingênuas e de pouco valor prático nos dias de hoje... De qualquer forma, não há nenhuma outra situação na face da terra que possa ser melhor descrita do que esta como sendo o significado mais próprio da palavra arrivismo. E o arrivismo é socialmente nocivo, pois sufoca o mérito numa competição canibalesca. Na verdade, o único currículo que deveria interessar ao Congresso quando faz a sabatina dos candidatos, a par de verificar a formação técnica, é este: o que você já fez, que o qualifique profissionalmente, pelo seu país? Esta pergunta, ao que consta, nunca foi feita. Logo, ficará para sempre uma incógnita irrespondível: o que pretende então, como ministro do Judiciário, fazer por ele?

3. Os Colégios que não ensinam, mas gastam dinheiro público – Foram criadas no país pelo menos três entidades como sendo o Colégio Permanente de Presidentes de Tribunais de Justiça do Brasil, o Colégio dos Presidentes de Tribunais Regionais Eleitorais e o Colégio de Presidentes e Corregedores dos Tribunais do Trabalho, que adotou a sigla COLEPRECOR, que até parece nome de predador de science fiction. Trata-se de organizações civis que (a) não são representativas de juízes; (b) não estão integradas a órgãos públicos; (c) não têm nenhuma função de Estado; (d) são compostas por pessoas que, escolhidas para administrar os tribunais a que pertencem, não foram eleitas para compor nenhum colegiado fora da estrutura estatal e, por fim, (e) não estão previstas em lei. Com tudo isso, recebem e gastam verbas públicas. A título de “colaborar” com os conselhos administrativos dos tribunais superiores, ou de opinar junto ao Conselho Nacional de Justiça, seus integrantes viajam por todo Brasil, num indisfarçado turismo “funcional” e, por ocasião das viagens, os “colegiados” abandonam seus cargos públicos regulares, sejam eles de presidente ou de corregedor em seus estados ou regiões. No caso do Colégio de Presidentes de Tribunais de Justiça, ficou demonstrado (Fonte: Processo n° 0002330-77.2012.2.00.0000 do CNJ, classificado como ‘Desconstituição de Ato Administrativo) que há repasse dos recursos orçamentários de todos os tribunais estaduais para essa entidade civil. Nos demais casos, as cortes regionais federais aludidas pelo menos pagam passagens e diárias para seus “colegiados”.

É impressionante como se age contra o interesse público impunemente, pois não há sequer um motivo legal que leve dirigentes de tribunais a se reunir periodicamente se, do conjunto formado, não pode ser extraída nenhuma deliberação válida, sob o ponto de vista do Direito Administrativo. Certamente os integrantes dos Colégios se dedicam a incrementar suas carreiras, talvez aproveitando as oportunidades das viagens para fazer lobby em torno de seus próprios nomes, visando a uma vaga futura em tribunal superior. Talvez façam maquinações contra desafetos. Ou talvez promovam aquelas formidáveis alegorias da vida, verdadeiras pantomimas fantásticas, que Mário Quintana bem identificou no seu poema “Metamorfoses”:

“E os velhos jurisconsultos viram fetos...

Esses fetos que a gente olha, meio desconfiado, nos bocais de vidro ...

E que, no silêncio dos laboratórios, oscilando gravemente as cabeças fenomenais, elucubram anteprojetos, orações de paraninfo, reformas da constituição ...

Sempre que puderes, crava um punhal, um garfo, um prego, no miolo mole desses fetos.”

         4. O Caso Pimenta Neves -  Em agosto de 2000, na cidade de Ibiúna, SP, o conhecido jornalista Pimenta Neves, que então era diretor de redação do jornal O Estado de S.Paulo matou a também jornalista Sandra Gomide. Preso provisoriamente por sete meses, o autor do crime respondeu processo em liberdade, a partir de então, em virtude de decisão liminar adotada em Habeas Corpus pelo Ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal.

Há nos tribunais brasileiros um posicionamento assente: em virtude da garantia constitucional de que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”, os réus - salvo aqueles que tenham uma condição de vida incompatível ou inconveniente para com a ordem publica, conforme estabelecido em muito poucas definições legais - não podem ser privados da liberdade ou de seus bens antes do fim do processo. Prender antes do trânsito em julgado passou a ser tido como um ato de exceção, que alguns ainda consideram peremptória e abstrata, independente dos elementos apurados serem demonstrativos da autoria certa, da responsabilidade inescusável, da culpa manifesta ou das consequências brutais. Essa posição, de “aprisionamento” da formação do juízo, como se o direito fosse escrito em sânscrito ou em outra língua cabalística, que merecesse veneração e não entendimento, leva a compreender porque Dostoievski usou seu gênio para apontar o homem como um ser ridículo na formação de seus juízos, bem como porque Robert Musil descreveu com tanta profundidade o homem sem qualidades, isto é, o medíocre, que depõe sua vontade e sua lucidez diante de grandes definições, grandes princípios, grandes mistérios, missões supremas, comandos imperativos..., que em geral são o abismo das verdadeiras convicções.

As normas jurídicas ou têm inteligibilidade ínsita ou não são normas. Como esclareceu definitivamente Hans Kelsen, a norma não é a regra escrita, não é a lei; é a elaboração que se faz para que ela atue objetivamente, inspirada na teoria de sua construção por critérios próprios, que consideram o texto do preceito, sua inserção na ordem jurídica, sua formulação explícita e implícita e, por fim, a interpretação que é reveladora do seu sentido autêntico. Há outras escolas, melhores ou piores do que a de Kelsen, mas nenhuma delas sustenta que o juiz deva agir como boneco de ventríloquo. No caso Pimenta Neves, o autor do crime era confesso. As circunstâncias do delito, por motivo passional, foram inteiramente levantadas. Não havia, assim, dúvidas possíveis a respeito de autoria e materialidade. Nunca houve debate algum sobre a tipificação, como ocorreria, por exemplo, se a ação persecutória tivesse que lidar com a hipótese de dúvida sobre mais de um enquadramento legal possível. Logo, a reprobabilidade sempre esteve à margem de erros de apreciação, pois também não havia risco de equívoco na formação do juízo de culpabilidade. Ainda assim, o autor do crime só veio a ser preso em 2011, após esgotar todos os recursos possíveis. Nesse tempo, mais de uma década, a família da vítima foi destruída pelo sofrimento, desamparo, doença e dificuldades econômicas.

Esta justiça cativa de postulados herméticos, imaginários ou canônicos, que, como disse Graciliano Ramos a respeito de um juiz da roça, está prisioneira do ponto e da vírgula, do artigo e do parágrafo, da estupidez enfim, não pode levar a um quadro se estabilidade jurídica, enquanto a vítima sobrevivente de delitos muito cruéis e o criminoso saem da delegacia juntos. Isto simplesmente não deve ser tido como aceitável em nenhuma sociedade, desde as primitivas até aquelas mais civilizadas pelos milênios de história ou pelo acúmulo exuberante da cultura. É verdade que o Ministro Celso de Mello assustou-se com a consequência de seu julgamento, que suspendeu a prisão de Pimenta Neves por dez anos. Procurou justificar argumentando que o magistrado de primeiro grau poderia ter prendido de novo o acusado. Depois do que aconteceu com o Juiz Fausto de Sanctis no julgamento da “Operação Satyagraha”, acusado injustamente de “desobediência” ao Supremo? Basta ler a decisão do próprio Ministro Celso de Mello. Como é seu costume, inúmeras são as palavras sublinhadas para dar uma ênfase retórica. A ordem por ele expedida foi no sentido de que o jornalista Pimenta Neves ficasse solto até o trânsito em julgado (Fonte: Revista eletrônica Consultor Jurídico www.conjur.com.br – Notícias de 24/05/2011 - Pimenta Neves perde último recurso e cumprirá pena).

“Estamos em pleno mar”... do acinte às vítimas. O Brasil das manifestações é também o Brasil que deplora sua justiça. Se a reivindica, quer que ela seja outra. O Judiciário entre nós, se não comete crimes, aumenta consideravelmente os seus efeitos.

5. O caso do calouro que morreu em um “trote” universitário – Em 06/06/2013, o Supremo Tribunal Federal julgou o recurso extraordinário 593443, em que foi reconhecida repercussão geral, oferecido pelo Ministério Público para reverter julgamento do Superior Tribunal de Justiça, que foi no sentido de trancar ação penal contra quatro estudantes veteranos de Faculdade de Medicina em São Paulo, acusados de causar a morte de Edson Tsung Chi Hsueh, por afogamento na piscina de um clube. O acórdão do STJ foi mantido, contra o voto do Relator Marco Aurélio e outros dois ministros. Ao fim do julgamento, o Presidente do STF pronunciou as seguintes palavras: “É muito comum esquecermos a questão de fundo: um jovem saído da minoria étnica brasileira, que foi vítima de uma grande, imensa violência, que resultou em sua morte e de seus sonhos e os de sua família. É isso que deveríamos estar debatendo.” Em seguida, acrescentou: “A quem incumbiria examinar se eles são ou não culpados, já que houve morte? Ao Tribunal do Juri ou a um órgão burocrático da Justiça brasileira situado aqui em Brasília, o Superior Tribunal de Justiça? Ouvi aqui que não cabe exame de provas em Recurso Extraordinário, que é o que estamos julgando. No entanto, o que mais se fez aqui foi examinar prova. Para quê? Para confirmar uma decisão questionável do STJ?”. Segundo o repórter que cobriu o julgamento, “o ministro disse ainda que não era a primeira vez, em dez anos de tribunal, que presenciava uma situação em que os ministros preferiam se debruçar sobre ‘teorias e hipóteses’ e esquecer o que é ‘essencial’, a vítima. ‘O STJ violou abertamente o artigo 5º, inciso 38, da Constituição, violou a soberania do juri’, disse Barbosa”.

O Relator Marco Aurélio sustentou em seu voto que o trancamento da ação penal pelo STJ não se escudou nas três únicas hipóteses em que poderia ser concedido o Habeas Corpus: (1) atipicidade de conduta; (2) flagrante inocência do acusado e (3) extinção da punibilidade. Como essas circunstâncias não foram verificadas no caso, o STJ deixou de considerar que “o trancamento de ação penal pressupõe a inexistência de juízo de probabilidade da ocorrência da infração e da autoria”. Em lugar disso, segundo o Relator, houve “a valoração e o cotejo analítico de provas, testemunhos e perícias médicas” indicando que o Superior Tribunal de Justiça realizou o exame de matéria imprópria à ação de Habeas Corpus (Fonte: Recurso Extraordinário 593.443, Rel. Min. Marco Aurélio – voto vencido; Revista eletrônica Consultor Jurídico, www.conjur.com.br – Notícias – 06/06/2013).

Venceu o voto do Ministro Ricardo Lewandowski, no sentido de que o STJ detém competência para trancar a ação penal, mesmo antes do juízo de primeira instância fazer o exame das provas, quando constatada a ausência de justa causa. Trata-se, portanto, de um entendimento em tese. Será ele original? Não, pois qualquer tribunal competente em matéria penal pode determinar o trancamento da ação, nos casos discriminados na lei em numerus clausus. Portanto o que avulta no caso em exame são estas circunstâncias: (1) como o STJ errou tanto, aos olhos do relator no STF e dos votos que o seguiram? (2) por que o desfecho indignou tanto o Presidente da Corte Suprema a ponto de censurar vivamente o entendimento contrário? (3) como se constroem (e se admite!) brechas no Direito brasileiro de modo que um crime de morte, decorrente de irresponsabilidade e de sadismo, reste impune e - tendo em vista que foi cometido no já longínquo fevereiro de 1999 - é certo que nunca mais será investigado. Os responsáveis ficarão impunes. Esta é a única certeza do processo iníquo.

Saber por que esses acontecimentos são admitidos em nosso “estado democrático de direito” talvez remeta à constatação de que esse status é ilusório, não traz garantias efetivas, não é um sistema de proteção ao exercício da cidadania. Ao contrário, é um aparato custoso, demorado, cheio de contrafações que, sob a capa de muitas teorias delirantes, metafísicas, esotéricas ou definitivamente mefistofélicas, leva o homem comum a concluir como quem se vê só num campo de batalha, tentando nele sobreviver: a vida não vale nada.

6. A diminuição crítica do poder de administrar justiça – Enquanto se mostra “totêmico” em relação a alguns enunciados constitucionais ou legais, o Judiciário não sabe se defender. Não sabe garantir suas funções para que elas produzam o efeito desejado. Isso ocorre em tantos casos que a população já assimilou expressões técnicas de sentido complexo, como ‘precatório’ e ‘PEC’, por exemplo. Há uma dissolução de finalidade no entendimento do que seja a ordem legal. Mesmo em casos corriqueiros, não se pergunta mais a que leva a adoção de determinadas práticas. Por exemplo: os tribunais costumam copiar sentenças e pareceres para fundamentar seus acórdãos. Chamam a esse procedimento que “seleciona, recorta e cola”, no editor de texto, de motivação ad relationem. O latim, em casos como este, parece que serve para dar respeitabilidade a uma impostura. Tal prática serve para os chamados “julgamentos em bloco”, com o tempero adicional: “com ou sem destaque”. Ora, tudo isso é um imenso engodo. É o fabulário do rei nu recontado com dados de uma realidade triste.

Ao mesmo tempo, aquele que foi apontado como o maior litigante individual do Brasil já protocolou no CNJ mais de 40 representações contra magistrados e, desde a remota cidade do interior onde está sediado, moveu mais de mil ações contra desafetos vários, sofrendo outras tantas, além de ser condenado 239 vezes por litigância de má-fé. Sua última investida é no sentido de proibir a divulgação desses dados da estatística mais do que bizarra que produziu (Fonte: Revista eletrônica Consultor Jurídico – www.conjur.com.br Notícias – CNJ repreende autor de processos contra magistrados, de 31/07/2010; Empresário vai à Justiça para tirar ConJur do ar, de 28/06/2013).

Até quando essas pantomimas serão encenadas ninguém sabe. Até que os atores cansem e sucumbam à prostração? Até que o desassossego dos prejudicados se torne um clamor? O Judiciário aceita o labirinto do Minotauro, aceita as charadas da Esfinge de Tebas; mas tem imensa dificuldade em elevar-se sobre seus próprios pés.                                                                                                                                            


O CASO DA BOATE KISS

Merece ser tratado à parte um caso que ainda tem seus desdobramentos no presente. É ainda uma ferida profunda que sangra. Em janeiro de 2013, na cidade de Santa Maria, RS, a Boate Kiss incendiou quando estava superlotada, sendo a causa do desastre a queima de fogos de artifício no interior do prédio, por conta da encenação ou da coreografia de uma banda de música. Na conta final, morreram 242 pessoas e foram feridas 622. Em seguida apareceram as “defesas”: uns alegavam que a competência de fiscalização não era sua, mas de outro órgão, os cultores da fatalidade logo culparam o destino, aqueles que elaboraram os alvarás e laudos técnicos sustentaram que os levantamentos estavam corretos, os que acenderam os fogos disseram que não tinham a intenção ... Finalmente, como é costumeiro, foi exaustivamente empregada a palavra ‘tragédia’, embora se saiba que ela serve para descrever uma situação que se mostra inexorável, não tendo o sentido de expiadora universal de culpas.

Todavia, a casa noturna não tinha pelo menos duas saídas para a rua, como exigido nos regulamentos de segurança, mas apenas duas portas internas que se comunicavam com uma só entrada/saída. O material de isolamento utilizado não era próprio, pois altamente inflamável e, quando queimado, tóxico. Havia ainda falhas na iluminação, nos extintores de incêndio, na colocação de uma barra de ferro protetora da única porta externa e a já mencionada superlotação. Detalhes ainda estão no noticiário.

Ajuizada a ação penal, os principais acusados foram presos. Quando o recurso veio a exame pelo Tribunal de Justiça, as prisões foram revogadas. Os fundamentos acolhidos são constrangedores. Em 29/05/2013, a 1ª Câmara Criminal do TJ/RS entendeu que o douto magistrado a quo teceu longas considerações sobre o episódio da boate Kiss e suas dramáticas consequências, extravasando uma emoção consentânea com a comoção geral da comunidade, o que era compreensível e natural naquele momento, pois o Juiz também é homem e tem humanas reações, felizmente para seus jurisdicionados.”

Esse não é um argumento jurídico aceitável. Se as prisões não estavam fundadas nas hipóteses da lei, então se tratava de ato de arbítrio e faltava causa legal (justa causa) para elas. Se, por outro lado, decorriam de sentimento momentâneo reativo à comoção da comunidade, caracterizariam um comprometimento do juízo isento do magistrado de primeiro grau. Numa e noutra hipótese, portanto, o Tribunal afastou-se do exame da res in judicio deducta para fazer conjecturas de ordem subjetiva, com o agravante de produzir literatura de péssimo gosto e qualidade. Banalidades e truísmos sobre a formação do juízo. Ainda se contém no acórdão este preciosismo, completamente disparatado para quem recebe o julgamento impactado pela perda das vítimas: “Não se vislumbra na conduta dos réus elementos de crueldade, de hediondez, de absoluto desprezo pela vida humana que se encontram, infelizmente com frequência, em outros casos de homicídios e delitos vários.” (Fonte: www.jusbrasil.com.br/ ; Revista eletrônica Consultor Jurídico – www.conjur.com.br Notícias - Revogada a prisão preventiva dos quatro réus da Boate Kiss – 29/05/2013).

Seria preciso reconhecer, em primeiro lugar que, nas palavras da mãe de uma vítima, “morreram pessoas e não baratas”. O crime não foi um homicídio simples, já em si suficientemente grave. Na verdade, foi uma devastação: cena de guerra ou de atentado terrorista. Se alguém que superlota um ambiente fechado, sem aberturas de evasão suficientes para o número de frequentadores, e consente ou toma a iniciativa na queima de fogos, em prédio que não comporta essa pirotecnia sem imenso e iminente risco ... não tem desprezo pela vida humana, nos termos do acórdão, tem o quê? Apreço profundo? Em 2013, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul inventou mais um significado ”aceitável" para Kiss ? e deveria mesmo sugerir sua inserção no Dicionário Webster ? beijo da morte.

É humilhante para um povo e para os que são participantes involuntários desse episódio, que foram chamados ao centro dos acontecimentos pelo grau de sofrimento que têm de enfrentar, é extremamente humilhante, repete-se, ter de ler um julgado tão constrangedor que, imitando a situação já examinada no “caso Pimenta Neves” (em que o juiz se aprisiona numa tendência jurisprudencial de liberar os culpados até que tenham condenação definitiva), considera apenas generalidades banais, sem a profundidade que o drama do caso examinado exige. Como consequência dessa “fluidez da modernidade líquida”, como diria o sociólogo polonês Zygmunt Bauman, os acusados devem ficar soltos: nada é sólido, referências de valor foram perdidas, a etimologia da palavra consequência tem de ser reencontrada... O resultado pode vicejar nos gabinetes e salas de julgamento vergadas pelo peso da burocracia, pela pieguice de considerações que não procedem a uma análise consequente e por um distanciamento rançoso da vida real. Mas explodirá. Nas ruas, de preferência. E as pessoas atingidas pelas perdas desse crime estavam lá.


COMO “MELAR” O MENSALÃO

1. Absolvição por estratagema da defesa – O processo conhecido como “mensalão” (Ação Penal nº 470) tornou-se muito conhecido por tramitar no Supremo Tribunal Federal, com sessões filmadas. Sua riqueza para um exame estritamente jurídico é tão grande que, por muitos anos, ele será visto e revisto sob diferentes enfoques. As questões políticas envolvidas, os métodos de partilha do poder, em particular, são igualmente ricos e têm muitas faces. Para o que interessa a este texto, um só aspecto será examinado, o da absolvição do publicitário Duda Mendonça. Ele foi denunciado pelos crimes de lavagem de dinheiro e evasão de divisas, pois abriu uma conta bancária no exterior, em um paraíso fiscal do Caribe, em nome de Dussseldorf Company, através da qual recebeu pagamentos relacionados com campanha política. Só fez declaração desse ganho a posteriori. A maioria dos ministros do Supremo entendeu que ele não tinha ciência de que os recursos provinham de fonte ilícita (do “mensalão”). Alguns salientaram que as normas do Banco Central, então vigentes, só exigiam a declaração dos ganhos mantidos no exterior no final do ano, e antes disso eles foram declarados.

Nesse tipo de operação financeira, e no da prestação de serviços de publicidade a partido político, ninguém pode imaginar que haja margem para ingenuidades ou ignorância da fonte dos 10 milhões e 400 mil reais repassados ao exterior. A simples conversão em dólares dessa quantia já deveria ter sido declarada quando foi feita. Todavia, aqui não é o lugar par questionar a decisão de mérito já tomada pelo Supremo. Mas é o lugar para avaliar a sua consequência. O sentimento popular a respeito de absolvições de pessoas com grande destaque social, como sendo um estratagema de defesa, faz com que se crie a visão de um Judiciário preso ao enredo das tramas, o lugar em que existem muitos descaminhos e onde a clareza, a obviedade, a verdadeira razão das coisas, não brilha. Se é possível para alguém receber milhões no exterior, lá criar uma conta disfarçada em nome de uma pessoa jurídica inexistente, que não tem função civil ou econômica; se é ainda possível converter grande soma em moeda estrangeira sem fazê-lo publicamente e, por fim, se tudo pode ser mantido em sigilo, com comunicação posterior (talvez ditada pela conveniência, diante de uma descoberta iminente e anunciada) às autoridades monetárias, se é possível tudo isso, baseado em Dostoievski (não em um criminalista, mas no seu personagem assassino Raskolnikov) qualquer um do povo poderia perguntar: “Então tudo é permitido?”.

Esta é a questão que ficou: alguém se livra de uma condenação pesada por supor-se que “não sabia” e ainda porque cumpriu o prazo para comunicar a operação à autoridade monetária. Aqui vale observar que os crimes de evasão de divisas e lavagem de dinheiro não são regras penais em branco, isto é, aquelas que dependem de uma ‘regulamentação’ de seus parâmetros para aperfeiçoar o tipo penal descrito. Os ministros do Supremo que votaram vencidos deixaram um repto tão poderoso à maioria de sua própria Corte que o passar de muitos anos talvez não apague. Na memória popular há um vago sentimento de mal-estar, uma impressão nociva de que seguir o caminho da justiça não leva ao lugar da serena verdade que cada um, no seu íntimo, gostaria de alcançar algum dia previsível.

2. A “hipertipificação” do crime de formação de quadrilha – O crime previsto no art. 288 do Código Penal estava definido ainda nos termos da redação original, que data de 1940, quando houve o julgamento do “mensalão”. Todos os comentários relevantes sobre ele já foram feitos. Seus elementos constitutivos são bastante simples: (1) a associação, que corresponde à figura histórica do Direito Penal da societas sceleris; (2) a congregação de pelo menos quatro pessoas, número escolhido pela lei para titular o crime como quadrilha e (3) finalidade de cometer crimes (não apenas um crime de única ocasião, em coautoria).

No julgamento do “mensalão” emergiu o entendimento (defendido principalmente pela Ministra Cármen Lúcia) no sentido de exigir uma hipertipificação da quadrilha. Seria a vontade determinada e explícita de constituir o bando, uma espécie de affectio societatis que as associações para fins comerciais e civis costumam ter, mas que absolutamente nada tem a ver com Direito Penal. Assim, quatro ou mais pessoas que se reunissem para praticar crimes (fossem eles continuados, sucessivos, periódicos ou até em ocasiões determinadas) ainda precisariam ter uma “intencionalidade específica”, como se fosse esta uma segunda finalidade, para caracterizar a associação criminosa.

Nunca houve na história doutrinador relevante que sustentasse essa tese. O grande Heleno Fragoso chegou a dizer que nem mesmo é preciso que todos os integrantes da quadrilha se conheçam. O que se tem como assente é que a constituição do bando é necessária, útil ou conveniente para a concretização do crime. Sem a formação da quadrilha, ele seria impossível ou muito mais difícil de realizar. Os integrantes da quadrilha, numa situação exclusivamente de fato, colaboram com suas atribuições individuais – o concurso de seus esforços – para a finalidade visada, o cometimento dos crimes. Isto é tudo o que basta.

Outro fato processual surpreendente, relativo a esse assunto, foi o de que o Ministro Marco Aurélio absolveu três acusados de formação de quadrilha porque o quarto, ex-deputado José Janene, morreu no curso do processo. Assim, segundo ele, a quadrilha, no seu sentido literal, desintegrou-se. A respeito, o professor Lenio Luiz Streck escreveu um excelente artigo: “Morto não conta ... Mas desconta!” (Fonte: Revista eletrônica Consultor Jurídico  www.conjur.com.br, em 13/12/2012). A existência de uma quadrilha tem a ver com o momento do cometimento do crime. Não fora assim, um bando formado por dez pessoas que logo após o crime fosse desbaratado pela polícia, morrendo oito deles no confronto, já não seria uma quadrilha mas apenas uma dupla... A respeito desse assunto, assim como a propósito da lei aplicável, vigora a regra milenar tempus regit actus (o tempo da ação é que determina o ato).

Esses dois temas de duvidoso entendimento prevalente, apenas para não dizer péssimo, na abordagem que receberam pelo Supremo, entre muitos outros, passam para a população um sentimento de que são tiradas teses de uma velha cartola, de onde brotam incompreensões novas. Elas não são mais autorizadas no estágio de desenvolvimento do Direito Penal no Brasil. Não é por acaso que o jornalista Elio Gaspari tenha feito o que chamou de “Um exercício de fantasia futurológica” (Fonte: oglobo.globo.com, de 23/06/2013): no julgamento dos embargos  apresentados no processo do “mensalão”, com o novo perfil do STF que contemplará os votos de dois novos ministros, os quais não participaram da condenação havida, prosperaria a tese da “hipertipificação” da quadrilha, e os réus seriam absolvidos desse crime. Com a diminuição da pena, ficariam livres da prisão fechada (iniciando o cumprimento da pena já no regime semiaberto) todos os componentes do chamado “núcleo político”.

Especulação ou não, isso será esclarecido pelos fatos futuros; mas hoje é certo que soa muito estranha a afirmação do último ministro nomeado, Roberto Barroso, que foi “um ponto fora da curva” o Supremo ter agido com severidade no caso do “mensalão”. Oxalá o novo ministro se livre da constante lembrança com que essa frase infeliz, apreciando a conduta processual dos seus colegas que participaram do julgamento, marcará profundamente o seu nome e a sua conduta doravante. É de se esperar também que ele não se esmere em fazer uma curva em torno do ponto ...

Só a manifestação das ruas fará com que brote um novo Direito, aquele que exatamente recusa essas interpretações rarefeitas, essa superfluidade digna de uma corte de afetações, não de um tribunal moderno, essa quintessência da “natureza jurídica” rebuscada que, ao fim de tudo, soçobra em uma formidável ruína, pois não resulta em verdade nenhuma. Talvez, também, as manifestações motivem a presidência da República a nomear para a próxima vaga um grande criminalista para o Supremo, de que ele tanto precisa, há tanto tempo. Nossa Suprema Corte foi poupada na crise de estranhamento entre a população e suas principais instituições judiciais. Ainda é reconhecido que o movimento de ativismo jurisdicional lá instalado tem procurado desencadear respostas. Também subsiste a crença de que os julgamentos não precisam submergir no caos da superestrutura jurídica em que os brasileiros estão sendo crescente e angustiosamente confinados, mas os percalços e a desconfiança já são grandes. Haverá um grande risco de mudar esse quadro, e instalar-se a descrença completa, se o processo do “mensalão” tiver as condenações revertidas significativamente por meio do julgamento de embargos.


OBRAS DA COPA – O CASO MARACANÃ

Muitas notícias sobre gastos na construção de estádios ainda estão sendo divulgadas. Erros de proporção, com obras superdimensionadas, orçamentos ultrapassados e muito financiamento do BNDES, cuja destinação suscita a pergunta: os recursos não deveriam ser direcionados para a atividade produtiva? O Tesouro Nacional teve de fazer, em dezembro de 2012, através de Medida Provisória, a inversão de 15 bilhões de reais naquele banco, e no início de junho de 2013 aportou mais uma vez quantia igual (Fonte: agenciabrasil.ebc.com.br/noticia/2013-06-06/medida-provisoria). Além desses aspectos, todos preocupantes, sobressai um tema: a submissão servil, sem vislumbrar as prioridades do país, das autoridades governamentais aos interesses e metas da FIFA.

Estas questões vêm sendo enfocadas sob a forma de protesto. Não há explicação plausível para o fato de haver sido modificada a legislação interna, de modo que foi estabelecida por lei federal a autorização para consumo de bebidas alcoólicas nos estádios. Obviamente, contrariando as campanhas sistemáticas que são feitas contra o uso do álcool por quem dirige veículos. Havia já em legislações estaduais restrições variadas ao comércio etílico em campos de futebol, certamente motivada pelas ações de controle de tumultos e enfrentamento de torcidas, que são executadas pelas polícias militares dos Estados.

A intromissão da FIFA em questões internas do país, além das suas exigências que implicaram em gastos vultosos, foi motivo de repúdio social. Na época em que sucessivos impérios econômicos dominaram o mundo, nos séculos XIX e XX, em países que sofreram um colonialismo instalado ou imposto pelas relações internacionais, foi cunhada a expressão revoltada que, no Brasil, ganhou a versão de “lacaio do imperialismo”. Era empregada com relação a políticos que defendiam a estreita colaboração com os “Impérios” (pouco importa se fossem organizados como Repúblicas, pois imperial era a doutrina intervencionista que praticavam), e, assim, eram conhecidos como “entreguistas”. Como Juracy Magalhães que, sendo chanceler do Regime Militar, cunhou a frase famosa: “O que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil”. Curiosas são duas situações históricas a respeito: (1) Teotônio Vilela, cuja última fase da vida foi a de um libertário, tendo embora morrido antes que terminasse o estado de exceção, dizia que termos como “lacaio do imperialismo” deveriam ser ressuscitados, pois de novo havia causa para seu uso; (2) nenhum governo emancipacionista que se conheça havia já sucumbido às exigências de um organismo internacional como agora aconteceu com o Brasil, com o agravante de que se trata de uma entidade com constituição e práticas mafiosas largamente conhecidas. Nesse caso, a submissão é pior, pois nem ao menos existe uma potência estrangeira ou uma ideologia para justificá-la, como aconteceu com a deturpação da Doutrina Monroe. Simplesmente, o que é “bom para a FIFA” passou a ser “bom para o Brail”.           

Esse pano de fundo não será examinado aqui, embora tenha sido relevante para as manifestações objeto deste texto, porque os principais desdobramentos não estão no plano jurídico. Por suas peculiaridades, o exame focará o caso do Estádio do Maracanã. Essa praça de esportes formava um conjunto arquitetônico com o parque aquático e o estádio de atletismo, e estava tombado pelo IPHAN desde o ano 2000, pelo interesse paisagístico e etnográfico. No mesmo parque ainda estavam situadas uma escola municipal e o Museu do Índio, este último em um prédio histórico. A pedido da Secretaria de Obras do Estado do Rio de Janeiro, o IPHAN se pronunciou a respeito da remodelação de todo espaço público para a Copa das Confederações. O superintendente do Instituto, Carlos Fernando Andrade, que é servidor do Estado do Rio de Janeiro, emitiu autorização para demolição da marquise do estádio, sua reforma e as obras em torno dele, que implicariam também na demolição dos demais prédios, exceto do Museu do Índio (embora prevista), em face da resistência de lideranças indígenas. A explicação dada pelas autoridades estaduais foi a de que era necessário adotar “normas internacionais” de segurança para a circulação de acesso. Provocado, o Conselho Consultivo do IPAHN aplicou censura ao superintendente, por ter concedido autorização incompatível com o tombamento realizado pelo Instituto, dando margem também à crítica por conflito de interesse, uma vez que o servidor comissionado no cargo federal era também funcionário público do Estado requerente daquela autorização. Mas então o estádio já havia vindo abaixo. A marquise, um êxito marcante da arquitetura brasileira dos anos 1940, virara pó. O Ministério Público ainda tentou embargar a obra, em vão. O TRF da 2ª Região, ao julgar o processo Ag Instr 20112010106930 RJ, manteve a demolição. A Defensoria Pública depois constatou os vícios das informações prestadas pelo IPHAN ao Judiciário. O valor da obra que beirava os 700 milhões superou 1 bilhão de reais (Fonte: www.jusbrasil.com.br/ tfr2maracana tombamento marquise demolição ; www.espn.com.br/oficio que autorizou mudanças no maracanã). Em resumo, o governo do Estado do Rio de Janeiro “plantou” um agente de seu interesse em produzir obras vultosas, atropelando as normas protetivas do IPHAN e, ali mesmo, foi autorizada aquela que talvez tenha sido a mais destrutiva ação governamental recente contra o patrimônio arquitetônico de uma cidade.       

O fecho dessa novela de péssimo enredo, com trapaças, humor negro, negligência, inoperância judicial, tráfico de influência, prejuízo aos cofres públicos e tantos outros desatinos, está em que o estádio seria entregue à exploração da iniciativa privada. Por muito menos que isso, apenas incendiadas pela paixão nacional, as nações pobres de El Salvador e Honduras entraram em guerra, a chamada “guerra do futebol”, em 1969, A questão que se apresenta ao Brasil não é a de fazer a guerra do Maracanã; é de como encontrar a paz diante do desperdício evitável e tão grande que aceita o adjetivo com duvidoso gosto de “faraônico”, e de como exigir o silêncio dos revoltados. Eles são muitos e sentem que o país perdeu (ao lado da seriedade, como já sabia o General De Gaulle há cinquenta anos) o senso da prioridade, e enterra alicerces inúteis na mesma medida e pressa com que enterra corpos dos desassistidos nos serviços públicos de saúde e das vítimas de crimes impunes.    


IMPOSTORES DO ESTADO DE DIREITO

1. O que é Estado de Direito – Há uma valorização retórica do estado de direito como se fosse o patamar de reconhecimento definitivo da tutela geral dos interesses e do “dar a cada um o que é seu”. Se fosse assim, o estado de direito substituiria magicamente os sistemas socioeconômicos e todos os regimes políticos de que a História faz registro. Resultaria em um retorno à teocracia, e a lei seria aquela transcrita pelos profetas e aceita pela comunhão do culto. Na verdade, a expressão estado de direito resulta, modernamente, de um estratagema utilizado para justificar a substituição do absolutismo, das autocracias, das oligarquias, da aristocracia, das ditaduras, ou dos estados de exceção pelo estágio em que o direito do Estado não pode mais ser invocado contra o cidadão, como prioridade permanente e como razão de supremacia. Logo, o direito de Estado deixa de ser uma fórmula abrangente e passa a dizer respeito apenas a um pequeno núcleo de razões de defesa estatal. O predomínio é do estado em que os direitos são proclamados, estendidos a todos e garantidos. Todavia, por um ranço bacharelesco, surgem proclamações do estado de direito como a suprema realização em si mesma. Quando alguém não tem compromisso nenhum com nada que represente uma nova conquista, nem sabe o que defende porque não alcança algo superior ao seu próprio interesse, quando ainda não sabe o que resgatar ou, na expressão literal, o que rei+vindicar, então diz que defende o estado de direito.

Esses trocadilhos são frustrantes. A ideia liberal de defender o estado de direito “retórico” logo mostra que não é libertária e muito menos libertadora. Grande parte dos estados de direito resultam de pactos e governos de compromisso, tal qual a política do ‘café-com-leite’, como foi conhecida a aliança de São Paulo com Minas Gerais para conduzir a Primeira República, que ficou consolidada a partir do governo de Campos Salles. Havia então um estado de direito formal, entretanto elitista, que não integrava plenamente mulheres e analfabetos na vida das relações civis, além de admitir um sistema muitíssimo fraco de garantia social. A partir de 1922, com o episódio dos 18 do Forte, começou o ensaio da ruptura que culminou com a Revolução de 1930.

O que se vê agora é um estado de direito plenamente implantado, com conteúdo social significativo e liberdades civis desenvolvidas, mas que se expressa por uma base operativa viciada. O governo está montado em nova fórmula de compromisso, com o apoio obtido na cooptação de uma grande base parlamentar, cujo jogo de infidelidade tem de ser controlado ou aplacado mediante o consentimento de partilha, principalmente dos recursos públicos, a mais das vezes através de emendas orçamentárias, ou da recriação de órgãos administrativos que já haviam sido extintos por inoperantes ou corruptos. Visando também ao clientelismo político, são desenvolvidos programas sociais assistencialistas descompromissados em criar uma condição integradora de participação na sociedade ativa, pelo trabalho e pelo estudo, por exemplo. Por fim, o Estado é aparelhado para realizar o propósito de submeter o comando governamental aos objetivos corporativos e partidários, ainda que sob um simulacro ideológico de tão amplo espectro que ninguém mais é identificável. Diria George Orwell, alguns bichos se tornaram mais iguais que outros, mas não se sabe agora quem é quem.

O Judiciário foi entupido com uma derrama de ações, na busca de que defina qual é a ordem jurídica que possa ser recebida como verdadeira, que corresponda ao estado de direito vigente. Não seria de esperar que os juízes fossem tais quais aqueles do livro bíblico, e que traçassem as regras do exato e bem viver segundo o ensinamento dos profetas (os quais seriam, numa república, os “pais fundadores”, admirados em outros países. Mas nós não os temos; ou não os reconhecemos ou eles não são respeitados). No Brasil, com exceção de Ruy Barbosa, geralmente lembrado pelo seu lado pior da retórica parnasiana, destruímos os nossos paradigmas. Recentemente a memória de Monteiro Lobato foi varrida por uma onda de acusações de racismo.

Este breve apanhado serve para dizer que invocar o estado de direito, neste momento, é dirigir-se às nuvens pedindo-lhes imobilidade para que possam ser melhor observadas e compreendidas. As elites verdadeiras perderam protagonismo, as pseudoelites são medíocres demais para indicar caminhos; o movimento de massa quer novos compromissos. Os tópicos que seguem tratam das empulhações legais que são empurradas para a sociedade pelos impostores do estado de direito, aqueles que emitem um comando normativo mas, tal qual os observadores das nuvens em movimento, não vêem realidade nenhuma e só pregam uma ordem jurídica que vem a ser um ponto estável imaginário de afirmação retórica. Afirmação esta que perdeu  enfim a efetividade.

2. Um Código Penal inorgânico – É tamanho o acúmulo de leis penais fora do texto do Código, ou insertas em diplomas que tratam dos mais variados assuntos, de trânsito, de tributos, da previdência, do meio ambiente ... que não há mais um sistema doutrinário apto a proceder a tipificação das figuras penais a partir de um método unificado. O Código Penal tornou-se inorgânico. Um só exemplo será dado, mas ele é bastante significativo.

Para estabelecer um regime legal mais punitivo dos crimes violentos contra a liberdade sexual, foi apresentado no Senado um projeto que agravava penas. Quando foi remetido para a Câmara dos Deputados, o projeto recebeu um substitutivo aglutinador da Deputada Federal Maria do Rosário, do PT/RS, relatora da matéria. No novo texto, os crimes de estupro e de atentado violento ao pudor foram unificados, talvez sob a remota inspiração do antigo crime de violação, que existia antes do Código Penal de 1940. Foi assim aprovada a Lei 12015/2009, resultante do Projeto de Lei 4850/2005 (Fonte: www.camara.gov.br/ Projetos de lei e outras proposições). Eis a consequência dessa aventura patrocinada pela atual Ministra da Secretaria de Direitos Humanos: a pena para o novo tipo (unificado) de estupro ... diminuiu. As condenações que antes contemplavam os crimes de estupro e atentado violento ao pudor, praticados contra as mesmas vítimas, agora estão conjuntamente contidas no enquadramento do “novo” estupro. A pena que passou a incidir é menor.

Poderia ter sido feita a reforma sob inspiração doutrinária, ou com base na jurisprudência, ou para alcançar a implantação de nova política criminal, mas não poderia haver a diminuição de pena quando o propósito inicial do projeto era o de agravar o combate aos crimes sexuais. É um contrassenso. Uma situação de idiotia no processo legislativo. Por que pessoas tão ignorantes em matéria legal, tão mal assessoradas por um custosíssimo plantel de servidores ineptos, foram meter-se no papel de reformadores da legislação penal? É um caso clamoroso de impostura.

3. O Código Civil reescrito. O Código de Processo Civil retalhado –Em 2002 foi inteiramente reescrito o Código Civil de 1916, passando a vigorar em 2003. A nova versão não consolidou todas as leis civis, nem inovou a ponto de superar a deficiência principal que já Orlando Gomes, há mais de cinquenta anos, identificava no texto editado na Primeira República: a pressuposição falsa da autonomia da vontade. Como ocorre com escritos elaborados por muitas mãos (no caso, atuou uma comissão presidida por Miguel Reale), falta uma certa unidade redacional, um estilo, e nisso o resultado é pior do que aquele obtido em 1916, mediante a revisão de Ruy Barbosa. A França mantém seu Código Civil, conhecido como Código de Napoleão, desde 1804, sendo um dos primeiros do mundo, fruto das ideias da Revolução Francesa. Para aquele país sua lei não envelheceu a ponto de precisar ser reescrita, embora tenham sido feitas emendas. Um ponto de grande repercussão social talvez seja bem exemplificativo do que aconteceu com nosso novo Código Civil, já que ele incursionou por um tema que era tratado em lei especial (Lei 4591, de 16/12/1964), abrindo um capítulo para o condomínio em edifícios (Capítulo VII, artigo 1.331 e seguintes). Eis o que fez o Código Civil de 2003: (1) não ab-rogou a lei especial, embora tenha a passado a tratar do tema em seu corpo codificado; (2) não absorveu todo o conteúdo dos artigos da lei especial; (3) estabeleceu várias regras novas que revogaram tacitamente alguns preceitos da lei especial e (4) instituiu outros artigos que convivem com aqueles remanescentes da lei especial, em situação completamente assistemática, dando vezo a muitas confusões interpretativas.

Como a vida em condomínios residenciais é partilhada por milhões de pessoas, vale registrar este exemplo simples: pode o condômino vender parte de sua unidade (garagens, por exemplo) para terceiros? Segundo o Código Civil novo, só depois de dar preferência a outro condômino ou possuidor. Mas se o possuidor for um inquilino, que logo após a aquisição se muda do prédio, não ficará ele em situação igual ao terceiro forâneo? Por que então foi criado um procedimento burocrático que dificulta a disposição de coisa própria? Além disso, outro exemplo, o Conselho Consultivo (estabelecido na lei especial) convive com o Conselho Fiscal, previsto no novo Código, ou a existência de um exclui a do outro? Um exemplo final: vários artigos codificados estabelecem regras ressalvando o que constar na convenção do condomínio, se dispuser diferentemente. Não seria o caso de estabelecer regras legais (aquelas que tivessem relevância para a ordem pública) e, nos temas não mencionados na lei, apenas reconhecer a competência decisória à assembleia, que institui a convenção? Não seria essa a técnica adequada ao sistema de competência supletiva que orienta a hierarquia das fontes formais do Direito?

Com o Código de Processo Civil ocorreu um processo diferente. Ele foi completamente retalhado por emendas, de modo que ficou irreconhecível o texto original de 1973, inspirado na doutrina de Enrico Tullio Liebman. Foi então criada uma comissão pela presidência do Senado e nova codificação se encontra presentemente em vésperas de aprovação pelo Congresso. Quando for sancionada a nova lei, com certeza outro redemoinho caótico se instalará nos próximos dez anos, por conta das novas reinterpretações sucessivas de outras interpretações já estabelecidas, total ou parcialmente discordantes, em debates excruciantes a respeito de detalhes que, ao final de tudo, têm mínima relevância ‘ontológica’, como gostam de dizer os pedantes... Isso tudo a propósito de um código que deveria ser instrumental, isto é, deveria tratar de como se formaliza o rito para que o direito seja estabelecido.

Nos dois casos se observa um desprezo acentuado pelos direitos do cidadão. Se o país não estava confiante numa reforma efetiva do Código Civil, a ponto de elaborar uma codificação nova, por que implantar uma lei que nem absorve inteiramente a legislação esparsa, nem reserva determinados temas unicamente para elas? Quanto ao processo civil, por outro lado, o que mais se salienta é o espírito de emulação, pois o rito ou procedimento é tão armado de incidentes os mais variados que o homem simples, de boa fé, pensaria que o propósito é perder-se da justiça, e não de achá-la. No entanto, os juristas continuam a cultivar seu mister com propósitos esotéricos e, para tanto, quanto mais o texto for desprendido de uma doutrina substantiva e coerente, mais o seu trabalho será valorizado. Por brevidade, veja-se o que Erasmo de Rotterdam escreveu sobre os juristas no seu “Elogio da Loucura”. Passados cinco séculos, é atualíssimo. Sem esquecer o comentário do grande Bartolo: i meri leggisti sono puri asini (os meros juristas são puros asnos).

Os homens produziram códigos não para venerar seus cânones, mas para se entenderem. Não é este, ainda, o estágio que foi conquistado no Brasil. Pela fulgurância e rarefação que se autoatribuem os integrantes da comissão que redigiu o novo CPC, tal estágio ainda não será conquistado desta vez. É por isso que o direito parece e, efetivamente, está tão distante das ruas. Não amamos os direitos que temos, nem somos um povo que respeita (e, menos ainda, que venera) o direito edificado pelos que nos antecederam. Muito menos pelos nossos contemporâneos. Mas somos um povo que deplora sem fim o direito que acintosamente nos é negado.

4. O projeto de sucumbência na Justiça do Trabalho – Tramitou na Câmara de Deputados o projeto que estabelece honorários de sucumbência na Justiça do Trabalho (Projeto de Lei nº 3392/2004). Ele foi aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça, mas 62 deputados recorreram ao Plenário (Requerimento 7506/2013), de modo que o tema deveria ser apreciado por todos os componentes da Casa. Ocorre que a ABRAT – Associação Brasileira de Advogados Trabalhistas e o Conselho Federal da OAB pressionaram os deputados subscritores do recurso e 33 deles retiraram sua assinatura, restando um número insuficiente para amparar o pedido, nos termos do Regimento (Fonte: Senado Federal – Projeto de Lei da Câmara nº 33, de 2013 ; site do TRT da 4ª Região www.trt4.jus.br/portal - Notícias de 15/04/3013; Revista eletrônica Consultor Jurídico, www.conjur.com.br, de 17/06/2013 e OAB/MG, www.oabmg.org.br, Notícias de 05/06/2013).

Várias considerações devem ser feitas, inclusive sobre a manobra constrangedora que resultou na retirada de assinaturas, o que impediu um amplo debate e votação por todos os deputados. Pois isso ocorreu quando a mobilização popular através de manifestações de rua desfraldava a bandeira da transparência. O lobby montado para dissuadir os parlamentares, sabe-se lá com que pretextos ou pressões, resultando na retirada de 33 assinaturas, revela como se dá – na prática – o processo legislativo. A matéria é relevante, pois não se trata só de honorários, mas de redirecionamento que muda a Justiça do Trabalho, suprimindo uma de suas características, que é a gratuidade. A disciplina estabelecida pela Lei 5584/70 já havia suprido os casos de reclamantes carentes, assistidos por sindicatos, pois estabelecia para tais situações os honorários de sucumbência de até 15%.

O projeto que agora já se encontra no Senado está cheio de falhas. Por exemplo, tratando apenas do elementar, contém um só artigo que – não obstante – trata de várias matérias, o que é um erro grosseiro de técnica legislativa. O artigo segundo se refere unicamente à vigência da nova lei. No § 6º, por exemplo, está dito que “nas causas em que a parte estiver assistida por sindicato de classe (...) a condenação nos honorários advocatícios não a alcançará, devendo ser pagos por meio da conta das dotações orçamentárias dos Tribunais.” O que isso quer dizer? Por acaso significa que os honorários de sucumbência coexistirão com os honorários assistenciais, sendo que os 20% dos primeiros serão pagos pela parte vencida e os 15% da assistência pelo Tesouro Nacional, ou vice-versa, cumulativamente? Outra questão que se apresenta é a exposta no § 3º: “é vedada a condenação recíproca e proporcional da sucumbência”. Isso revela a intenção capciosa. A Justiça do Trabalho têm funcionado há 70 anos no Brasil sob o princípio da gratuidade expresso em três situações muito específicas: (1) as custas não são pagas antecipadamente; (2) o depósito recursal realizado quando há condenação patrimonial na primeira instância cumpre a finalidade específica de garantir a execução; (3) a sucumbência de honorários só ocorre mediante a assistência judiciária sindical. O projeto aprovado na Câmara quebra esse sistema, logo teria de admitir obviamente a sucumbência recíproca. Há mesmo inconstitucionalidade em excluí-la, uma vez que as partes deixam de ter tratamento equitativo no processo.

Portanto, essa confusa previsão de honorários acumulados (sucumbência +assistência judiciária+honorários contratados) leva a perguntar: as ações trabalhistas são destinadas a repor direitos violados entre as partes ou se destinam precipuamente a remunerar advogados? Qual é a finalidade que a justiça busca?

Essa trama que envolve “golpes baixos”, na forma de pressão corporativa para a retirada das assinaturas dos deputados, confusão legislativa, infirmando o princípio da gratuidade, e culminando com a excrescência de atribuir o encargo de pagar honorários ao Tesouro Nacional (através da verba orçamentária dos tribunais), mostra o quanto as aspirações populares igualitárias são fraudadas, ainda quando o clamor das ruas soa alto para todos aqueles que têm ao menos mediano entendimento: esta não poderia ser uma República da partilha sorrateira de privilégios para corporações.

5. Pseudoelites reticentes e suas proclamações anódinas – Como já foi analisado em outro tópico, o estado de direito que se quer não é aquele retórico, proclamativo, que se apresenta apenas como alternativa – mas na verdade é um trocadilho - ao direito de Estado. O estado de direito desejado por muitos só pode existir se for autenticamente representativo e participativo, que assegure as garantias sociais e individuais, além do funcionamento prático e efetivo, isto é, com resultados visíveis, das instituições, dos órgãos fiscais, das agências promotoras de serviços públicos e dos programas de desenvolvimento dos projetos que impliquem em reconhecida utilidade social e conquista científica.

Ainda que isso possa ser bem apreendido e sentido pela população, persistem as “recomendações” de pseudoelites a respeito de como o povo deva se comportar, em busca de estados metafísicos de uma ordem institucional que somente serve a privilegiados. Por exemplo, a OAB/RS publicou em todos os jornais de Porto Alegre, em 24/06/2013, uma nota oficial em que “conclama a todos os manifestantes a se expressarem de modo pacífico, no respeito às liberdade individuais, ao patrimônio privado e público, resguardando-se e repelindo atos de vandalismo”. A nota prossegue com os seguintes truísmos: “A OAB/RS, na defesa intransigente da Constituição, da ordem jurídica, do Estado Democrático de Direito, dos Direitos Humanos e da justiça social, reitera que as manifestações realizadas de forma ordeira e pacífica expressam legítimo direito constitucional de liberdade de expressão. A construção de uma sociedade livre, justa e solidária, é um dos fundamentos da República Federativa do Brasil”.

Bom texto, diria um sátiro, para distribuir no auge das manifestações na Praça Tahrir, no Cairo, entre os que pregaram a derrubada de Hosni Mubarak. Com que consequências, não se sabe ... Por que persiste entre nós essa ideia “esclarecida” de que os caminhos do povo devem ser tutelados em nome de aspirações mal explicadas – e pior entendidas – a respeito de uma ordem jurídica “ideal”? Como se ela existisse na prática da vida cotidiana, onde o cidadão se depara com o jogo de astúcia e de trapaça no Congresso, nas invencíveis dificuldades em um processo judicial que deveria ser reparador, na falta de assistência, no colapso dos serviços públicos, num regime legal de ganância e privilégios expressos em lucros predatórios, em salários obscenos – irrisórios para quem realiza o trabalho pesado e altíssimos para a nomenklatura e todos aqueles que acham “que valem mais do que ganham”. Nessas situações todas só há estado de direito retórico.

As entidades que se propõem um papel de tutela popular, que querem comandar as massas de dentro de um gabinete, seguidamente esquecem e produzem sobre isso um silêncio sepulcral: elas próprias já atentaram contra o estado de direito que propagam. Num trabalho nada menos do que maravilhoso, que honra a tradição de pesquisa da universidade brasileira, a historiadora Denise Rollemberg examinou, uma a uma, em minúcia, todas as atas do Conselho Federal da OAB entre 1964 e 1974. Revelações: a OAB apoiou efusivamente o golpe militar, manifestando “euforia” e “orgulho” pela derrubada do presidente eleito, realizando verdadeira “celebração”. Mesmo quando começou a formar-se uma dissidência, a contar da edição do AI-2, em outubro de 1965, capitaneada por Sobral Pinto, o sólido apoio da OAB ao golpe teve ainda muitos lances de afirmação. Nehemias Gueiros, que foi dirigente e atuou no Conselho Federal, chegou a afirmar que colaborou na redação do referido AI-2. Mesmo quando Sobral Pinto, pela primeira vez, em reunião do Conselho de 24/05/65, chamou o regime de ditadura, seu isolamento não foi rompido, de tal modo que teve de transferir-se da Seccional do RJ para a do DF, a fim de manter sua representação no Conselho Federal. Só em 1974, com a mudança de orientação da Seccional de São Paulo (onde então grassava a tortura e morte dos presos políticos no DOI/CODI), o movimento foi crescendo em sentido contrário, até a eleição de Raymundo Faoro para a presidência do Conselho Federal. Na nova fase, a OAB teve um papel muito relevante na democratização, lutou aguerridamente com Sepúlveda Pertence, Eduardo Seabra Fagundes (para quem foi enviada a bomba que matou a secretária Lyda Monteiro da Silva) e muitos outros, porém já então a tônica da redemocratização tinha ganho expressão política, e não era somente uma retórica em favor da “ordem jurídica”. (Fonte: www.história.ufb.br/Memória, Opinião e Cultura Política. A Ordem dos Advogados do Brasil sob a Ditadura - 1964/1974 – Denise Rollemberg). Lições da história serão boas quando os episódios menos edificantes não ficarem escondidos em declarações propondo uma tutela da sociedade que não tem mais razão para existir.                          


CONCLUSÃO

Este painel sobre os acontecimentos de junho e julho de 2013 no Brasil, tratando de fatos que aconteceram durante as manifestações de rua, ou pouco antes dela, mas sempre como um motivador subjacente à revolta popular, talvez tenha preenchido a função de expor um enfoque analítico, sob o ponto de vista jurídico, do que são as aspirações presentes por mudança. Reforma, recusa, desejo de um outro país, atomismo de iniciativas renovadoras, ausência no reconhecimento de elites que poderiam ser autenticamente representativas – tudo isso  tem causa, tem impacto e tem expressão. Mas não se compreende num pensamento racional-dedutivo que queira decalcar na realidade ideias explicativas que não foram desenvolvidas para esse fim, tal como as teorias da ação e reação, ou a do reflexo condicionado (do tipo, se há repressão, há rebelião, ou vice-versa). Não há fisiologia social possível para entender movimentos de ruptura e inovação quando não repetem formas de recusa e denúncia que são conhecidas, mas já não deram certo.

Houve a preocupação de mostrar aqui como se disseminou a percepção da ausência de garantias para exercer a cidadania numa “república de privilégios”, embora subsista o funcionamento formal de um estado de direito retórico. Como também se difundiu a consciência de que existem dificuldades quase intransponíveis para exercer os direitos subjetivos públicos e defender, num jogo que cada vez é mais viciado e caro, os direitos individuais. Muitos exemplos foram dados de desgoverno, corporativismo, autoridades arrogantes, impossibilidade de implantar um sistema equitativo de oportunidades, em face dos lobbies indecorosos e vantagens setoriais beneficiando a uma nomenklatura sempre à custa do Tesouro e do interesse público. Há necessidade social de decretar o fim do arcabouço jurídico caótico dos tribunais mal constituídos, da “Constituição móvel” que nada estabiliza, do cipoal de leis que regridem no tempo, retirando o sentido orgânico dos códigos, ou redefinindo situações jurídicas (inclusive crimes) de um modo mais precário do que já existia.

Muitos cartazes, tão imaginativos como aqueles da revolta de 1968 na França e na Califórnia, expuseram todas essas mazelas. De todos eles, merece ser reproduzido um que não foi fotografado pela imprensa, mas era portado por uma recém adolescente de aspecto frágil, numa das manifestações em Porto Alegre: “Vocês vão ver suas crianças fazerem comédia com as suas leis”. Belo vaticínio. Ou será que isto já está acontecendo?                                                                                                                                          

                                                                                                                                            


Autor

  • Luiz Fernando Cabeda

    Desembargador do TRT da 12ª Região, inativo. Fez estágio na Escola Nacional da Magistratura da França, Seção Internacional. Autor de "A Justiça Agoniza" e "A Resistência da Verdade Jurídica".

    Textos publicados pelo autor


Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CABEDA, Luiz Fernando. Protestos no Brasil: o direito também brota das ruas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3842, 7 jan. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/26322. Acesso em: 20 abr. 2024.