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1964 = 2014: será mesmo?

1964 = 2014: será mesmo?

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Precisamos rejeitar a tentação de projetar no passado as nossas ideologias e de projetar no futuro o passado por causa de nossos medos.

A proximidade dos cinquenta anos do golpe de 1964 está desencadeando uma verdadeira histeria em algumas pessoas, muitas delas esclarecidas. Levando em conta a evidente impossibilidade eleitoral de a direita brasileira retornar ao poder, alguns articulistas estão sugerindo que há semelhanças entre 2014 e 1964. Alguns chegam até mesmo a concluir que a possibilidade de rompimento da legalidade seria possível.

Mesmo que não declarem, os defensores desta tese parecem ter sido influenciados por Friedrich W. Nietzsche e seu mito do eterno retorno, que foi assim formulado:

"E se um dia ou uma noite um demônio se esgueirasse em tua mais solitária solidão e te dissesse: "Esta vida, assim como tu vives agora e como a viveste, terás de vivê-la ainda uma vez e ainda inúmeras vezes: e não haverá nela nada de novo, cada dor e cada prazer e cada pensamento e suspiro e tudo o que há de indivisivelmente pequeno e de grande em tua vida há de te retornar, e tudo na mesma ordem e sequência - e do mesmo modo esta aranha e este luar entre as árvores, e do mesmo modo este instante e eu próprio. A eterna ampulheta da existência será sempre virada outra vez, e tu com ela, poeirinha da poeira!". Não te lançarias ao chão e rangerias os dentes e amaldiçoarias o demônio que te falasses assim? Ou viveste alguma vez um instante descomunal, em que lhe responderías: "Tu és um deus e nunca ouvi nada mais divino!" Se esse pensamento adquirisse poder sobre ti, assim como tu és, ele te transformaria e talvez te triturasse: a pergunta diante de tudo e de cada coisa: "Quero isto ainda uma vez e inúmeras vezes?" pesaria como o mais pesado dos pesos sobre o teu agir! Ou, então, como terias de ficar de bem contigo e mesmo com a vida, para não desejar nada mais do que essa última, eterna confirmação e chancela?"

A História, porém, geralmente refuta este mito, pois como afirma o historiador Paul Veyne:

“As pretensas leis da história, ou da sociologia, não sendo abstratas, não tem a nitidez sem rebarbas de uma fórmula física; também não funcionam muito bem. Não existem em si mesmas, mas somente por referência implícita ao contexto concreto: ‘falei globalmente, mas reservo evidentemente a parte das exceções e também a parte do inesperado’. É assim para elas como para os conceitos sublunares, ‘revolução’ ou ‘burguesia’: estão prenhes de todo o concreto de onde as tiramos e não romperam as ligações com ele; conceitos e ‘leis’ histórico-sociológicas não tem sentido nem interesse senão através de trocas sub-reptícias que continuam a manter com o concreto que governam; ainda não o é. Quando falo do trabalho em estática, posso e devo esquecer o que significa ‘trabalho’ no uso quotidiano; o trabalho dos físicos, que só usa esse nome porque era necessário dar-lhe um, não é mais do que o produto de uma força pela projeção de descolamento sob a direção de uma força; como todos os objetos científico, ele é o que definimos: a ciência tem por objeto as suas próprias abstrações; descobrir uma lei científica é descobrir, para além do visível, uma abstração que funcione. Pelo contrário, o ‘trabalho’ vivido não é definível; não é mais do que o nome que damos a um concreto do qual podemos, quando muito, evocar a riqueza confusa a golpes de virtuosidade de pena fenomenológica. Não o definiremos senão para evocar ao leitor a recordação desse concreto, que lhe permanece o único texto autêntico. O ‘ktèma es aei’ não é, portanto, formulável independentemente de um contexto acontecimental; suponhamos que o ‘ktèma’ nos ensina leis repeitantes à revolução, à burguesia ou à nobreza: não tendo os conceitos em questão sentido definido e não recebendo senão um daqueles a que ele se aplica, o ‘ktèma’ não seria mesmo compreensível sem contexto.” (Como se escreve a história, Paul Veyne, edições 70, Liboa-Portugal, 1987, p. 189).

Como todo historiador sério, Veyne dá prioridade à singularidade dos fatos históricos e rejeita tanto o determinismo histórico marxista quanto o eterno retorno nietzschiano. Por isto, logo no inicio de sua obra ele afirma que:

“A história - e um fato - presta-se mal a uma tipologia e quase nunca podemos descrever tipos bem caracterizados de revoluções ou de culturas como descrevemos uma variedade de insetos; mas, mesmo que fosse de outro modo e existisse uma variedade de guerra da qual se pudesse fazer uma descrição com muitas páginas, o historiador continuaria a contar os casos individuais pertencentes a essa espécie. Todavia, o imposto direto pode ser considerado como um tipo de imposto indireto também; o que é historicamente pertinente é que os Romanos não tinham imposto direto e quais foram os impostos estabelecidos pelo Diretório.

Mas que individualiza os acontecimentos? Não é a sua diferença nos pormenores, a sua ‘matéria’, o que eles são em sí próprios, mas o fato de acontecerem, quer dizer, acontecerem num dado momento; a história não se repetirá nunca, mesmo que lhe aconteça repetir a mesma coisa. Se nos interessarmos por um acontecimento em si mesmo, fora do tempo, como por uma espécie de ornamento seria inútil como estetas do passado, deleitarmo-nos com o que ele teria de imitável, uma vez que o acontecimento não deixaria de ser um ‘modelo’ de historicidade, sem ligações no tempo. Duas passagens de João sem Terra não são um modelo de peregrinação que o historiador teria em duplicado, porque o historiador não consideraria indiferente que aquele príncipe, que já tivera tanto desgostos com a metodologia da história, tivesse tido a infelicidade suplementar de tornar a passar por onde tinha passado; ao anunciar-se a sua segunda passagem, ele não diria ‘eu conheço’, como faz o naturalista quando se lhe leva um inseto que já possui. O que não implica que o historiador não pense por conceitos, como toda a gente (ele fala corretamente em ‘passagem’), nem que a explicação histórica não deva recorrer a tipos, como o de ‘despotismo esclarecido’ (isto já foi sustentado). Isto significa simplesmente que a alma do historiador é a de um leitor de ‘faits-divers’; estes são sempre os mesmos e são sempre interessantes porque o cão que é atropelado neste dia não é aquele que foi na véspera, e mais naturalmente porque hoje não é a véspera.” (Como se escreve a história, Paul Veyne, edições 70, Liboa-Portugal, 1987, p. 18/19).

Mais ou menos no mesmo sentido são as palavras de outro grande historiador:

“A realidade histórica é, ao mesmo tempo, inesgotável e equívoca. Há sempre tantos aspectos diversos, tantas forças em ação que se recortam e sobrepõe no mesmo ponto do passado, que o pensamento do historiador aí encontrará sempre o elemento específico que, segundo a sua teoria, se revela como preponderante e se impõe como princípio de inteligibilidade - como ‘a’ explicação. O historiador escolhe à sua vontade: os dados prestam-se complacentemente à sua demonstração e adaptam-se igualmente a todo sistema. Encontra sempre o que procura - sejam mitos solares (ou indo-europeus), exigências religiosas, forças sociais ou estruturas econômicas. Mas que o seu triunfo seja modesto: não terá arriscado nada, porque está bem demonstrado que a vida humana possui ao mesmo tempo componentes econômicos, sociais, religiosos, etc., e o nosso homem encontra-se, logo à partida, de posse de uma doutrina que ensina qual desses diferentes aspectos é determinante, fundamental - real.” (Do conhecimento histórico, H.-I. Marrou, Martins Fontes, 4a. edição, 1975, p. 167).

Um pouco adiante H.-I. Marrou foi ainda mais específico:

“...a realidade histórica, tal como a revela a experiência através de documentos, só nos fornece fenômenos singulares, irredutíveis um ao outro. Se é possível instaurar uma comparação entre alguns desses fenômenos, as analogias que se pode dessa maneira por em evidência só incidem sobre aspectos parciais, ficticiamente abstraídos pela análise mental, nunca sobre a própria realidade (encontramos, como a propósito da procura das ‘causas’, as consequencias que resultam da impossibilidade de proceder por meio da experimentação à constituição de sistemas fechados, isolando este ou aquele elemento do real). As observações de caráter pretensamente geral, que se procura fazer passar por ‘leis da história’, não passam de semelhanças parciais, relativas ao ponto de vista momentâneo sob o qual o olhar do historiador preferiu fixar tais aspectos do passado.” (Do conhecimento histórico, H.-I. Marrou, Martins Fontes, 4a. edição, 1975, p. 178/179).

Mas não devemos apenas rejeitar as semelhanças que os historiadores do futuro estão procurando encontrar entre 1964 e 2014 para justificar a possibilidade de novo rompimento da legalidade. Para refutar sua hipótese convêm assinalar as diferenças gritantes entre os dois contextos históricos. E as diferenças entre 1964 e 2014, penso, são mais relevantes do que as diferenças.

Em 1964 a exploração do medo do comunismo era mais fácil do que hoje, pois estávamos no auge da Guerra Fria. As tensões despertadas pela crise dos mísseis soviéticos em Cuba haviam dividido de maneira clara e brutal a opinião pública brasileira. Mesmo sendo tolerado, naquela época o PCB era um partido ilegal e tinha poucas ambições eleitorais. Hoje os partidos comunistas não são ilegais e tem feito um bom trabalho onde quer que tenham representantes. Na década de 1960, em razão da proximidade da revolução cubana, uma parcela da esquerda brasileira ainda sonhava com a cubanização do Brasil. Hoje a esquerda se adaptou perfeitamente ao capitalismo e ao jogo democrático, tanto que chegou ao poder pela via eleitoral e segue governando para enriquecer os ricos e melhorar a vida do povão.

As Forças Armadas desempenhavam em 1964 um papel político que se recusam a desempenhar nos dias atuais. Os oficiais graduados sabem que se tentarem dar um golpe de estado correm o risco de perder o comando da tropa e produzem uma catástrofe nacional sem precedentes. A Igreja Católica apoiou o golpe de estado de 1964, mas logo que as torturas e prisões arbitrárias de clérigos começaram alguns bispos recuaram. O abismo entre a Igreja Católica e os militares se aprofundou definitivamente por causa da discussão e votação da Lei do Divórcio (fato que é geralmente esquecido pelos analistas). Por mais que alguns direitistas sonhem em retornar ao poder pela via rápida eles não conseguirão seu intento, principalmente porque o PT construiu uma sólida relação de confiança mutua com as Forças Armadas ao apoiar seus programas de modernização (algo que Jango não fez e não tinha fôlego econômico para fazer).

Os EUA, grande arquiteto e financiador da campanha jornalística metódica que isolou Jango e preparou o golpe de estado, estão completamente atolados nos conflitos do Oriente Médio. Nas últimas semanas a Casa Branca se meteu num beco sem saída ao confrontar a Rússia dentro da Ucrânia sem o apoio da China (país que tem financiado as aventuras militares norte-americanas). O contexto externo é tão desfavorável a um golpe de estado no Brasil quando a situação interna. O pleno emprego e o crescimento econômico do país não fornecem o fermento necessário à qualquer campanha de desestabilização do poder constituído.

Há dois erros muito comuns quando nos debruçamos sobre problemas históricos. O primeiro é projetar no passado nossas próprias ambições intelectuais, crenças ideologias e medos. O outro é projetar o passado no futuro como se o presente não tivesse sua própria dinâmica. Sobre os equívocos cometidos pelos futurólogos, Hannah Arendt escreveu as seguintes palavras memoráveis:

"A falha lógica nessas construções hipotéticas dos eventos futuros é sempre a mesma: aquilo que antes aparece como uma simples hipótese - com ou sem as suas consequentes alternativas, conforme o grau de sofisticação - torna-se imediatamente, em geral após alguns poucos parágrafos, um 'fato', o qual, então, origina toda uma corrente de não-fatos similares, daí resultando que o caráter puramente especulativo de toda empreitada é esquecido. Não é preciso dizer que isso não é ciência, mas pseudociência, 'a desesperada tentativa das ciências sociais e comportamentais', nas palavras de Noam Chomsky, 'de imitar as características superficiais das ciências que realmente têm um conteúdo intelectual significativo. E a mais óbvia e 'mais profunda objeção a esse tipo de teoria estratégica não é sua utilidade limitada, mas o seu perigo, pois ela pode nos levar a acreditar que temos um entendimento a respeito desses eventos e um controle sobre seu fluxo, o que não temos', como indicou recentemente Richard N. Goodwin em um artigo de revista que tinha a rara virtude de detectar o característico 'humor inconsciente' de muitas dessas pomposas teorias pseudocientíficas." (Sobre a violência, Civilização Brasileira, 2009).

O exercício intelectual proposto pelos analistas que, influenciados pelo mito do eterno retorno de Nietzsche e desprezando a natureza sublunar e singular dos acontecimentos históricos, é interessante. Mas seu produto tem mais valor como literatura fantástica do que como análise de conjuntura. Em ano eleitoral não devemos nos deixar influenciar pelo pessimismo nem pelo otimismo. A melhor coisa a fazer é seguir confiantes cometendo mais acertos do que erros, pois o medo sempre foi um péssimo conselheiro.



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