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Bem comum e interesse público.

Uma análise a partir da noção de moralidade política em Nicolau Maquiavel

Bem comum e interesse público. Uma análise a partir da noção de moralidade política em Nicolau Maquiavel

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A relação entre os conceitos de bem comum e interesse público, pela via da noção de moralidade política proposta por Nicolau Maquiavel, oportuniza uma ampla reflexão acerca da ação política e da legitimação dos governos.

Resumo: O presente artigo tem como objetivo estabelecer uma relação entre os conceitos de bem comum proposto por Nicolau Maquiavel (em seu "O Príncipe") e de interesse público, mormente pela via da noção de moralidade política estabelecida pelo Secretário Florentino. O estudo terá início com a determinação desta moralidade política traçada por Nicolau em sua obra política, ultrapassando, posteriormente, os conceitos de bem comum e interesse público. Ao final, pretende-se demonstrar que o elo entre o bem comum de Nicolau e a noção jurídica de interesse público estão ligadas pela noção de moralidade administrativa (ou moralidade política). Este artigo utilizou o tipo de pesquisa denominada bibliográfica, além do método indutivo e do procedimento monográfico.

Palavras - chave: bem comum; interesse público; moralidade política.


INTRODUÇÃO

Por muito tempo, entendeu-se que a moralidade política proposta por Nicolau Maquiavel em seu “O Príncipe” era ilimitada, de modo que muitos autores e atores políticos utilizaram desta errônea definição para buscar legitimação em atos praticados que eram contrários aos desejos do povo.

Dessa forma, procura-se definir a relação existente entre os conceitos de bem comum proposto por Nicolau e interesse público do Direito Administrativo Brasileiro, a partir da noção de moralidade política trazido por Nicolau Maquiavel, tendo por base teórica a própria obra maquiaveliana. Isto é, tenciona-se demonstrar que a atuação do agente político é limitada pelo bem comum/interesse público, o qual deve ser uma espécie de guia a legitimar seus atos.

Assim, é objetivo principal desse artigo demonstrar que a relação entre o bem comum de Nicolau e o interesse público moderno (ou seria pós-moderno?), por meio da noção de moralidade política proposta por Nicolau Maquiavel. Como objetivos específicos, tem-se a definição dos conceitos de moralidade política e bem comum definidos por Nicolau Maquiavel em sua obra “O Príncipe”, o conceito de interesse público proposto no Direito Administrativo Brasileiro, e a demonstração de que o bem comum de Nicolau Maquiavel relaciona-se com o conceito de interesse público, pelo que este também é o agente limitador das ações do agente político e o elemento de legitimação de seus atos.

Vale ressaltar que, apesar da obra de Nicolau Maquiavel ter sido longamente discutida, pouca atenção se deu ao fato de que o bem comum pode ser diretamente ligado ao conceito de interesse público, e limitando o conceito de moralidade política trazido pelo pensador florentino.

Da mesma forma, ao se analisar o caráter de legitimação do ato do Príncipe – isto é, do ato do agente político – pela via do bem comum, pode-se estabelecer um paralelo ao interesse público como elemento limitador do ato político, temática esta que demanda pesquisa e que se fundamenta nos anseios atuais da doutrina jurídica, inclusive podendo contribuir na construção de um novo conceito de atuação política, motivando a participação do povo nas decisões políticas.

Nesse sentido, é de se ressaltar o amor que Nicolau Maquiavel nutria por sua Florença, e que pode ser exemplificado por uma breve história do Secretário Florentino. Havia a necessidade de algum representante de Florença viajar até Módena, buscando informações sobre as movimentações dos exércitos espanhóis e alemães, então em invasão à Itália – que ainda era um estado fragmentado. Nicolau Maquiavel se prontificou a participar da viagem, de modo que foi enviado com a missão de se encontrar com Guicciardini e informar que Florença buscava um acordo. O que se destaca é que Nicolau já estava perto dos sessenta anos e a viagem se deu em rigoroso inverno.

Este exemplo da atitude do Secretário por sua amada Florença faz emergir a lembrança do grande homem público que foi Nicolau Maquiavel. E também demonstra que a política é o local para os grandes homens, aqueles que decidem suas ações com base em uma moralidade própria, típica e específica deste tortuoso meio – mas, que jamais se afastam das bases de toda e qualquer ação: o bem comum.


1. PARA UMA NOÇÃO DE MORALIDADE POLÍTICA EM NICOLAU MAQUIAVEL

Ressalte-se, de início, conforme proposto por De Grazia (1993, p. 11), que Nicolau Maquiavel será tratado nesse artigo tão somente como Nicolau. E isto porque "[...] é assim que os grandes homens são tratados - pelo primeiro nome".

Tendo sido o maior escritor italiano em prosa, Nicolau ofereceu aos seus contemporâneos uma moralidade inteiramente nova: a moralidade política. Segundo Rodrigo (1996), o conceito de moral política formulada pelo Secretário Florentino está relacionado com as necessidades da ação política. Melhor dizendo, com a teoria da verdade efetiva das coisas, como bem afirma o próprio Maquiavel (2004, p. 99):

[...] julguei adequado procurar a verdade pelo resultado das coisas, mais do que por aquilo que delas se possa imaginar. E muitos imaginaram repúblicas e principados nunca vistos ou reconhecidos como reais. Tamanha a diferença se encontra entre o modo como se vive e o modo como se deveria viver [...].

Nicolau, portanto, empreende uma análise das situações políticas reais - a chamada verittá effetuale -, utilizando para isso do seu histórico como Secretário da Segunda Chancelaria de Florença e do Conselho dos Dez1. Foram essas experiências políticas, somadas às leituras dos antigos2, que para Hale (1963) formaram o substrato teórico de Nicolau3. Dessa forma, pode-se dizer que o Secretário analisou a política da forma como ela realmente é, com suas mazelas e dificuldades, de acordo com Sadek (2004).

Por sua vez, no capítulo XV do seu O Príncipe, Nicolau revela que o governante deve utilizar da maldade de acordo com a necessidade, dado que os próprios homens revelam-se maus por sua própria natureza. Mais adiante, o Secretário confirma o seu sentimento pessimista da natureza humana ao dizer que "[...] os homens se esquecem mais rapidamente da morte do pai do que da perda de patrimônio." (Maquiavel, 2004, p. 107).

Da combinação destas duas teorias - da verdade efetiva das coisas e da perfidez humana - é que surge por obra de Nicolau um novo conceito de moralidade reguladora dos interesses do Estado e afastada da moral cristã4, motivo pelo que restou denominada de moralidade política. Neste sentido, retira-se de Maquiavel (2004, p. 100):

E sei que qualquer um reconhecerá ser digno de louvor o fato de um príncipe possuir, entre todas as qualidades mencionadas, as consideradas boas; mas a condição humana é tal que não permite a posse total de todas elas, nem mesmo a sua prática consistente; é mister que seja o príncipe prudente a ponto de evitar os defeitos que lhes poderiam tirar o governo e praticar as qualidades que lhe garantam a posse, se possível; se não puder, com menor preocupação, deixe que as coisas sigam seu curso natural. E não se importe ele sujeitar-se à fama de ter certos defeitos, sem os quais lhe seria difícil salvar o governo, porque, levando em conta tudo, encontrar-se-ão coisas que parecem virtudes e que, se praticadas, conduzi-lo-iam à ruína, e outras que podem se assemelhar a vícios e que, observadas, trazem bem-estar e segurança ao governante.

Essa moral política inaugurada por Nicolau pode ser bem observada no chamado Sonho de Maquiavel, contado por Viroli (2002). Este Sonho, na verdade, é um relato bem particular de Nicolau sobre o Sonho de Cipião, de Cícero. Diz-se que, quando em seu leito de morte, o Secretário relatou um sonho que tivera onde haviam dois lados: um com pessoas maltrapilhas e tristes, os quais seriam os santos e todos aqueles que tiveram uma vida de virtudes cristãs - sendo condenados a viver no Paraíso -; e do outro, pessoas muitíssimo bem vestidas discutindo assuntos de relevância política, os quais estavam sendo dirigidos ao Inferno. Nicolau finaliza seu relato afirmando que preferia ir ao Inferno discutir política, ao invés de ir aos Céus e viver tediosamente com santos e beatos.

O conteúdo subjetivo existente no Sonho de Maquiavel é a moralidade política, conforme se extrai de Viroli (2002, p. 18):

Em seu sonho, os fundadores, governantes e protetores das repúblicas, com seus feitos e obras, não desfrutam beatificamente a eternidade no lugar mais luminoso do Universo, como na antiga visão. Ao contrário, são condenados ao inferno porque, ao realizar os grandes feitos que os tornaram imortais, violaram as normas da moral cristã.

Sendo assim, por vezes, será necessário ao governante que negue a moral cristã e pratique atos atentatórios às virtudes convencionais. É o que se observa da leitura de Martel (2003, p. 85): "Maquiavel estuda, analiticamente, a inovação política, mostra-a possível e legitimável pelo agir político, demonstra, por meio de exemplos de homens de política, a logicidade da intervenção humana". Para tanto, Nicolau nos oferece o exemplo da conquista da Romana por César Bórgia, o Duque Valentino5.

A região da Romanha era local de muitas convulsões sociais e políticas, além de toda a sorte de violências. Desta maneira, César Bórgia julgou conveniente enviar um de seus representantes para a Romanha, o qual detinha plenos poderes sobre aquela região dominada. Desta forma, o Duque consolidou o seu poder na região da Romanha. Mais tarde, sob o argumento de que as arbitrariedades pudessem torná-lo odiado perante o povo, César Bórgia mandou que o seu representante fosse cortado ao meio e exibido em praça pública.

O que deve mover, portanto, os atos de um governante é o desejo de manutenção do seu país que ocorrerá através dos grandes feitos realizados em prol de seu povo, quando para isso, segundo Maquiavel (2004, p. 111), "[...] é preciso compreender que um príncipe [...] não pode observar todas as coisas a que são obrigados os homens tidos como bons, pois é muitas vezes forçado, para manter o governo, a agir contra a caridade, a fé, a humanidade, a religião".

Por isso, a moralidade política defendida por Nicolau teve como esteio de criação teórica a impossibilidade para o Príncipe de governar sob as premissas defendidas pelo cristianismo, mormente com relação ao caráter piedoso dos homens. Isto é, como diria certa vez Cosme, o Velho, primeiro senhor Médici da cidade de Florença, "os Estados não podiam ser governados com o rosário nas mãos", conforme atesta Viroli (2002, p.29).

Questiona, assim, Nicolau aos seus contemporâneos: como realizar os grandes feitos necessários a um Estado, sem violar nenhuma regra cristã? É o que se tem em Skinner (1996, p. 155):

A diferença crucial entre ele [Nicolau] e seus contemporâneos está na natureza dos métodos que um e outros consideraram adequados para realizar aqueles fins. O ponto de partida dos teóricos mais convencionais era que, para o príncipe alcançar tais metas, deve estar certo de seguir os ditames da moralidade cristã, sob qualquer circunstância. [...] A crítica fundamental que assim dirige [Nicolau] aos pensadores de sua época é o fato de não perceberem aquilo que, a seu ver, define o dilema que caracteriza o príncipe. Como observa, não com pouca aspereza, eles querem ter o direito de expressar sua admiração por um grande condutor de homens como foi Aníbal, mas ao mesmo tempo pretendem 'condenar o que tornou possíveis suas façanhas', em especial a 'crueldade humana' na qual Maquiavel, com muita franqueza, vê a chave para o sucesso e a glória de Aníbal [...].

A resposta, segundo o Secretário, é a inauguração de uma nova espécie de moralidade, conforme Skinner (1996, p. 155):

A única saída para esse dilema, insiste ele [Nicolau], consiste em aceitar sem nenhuma reserva que, se um príncipe estiver empenhado seriamente em 'manter seu estado', terá de renunciar às exigências da virtude cristã, abraçando de todo o coração a moralidade em tudo diferente que lhe determina a posição que ocupa. Assim, a diferença entre Maquiavel e seus contemporâneos não pode ser corretamente avaliada como a diferença entre uma visão moral da política e uma concepção da política que estaria divorciada da moralidade. O contraste essencial diz respeito, isso sim, a duas moralidades distintas - duas exposições antagônicas e incompatíveis do que em última análise se deve fazer.

Em política, portanto, os meios que um governante utiliza para atingir o fim de preservação do Estado são relativos à sua atividade política, não podendo se defender a aplicação de códigos cristãos de compaixão e bondade.

Para alguns, a moralidade política de Nicolau pode significar que ao governante é permitido fazer tudo aquilo que seja do seu interesse. Este pensamento, no entanto, é inoportuno e divorciado dos escritos do Secretário Florentino, eis que ao Príncipe cabe manter o seu Estado e trazer glória ao seu povo.

Diante disso, o conceito de moralidade política de Nicolau não pode ser utilizado como base de sustentação teórica de um governo tirânico, o qual se utiliza de todas as arbitrariedades possíveis, nem mesmo de um governo corrupto. A razão para tanto é a ausência de legitimação deste governo, a ausência do elemento limitador da moralidade política do Secretário. É o que afirma De Grazia (1993, p. 185-186):

Um Estado mau ou injusto é uma tirania, na qual o governo visa a ganhos privados. Na maioria das vezes, quando há um príncipe, 'o que é bom para ele prejudica a cidade e o que é bom para a cidade prejudica a ele. De modo que imediatamente nasce uma tirania [...] e se a sorte fizesse surgir um tirano virtuoso [...] não resultaria nenhuma utilizada para aquela república, mas [apenas] para ele próprio'. (Niccolò admite um outro sentido de tirania - 'Um poder absoluto, que é chamado pelos autores de tirania' - , mas não o emprega com tanta frequência). Um Estado justo é aquele governado para o bem comum. O governante virtuoso, o novo príncipe, o bom cidadão, a guerra justa, o grande fundador-legislador - todos eles têm como fim o bem, o benefício ou o bem-estar comum.

Nicolau defende, dessa maneira, que o governante deve empreender aquilo que for necessário para a manutenção do seu Estado e na propagação do bem comum. A liberalidade de ação do Príncipe proposta por Nicolau está limitada na ação pelo bem comum, o qual é dedicado ao predomínio absoluto dos interesses de toda a coletividade e de ações duradoras, tratando a política como um processo de construção.


2. O BEM COMUM

Nicolau conheceu a sua Itália como "[...] um mosaico de cubos muito pequenos [...]", conforme afirmou Mosca (1968, p. 103), sendo que permanecia dividida em diversas cidades-estado que, no mais das vezes, guerreavam entre si, diminuindo as chances de unificação e aumentando as chances de invasão por uma nação mais forte. Para Larivaille (1988, p. 9), a Itália era um "mosaico de Estados de dimensões territoriais, regimes políticos, estágios de desenvolvimento econômico, até culturas muito variáveis".

Para Hale (1963) foi a discussão com Francesco Vettori sobre a fragmentação da Itália que estimulou Nicolau a escrever "O Príncipe", posto que o sonho do Secretário era que houvesse um governante capaz de unificar o território italiano.

Diante disso, ao concluir a sua obra-prima "De Principatibus" com um verso de Petrarca, Nicolau realiza uma "Exortação ao Príncipe para Livrar a Itália das Mãos dos Bárbaros". O mesmo Petrarca possui outra poesia, que é reveladora do bem comum decantado pelo Secretário, onde declama por um "um cavaleiro que toda a Itália honra, / preocupado mais com os outros do que consigo mesmo".

2.1. O CONCEITO MAQUIAVÉLICO DE BEM COMUM

Segundo De Grazia (1993), apesar de Nicolau jamais ter se enveredado nos caminhos da definição do que seja bem comum6, é certo dizer que o bem comum em sua teoria política é tratado em um caráter duplamente importante.

Nesse sentido, aliás, bem explica Ames (2000, p. 146) quando afirma que em um primeiro momento, o bem comum se trata do amor à pátria, expressão essa utilizada pelo próprio Nicolau e que significa a renúncia dos interesses pessoais do Príncipe em prol dos interesses da coletividade; e, por segundo, guarda referência à necessidade de êxito duradouro, isto é, "não diz respeito ao êxito imediato e efêmero, mas ao legado deixado às gerações futuras: a criação de instituições duradouras que sobrevivam aos seus criadores".

A primeira característica relaciona-se com aqueles homens que sacrificaram sua vida em razão do bem comum, ou seja, aqueles que rejeitaram viver por sua glória pessoal, mas concederam o seu viver ao fim último da Pátria. O grande exemplo é o próprio Secretário, conforme se constata da redação de Ridolfi (2003, p. 154), ao comentar a demissão de Nicolau em razão da queda do Governo de Piero Soderini:

Mas ele [Nicolau] continua vivendo o poeta, inclinado aos sonhos, e quem sabe, ali e ali, ele se ilude em poder continuar naquele cargo que para ele é a vida, e a vida toda durou. Mesmo que mudem os magistrados, ele é um homem de letras, que usa sua pena e seu engenho para os que governam, assim fazem os artistas, os soldados, os poetas. Serve ao Estado, não a uma facção; fielmente serviu à República sob o governo popular, há de servi-la fielmente sob o governo dos Médici.

Mais do que Secretário da Segunda Chancelaria e do Conselho dos Dez de Florença, Nicolau foi um legítimo homem de Estado, que ofereceu seus melhores e incessantes préstimos em benefício de sua amada Florença.

Aliás, este amor à pátria caracterizador do bem comum é ressaltado pelo Secretário na Exortação de fechamento do Discurso das coisas florentinas após a morte de Lourenço7, conforme se vê de Maquiavel (p. 744 apud Viroli, 2002, p. 234) quando afirma que "Creio que a maior honra que os homens podem alcançar seja aquela que a sua pátria, voluntariamente, lhes concede: creio que o maior bem que se possa fazer, e o mais agradável a Deus, seja aquele que se faz à sua pátria".

Por sua vez, em pelo menos dois capítulos dos seus Discursos, Nicolau utiliza a pátria como elemento justificador dos atos do governante. O primeiro refere-se à nomeação pelo cônsul Mânlio do seu substituto Papírio Cursor, mesmo sendo pública e notória a inimizade existente entre eles. O segundo, intitulado de "A pátria deve ser defendida com glória ou infâmia; em qualquer caso será bem defendida", Maquiavel (2008, p. 419) assim relata:

Esse fato é digno de nota e deve orientar todo cidadão que seja chamado a dar conselhos ao governo de sua pátria. Quando é necessário deliberar sobre uma decisão a qual depende a salvação do Estado, não se deve deixar de agir por considerações de justiça ou injustiça, humanidade ou crueldade, glória ou ignomínia. Deve-se seguir o caminho que leva à salvação do Estado e à manutenção da sua liberdade, rejeitando-o tudo mais.

Nicolau empreende, assim, que o bem comum também está diretamente ligado à salvação do Estado, de modo que as ações do governante estão justificadas pela realização de "grandes feitos" e "grandes coisas", conforme Bobbio (2000).

O sucesso político tratado por Nicolau é aquele que permanece ao longo do tempo, uma vez que assim restará dominada a Fortuna e libertada a Virtù do governante, naquilo que se constituirá em salvação do Estado.

Essa necessidade de continuidade no êxito do governo é o fim do Estado e o fim do Estado é o bem comum. Como bem assinala De Grazia (1993, p. 201), "O fim do Estado e o único bem em si mesmo é o bem comum. O príncipe, novo ou velho, é um bom príncipe na medida em que é um homem excepcional trabalhando pelo bem comum".

Portanto, o bem comum é justificador das ações do Príncipe. Referidas ações devem alcançar a todos da população do Estado, de modo que leve o Estado à glória, concretizando a prática política pelo bem comum. É preciso, assim, "colocar os interesses da comunidade acima de quaisquer outros", como afirma Skinner (1996, p. 202).

Nesse sentido, De Grazia (1993, p. 204) conclui o capítulo 7 do seu excelente Maquiavel no Inferno8 desta forma:

Agora parece que atingimos um patamar mais elevado. Quer Niccolò apresente a pátria como uma aproximação ou contraste do ideal da república, como uma divina dama ou o domínio que tem império sobre os homens, ele tem boas razões para insistir que, em qualquer decisão sobre a verdadeira saúde da pátria, não deve entrar nenhuma consideração sobre o justo ou o injusto, o piedoso ou o cruel, o louvável ou o ignominioso; "pelo contrário, adiado qualquer outro aspecto, [deve-se] seguir inteiramente o partido que lhe salve a vida e lhe mantenha a liberdade". O Estado encontra sua perfeição constitucional, seu verdadeiro e perfeito fim, numa pátria em que o bem comum seja observado ao máximo, isto é, numa república independente e duradoura onde a lei é respeitada e as mulheres são honradas, onde os altos cargos estão abertos a todos os cidadãos, onde predomina a igualdade dos ganhos da liberdade e do trabalho e de legá-los aos filhos - em "uma república perfeita", que percorrerá "todo o curso [...] ordenado pelo céu". Tal é o sentido de tudo isso.

Cabe sublinhar, ainda, a seguinte passagem: "O Estado encontra sua perfeição constitucional, seu verdadeiro e perfeito fim, numa pátria em que o bem como seja observado ao máximo [...]". Será deveras importante para a compreensão da relação entre o bem comum e o interesse público.

Por enquanto, deve-se atentar que o bem comum significa o sentido de tudo isso, como magistralmente denominou De Grazia (1993) o seu capítulo 7. Dessa forma, o bem comum, para Nicolau, é o fim último do governante. É o amor à pátria representado através da conduta ímpar de um Príncipe que levará o seu Estado a atingir grandes feitos duradouros.

2.2. UM EXEMPLO DE ATUAÇÃO PELO BEM COMUM DE UMA PÁTRIA

A atuação pelo bem comum poderia ser exemplificada através do Cônsul de Roma Mânlio, que "era 'inteiramente em favor do público' e não se importava com nenhuma 'ambição privada' [...] sempre rude com cada indivíduo e amando apenas o bem comum'", como bem afirma De Grazia (1993, p. 188).

O exemplo mais conhecido e mais importante para Nicolau é o de Rômulo, fundador de Roma. Com efeito, Maquiavel (2008) ao comentar sobre a fundação de Roma oferece a lição de Rômulo, que primeiramente assassinou o seu irmão Remo e depois concordou com a morte do seu sócio9 Tito Tácio, o que foi fundamental para o estabelecer da República de Roma.

Seria suposto, aos mais afoitos, que a ação de Rômulo seria um ato egoísta e que poderia provocar no povo de Roma uma prática de "forçar os que a eles se opuserem", como bem diria Maquiavel (2008, p. 49). Mas, antes é necessário tornar claro o motivo para que Rômulo conduzisse ao homicídio de seu irmão e à aceitação da morte de Tito Tácio, senão veja-se:

É por assim dizer uma regra geral a de que as repúblicas e os reinos que não receberem as suas leis de um único legislador, ao serem fundados ou durante alguma reforma fundamente que se tenha feito, não possam ser bem organizados. É necessário que um só homem imprima a forma e o espírito do qual depende a organização do Estado.

Deste modo, o legislador sábio, animado do desejo exclusivo de servir não os seus interesses pessoais, mas os do público: de trabalhar não em favor dos próprios herdeiros, mas para a pátria comum, não poupará esforços para reter em suas mãos toda a autoridade.

Nicolau defende que a grande lição deixada por Rômulo está na justificativa dos seus atos, os quais foram realizados pelo bem comum de Roma e de sua fundação - e não por seus interesses pessoais.

Aliás, para Maquiavel (2008, p. 50), prova de que Rômulo "agiu não para satisfazer uma ambição pessoal, mas em prol do bem comum, é o estabelecimento imediato do Senado, cujo conselho procurou, tomando-o como guia". Rômulo rejeitou um governo "absoluto e tirânico", ajustando as primeiras instituições de Roma para um governo "livre e popular".

O brilhantismo da fundação de Roma por Rômulo - mormente por sua atuação pelo bem comum da pátria - encontra-se escancarada no seguinte trecho do A Arte da Guerra, de Maquiavel (2005, p. 109):

Não terminei de expor tudo aquilo a que me propus, ou seja, duas coisas. Primeiro, que um homem reto não poderia empregar a arte militar em seu próprio benefício; segundo, que uma república ou um reino bem organizado não permitiria jamais que seus cidadãos ou súditos agissem dessa forma. Sobre a primeira já disse o que me veio à mente. Falta falar sobre a segunda, e neste ponto responderei à pergunta feita. Pompeu, César e quase todos os generais que teve Roma depois da última Guerra Púnica ganharam fama de homens bravos, não de homens retos. Mas os que os antecederam alcançaram a glória como cidadãos valentes e bons. Isso porque não faziam a guerra em seu próprio benefício, como aconteceu com os que citei em primeiro lugar.

Destarte, encontra-se o bem comum ao analisar a história de fundação da República de Roma por Rômulo, já que "O fim do Estado e o único bem em si mesmo é o bem comum. O príncipe, novo ou velho, é um bom príncipe na medida em que é um homem excepcional trabalhando pelo bem comum" (De Grazia, 1993, p. 201).


3. O INTERESSE PÚBLICO

Ao iniciar sua análise sobre o conteúdo jurídico de interesse público, Ferraz Junior (1995, p. 10) declara que o interesse público configura uma afirmação de Direito Público que não exige prova para que se configure como verdadeira, induzindo a tratá-lo como um axioma, isto é, uma máxima.

O que se quer dizer é que o jurista brasileiro entendeu o interesse público da mesma forma como o fez o Secretário Florentino, já que "O bem comum é algo tão evidente para Niccolò que ele nunca se dá ao trabalho de especificá-lo".

3.1. NOÇÃO JURÍDICA DE INTERESSE PÚBLICO

No Direito Brasileiro, cumpre à Administração Pública "promover o bem de todos" (art. 3?, IV, da Constituição Federal). Logo, o interesse público foi alçado pela Constituição Cidadã ao status de objetivo fundamental da República Federativa do Brasil, motivo pelo que esboçar uma noção jurídica para interesse público torna-se tarefa mais do que necessária.

Entretanto, parte da doutrina administrativista, especialmente Justen Filho (2013), tem defendido a tese da impossibilidade de uma definição precisa do que seja o interesse público, sob o argumento de que se trata de um conceito jurídico indeterminado.

Cabe registrar, por outro lado, a posição de Carvalho Filho (2011), para quem o interesse público tem natureza jurídica de conceito determinável. Dessa maneira, apesar da dificuldade no estabelecimento de sua noção, o interesse público pode perfeitamente ser circunscrito a existência de determinados elementos.

Com efeito, pode-se remontar os contornos jurídicos da noção de interesse público no Direito Administrativo Brasileiro das ideias do jurista italiano Renato Alessi, pela obra de Celso Antonio Bandeira de Mello, revelando-se interesse público quando configurar um "interesse coletivo primário". É o que se retira de Bacellar Filho (2010, p. 90):

Conquanto empregada com relativa frequência no âmbito da Administração Pública, a expressão "interesse público" revela um complexo significado. A doutrina italiana, multicitada no Brasil através da obra de Renato Alessi, mormente após a adoção de suas ideias por Celso Antônio Bandeira de Mello, lança mão da distinção entre interesse coletivo primário e interesses secundários para precisar o sentido de "interesse público", asseverando que este só se configurará quando coincidir com o primeiro (coletivo primário).

Por sua vez, também cabe ressaltar trecho da doutrina do próprio Bandeira de Mello (2009, p. 66), sobre as influências italianas para a estruturação do conceito de interesse público:

Esta distinção a que se acaba de aludir, entre interesses públicos propriamente ditos - isto é, interesses primários do Estado - e interesses secundários (que são os últimos a que se aludiu), é de trânsito corrente e moente na doutrina italiana, e a um ponto tal que, hoje, poucos doutrinadores daquele país se ocupam em explicá-los, limitando-se a fazer-lhes menção, como referência a algo óbvio, de conhecimento geral. Este discrímen, contudo, é exposto com exemplar clareza por Renato Alessi, colacionando lições de Carnelutti e Picardi, ao elucidar que os interesses secundários do Estado só podem ser por ele buscados quando coincidentes com os interesses primários, isto é, com os interesses públicos propriamente ditos.

A definição do interesse público pela separação entre interesses coletivos primários e interesses secundários parte do pressuposto de que o interesse público não se encontra exclusivamente na identificação do interesse do Estado.

Inclusive, Bandeira de Mello (2009, p. 65) adverte para o perigo que a concepção simplista de interesse público como interesse do Estado pode encaminhar o intérprete. Isto porque, o Estado, tal como os particulares, também é uma pessoa de direitos e deveres (in casu, uma pessoa jurídica) que "existe e convive no universo jurídico em concorrência com todos os demais sujeitos de direito".

Diante disso, a pessoa jurídica Estado pode possuir - e, de fato, apresenta - uma imensa gama de interesses individuais e que lhe são particulares. Ou seja, que não estão em sintonia com os interesses do conjunto social. Este conjunto de interesses individuais do Estado são denominados, por Bandeira de Mello (2009), como interesses secundários.

Repetindo as lições de Renato Alessi, Bandeira de Mello (2009) trata dos interesses secundários por meio de exemplos como a tributação, pelo Estado, em demasia dos seus administrados. Tal situação, por óbvio, enriqueceria o Erário, mas levaria todo o corpo social à pobreza, configurando-se, por vezes, em verdadeiro confisco. Além de afronta ao princípio tributário da proporcionalidade razoável, tal assertiva também ofenderia ao interesse público, já que, para Silva (2005, p.715), "o tributo não deve subtrair mais do que uma parte razoável do patrimônio ou da renda do contribuinte".

Assim, observa-se que o interesse público difere dos interesses individuais e particulares, constituindo-se, portanto, no "interesse do todo, ou seja, do próprio conjunto social", como bem acentua Bandeira de Mello (2009, p. 59). Oportuno transcrever a declaração de caráter categórico de Bacellar Filho (2010, p. 93) de que "A Administração não deve cuidar de interesses do Estado, mas dos cidadãos."10.

Todavia, registre-se que não se pode cair no erro comum de supor que o interesse público é constituído apenas e tão somente de um "antagonismo entre o interesse das partes e o interesse do todo", o que foi muito bem definido por Bandeira de Mello (2009, p. 59) de "falso antagonismo".

O que se quer dizer é que o interesse público não pode ser confundido com um interesse autônomo, isto é, de algo que existe por si mesmo e que seja independente de todo e qualquer interesse das partes. Pelo contrário, para Bandeira de Mello (2009, p. 59) o interesse público tem como fundamental elemento o "interesse do todo", ou seja, uma "função qualificada dos interesses das partes", senão veja-se:

Poderá haver um interesse público que seja discordante do interesse de cada um dos membros da sociedade? Evidentemente, não. Seria inconcebível um interesse do todo que fosse, ao mesmo tempo, contrário ao interesse de cada uma das partes que o compõem. Deveras, corresponderia ao mais cabal contra-senso que o bom para todos fosse o mal de cada um, isto é, que o interesse de todos fosse um anti-interesse de cada um.

No mesmo sentido Justen Filho (2013, p. 150-151) afirma que "O interesse público não se confunde com o interesse da sociedade: [...] Não havendo vínculo com os interesses individuais concretos, surgiria o problema de determinar o conteúdo de natureza social".

Poderia, ainda, ocorrer a confusão em admitir que o interesse pública seria o mero somatório de interesses individuais ou, então, a média destes interesses particulares, o que não se justifica como verdadeiro.

Com efeito, como bem expõe Justen Filho (2013), admitir o interesse público como o somatório dos interesses individuais seria aniquilar a possibilidade de presença das minorias, o que configuraria em um ato claramente atentatória ao Estado Democrático11. Resumindo: na definição de interesse público não há um critério quantitativo, mas qualitativo - como já dito acima.

A título de exemplificação, a doutrina administrativista tem se utilizado do fenômeno da desapropriação para explicar o conceito de interesse público. Para Bandeira de Mello (2009), o administrado provavelmente terá interesse individual em não ter imóvel de sua propriedade objeto da desapropriação; mas, ao mesmo tempo, terá pessoal interesse na existência do instituto da desapropriação, já que importante para o desenvolvimento social (tal como na construção de uma escola, hospital ou, até mesmo, abertura de ruas e avenidas).

A conceituação do interesse público, assim, deve estar centrada na natureza do interesse de cada administrado. Explica-se: se por um lado há o interesse individual (que não configura interesse público, até porque presentes na singularidade), por outro há aquilo que se chama de interesse pessoal do administrado que surge no âmbito da coletividade, ou, melhor dizendo interesse público. É o que afirma Bandeira de Mello (2009, p. 60-61):

O que fica visível, como fruto dessas considerações, é que existe, de um lado, o interesse individual, particular, atinente às conveniências de cada um no que concerne aos assuntos de sua vida particular - interesse, este, que é o da pessoa ou grupo de pessoas singularmente consideradas -, e que, de par com isto, existe também o interesse igualmente pessoal destas mesmas pessoas ou grupos, mas que comparecem enquanto partícipes de uma coletividade maior na qual estão inseridos, tal como nela estiveram os que os precederam e nela estarão os que virão a sucedê-los nas gerações futuras.

Pois bem, é este último interesse que nomeamos de interesse do todo ou interesse público.

Por esse motivo é que Bacellar Filho (2010, p. 91) conceituou interesse público como sendo a "parcela coincidente de interesses dos indivíduos enquanto membros da coletividade". Ou, como inaugurou em nosso Direito Administrativo Bandeira de Mello (2009, p. 61), o interesse público "deve ser conceituado como o interesse resultante do conjunto dos interesses que os indivíduos pessoalmente têm quando considerados em sua qualidade de membros da Sociedade e pelo simples fato de o serem".

Destarte, são elementos que formam a noção jurídica de interesse público: conjunto de interesses; estes interesses são pessoais; critério qualitativo em relação ao todo social.

Mas, para Justen Filho (2013) a impossibilidade de reprimir os processos históricos e sociais nos trouxe à era da pós-modernidade, período em que o Estado vive uma crise permanente, dada a conscientização de que o progresso alcançado trouxe efeitos positivos e negativos, o que poderá influenciar na aplicação do conceito jurídico de interesse público.

3.2. A INFLUÊNCIA DA PÓS-MODERNIDADE NO CONCEITO DE INTERESSE PÚBLICO

Para Touraine (2007, p. 76), o momento chamado de pós-modernidade é marcado pelo fim de um tipo de sociedade, chegando a afirmar que "A estátua da sociedade, que fora erguida no coração do espaço público, está hoje reduzida a cacos", de modo que preceitua o nascimento do sujeito.

Por mais que, em um primeiro momento, pareça que Touraine (2007) realize a negativa da existência - e importância - do interesse público neste período de pós-modernidade, a leitura atenta de sua obra assim nos concede o entendimento de que o retorno ao sujeito provoca uma robustez no conceito de interesse público adotado pela doutrina administrativista brasileira.

Retira-se, neste sentido, de Touraine (2007, p. 102):

A destruição da ideia de sociedade só pode nos salvar de uma catástrofe se levar à construção da ideia de sujeito, à busca de uma ação que não procure nem o lucro nem o poder nem a glória, mas que afirme a dignidade de cada ser humano e o respeito que ele merece. [...]

Ocorreram em seguida [...] a ascensão de um individualismo consciente, refletido, definido como a reinvindicação para si mesmo, por parte de um indivíduo ou de um grupo, de uma liberdade criadora que é seu próprio fim [...].

Este individualismo nascido da pós-modernidade traz em seu bojo, todavia, um perigo à existência do interesse público: o fascismo, na opinião de Justen Filho (2013). Com efeito, o fascismo utiliza do aspecto de privilégio de uma maioria - formada, muitas vezes, pela utilização massificada dos meios de comunicação12 - para impor a sua doutrina e o seu poder político.

Por este motivo é que Touraine (2007, p. 113) ensina que "O maior perigo atual, porém, é aquele que já mencionei, a saber, que a ideia de sujeito seja corrompida pela obsessão da identidade".

Portanto, apesar das transformações trazidas pela pós-modernidade, a noção jurídica de interesse público continua a ser a mesma lançada em tópico anterior, fundamentada na existência de elementos que versam sobre a união de interesses pessoais e qualitativos dos administrados.


4. O ELO ENTRE O BEM COMUM E O INTERESSE PÚBLICO

Ao oferecer um conceito de interesse público, Di Pietro (2007, p. 61) leciona que o desvio da ação política do conteúdo jurídico previsto como interesse público levaria aos denominados "desvio de poder" e "desvio de finalidade", conforme segue:

Se a lei dá à Administração os poderes de desapropriar, de requisitar, de intervir, de policiar, de punir, é porque tem em vista atender ao interesse geral, que não pode ceder diante do interesse individual. Em consequência, se, ao usar de tais poderes, a autoridade administrativa objetiva prejudicar um inimigo político, beneficiar um amigo, conseguir vantagens pessoais para si ou para terceiros, estará fazendo prevalecer o interesse individual sobre o interesse público e, em consequência, estará se desviando da finalidade pública prevista em lei. Daí o vício do desvio de poder ou desvio de finalidade, que torna o ato ilegal.

O interesse público funciona, assim, como um elemento limitador da vontade do governante. Idêntica função àquela exercida pelo bem comum defendido por Nicolau.

Anteriormente exemplificou-se que a excessiva tributação do Estado não importaria em interesse público. Neste passo, o próprio Maquiavel (2004, p. 134) afirmou:

Deve, além disso, estimular os cidadãos a exercer suas atividades livremente, no comércio, na agricultura e em qualquer outra área, de sorte que o agricultor não deixe de enriquecer suas propriedades por medo de que lhe sejam arrebatas nem deixe o comerciante de fazer crescer seu negócio por recear impostos. Ao contrário, deve o príncipe instituir prêmios aos que desejarem executar essas coisas e a todos aqueles que, de um modo ou de outro, pensarem em ampliar a sua cidade ou o seu Estado.

De igual forma, Justen Filho (2013), ao receitar os limites a serem impostos ao governante para evitar o perigo do fascismo que ronda a época pós-moderna, afirma que esta limitação está justificada em um bem comum compatível com a ordem jurídica. Idêntica posição tem Bacellar Filho (2010, p. 97-99) ao escrever que "o princípio da legalidade vincula o 'direito administrativo às disposições constitucionais'", senão veja-se:

A Administração Pública, para servir objetivamente ao interesse público - tal como determina a Constituição Espanhola - deve respeitar a legalidade formal, obedecendo fielmente às imposições legislativas que refletem a vontade do povo, manifestada através de seus representantes, bem como a juridicidade, concretizando todos os mandamentos que o direito positivo como um todo faz espargir, notadamente os de fonte constitucional.

Sendo assim, chega-se, finalmente, ao elo entre o interesse público moderno (pós-moderno, em verdade) e o bem comum delineado pelo Secretário Florentino, o que pode ser construído a partir do princípio da moralidade administrativa, previsto no art. 37, caput, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

Ora, se o interesse público deve respeitar a ordem jurídica-constitucional, nada mais natural que esteja diretamente ligado a um dos princípios administrativos de maior importância. Cumpre ressaltar, em razão da oportunidade, que Bacellar Filho (2010) constitui o interesse público sobre as amarras de todos os princípios constitucionais da Administração Pública previstos pelo precitado artigo da Constituição.

Entretanto, aqui a análise da relação entre as noções de interesse público e bem comum será embasada a partir do princípio da moralidade administrativa. É o que se retira de Bacellar Filho (2010, p. 103):

A moral administrativa não guarda estrita compatibilidade com a chamada moral comum. Esta, diz, Hauriou, é imposta ao homem para sua conduta interna; já a moral administrativa é imposta ao agente público para a sua conduta externa, segundo as exigências da instituição a que serve, e a finalidade de sua ação: o bem comum. [...] Não há dúvida, portanto, quanto à íntima conexão entre a noção de interesse público e o princípio constitucional da moralidade administrativa: este tem como razão de ser a condução da Administração Pública ao bem comum.

Diante disso, as noções de interesse público e bem comum funcionam como elementos de legitimação de um governo, porquanto atuam como limitadores da moralidade política proposta pelo Secretário. Cabe transcrever, novamente, excerto de De Grazia (1993, p. 186), onde "Um Estado justo é aquele governado para o bem comum. O governante virtuoso, o novo príncipe, o bom cidadão, a guerra justa, o grande fundador-legislador - todos eles têm como fim o bem, o benefício ou o bem-estar comum".

Assim, não há moralidade administrativa dissociada da prática pelo governante de ações embasadas no interesse público/bem comum. Repita-se que a liberalidade de ação do Príncipe proposta por Nicolau está limitada à ação pelo bem comum/interesse público, dedicado ao predomínio absoluto dos interesses da coletividade e de ações duradoras, tratando a política como um processo de construção.


CONSIDERAÇÕES FINAIS

A relação entre os conceitos de bem comum e interesse público, pela via da noção de moralidade política proposta por Nicolau Maquiavel, oportuniza uma ampla reflexão acerca da ação política e da legitimação dos governos. Vive-se uma era de transformação política, econômica e social, interligada sob os contornos da chamada pós-modernidade. A introspecção do sujeito - com o retorno a si mesmo – desponta como relevante ponto de análise.

Isso porque esta mesma sociedade pós-moderna exige do governante um comportamento balizado na eficiência de sua prática política. Como visto, a pós-modernidade não exige a solidificação de governos por meio da maximização do poder. Pelo contrário, a maximização deste poder pode tornar verdadeiro o fantasma do fascismo.

Dessa forma, a sociedade pós-moderna elenca como critérios definidores de um bom governo a prestação de serviços de qualidade e essenciais à ordem econômica e social. Afirma-se, portanto, o postulado da eficiência administrativa nos Estados contemporâneos (pós-modernidade).

A necessidade de eficiência governamental, tão decantada pela doutrina nacional e presente na matriz constitucional, é própria do dever do Estado em promover o interesse coletivo. Nota-se, todavia, uma dificuldade extrema na efetiva cobrança deste dever de eficiência por parte do Estado.

Por certo, a noção de bem comum proposta pelo Secretário Florentino aproxima-se da noção de interesse público do Direito Administrativo Brasileiro, sob o elo vinculativo da ideia de moralidade política.

Se na época de Nicolau os fins do Estado estavam ligados ao fortalecimento do poder central do Estado, mormente se considerar que a Itália era um mosaico desunido de cidades, atualmente o fim do Estado está ligado ao desenvolvimento de uma sociedade mais justa e fraterna, onde exista o respeito pelas minorias e a prática eficiente da gestão pública.

O certo é que a política não pode ser considerada como o "circo de horrores". Deve sim ser recuperada e fortalecida como o lugar dos grandes homens e das práticas voltadas à persecução do bem comum e do interesse público.


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Notas

  1. Nicolau foi eleito e chancelado para ocupar o cargo de Secretário da Segunda Chancelaria em 1498. Passados um mês de atividade na Segunda Chancelaria, Nicolau é nomeado para ocupar, cumulativamente, a Secretaria do Conselho dos Dez. Para Ridolfi (2003, p. 31), o cargo de Secretário da Segunda Chancelaria era importante, sendo que Mounin (1984, p. 13) acrescenta que referido cargo contava "[...] com poderes delegados de administração muito extensos, cobrindo os Ministérios da Guerra, do Interior e, em parte, dos Negócios Estrangeiros". A competência de Nicolau no cargo de Secretária da Segunda Chancelaria foi tanta, que afirma De Grazia (1993, p. 26): "Quando o vemos pela primeira vez nesse posto, ele parece ter uma preparação perfeita. Ocupa o lugar de um homem de experiêcnia, sabe lavrar documentos na terminologia jurídica, utiliza abreviaturas e expressões corretas, redige cartas, prepara relatórios".

  2. Segundo Ridolfi (2003, p. 20), "[...] além dos comediógrafos que traduziu, transcreveu ou imitou, também se ocupou de poetas, e não só dos mais conhecidos e mais lidos: é particularmente bom sabê-lo apaixonado por Dante, transcritos de Lucrécio, e que foi considerado o mais influenciado por Dante entre os poetas latinos. Conheceu e utilizou muitos escritores gregos por meio das traduções latinas manuscritas e impressas que circulavam, de Platão a Aristóteles, de Xenofonte a Herodiano [chamado de O Gramático, filho de Apolônio Discolo, séc. II. N. do T.], de Tucídides a Políbio".

  3. É do abismo de como se vive e como se deveria viver, conforme Skinner (1996, p. 155), que provém a tese de Nicolau.

  4. Nicolau não renega a moral cristã. Apenas a considera inapropriada para a ação política.

  5. César Bórgia é filho do Cardeal Rodrigo Bórgia, ou melhor, do Papa Alexandre VI, fruto de um romance público com Vanozza de Cataneis. Sobre César Bórgia, Larivaille (1988, p. 53-54) afirma que após o casamento com Charlotte d'Albret (irmã do rei de Navarra e parente do rei da França, Luís XII), "torna-se a ponta-de-lança e, até certo ponto, o instigador da política hegemônica do pai. Alexandre VI destituiu os senhores de Rimini, Pesaro, Imola, Forlì, Urbino e Camerino de seus feudos pelo não-pagamento das taxas devidas à Igreja, e logo César parte em campanha à frente de tropas cedidas pelo rei da França. De novembro de 1499 a janeiro de 1500, ele conquista Imola e Forlì. Entre outubro de 1500 e abril de 1501, então agraciado com o título de gonfaloneiro da Igreja, ele conquista Pesaro, Rimini e Faenza. Nomeado duque da Romagna pelo papa, ele parte novamente em 1502 para o assalto a Urbino e depois a Camerino. Então, aproveitando-se de uma de suas viagens a Milão, seus principais lugar-tenentes conjuram contra ele, temendo não sem razão serem eles mesmos as vítimas da fome insaciável do seu senhor. Mas este último, com uma habilidade que provoca a admiração de Maquiavel, consegue dividir os conjurados e cercá-los, antes de atraí-los para uma armadilha que porá fim à vida deles. Daí por diante o poderio de César se impõe em toda a parte por onde passa, e pode-se considerar que a totalidade do território pontifical está sob sua autoridade quando, a 18 de agosto de 1503, seu pai morre, enquanto ele, gravemente doente, se encontra constrangido à inação".

  6. "O bem comum é algo tão evidente para Niccolò que ele nunca se dá ao trabalho de especificá-lo." (De Grazia, 1993, p; 186).

  7. Trata-se de um projeto de reforma das ordenações políticas de Florença, encomendado a Nicolau pelo Cardeal Giulio de Médici e que seria apresentado ao Papa Leão X.

  8. Obra vencedora do Prêmio Pullitzer de 1989.

  9. Rômulo partilhava o trono de Roma com Tito Tácio, rei dos Sabinos.

  10. Registre-se que, muito menos, o interesse público irá confundir-se com o interesse do Administrador Público. Neste sentido, cabe lançar mão das palavras de Bacellar Filho (2010, p. 94): "É curial, também, investigar até que ponto o interesse público não se confunde, na prática, com o interesse do administrador que, fugazmente, encontra-se no exercício do poder". Aqui está, portanto, a imperiosa necessidade de bem definir o que seja interesse público.

  11. Neste sentido já firmou entendimento o Superior Tribunal de Justiça: "[...] Isso, porque a democracia não se restringe na vontade da maioria. O princípio do majoritário é apenas um instrumento no processo democrático, mas este não se resume àquele. Democracia é, além da vontade da maioria, a realização dos direitos fundamentais. Só haverá democracia real onde houver liberdade de expressão, pluralismo político, acesso à informação, à educação, inviolabilidade da intimidade, o respeito às minorias e às ideias minoritárias etc. Tais valores não pode ser malferidos, ainda que seja a vontade da maioria. Caso contrário, se estará usando da 'democracia' para extinguir a Democracia" (REsp 1.185.474/SC, 2. T., Rel. Min. Humberto Martins, j. 20.04.2010, DJe 29.04.2010).

  12. Especialmente em uma sociedade pós-moderna onde a velocidade e diversidade da informação é patente, o que pode levar a uma confusão teórico-prática por parte da população.


Autores

  • José Sérgio da Silva Cristóvam

    Professor Adjunto de Direito Administrativo (Graduação, Mestrado e Doutorado) da UFSC. Subcoordenador do PPGD/UFSC. Doutor em Direito Administrativo pela UFSC (2014), com estágio de Doutoramento Sanduíche junto à Universidade de Lisboa – Portugal (2012). Mestre em Direito Constitucional pela UFSC (2005). Membro fundador e Presidente do Instituto Catarinense de Direito Público (ICDP). Membro fundador e Diretor Acadêmico do Instituto de Direito Administrativo de Santa Catarina (IDASC). ex-Conselheiro Federal da OAB/SC. Presidente da Comissão Especial de Direito Administrativo da OAB Nacional. Membro da Rede de Pesquisa em Direito Administrativo Social (REDAS). Coordenador do Grupo de Estudos em Direito Público do CCJ/UFSC (GEDIP/CCJ/UFSC).

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CRISTÓVAM, José Sérgio da Silva; KAESTNER, Roberto Nasato. Bem comum e interesse público. Uma análise a partir da noção de moralidade política em Nicolau Maquiavel. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3940, 15 abr. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/27717. Acesso em: 25 abr. 2024.