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O direito sucessório nas uniões estáveis e a (in)constitucionalidade do artigo 1.790 do Código Civil

O direito sucessório nas uniões estáveis e a (in)constitucionalidade do artigo 1.790 do Código Civil

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Critica-se a sucessão hereditária nas uniões estáveis, investigando-se a constitucionalidade do art. 1.790 do Código Civil frente o art. 226, §3º, da Constituição.

1. INTRODUÇÃO

A união estável, com essa nomenclatura, passou a ser reconhecida no direito brasileiro a partir da promulgação da Constituição Federal de 1988. Porém, até chegar ao atual desenvolvimento, percorreu um árduo caminho, marcado por acirradas discussões doutrinárias e jurisprudenciais, inicialmente, à par de qualquer conteúdo legislativo específico.

Para a real compreensão do instituto e do tema a ser aqui abordado é imprescindível discorrer sobre a evolução histórica e os motivos sociais que culminaram com a grande importância que hoje lhe é conferida.

Inicialmente, constata-se que a união afetiva informal entre homens e mulheres, antes denominada de concubinato, sempre existiu e nem sempre foi condenável pelo homem (como não o era na Antiguidade). Na Idade Média, apesar da forte influência política e religiosa exercida pela Igreja Católica, que assumiu posição ferrenha contra as relações extramatrimoniais, estas não deixaram de existir, contudo de forma marginalizada.

No cenário nacional não foi diferente. Sempre existiram relações extramatrimoniais, antes denominadas de concubinato. A normalidade de sua existência muito se deve ao fato de, até o ano de 1977, inexistir a figura do divórcio. A única forma de separação seria pelo desquite e tinha como consequência o impedimento para novo casamento (DIAS, 2005, p. 162). Também, nunca foram condenadas do ponto de vista penal, ou seja, nunca foram consideradas como crime ou ilícito.

Inobstante a indiferença da esfera criminal, a civil, através do Código Civil de 1916, não tratou o instituto da mesma forma. Primeiro por reconhecer como entidade familiar exclusivamente aquela oriunda do matrimônio. Segundo porque, com o pretexto de proteger a família, acabou por “punir” as relações afetivas extramatrimoniais, vedando doações, instituição de seguro em favor do concubino e a possibilidade deste ser beneficiado por testamento[1].

Portanto, somente haveria família se fosse constituída através do matrimônio. Não havendo matrimônio, a disciplina seria tratada alheia ao Direito de Família, pelo Direito das Obrigações. O concubinato então era submetido a regramento próprio, apartado da noção de família, ligado diretamente ao regramento civil-patrimonial.

Com o rompimento das relações de concubinato, os concubinos passaram a defender seus interesses perante o Judiciário, trazendo as lides decorrentes do relacionamento para apreciação.

A partir da década de 1960, com o surgimento dos primeiros julgados que defendiam somente alguns direitos patrimoniais com o fito de evitar graves injustiças, iniciou-se uma tendência natural para a construção jurisprudencial e doutrinária da matéria.

Pioneiramente, conforme magistério de Maria Berenice Dias (2005, p. 161.), foi reconhecido o direito “nas situações em que a mulher não exercia atividade remunerada e não tinha outra fonte de renda, os tribunais concediam alimentos de forma ‘camuflada’, sob o nome de indenização por serviços domésticos prestados”. O entendimento balizado pelos tribunais que assim decidiam na época era fundamentado pela vedação ao enriquecimento sem justa causa, consubstanciado no fato de que o homem que se valia dos serviços da mulher deveria retribuir pecuniariamente.

Com a evolução natural trazida pela jurisprudência, passou a legislação a reconhecer e conferir alguns efeitos às relações concubinárias, tal como ocorreu com a Lei de Registros Públicos – Lei 6.015/1973, que conferiu direito de uso do sobrenome do concubino, e Lei 6.367/1976, que dispõe sobre seguro de acidentes do trabalho, conferindo direito ao recebimento de indenização por acidente de trabalho com o convivente, direito esse que restou sedimentado pelo Supremo Tribunal Federal através da Súmula 35[2].

Após longo caminho, enfim, os tribunais passaram a reconhecer o direito à partilha dos bens adquiridos com o esforço comum dos concubinos. Era a denominada sociedade de fato. Tal entendimento ficou sedimentado na Súmula 380 do Supremo Tribunal Federal, in verbis: “Comprovada a existência de sociedade de fato entre os concubinos, é cabível a sua dissolução judicial, com a partilha do patrimônio adquirido pelo esforço comum”. Contudo, para possibilitar a partilha dos bens era necessário provar a existência deste esforço comum, da sociedade de fato, uma vez que naquela época não havia presunção de esforço comum como há nos dias atuais.

Com a promulgação da Constituição Federal de 1988, o antigo concubinato puro[3] foi elevado à condição de entidade familiar, passando a gozar de proteção constitucional, tal qual aquela conferida ao casamento.

Frise-se que em momento algum a Constituição Federal estabeleceu qualquer tipo de hierarquia ou primazia entre a união estável e o casamento (TARTUCE, 2011. p. 1089). O que houve foi a previsão de duas modalidades distintas de entidades familiar, ambas tuteladas constitucionalmente.

Um dos méritos consagrados pela Constituição vigente foi priorizar a promoção pessoal do indivíduo em detrimento de interesses puramente patrimonialistas. Aliás, esta é uma tendência consagrada e crescente no atual desenvolvimento do Direito Civil Constitucional brasileiro. Obedecendo este elemento finalístico, foi que se alterou a nomenclatura de concubinato para união estável, tentando apartar de uma vez aquele instituto de direito obrigacional carregado de preconceito, uma vez que sempre foi tratado à margem da legislação.

A partir de então que surge um dos temas mais controvertidos e atuais no Direito de Família: a Constituição Federal de 1988 determina tratamento igualitário entre casamento e união estável? Esse é um ponto crucial para o estudo do tema aqui abordado.

A partir da Carta Social de 1988, a união estável sofreu regramento em pontos específicos com a entrada em vigor de leis extravagantes, tais como a Lei 8.971/1994 (dispondo sobre direito dos companheiros a alimentos e à sucessão) e Lei 9.278/1996 (regulamentando o §3º do art. 226 da CF/1988, mormente no que se refere à caracterização da união estável, direitos e deveres e regime de bens).

Com a entrada em vigor do Código Civil de 2002, as leis extravagantes foram derrogadas. Contudo, subsiste em alguns pontos, como o é em relação ao direito real de habitação, consoante entendimento majoritário da doutrina e jurisprudência. Na verdade, o Código Civil de 2002 veio para consolidar e unificar pontos já consagrados pela legislação e doutrina.

De fato, a partir da Constituição Federal de 1988, o instituto da união estável passou a ter maior aceitação social, saindo da clandestinidade para gozar de efetiva proteção social, tal qual aquela conferida ao matrimônio, apesar de em alguns dispositivos dispensar tratamento diferenciado aos institutos.

Para exemplificar, pode ser citada uma gama de normas, dentre elas as que serão objeto de estudo a seguir:

  1. A exclusão do companheiro na ordem de vocação hereditária, tendo direito de concorrência sobre os bens adquiridos onerosamente na constância do relacionamento (arts. 1.790 e 1.845 do CC/2002);
  2. A exclusão da garantia da quota parte mínima equivalente a um quarto da totalidade da herança, prevista no artigo 1.832 do CC/2002 e;
  3. Direito real de habitação, atribuído exclusivamente ao cônjuge (art. 1.831 do CC/2002).

O estudo desta obra centra-se na questão da sucessão mortis causa.  Resta saber se essa diferenciação de tratamento é legal, frente às normas constitucionais que disciplinam a matéria.

Parte considerável da doutrina, tendo Maria Berenice Dias (2005) como uma de suas percussoras, entende ser inviável qualquer distinção havida entre casamento e união estável após o advento da Constituição Federal de 1988. Para tal corrente doutrinária a distinção seria uma ofensa ao texto constitucional e, via de consequência, eivada de vício desde a origem. Há quem sustente que as diferenciações havidas no texto infraconstitucional devem ser tidas como “não-escritas” ou “inexistentes” (DIAS, 2005, p. 166).

Outra corrente doutrinária, que conta com amplo apoio da jurisprudência, composta de grandes juristas, v.g., Flávio Tartuce (2011; 2010), é firme no entendimento de que não há qualquer ilegalidade/inconstitucionalidade no tratamento diferenciado entre união estável e casamento. Para esta corrente, a união estável não igualou os institutos, apenas garantiu sua proteção.

E mais. Não param por aí os debates sobre a matéria. O Tribunal de Justiça de São Paulo declara a inconstitucionalidade do art. 1.790 do CC/2002 não por dar tratamento diferenciado, mas “por trazer mais direitos à companheira do que ao cônjuge” (TJSP, Agravo de Instrumento 598.268. 4/4, Acórdão 3446085, Barueri, 9ª Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Grava Brasil, j. 20/01/2009, DJESP 10/03/2009). Isto porque, em algumas situações, a companheira terá mais benefícios que caso esposa fosse, pois, além de sua meação, herdará parte dos bens adquiridos onerosamente na constância do relacionamento.

O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, em julgamento de incidente de inconstitucionalidade[4], entendendo pela constitucionalidade, aderiu o fundamento de que a Constituição Federal de 1988 não igualou os institutos. Neste ponto vale a transcrição do voto do insigne Desembargador Luiz Felipe Brasil Santos, que participou do referido julgamento, in verbis:

Eu gostaria que alguém me mostrasse onde, na Constituição, está escrito que casamento e união estável é  a mesma coisa. O único dispositivo que trata do assunto é o §  3º do art. 226, que garante a proteção do Estado à união estável, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento, o que já por aí demonstra que não são iguais institutos, como bem destacou a Desa. Maria Isabel. (Incidente de Inconstitucionalidade Nº 70029390374, Tribunal Pleno, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Leo Lima, Julgado em 09/11/2009)

Ante o grande número de julgamentos divergentes sobre a matéria, bem como a diversidade de entendimentos aplicáveis, Flávio Tartuce (2011, p. 1244) chega a denominar a situação de “Torre de Babel”.

 A ausência de uniformidade nas decisões proferidas sobre a matéria gera insegurança jurídica. Urge uma rápida uniformização da jurisprudência da matéria. Contudo, atualmente não se vislumbra uma solução rápida para a matéria. A uniformização jurisprudencial ainda encontra-se a certa distancia de ser alcançada.

O tema será analisado nos próximos capítulos frente ao Direito Constitucional Civil, levando em consideração a atual evolução social e legislativa sobre a matéria.

De logo, é necessário frisar que as principais teorias expostas pela doutrina e jurisprudência possuem ampla fundamentação e coerência nos pontos que destacam, devendo estas receber o valor que lhes é merecido.


2. A TUTELA CONSTITUCIONAL DA FAMÍLIA E O ATUAL REGRAMENTO DAS FAMÍLIAS DESMATRIMONIALIZADAS

2.1 BREVES CONSIDERAÇÕES

A tutela da família e do direito privado como um todo passou por grande transformação com a promulgação da Constituição Federal de 1988.

Antes, porém, ao Código Civil de 1916, inspirado no BGB alemão e no Code de France (Código Napoleônico), era incumbida a tarefa de disciplinar as relações privadas, livre da incidência das normas constitucionais (FARIAS, 2012a). 

O Direito Constitucional passou a consagrar em seu corpo direitos sociais e individuais, afastando-se de uma teoria constitucional pura, encarregada somente de disciplinar assuntos relacionados ao Direito Público, mormente acerca de organização política do Estado.

De fato, a partir do ano de 1988, os juristas brasileiros passaram a enfatizar o poder normativo constitucional, anteriormente com sua importância relegada. Passa-se então a Constituição Federal ser considerada como centro normativo e unificador de todo sistema. Luís Roberto Barroso, hoje ministro do Supremo Tribunal Federal, citado por Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald (2012a, p.63), leciona que :

A Constituição, liberta da tutela indevida do regime militar, adquiriu força normativa e foi alçada, ainda que tardiamente, ao centro do sistema jurídico, fundamento e filtro de toda legislação infraconstitucional. Sua supremacia, antes apenas formal, entrou na vida do país e das instituições.

Um dos institutos, antes regulamentados exclusivamente em normas infraconstitucionais e trazido para o corpo constitucional, foi a família, disciplinada nos arts. 226 a 230 da Constituição Federal de 1988.

Uma das principais inovações do texto constitucional foi a adoção do princípio da pluralidade das entidades familiares. Com isso, o antigo dogma de que a família somente se constituiria a partir do casamento restou superada, passando a norma a prever expressamente a união estável como entidade familiar, merecedora de proteção, ao lado da família matrimonializada e a monoparental.

Maria Berenice Dias (2005, p. 163) chega a afirmar que “a Constituição, ao garantir especial proteção da família, citou algumas entidades familiares – as mais frequentes – mas não as desigualou”. Fica clara a adoção da referida autora à tese de que, além das entidades familiares expressamente previstas no texto constitucional, existem outras de previsão implícita no ordenamento.  No mesmo sentido, Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald (2012b, p. 88), em sua obra, chegam a mencionar que “é preciso ressaltar que o rol da previsão constitucional não é taxativo, estando protegida toda e qualquer entidade familiar, fundada no afeto, esteja, ou não, contemplada expressamente na dicção legal”.

Por vivermos em um mundo onde as transformações sociais ocorrem rapidamente, não poderia a legislação prever de forma taxativa todas as hipóteses possíveis de família, tornando-se imperiosa a adoção de um rol exemplificativo, uma vez que indubitavelmente surgirão novas modalidades de entidades familiar formadas pelo afeto. Para exemplificar, Mr. Catra, famoso cantor de funk do Rio de Janeiro, relaciona-se simultaneamente com quatro mulheres, além de possuir uma prole comum formada por 23 (vinte e três filhos)[5].

Ademais, sabe-se que a família como todo e qualquer instituto de direito privado deve ser considerada como um meio de promoção pessoal dos indivíduos. Não deve ser vista como um fim em si mesmo. Gustavo Tependino (1999, p. 328) afirma que:

[...]é a pessoa humana, o desenvolvimento de sua personalidade, o elemento finalístico da proteção estatal, para cuja realização devem convergir todas as normas de direito positivo, em particular aquelas que disciplinam o direito de família, regulando as relações mais íntimas e intensas do indivíduo no social.

No mesmo sentido Paulo Luiz Netto Lôbo (2013):

O objeto da norma não é a família, como valor autônomo, em detrimento das pessoas humanas que a integram. Antes foi assim, pois a finalidade era reprimir ou inibir as famílias ‘ilícitas’, desse modo consideradas todas aquelas que não estivessem compreendidas no modelo único (casamento), em torno do qual o direito de família se organizou. ‘A regulamentação legal da família voltava-se, anteriormente, para a máxima proteção da paz doméstica, considerando-se a família fundada  no casamento como um bem em si mesmo, enaltecida como instituição essencial’. O caput do art. 226 é, consequentemente, cláusula geral de inclusão, não sendo admissível excluir qualquer entidade que preencha os requisitos de afetividade, estabilidade e ostensibilidade.

A conclusão a que chegam os juristas acerca da existência ou não de um rol taxativo é baseado na hermenêutica constitucional. De qualquer forma, tanto a jurisprudência como a doutrina majoritárias atualmente se posicionam no sentido de afirmar que o rol não é taxativo.

Pois bem, admitida a pluralidade de entidades familiares, o Código Civil de 2002 trouxe a união estável regulamentada em escassos quatro artigos, constantes no último capítulo do livro do direito de família, somente sucedido pelos institutos da curatela e tutela, além de artigos dispersos em outros capítulos. A posição topológica, embora muito criticada por parte da doutrina por está muito topologicamente afastada do instituto do casamento, se justifica em decorrência de o Código Civil ter seu projeto iniciado antes mesmo do ano de promulgação da constituição, incluindo a união estável como uma verdadeira emenda ao texto original. A crítica fica por conta da superficialidade que foi tratada esta entidade familiar.

A união estável, segundo o texto legal do artigo 1.723 do Código Civil vigente, caracteriza-se pela união entre homem e mulher, de forma pública, contínua e duradoura, com o objetivo de constituir família. De fato, não é de interesse deste trabalho examinar com profundidade a caracterização da união estável, mas sim seu desdobramento na sucessão mortis causa, razão pela qual será esplanada de forma superficial. É de se destacar que ao contrário da antiga previsão da Lei 8.971/94, o novo regramento dado a matéria expurgou do sistema qualquer elemento temporal objetivo para a caracterização da união estável, limitando-se, neste ponto, em prevê a união “duradoura”, sem, contudo, precisar o que seria, tratando-se de uma norma aberta a ser aplicada ao caso concreto pelo Julgador, segundo o que disciplina os arts. 4º e 5º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro. Segue, assim, a mesma linha dos outros institutos disciplinados no Código Civil, sendo dotado de normas abertas e abstratas, tendo aplicação flexível.

Ademais, trouxe previsão expressa no §1º do mencionado artigo da possibilidade de caracterização da união estável nos casos de separação de fato.

Apesar das modificações legislativas, não houve a extinção completa do instituto do concubinato que continua a existir para os casos de haver impedimentos entre as partes (antigamente denominado concubinato impuro).

O fato é que o Código Civil não trouxe de maneira individualizada o tratamento da união estável, valendo-se quase sempre de remissões a artigos disciplinadores do casamento. Assim o fez de forma ampla com relação aos efeitos patrimoniais no artigo 1.725 que prevê que “na união estável, salvo contrato escrito entre os companheiros, aplica-se às relações patrimoniais, no que couber, o regime da comunhão parcial de bens”. Tal artigo induz muitos a afirmarem que a união estável é instituição “equiparada ao casamento” (DIAS, 2005), em que pese não haver previsão legal expressa para tal afirmação. Outros, ao revés, afirmam inexistir equiparação. Tanto o é que o texto constitucional prevê a facilitação na conversão da união estável para o casamento.

Esta dualidade de pensamentos, entre a equiparação ou não ao casamento, traz consigo discussão de temas atuais, dentre eles se a diferenciação no tratamento na sucessão causa mortis entre companheiro e cônjuge seria constitucional.

Durante o relacionamento não há qualquer distinção no que se refere aos direitos patrimoniais, uma vez que o artigo 1.725 é claro ao equiparar os institutos, na ausência de contrato de convivência, salvo escassas exceções. Pelo menos nesse ponto, exclusivamente em relação aos efeitos patrimoniais, há um consenso doutrinário.

Porém, outros dispositivos não conduzem os institutos com a mesma isonomia. Entre eles o artigo 1.790 do Código Civil que prevê o direito de concorrência na sucessão do companheiro falecido, conforme será analisado a seguir.

2.2 O ATUAL REGRAMENTO SUCESSÓRIO NAS UNIÕES ESTÁVEIS

O multicitado artigo 1.790, em retrocesso aos avanços sucessivamente alcançados pelas Leis 8.971/94 e 9.278/96, pôs a união estável em extrema inferioridade em relação ao casamento, no que se refere à união estável.

Vale a transcrição do referido artigo:

Art. 1.790. A companheira ou o companheiro participará da sucessão do outro, quanto aos bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável, nas condições seguintes:

I - se concorrer com filhos comuns, terá direito a uma quota equivalente à que por lei for atribuída ao filho;

II - se concorrer com descendentes só do autor da herança, tocar-lhe-á a metade do que couber a cada um daqueles;

III - se concorrer com outros parentes sucessíveis, terá direito a um terço da herança;

IV - não havendo parentes sucessíveis, terá direito à totalidade da herança.

Em breve retrospectiva, Zeno Veloso, citado por Maria Berenice Dias (2002, p. 225-237), recorda que o Projeto do Código Civil foi aprovado em 1984, pela Câmara dos Deputados, não continha previsão da sucessão entre companheiros. Em momento posterior, quando o projeto tramitava perante o Senado, foi apresentada a Emenda 358 pelo senador Nélson Carneiro, com base em lições de Orlando Gomes na década de 60. Obviamente, o momento histórico era outro. A Constituição Federal ainda não tinha sido promulgada, muito menos tinham sido editadas as Leis 8.971/94 e 9.278/96. Com as alterações posteriormente inseridas na Câmara dos Deputados, através de proposta do relator-geral Ricardo Fiúza, foi aprovado o Código Civil, com a redação dada ao artigo 1.790 que permanece até os dias atuais.

Inicialmente, merece destaque o fato de que o legislador achou por bem limitar o direito sucessório do companheiro sobrevivente aos bens adquiridos onerosamente na constância do relacionamento. E aqui não se confunde o direito sucessório com a meação a que tem direito o companheiro. Enquanto no primeiro há uma transmissão causa mortis, no segundo esta não existe, figurando meeiro como proprietário mesmo antes da partilha.

Sendo assim, são excluídos da partilha os bens adquiridos a título gratuito, ainda que na constância da união estável, e os bens particulares, adquiridos antes do relacionamento.

Também estabeleceu concorrência entre o companheiro, os descendentes comuns, os descendentes só do companheiro falecido (descendentes exclusivos), os ascendentes e, absurdamente, os colaterais sucessíveis, ou seja, até o quarto grau. Porém, a concorrência entre cada categoria destas é tratada de forma diferente.

Em apertada síntese, concorrendo o companheiro supérstite com filhos comuns (rectius descendentes comuns), terá direito a uma quota equivalente à que por lei for atribuída ao filho (art. 1.790, I, do CC/2002). Caso concorra só com os descendentes do autor da herança, tocar-lhe-á a metade do que couber a cada um destes (art. 1.790, II, CC/2002). O equívoco na redação dos incisos mostra-se visível. Primeiro, porque o inciso I do artigo menciona apenas os filhos, relegando a aplicação aos demais descendentes. Seguindo lições da melhor doutrina, aplica-se o inciso I também aos casos que estão presentes outros descendentes.

No mesmo sentido, o Enunciado 266 CJF/STJ, da III Jornada de Direito Civil, in verbis:

Aplica-se o inc. I do art. 1.790 também nas hipóteses de concorrência do companheiro sobrevivente com outros descendentes comuns, e não apenas na concorrência com filhos comuns.

Outra questão curiosa diz respeito à sucessão híbrida[6]. Flávio Tartuce (2010) elenca as três principais correntes doutrinárias acerca desta situação:

1ª Corrente – Em casos de sucessão híbrida, deve-se aplicar o inciso I do art. 1.790, tratando-se todos os descendentes como se fossem comuns, já que filhos comuns estão presentes. Esse entendimento é o majoritário na tabela doutrinária de Cahali: Caio Mário da Silva Pereira, Christiano Cassettari, Francisco Cahali, Inácio de Carvalho Neto, Jorge Fujita, José Fernando Simão, Luiz Paulo Vieira de Carvalho, Maria Berenice Dias, Maria Helena Daneluzzi, Mário Delgado, Rodrigo da Cunha Pereira, Rolf Madaleno e Silvio de Salvo Venosa.

2ª Corrente – Presente a sucessão híbrida, subsume-se o inciso II do art. 1.790, tratando-se todos os descendentes como se fossem exclusivos (só do autor da herança). Este autor está filiado a tal corrente, assim como Gustavo René Nicolau, Maria Helena Diniz, Sebastião Amorim, Euclides de Oliveira e Zeno Veloso. Ora, como a sucessão é do falecido, em havendo dúvida por omissão legislativa, os descendentes devem ser tratados como sendo dele, do falecido.

[...]

3ª Corrente – Na sucessão híbrida, deve-se aplicar fórmula matemática de ponderação para solucionar o problema. Entre tantas fórmulas, destaca-se a Fórmula Tusa, elaborada por Gabriele Tusa, com o auxílio do economista Fernando Curi Peres. A fórmula é a seguinte:

X = _________2 (F + S)_____________ x H 2 (F + S)2 + 2 F + S

C = __2F + S__ x X 2 (F + S)

Legenda

X = o quinhão hereditário que caberá a cada um dos filhos.

C = o quinhão hereditário que caberá ao companheiro sobrevivente.

H = o valor dos bens hereditários sobre os quais recairá a concorrência do companheiro sobrevivente.

F = número de descendentes comuns com os quais concorra o companheiro sobrevivente.

S = o número de descendentes exclusivos com os quais concorra o companheiro sobrevivente.

Já no inciso III do mesmo artigo há previsão de concorrência com “outros parentes sucessíveis”. O dispositivo faz referência aos ascendentes ad infinitum e colaterais até o quarto grau. Esta previsão é motivo de questionamento, inclusive quanto à constitucionalidade, por deixar o companheiro possivelmente em situação desfavorável em relação a parentes distantes.

Por fim, o inciso IV determina que, não havendo parentes sucessíveis, o companheiro terá direito à totalidade da herança.

2.3 DA DESIGUALDADE NO TRATAMENTO ENTRE O CASAMENTO E UNIÃO ESTÁVEL NA SUCESSÃO CAUSA MORTIS

Como sabido e notório, o Código Civil de 1916 não previa o regime de concorrência sucessória envolvendo o cônjuge ou companheiro. A ordem de sucessão legítima encontrava-se elencada no artigo 1.603, que possuía a seguinte redação, in litteris:

Art. 1.603. A sucessão legítima defere-se na ordem seguinte:

I - Aos descendentes.

II - Aos ascendentes.

III - Ao cônjuge sobrevivente.

IV - Aos colaterais.

V - Aos Estados, ao Distrito Federal ou a União.

V - aos Municípios, ao Distrito Federal ou à União. (Redação dada pela Lei nº 8.049, de 1990).

Atualmente, o regime de concorrência sucessória do cônjuge supérstite está prevista no artigo 1.829, sem fazer qualquer menção ao companheiro, que tem previsão no polêmico artigo 1.790, com tratamento totalmente diverso daquele primeiro.

Em linhas preliminares, é de se recordar que o companheiro não se encontra no rol de herdeiros necessários do artigo 1.845 do mesmo Diploma Legal, iniciando o tratamento sucessório de forma desigual. O companheiro, segundo doutrina autorizada, é considerado herdeiro especial (TARTUCE, 2011) e não goza dos privilégios dos herdeiros necessários.

O casamento, de forma diversa da união estável, goza de proteção patrimonial para após a abertura da sucessão, consubstanciado na legítima, que, segundo redação do texto legal, é metade dos bens da herança calculada sobre o valor dos bens existentes na abertura da sucessão, abatidas as dívidas e as despesas do funeral, adicionando-se, em seguida, o valor dos bens sujeitos a colação.

A legítima é conferida aos herdeiros necessários como forma de evitar abusos do testador na disposição de seus bens. É garantia àqueles contemplados em lei que participarão da sucessão do de cujus em pelo menos metade dos bens do espólio.

No que se refere à concorrência do cônjuge com os demais parentes sucessíveis (descendentes, ascendentes e colaterais até o 4º grau), sem adentrar em discussões doutrinárias, é deferido da forma a seguir.

Se concorrer com descendentes, terá direito à herança, salvo adoção de comunhão universal de bens e regime de separação obrigatória de bens. No regime de comunhão parcial terá direito caso haja bens particulares do falecido. Também terá direito a herança no regime de participação final nos aquestos e regime de separação convencional de bens.

Prefacialmente, é de se notar que é deferido ao cônjuge sobrevivente quinhão igual ao dos descendentes, sendo-lhe assegurado, ainda, o mínimo equivalente a 25% dos bens da herança se a concorrência se der com descendentes comuns do casal. Segundo entendimento majoritário, esse direito à quarta parte somente é deferido em caso de descendentes comuns. Havendo sucessão híbrida, não haverá a garantia da quarta parte ao cônjuge supérstite. Assim é o teor do Enunciado Doutrinário nº 270 CJF/STJ:

O art. 1.829, inciso I, só assegura ao cônjuge sobrevivente o direito de concorrência com os descendentes do autor da herança quando casados no regime da separação convencional de bens ou, se casados nos regimes da comunhão parcial ou participação final nos aqüestos, o falecido possuísse bens particulares, hipóteses em que a concorrência restringe-se a tais bens, devendo os bens comuns (meação) ser partilhados exclusivamente entre os descendentes.

Esta corrente conta com amplo apoio da doutrina, incluindo Francisco Cahali, Christiano Cassetari, Eduardo Fernando Simão, Maria Helena Daneluzzi, Mário Delgado, Rodrigo da Cunha Pereira, Rolf Madaleno, Sebastião Amorim, Euclides de Oliveira e Zeno Veloso(TARTUCE, 2011, p. 1223).

Eis a primeira grande diferença a ser observada. Enquanto o casamento goza, em certa situação, a garantia do direito à quarta parte da herança, a união em hipótese alguma figura como titular deste direito.

A segunda grande diferença é que no casamento a concorrência do com os descendentes (comuns ou exclusivos) garante ao cônjuge direito a quinhão igual ao destes. Não há previsão como na união estável que diminua o quinhão em relação aos descendentes exclusivos.

Em relação à concorrência com os ascendentes a regra muda um pouco. Se o cônjuge sobrevivente concorrer com dois ascendentes de primeiro grau (pai e mãe) terá direito à 1/3 da herança. Caso herde com somente um ascendente de primeiro grau ou com outros de graus mais remotos competir-lhe-á metade da herança. Não existe o direito de representação em relação aos ascendentes. Difere, portanto, do tratamento dispensado à união estável na medida em que nesta o quinhão sempre será equivalente a 1/3 da herança.

Na ausência de descendentes e ascendentes, o cônjuge herda sozinho a totalidade dos bens da herança independentemente do regime de bens adotado (art. 1.829, I, c/c art. 1.838 do CC/2002).

Por fim, prevê o art. 1.829, IV, do Código Civil vigente a sucessão dos colaterais. Prima facie, consigne-se que não há concorrência entre estes e o cônjuge supérstite. Os colaterais somente figuram como herdeiros na ausência de cônjuge, descendentes e ascendentes. Portanto, se uma pessoa falece sem deixar descendentes, ascendentes ou cônjuge, os colaterais sucederão o de cujos, podendo haver ou não concorrência com o companheiro. Em comparação com a união estável, os colaterais têm direito de concorrência equivalente a 2/3 da totalidade dos bens do espólio, conforme previsão do artigo 1.790, III, do Código Civil.

É visível a inferioridade de direitos conferidos aos companheiros sobreviventes na sucessão mortis causa. Esta diferenciação levou advogados e doutrinadores a questionar a aplicabilidade do artigo 1.790 do Código Civil, inclusive com arguição de inconstitucionalidade.


3 DA (IN)CONSTITUCIONALIDADE DO ART. 1.790 DO CÓDIGO CIVIL

Para que se chegue ao cerne da questão é necessária uma reflexão sobre o artigo 226, §3º, da Constituição Federal.

Para iniciar o tópico, faz-se necessário externar as duas posições chaves acerca da (in) constitucionalidade do artigo 1.790 do Código Civil.

Parte significativa da jurisprudência e doutrina afirma não haver qualquer inconstitucionalidade no mencionado dispositivo. Fundamentam que, inobstante haver proteção constitucional da união estável, esta não se iguala ao casamento. Por se tratar de institutos diversos, também o pode ser em relação aos efeitos sucessórios deles decorrentes  (Agravo de Instrumento Nº 70055701619, Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves, Julgado em 18/09/2013).

Outros juristas defendem a equiparação entre as entidades familiares do casamento e união estável. Para esta corrente, qualquer diferenciação no tratamento dispensado deverá ser considerada inconstitucional por afronta direta ao artigo 226 da Constituição Federal, como ocorre no artigo 1.790 do CC/02. Assim posicionam-se Fábio Ulhoa Rodrigues (2006, p.272), Maria Berenice Dias (2005, p. 163), Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka (2010), Zeno Veloso (2008, p. 1955), dentre outros.

Thatiana de Arêa Leão Candil (2012, p. 94), em brilhante obra, menciona o posicionamento dos juízes que compõem as varas de família e sucessão do estado de São Paulo em relação a questão, sedimentado nos enunciados 49 e 50 do I Encontro dos Juízes das Varas de Família e das Sucessões, em novembro de 2006, in verbis:

49. O art. 1.790 do Código Civil, ao tratar de forma diferenciada a sucessão legítima do companheiro em relação ao cônjuge, incide em inconstitucionalidade, pois a Constituição não permite diferenciação entre famílias assentadas no casamento e na união estável, nos aspectos em que são idênticas, que são os vínculos de afeto, solidariedade e respeito, vínculos norteadores da sucessão legitima.

50. Ante a inconstitucionalidade do art. 1.790, a sucessão do companheiro deve observar a mesma disciplina da sucessão legítima do cônjuge, com os mesmos direitos e limitações, de modo que o companheiro, na concorrência com descendentes, herda nos bens particulares, não nos quais tem meação.

Como visto, a orientação dos juízes paulistas é no sentido de reconhecer a inconstitucionalidade no tratamento diferenciado na sucessão causa mortis entre cônjuges e companheiros.

As correntes apresentadas são as mais radicais, havendo outras com posicionamentos mais temperados. Dentre as intermediárias, algumas merecem destaque por serem seguidas em maior número.

Há julgados que reconhecem a inconstitucionalidade exclusivamente do inciso III do artigo 1.790 do CC/02, que prevê a concorrência do companheiro com os “outros parentes sucessíveis” (termo que engloba ascendentes ad infinitum e colaterais atpe quarto grau), na qual aquele terá direito a 1/3 da herança[7]. Para seus defensores[8], elevar à condição de concorrentes os ascendentes e os colaterais até o quarto grau com o companheiro o poria em situação muito desvantajosa, beirando o absurdo. Assim, na ausência de descendentes e ascendentes, aplica-se imediatamente o inciso IV do mesmo dispositivo, conferindo direito à totalidade da herança ao companheiro, excluindo a concorrência sucessória dos colaterais.

Alguns tribunais que possuem Órgão Especial determinam a suspensão do processo, até que este decida o incidente de inconstitucionalidade, em conformidade com o artigo 97 da Constituição Federal.

Há ainda, decisão isolada e curiosa, digna de ser citada nesta obra. Trata-se do Agravo de Instrumento nº 598.268.4/4, do TJSP. Foi decidida remessa ao Órgão especial da Corte para apreciar incidente de inconstitucionalidade arguido por descendentes do de cujus, fundamentando que, no caso concreto, o regime jurídico aplicável às uniões estáveis conferia mais direitos ao companheiro que se casado fosse, tendo em vista a grande quantidade de patrimônio adquirido durante o relacionamento (TJSP, Agravo de Instrumento nº 598.268.4/4, Acórdão nº 3446085, Barueri, Nona Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Grava Brasil, julgado em 20/01/2009, DJESP 10/03/2009).

Como facilmente depreendido, não há consenso e nem se está perto disto. Há um “carnaval” de decisões e posicionamentos acerca da matéria, chegando Flávio Tartuce (2010, p. 1244) a fazer referência a situação de como sendo uma Torre de Babel.

Pois bem. Expostos os principais argumentos, ainda que de forma superficial e didática, passa-se à análise da constitucionalidade do polêmico artigo.

Como já mencionado em linhas anteriores, a união estável foi erigida à condição e entidade familiar pelo artigo 226, §3º, da CF/1988, com a seguinte redação:

Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.

Trata-se de instituto diverso do casamento. Isso fica claro e evidente na última parte da redação do dispositivo que dispõe: “devendo a lei facilitar sua conversão em casamento”. Apesar de diversos os institutos, ambos gozam de proteção constitucional.

A percepção em igualar os institutos por alguns juristas deve ser visto com certo temperamento. Não há, realmente, qualquer disposição legal ou constitucional que os equiparem. A ótica pela qual devem ser observados é diversa. Porém, o fato de não serem institutos idênticos não é suficiente para afastar a discussão acerca da constitucionalidade do disposto no multicitado artigo 1.790. O cerne da questão centra-se em saber se a proteção constitucional conferida às uniões estáveis deve ser a mesma do casamento em relação ao direito sucessório.

É necessário balizar o atual regramento sucessório aplicável ao cônjuge (art. 1.829) e ao companheiro (art. 1.790) com as disposições constitucionais, não somente com o artigo 226, mas também com os princípios constitucionais norteadores de todo o sistema (princípios gerais), mormente aqueles previstos nos artigos 1º, 3º e 5º da CF/1988.

Não assiste razão ao Des. Luiz Felipe Brasil Santos do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, quando, ao proferir voto em incidente de inconstitucionalidade nº 70029390374, aduz que:

[...]o princípio da dignidade humana já está um tanto quanto gasto. Toda regra que alguém acha injusta, com a qual não concorda, invoca-se o princípio da dignidade da pessoa humana para dizer que ela, por ofender esse princípio basilar da Constituição, é inconstitucional. (Incidente de Inconstitucionalidade Nº 70029390374, Tribunal Pleno, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Leo Lima, Julgado em 09/11/2009).

O princípio da dignidade da pessoa humana é o norteador de todo direito privado em todas suas relações, inclusive nas mais íntimas, aquelas ligadas à família. É a mola propulsora do Direito Civil-Constitucional.

Realmente, talvez não seja o princípio da dignidade da pessoa humana o fundamento para declarar a inconstitucionalidade do artigo 1.790 do CC/2002, mas não se pode concebê-lo como fundamento superado, apto a ter sua incidência afastada dos campos familiar e sucessório. Ademais, há de se admitir a disposição legal como um retrocesso social e legislativo que não atende os anseios da sociedade moderna e deixa de contemplar uma evolução natural dos movimentos sociais.

O retrocesso social é, via oblíqua, causa de inconstitucionalidade. É permitir que o direito legitimado pelo atendimento às expectativas da sociedade seja alterado por novas disposições injustas alheias à realidade fática social.

E aqui merece destaque a lição extraída de um artigo de autoria de Ricardo Maurício Freitas Soares (2011), cujo teor vale citar, in litteris:

A ideia de vedação ao retrocesso deflui, originariamente, da afirmação de que as conquistas relativas aos direitos fundamentais não podem ser elididas pela supressão de normas jurídicas progressistas. A vedação ao processo permite, assim, que se possa impedir, pela via judicial, a revogação de normas infraconstitucionais que contemplem direitos fundamentais do cidadão, desde que não haja a previsão normativa do implemento de uma política pública equivalente, tanto do ponto de vista quantitativo, quanto da perspectiva qualitativa. Sendo assim, a vedação do retrocesso desponta como o núcleo essencial dos direitos sociais, constitucionalmente garantido, já realizado e efetivado através de medidas legislativas, devendo-se considerar inconstitucionais quaisquer medidas estatais que, sem a criação de outros esquemas compensatórios, se traduzam numa anulação, revogação ou aniquilação desse núcleo essencial.No sistema jurídico brasileiro, a idéia de uma vedação ao retrocesso em matéria de direitos fundamentais decorre da interpretação sistemática e teleológica dos princípios constitucionais do Estado Democrático de Direito (art. 1°, caput), do desenvolvimento nacional (art. 3°, II), da máxima eficácia das normas definidoras de direitos fundamentais (art. 5°, parágrafo primeiro), da segurança jurídica (art. 5°, XXXVI), e, sobretudo, da dignidade da pessoa humana (art. 1°, III).

CANDIL (2012, p. 97), em comentários acerca da constitucionalidade do artigo 1.790 do CC/2002, leciona que “apesar de ser injusta a lei ordinária que estabelece diferença quanto ao direito sucessório concedido aos companheiros e aos cônjuges, não há afronta à Constituição Federal”. Inobstante adjetivar a legislação de injusta, a referida jurista dá a entender que se posiciona pela legalidade e constitucionalidade em conferir menos direitos à união estável.

De fato, a doutrina majoritária manifesta-se por não haver hierarquia ou primazia de um instituto sobre o outro, o que nos leva a concluir que ambos gozam da mesma proteção constitucional, ou seja, a tutela da família. Ademais, a família, segundo Gustavo Tependino (1999), é meio para se chegar ao fim que é a promoção da pessoa enquanto ser humano. O homem como ser social necessita das relações intersubjetivas para viver e desenvolver suas faculdades mentais.

Ora, seguindo a lógica do atual desenvolvimento do direito privado, especificamente do direito de família, não é difícil concluir que esta representa a forma mais íntima e significativa de interação social com vistas à felicidade e desenvolvimento pessoal.

Sendo assim, não coaduna com os princípios constitucionais diferenciar, não os institutos, mas os efeitos sucessórios decorrentes deles, privilegiando um e desprivilegiando outro, uma vez que a proteção conferida situa-se no mesmo plano, tutelando direitos da mesma natureza, e a ratio essendi da norma constitucional é o desenvolvimento da pessoa humana. Seja qual for o fundamento utilizado, dentre os apresentados nesta obra, o resultado a que se chega deverá ser o mesmo. Seja pela equiparação das entidades familiares, pela vedação ao retrocesso social, pela isonomia ou pela dignidade da pessoa humana.


4. CONCLUSÃO

Em linhas conclusivas, sem qualquer embargo, afirma-se que a Constituição Federal de 1988 causou uma enorme revolução no direito privado, inclusive no campo familiar.

Ao denominar a antiga figura do concubinato puro como união estável restou clara a intenção de abandonar antigos preconceitos sofridos por aquele instituto. Inobstante a boa intenção e o grande avanço trazido ao direito positivo aplicável às relações familiares, os tribunais demoraram a atender o comando constitucional somente o fazendo após a regulamentação da matéria pelas por leis infraconstitucionais (Leis 8.971/1994 e 9.278/1996). Em muito, a ineficácia da norma é atribuída aos resquícios do período do regime militar, no qual era relegado o poder normativo da Constituição.

Com a entrada em vigor do Código Civil de 2002, com seu projeto original do ano de repleto de emendas, após longos 26 (vinte e seis) anos de tramitação (DINIZ, 2013, p. 69), ao revés do que se esperava pelos estudiosos, houve um retrocesso no trato da união estável em relação ao casamento. Deixou a nova legislação de avançar, como vinha fazendo com a edição das leis infraconstitucionais anteriores, ao trazer a redação das mais polêmicas em seu artigo 1.790.

O referido artigo, que suscintamente disciplina a matéria sucessória aplicável às uniões estáveis, trata de forma diferenciada em relação ao casamento. Em muitas hipóteses comete o absurdo equívoco de submeter o companheiro a uma situação de imensa desvantagem em comparação a se casado fosse. É o que ocorre, v. g., com o inciso III do referido dispositivo legal que prevê a concorrência sucessória com os colaterais até quarto grau.

A partir de então passaram a surgir numerosos posicionamentos que afirmam a existência de vícios de inconstitucionalidade no dispositivo. Uma das correntes mais contundentes é a da inconstitucionalidade de todo artigo, sob o fundamento de que o tratamento desigual entre cônjuge e companheiro encontra óbice na Constituição Federal, devendo, portanto, ser expurgado do ordenamento jurídico. Via de consequência, os seguidores desta corrente defendem a aplicação do artigo 1.829, que disciplina a matéria sucessória do cônjuge, às uniões estáveis.

Os tribunais então, quando as matérias foram sendo submetidas à sua apreciação, passaram a decidir sem o mínimo consenso, havendo uma grande diversidade de entendimentos aplicáveis. Muitas decisões foram baseadas unicamente na equiparação ou não da união estável ao casamento. Contudo, de plano de fundo surgem outros fundamentos diversos dos que tem recebido enfoque dos julgadores. É o caso, v.g., dos princípios constitucionais da vedação do retrocesso social e da dignidade da pessoa humana.

Portanto, muda-se o fundamento e enfoque da equiparação das entidades familiares para abrir a tábua axiológica constitucional e verificar a harmonia da disposição legal. Em confronto com os valores constitucionais chega-se à conclusão que, ainda que se trate de entidades/institutos diversos, a proteção constitucional conferida, tanto a uma como a outra, é a mesma, sem distinções. E mais, a noção atual de família é baseada no afeto das relações intersubjetivas e possui vistas à promoção do ser humano como tal, a denominada família eudemonista. Assim, a interpretação a ser dada a toda e qualquer norma de direito privado tem que primar pela pessoa humana, individual e coletivamente considerada, em detrimento de qualquer outro bem, inclusive abandonando contundentemente “ranços preconceituoso” (DIAS, 2005, p.163).


REFERÊNCIAS

  • BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado, 1988.
  • BRASIL. Lei 3.071, de 1º de janeiro de 1916. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil. Diário Oficial da União. Brasília, DF: 05 jan. 1916.
  • BRASIL. Lei 8.971, de 29 de dezembro de 1994. Regula o direito dos companheiros a alimentos e à sucessão. Diário Oficial da União. Brasília, DF: 30 dez. 1994.
  • BRASIL. Lei 9.278, de 10 de maio de 1996. Regula o § 3° do art. 226 da Constituição Federal. Diário Oficial da União. Brasília, DF: 10 mai. 1996.
  • BRASIL. Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Diário Oficial da União. Brasília, DF, 11 jan. 2002.
  • COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Civil. São Paulo: Saraiva, 2006.
  • DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 2ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005.
  • ___________________ (Coord.). Direito de Família e o novo Código Civil. Belo Horizonte: Del Rey, 2002, p. 225-237.
  • DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro. Vol. 1. 30ª ed. São Paulo: Saraiva, 2013.
  • ________________. Curso de Direito Civil Brasileiro. Vol. 6. 27ª ed. SãoPaulo: Saraiva, 2013.
  • CANDIL, Thatiana de Arêa Leão. A união estável e o direito sucessório. 1ª ed. Birigui/SP: Boreal, 2012.
  • FARIAS, Cristiano Chaves de. ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil. Vol. I. 10ª ed. Salvador: Juspodivm, 2012.
  • FARIAS, Cristiano Chaves de. ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil. Vol. VI. 4ª ed. Salvador: Juspodivm, 2012.
  • HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Morrer e suceder: passado r presente da transmissão sucessória concorrente. 2ª ed. 2014. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014.
  • LÔBO, Paulo Luiz Netto. Entidades familiares constitucionalizadas: para além do numerus clausus. Disponível em <http://jus.com.br/artigos/2552>. Acesso em 14 de outubro de 2013.
  • SOARES, Ricardo Maurício Freitas.A vedação ao retrocesso social. Disponível em < http://www.bahianoticias.com.br/2011/imprime.php?tabela=justica_ artigos&cod=62 >. Acesso em 19 de outubro de 2013.
  • TARTUCE. Flávio. Manual de Direito Civil. 1ª ed. São Paulo: Método, 2011.
  • ________________. Da sucessão do companheiro: o polêmico art. 1.790 do CC e suas controvérsias principais. Jus Navigandi, Teresina, ano 15, n. 2681, [3] nov. [2010] . Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/17751>. Acesso em: 18 nov. 2013.
  • TEPENDINO, Gustavo. Temas de direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 1999.

Notas

[1] Veja-se a redação do Código Civil de 1916 na disciplina das matérias: “Art. 1.177. A doação de cônjuge adultero ao seu cúmplice pode ser anulada pelo outro cônjuge, ou por seus herdeiros necessários, até dois anos depois de dissolvida a sociedade conjugal (arts. 178, § 7º, n. VI, e 248, n. IV). [...]Art. 1.474. Não se pode instituir beneficiário pessoa que for legalmente inibida de receber a doação do segurado. [...] Art. 1.719. Não podem também se nomeados herdeiros, nem legatários: [...]III. A concubina do testador casado.”

[2] Súmula 35 – STF: “Em caso de acidente do trabalho ou de transporte, a concubina tem direito de ser indenizada pela morte do amásio, se entre eles não havia impedimento para o matrimônio”.

[3] Concubinato puro é aquela espécie de relacionamento extraconjugal no qual inexiste impedimentos para o casamento.

[4] Incidente de Inconstitucionalidade Nº 70029390374, Tribunal Pleno, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Leo Lima, Julgado em 09/11/2009.

[5] Disponível em: http://noticias.r7.com/rio-de-janeiro/quatro-mulheres-e-23-filhos-acompanhe-um-dia-na-vida-de-mr-catra-20072013. Acesso em 05/11/203.

[6] Expressão utilizada por Giselda Maria Fernandes Novaes Hinoraka para fazer referência à sucessão entre o companheiro supérstite, descendentes comuns e descendentes exclusivos.

[7] Nesse sentido: TJSP, Agravo de Instrumento nº654.999.4/7, Acórdão nº4034200, São Paulo, Quarta Câmara de Direito Privado, Rel Des. Teixeira Leite.

[8] Filia-se expressamente a esta corrente o notável jurista mineiro Flávio Tartuce in Manual de Direito Civil.


Autor

  • Matheus Monteiro Queiroz da Rocha

    Advogado Militante. Pós-Graduado em Direito Civil pela LFG/Universidade Anhanguera, Coord. Pablo Stolze. Ex-estagiário de nível superior do 6º Juizado Especial Cível de Acidentes de Trânsito da Comarca de Aracaju/SE. Ex-estagiário de nível superior da Turma Recursal Única do Estado de Sergipe.

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Informações sobre o texto

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado como exigência parcial para a obtenção de título em curso de Pós-Graduação em Direito Civil, sob a orientação do Professor Renato Sedano Onofri.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROCHA, Matheus Monteiro Queiroz da. O direito sucessório nas uniões estáveis e a (in)constitucionalidade do artigo 1.790 do Código Civil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3987, 1 jun. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/28043. Acesso em: 23 abr. 2024.