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A liberdade de expressão na jurisdição constitucional ocidental.

Uma análise no Direito Comparado da liberdade de expressão

A liberdade de expressão na jurisdição constitucional ocidental. Uma análise no Direito Comparado da liberdade de expressão

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O artigo visa comparar a liberdade de expressão contemplada no sistema jurídico brasileiro, com a de outros países do Ocidente, com base na interpretação das Cortes Constitucionais.

“Interpretar um ato normativo nada mais é do que colocá-lo no tempo ou integrá-lo na realidade pública.” [1] (Peter Häberle)

 (Einem Rechssatz auslegen bedeutet, ihn in die Zeit, d.h. in die öffentliche Wirklichkeit stellen – um seiner Wirksamkeit willen)   


1. INTRODUÇÃO

O presente artigo visa fazer uma breve comparação do direito fundamental à liberdade de expressão em algumas constituições ocidentais, seus dilemas teóricos na aplicação, percebendo-se uma nítida inconsistência na hermenêutica das Cortes Constitucionais, com um especial enfoque, ao término, do tratamento dado pela Constituição brasileira ao tema e as controvertidas decisões do Supremo Tribunal Federal.

É a partir desta cosmovisão que pretendemos discutir a problemática patente da desvinculação do julgador na apreciação dos casos submetidos ao seu conhecimento aos estamentos principiológicos firmados pelo constituinte originário. Embora haja pontos de assemelhação desse direito fundamental (liberdade de expressão) entre os diversos ordenamentos jurídicos analisados, percebe-se uma grave dissonância em sua interpretação no momento de sua realização.

São descritos ao longo do artigo casos emblemáticos com que se depararam algumas Cortes Constitucionais, referenciais de uma aparente unidade tópico-filosófica, contudo, evidenciadores de uma discrepância lógico-interpretativa, alternando-se a hermenêutica constitucional em uma gangorra, ora evolutiva, ora retrocessiva.

A inconsistência e a falta de paradigmas consolidados evidenciam uma autêntica mutação, quer progressiva, quer involutiva, quebrantando a estabilidade jurídico-constitucional.  No tocante ao nosso Supremo Tribunal Federal, há uma total e assistêmica dispersão da sua jurisprudência constitucional.  

Se é verdade que falta um critério objetivo na deisificação conceitual da liberdade de expressão, maior verdade ainda é a fluidez com que se relativiza esse conceito quando se está frente a outros direitos fundamentais tão ou mais caros ao nosso ordenamento constitucional, como a privacidade, a honra e a intimidade, diante da eventual necessidade de ponderações voltadas à proteção desses últimos ou mesmo de outros princípios constitucionais contrapostos no caso concreto[2].

Embora não se possa falar em natureza absoluta da proteção conferida à liberdade de expressão, a diversidade decisória nos Tribunais Constitucionais e no STF ganha contornos de insegurança jurídica.

É evidente que, entre a promessa constitucional da proteção à liberdade de expressão e a realidade, medeia um espaço às vezes grande demais, que não será transposto apenas pelo voluntarismo do intérprete. Não se nega aqui que a exacerbação da dimensão utópica de uma Constituição encerra riscos que não podem ser negligenciados, dentre os quais a própria erosão da sua força normativa.

Mas uma coisa é reconhecer que uma Constituição sujeita-se aos limites do possível, e outra bem diferente é  não adotar esquemas hermenêuticos consistentes, calcados na forte inspiração de uma sociedade livre e que possa expressar-se e  manifestar-se soberanamente. Numa exegese muita mais voltada para o transformar do que para o conservar, esta mutação vai de encontro à garantia da segurança do status quo[3].

O critério metodológico para sistematizar esse artigo provém da descrição do direito positivo comparado e nacional, a partir de uma perspectiva normativista, com arrimo na acepção teleológica dos princípios constitucionais como normas jurídicas.


2. DIREITO CONSTITUCIONAL COMPARADO (COMPARAÇÃO JURÍDICA)

Na acepção de Alberto Tripiccione[4], comparar significa confrontar, aproximar coisas a fim de individualiza-las e, individualizando-as, distingui-las; e, distinguindo-as, agrupa-las e classifica-las, podendo ser, na forma substantiva[5], uma operação do espírito pela qual são reunidos num confronto metódico os objetos a serem comparados, a fim de precisar suas relações de semelhança e de divergência.

Dá-se o nome de Direito Comparado à comparação jurídica que, a par de uma teoria geral dos sistemas jurídicos, se especifica, mais concretamente, na comparação de ramos do direito. No que tange ao direito constitucional, como ramo do direito, subsiste o Direito Constitucional comparado, bifurcando-se duas teorias a respeito, uns defendendo ser ele uma ciência, enquanto que para outros é apenas um método. Se ciência ou método essa controvérsia é estéril, pois a comparação jurídico-constitucional resulta, de fato, uma técnica especial de estudo dos diversos ordenamentos constitucionais existentes.

É bem verdade que imune a essa controvérsia, se pretende aqui a utilização do método comparativo para realizar uma microcomparação na aproximação temática da liberdade de expressão em algumas constituições ocidentais, objetivando assimilação desse direito fundamental dentro de uma unidade tipológica.

Se buscará, dentro desse estudo comparativo, fazer um realce na diversidade da cultura, da base material de cada povo envolvido na relação comparativa, fugindo da tentação de se fazer um paralelismo unicamente no plano lingüístico.


3. A LIBERDADE DE EXPRESSÃO COMO EXPRESSÃO FILOSÓFICA – A ÚNICA UNIDADE REFERENCIAL  PARA OS DIFERENTES SISTEMAS

Parece-nos, diante do que será seguidamente analisado, que os signos “liberdade” e “liberdade de expressão” não comportam tergiversações filosóficas, compreendendo apenas uma diversidade nos sentidos jurídicos dentro de cada Constituição.

A liberdade, de antiga construção filosófica da escola grega, tornou-se posteriormente uma das preocupações centrais dos movimentos burguês-revolucionários do Século XVIII, na Europa e nos EUA.

Embora de simples pronúncia, a largueza temporal e a relevância material não foram suficientes para oferecer um conceito seguro àquilo que se denomina de liberdade. O Professor André Ramos Tavares[6], lembrando Pontes de Miranda, assentou que “as definições das liberdades não são fáceis.”

Para Montesquieu, “a liberdade é o direito de fazer tudo o que as leis permitem...”, pois “...se um cidadão pudesse fazer tudo o que elas proíbem, não teria mais liberdade, porque os outros também teriam tal poder”.[7]

Numa definição mais completa, disserta Stuart Mill:

“A única liberdade merecedora deste nome é a de buscar o nosso próprio bem, da forma que bem entendermos, desde que não tentemos privar terceiros dos seus, ou impedir suas tentativas de o obterem.”[8]

A liberdade é a exacerbação do princípio autonomístico, no contexto da ambiência coletiva, contendo na Declaração dos Direitos de 1789 a lembrança de que “a liberdade consiste em poder fazer tudo o que não prejudique a outrem”.

Por seu turno, a liberdade de expressão abarca um sem-número de sinônimos e direitos conexos, dentre os quais podem ser mencionados a liberdade de comunicação; de informação; de acesso à informação; de opinião; de imprensa, de mídia, de divulgação e de radiodifusão.

Tanto no Brasil como no direito americano a liberdade de expressão açambarca uma mesma definição. Bem a propósito, trazendo da obra do professor André Ramos Tavares, pertine transcrever o constitucionalista norte-americano Laurence Tribe:

“Qualquer conceituação adequada da liberdade de expressão deve, ao invés, passar por diversas modalidades de teorias para que se possa proteger a rica variedade de formas de expressão.”[9]

De fio condutor único no aspecto filosófico, a liberdade de expressão também repousa entre os constitucionalistas portugueses como “uma construção conceitual ...no estado actual da teorização, impossível ....”.[10]

A liberdade de expressão é a intenção de conceder ao homem a prerrogativa de ser soberano sobre si mesmo, de ser um ente autônomo, condição esta essencial à realização pessoal, à expressão da personalidade individual, ainda que este seja um ser gregário – na conhecida acepção aristotélica de que o homem é um animal político.

Seja no Brasil, Portugal, Alemanha, Estados Unidos ou em outros países do ocidente,  a liberdade de expressão comporta quatro dimensões, sendo as duas primeiras substantiva e  instrumental,  e as duas outras individual e coletiva.

Na busca de espaço próprio, o homem tem por baluartes liberdades decorrentes da liberdade de expressão, tais como a liberdade de comunicação, de informação e de imprensa, ainda que cada um desses direitos apresente dessemelhanças entre si. Na feliz dissertação do constitucionalista português Jonatas Machado,

“(...) a diversidade de opiniões significa um leque mais vasto de possibilidades e alternativas, e consequentemente, uma maior liberdade na formação de preferências e convicções e na tomada de opções.”[11]

Analisa-se, adiante, esse direito fundamental em cada ordenamento jurídico objeto desse estudo comparativo.


4. A LIBERDADE DE EXPRESSÃO NA CONSTITUIÇÃO AMERICANA e A SUA APLICAÇÃO EM ALGUNS CASES  SUBMETIDOS À SUPREMA CORTE

A Constituição dos Estados Unidos tem previsão expressa sobre a liberdade de expressão logo na Primeira Emenda, cujo texto é de um rigor inexcedível:

“O Congresso não editará leis estabelecendo uma religião oficial ou proibindo o livre exercício religioso; ou cerceando a liberdade de expressão ou de imprensa; ou o direito das pessoas se reunirem pacificamente, e de peticionar ao governo para a reparação de danos.”

Note-se que nessa Primeira  Emenda, os constituintes reuniram num só bloco as liberdades de expressão em caráter genérico e de imprensa em particular, a liberdade religiosa (free exercise clause), a separação entre Igreja e Estado (establisment clause), o direito de reunião pacífica (right of assembly) e o direito de petição (right to petition the Government).

Embora vazada em termos peremptórios, proibindo a edição de qualquer   lei pelo Congresso que viesse a cercear as liberdades de expressão e de imprensa dos cidadãos, seu significado ao longo da história americana jamais chegou a ser tão rigoroso. O fato de ser primariamente uma típica garantia liberal do cidadão contra a autoridade constituída não impediu que algum tipo de limitação sempre fosse admitida como forma de proteção ao “interesse público”.  Nesse sentido, tornou-se célebre a frase de Oliver Holmes pronunciada no julgamento do caso Schenck v. United States, 249 U.S., ao afirmar de que “os cidadãos não são livres para gritar ‘fogo!’ falsamente dentro de um teatro lotado.”

Se tornaram comuns e amplamente aceitas nos Estados Unidos, logo no início do Século XX, algumas leis penais que protegiam a honra de terceiros contra o exercício abusivo da palavra, bem como outras que proscreviam atividades comunicativas atentatórias à segurança do Estado e da Sociedade.  Foi na análise da constitucionalidade de algumas dessas leis penais que a Suprema Corte norte-americana pôde, pela primeira vez e depois de mais de um século da edição da Primeira Emenda (1791), discutir o conteúdo finalístico da liberdade de expressão.

Nos primeiros casos julgados pela Suprema Corte envolvendo a liberdade de expressão, o pano de fundo era a constitucionalidade na edição de leis penais que proibiam a divulgação de idéias anarquistas, comunistas ou contrárias ao alistamento militar e à entrada dos Estados Unidos na Primeira Guerra. São referenciais os cases  Schenck v. United States, 249 U.S. 47 (1919), Abrahms v. United States, 250 U.S. 616 (1919), Debs v. United States, 249 U.S. 211 (1919) e Gitlow v. New York, 268 U.S. 652 (1925).

Naquela época, desenvolveu-se a chamada doutrina do “clear and present danger” (perigo claro e iminente), que procurava distinguir a mera expressão de idéias de condutas expressivas que colocassem em risco a segurança da sociedade e do Estado. Contudo, como bem salienta Gustavo Binenbojm, “a liberdade de expressão interage com tantos outros valores e de formas tão variadas que não há como se esperar que uma única fórmula possa dar conta de toda a gama de situações conflitivas surgidas espontaneamente no meio social.”[12]

A doutrina do “clear and present danger” foi objeto de ampla reelaboração no julgamento do controvertido caso Brandenburg v. Ohio, 395 U.S. 444 (1969), que envolvia o direito a manifestações da Ku Klux Klan, no qual o standard de controle de constitucionalidade passa a ser “a incitação atual e iminente à prática de ações ilegais e a probabilidade de que a atividade expressiva incite ou produza tal resultado.” Como se sabe, no julgamento do caso a Suprema Corte assegurou o direito à liberdade de expressão da Ku Klux Klan, entendendo que o requisito da incitação atual e iminente não havia sido preenchido.

Em termos genéricos, e correndo o risco da simplificação excessiva, há duas grandes concepções sobre as liberdades de expressão e de imprensa no pensamento norte-americano: 1ª) a teoria libertária, centrada na figura do autor da mensagem, seja ele um artista, escritor, jornalista ou qualquer outro sujeito que realize atividade expressiva de idéias, alçada na proteção à autonomia privada e no direito à expressão do pensamento, sem interferências externas. É uma emanação da personalidade individual a ser defendida da intervenção estatal; e,  2ª) a teoria democrática, que vê a Primeira Emenda como instrumento de autogoverno, de forma a permitir que os cidadãos sejam livremente informados sobre os assuntos de interesse geral e, deste modo, estejam aptos a formar livremente a sua convicção.

Para os adeptos da primeira teoria, o papel do Estado deve se limitar a à proteção dos direitos do emissor, de vez que qualquer interferência no que se diz acabaria por conduzir ao controle do Estado sobre o discurso público e a formação da opinião dos cidadãos. Qualquer intromissão nesse status quo seria inconstitucional. Já para os ideólogos da segunda teoria, a Primeira Emenda tem como finalidade assegurar a liberdade política dos cidadãos – e não uma mera liberdade expressiva.[13]

As duas teorias comportam falhas deontológicas. A teoria libertária tenderia a fortalecer a autonomia de emissores poderosos, comprometendo o público em geral, controlados que seriam pela grande mídia. E a teoria democrática arroga para o Estado o papel de curador da qualidade do discurso público, a permitir a censura e o controle dos meios de comunicação pelo Governo.

Ronald Dworkin na obra O direito da liberdade – A leitura moral da Constituição norte-americana, em capítulo específico intitulado Por que a liberdade de expressão?, traz em relato vários julgados referentes à liberdade de expressão. Traz ele à lembrança o caso New York Times v. Sullivan[14], onde a Suprema Corte decidiu que nenhum servidor público ou ocupante de cargo público pode ganhar uma ação contra a imprensa, a menos que prove não  só que a acusação feita contra ele era falsa e nociva, mas que também o órgão de imprensa fez essa acusação com “malícia efetiva”. E mais: que os jornalistas não só foram descuidados ou negligentes ao fazer as pesquisas para a reportagem, mas que também a publicaram sabendo que ela era falsa ou com “temerária desconsideração” (reckless disregard).

A decisão da Suprema Corte impôs esse pesadíssimo ônus de prova  somente aos servidores públicos, liberando a imprensa para fazer investigações sem o medo paralisante de que um júri pudesse aproveitar um erro factual ou um erro jornalístico para determinar uma indenização por calúnia e difamação. Lembra Dworkin que dificilmente a investigação de Watergate e outras denúncias semelhantes teriam sido possíveis se a Corte não tivesse adotado uma regra como a regra Sullivan. 

Nos Estados Unidos, o FCC (Federal Comunications Comission) agência reguladora federal encarregada por lei da regulação do setor, com vistas à consecução do interesse público, criou a “fairness doctrine”, consistindo esta num conjunto de normas reguladoras para promoção da liberdade de expressão democrática no campo do jornalismo televisivo e radiofônico.  O termo “fairness” quer indicar lisura, honestidade, como se fosse esse um elemento balisador para garantir ao público o direito à informação mais confiável e com o maior grau de imparcialidade e isenção possíveis.

A “fairness doctrine” foi posta à prova do exame de constitucionalidade perante a Suprema corte americana em 1969, no famoso caso Red Lion Broadcasting Co. v. FCC. A Corte acolheu a teoria democrática da Primeira emenda, declarando que o público tem o direito de receber informações não censuradas, prevalecendo sobre o direito das emissoras de rádio e televisão de reinar livremente sobre o conteúdo que veiculam.

Contradição seqüencial foi tomada pela Suprema Corte em 1974, quando do julgamento de uma lei do Estado da Flórida que conferia direito de resposta a candidatos que houvessem sido pessoalmente atacados ou cujos antecedentes houvessem sido criticados por jornais e outros periódicos impressos. Essa decisão precedencial ficou denominada como caso Miami Herald Pub. CO.  v. Tornillo.   Desta feita, embora envolvesse obviamente questões discutidas e decididas no precedente Red Lion, a conclusão da Corte foi no sentido de que a  lei era inconstitucional por interferir na autonomia editorial do jornal, violando a Primeira Emenda.

Alguns outros julgados da Suprema Corte mantiveram-se dúbios e contraditórios em relação ao caso Red Lion, e em 1987, o FCC revogou as normas que compunham a fairness doctrine, sob a alegação de que elas seriam inconstitucionais,  como destaca Owen Fiss[15],    “o Presidente e o FCC estavam apenas fazendo o que a Suprema Corte não teve a oportunidade, ou talvez a coragem, de fazer.”


5. A LIBERDADE DE EXPRESSÃO NA CONSTITUIÇÃO ALEMÃ E A SUA INTERPRETAÇÀO PELO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL FEDERAL (TCF).

A Constituição da República Federal da Alemanha (Grundgesetz) contém dispositivos conexos envolvendo a liberdade de expressão do pensamento, de informação, de imprensa, de radiodifusão e de cinematografia, liberdade artística e científica. A descrição do artigo 5° contempla todos esses institutos assim reunidos sistemicamente:

Artigo 5°. “(1). Todos têm o direito de livremente expressar e divulgar seu pensamento por palavra, escrito e imagem e, sem impedimentos, informar-se a partir de fontes a todos acessíveis. A liberdade de imprensa e a liberdade de noticiar por radiodifusão e cinematografia são garantidas. Não haverá censura.

(2). Estes direitos têm seus limites fixados nas normas das leis gerais, nos dispositivos legais para a proteção da infância e juventude e no direito à honra pessoal.”

Diante do conceito indeterminado de liberdade de expressão,  até o Tribunal Constitucional Federal da Alemanha, de reconhecida estabilidade hermenêutica, adotou posições axiologicamente diferenciadas em três julgados referenciais. Na jurisprudência alemã, são conhecidos o BVERFGE 7,198 (LÜTH-URTEIL),  o BVERFGE 12,113 (SCHMID-SPEIGEL) e o BVERFGE 25,256 (BLINKFÜER).

No primeiro caso, o cidadão alemão Erich Lüth, conhecido crítico de cinema e diretor do Clube da Imprensa da Cidade Livre e Hanseática de Hamburgo,  conclamou a todos os distribuidores de filmes cinematográficos, bem como o público em geral ao boicote do filme lançado à época por Veit Harlan, uma celebridade do filme nazista “Jud Suß”, de 1941,  co-responsável pelo incitamento à violência praticada contra o povo judeu. Harlan e os parceiros comerciais (Domnick-Film-Produktion e a Herzog-Film) do seu novo filme    - “unsterbliche Gelietbe” - ajuizaram uma ação cominatória contra Lüth, com base no Código civil Alemão (§ 826 BGB). A ação do ator e dos produtores foi julgada procedente pelo Tribunal Estadual de Hamburgo.

Contra esta decisão Lüth interpôs uma reclamação constitucional para o Tribunal Constitucional, que julgou a reclamação procedente e revogou a decisão do Tribunal Estadual. Trata-se da decisão mais conhecida e citada da jurisprudência do TCF. Foram, por ela, lançadas as bases da dogmática do direito fundamental da liberdade de expressão e seus limites como também de uma dogmática geral dos direitos fundamentais.

No julgado, tomando como suporte o artigo 11 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, que qualifica a liberdade de expressão como un des droits les plus preciéux de l’homme, o TCF vai reconhecer esse direito fundamental como se fosse o da livre expressão do pensamento, expressão imediata da personalidade humana, na sociedade, um dos direitos humanos mais importantes. O acórdão vai dizer que a liberdade de expressão é elemento constitutivo, por excelência, para um ordenamento estatal livre e democrático, pois é o primeiro a possibilitar a discussão intelectual permanente, a disputa entre opiniões. Ele é, num certo sentido, a base de toda e qualquer liberdade por excelência, ‘the matrix, the indispensable condition of nearly every other form of freedom’ (Cardozo)”. [16]   

O segundo caso, apenas para ilustrar a diferença axiológica institucional, trata-se de uma polêmica envolvendo o Juiz Schmid e a revista Spiegel. O Juiz, nos idos de 53 e 54 era presidente de um Superior Tribunal Estadual e envolveu-se em uma discussão política sobre a greve enquanto instrumento político, tendo afirmado a uma revista sindical que 95% da imprensa dependia economicamente dos grandes anunciantes, e por isso era pró-empresariado e contra os movimentos sindicalistas.

O juiz passou a ser vítima de retaliação da imprensa que o chamava de comunista, criticando-lhe como presidente do Superior Tribunal Estadual. A revista semanal Der Spiegel, à época e ainda hoje a  mais influente da Alemanha, marcou uma entrevista com o juiz, e nela Schmid apresentou vários artigos publicados de sua autoria contra o comunismo. Apesar disso, a suspeita da condição de comunista foi endossada pela revista ao colocar na matéria publicada frases de sentido ambíguo. Em artigo publicado em um jornal de Stuttgard, o juiz comparou o artigo da Der Spiegel como se fosse uma pornografia.  Com isto, o redator chefe e a revista ajuizaram ação penal privada por difamação em 20 de junho de 1954, tendo o juiz sido condenado ao pagamento de 350 marcos alemães e pena de prisão.

Através de reclamação constitucional o TCF julgou a indenização e a pena indevidas, entendendo que a defesa de interesses legítimos abrange também respostas na imprensa que correspondam a um tipo de ataque de imprensa e seu efeito na formação da opinião pública.

E, por fim, o terceiro caso. O editor e chefe de redação do pequeno semanário Blinkfüer, distribuído sobretudo na região de Hamburgo, ajuizou contra os conglomerados editoriais da Axel Springer e Die Welt uma ação requerendo a condenação dos réus ao pagamento de indenização por perdas e danos, causados por uma convocação feita pelos réus ao boicote, dentre outros, do pequeno jornal. A motivação da conclamação ao boicote, feita por circular enviada aos distribuidores e varejistas (bancas de jornal) no final de agosto de 1961, foi forçar os demais órgãos de imprensa a não publicarem em seus produtos  a programação da TV e rádio da Alemanha Oriental, pois tais órgãos da Alemanha oriental estariam a serviço da propaganda injuriosa do governo da República Democrática Alemã (a extinta DDR) contra os alemães ocidentais e o seu estado livre e democrático. Está-se no auge da Guerra Fria , no ano da construção do muro de Berlim e o Tribunal Federal de Berlim (BGH) enxergou na conclamação ao boicote um legítimo exercício da liberdade de imprensa, e julgou a ação improcedente.  

Sentindo-se prejudicado, o editor do pequeno semanário Blinkfüer ajuizou reclamação constitucional. O TCF julgou a reclamação constitucional procedente, realizando uma interessante ponderação entre os exercícios das liberdades de imprensa em colisão. Ao contrário do que aconteceu no Lüth-Urteil, aqueles que se valeram do meio de expressão ‘conclamação ao boicote’ , fizeram-no a partir de uma posição de poderio econômico e não com base na discussão predominantemente intelectual.

Ainda que de forma contida, o TCF refaz com seus diferentes contextos decisórios a frase de Peter Häberle de que não existe norma jurídica, senão norma jurídica interpretada. Interpretar um ato normativo nada mais é do que colocá-lo no tempo ou integrá-lo na realidade pública.


6. A LIBERDADE DE EXPRESSÃO NA CONSTITUIÇÃO PORTUGUESA E A SUA SIGNIFICAÇÃO À LUZ DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL

Diferentemente da congênere brasileira, a Constituição da República Portuguesa separou a liberdade de expressão e informação, da liberdade de imprensa e meios de comunicação social. São dois dispositivos específicos. O artigo 37 versa sobre a liberdade de expressão e informação. O artigo 38 da liberdade de imprensa e meios de comunicação social. Como a temática aqui desenvolvida é a liberdade de expressão, conheçamos o preceptivo pertinente:

Artigo 37. “1. Todos têm o direito de exprimir e divulgar livremente o seu pensamento pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, bem como o direito de informar, de se informar e de ser informados, sem impedimentos nem discriminações.

2. O exercício desses direitos não pode ser impedido ou limitado por qualquer tipo ou forma de censura.

3. As infrações cometidas no exercício destes direitos ficam submetidas aos princípios gerais de direito criminal ou do ilícito de mera ordenação social, sendo a sua apreciação respectivamente da competência dos tribunais judiciais ou de entidade administrativa independente, nos termos da lei.

4. todas as pessoas singulares ou colectivas, é assegurado, em condições de igualdade e eficácia, o direito de resposta e de retificação, bem como direito a indenmnização pelos danos sofridos.”

No acórdão n° 407/2007, da relatoria do juiz constitucional  João Cura Mariano, o Tribunal Constitucional de Portugal  admitiu a condenação de um jornalista por crime de difamação, por ter escrito na edição de um jornal, com o título “Riscos e Aldrabões, o seguinte:

“Quantos (que a gente conhece de gingeira) não aproveitaram a boleia do terrorismo. Ou culpariam os governos anteriores. Imaginem o aldrabão do Governador Civil de Aveiro. Olhem o negócio da extracção de areia. Que bem que cá se mente ao Parlamento, com que descaramento se aldraba o país”.

A condenação teve por pressuposto o n.º 2 do artigo 180º do C.P., “uma vez que o recorrente não se conteve na imputação de factos, mas exerceu o chamado “direito de opinião” mediante a exteriorização de um juízo de valor”.

O eminente juiz relator estatuiu que não competia ao Tribunal Constitucional verificar se a interpretação normativa questionada “infringe qualquer directriz constitucional, e não nos cumpre aquilatar da correcção da qualificação da expressão “o aldrabão do Gover­nador Civil de Aveiro”, como juízo e não como facto, assim como nos é alheia a questão de saber se, neste caso concreto, a emissão daquele juízo se encontrava justificada pelo direito de opinião”.

E diante de uma norma infra-constitucional, o Tribunal Constitucional negou eficácia ao artigo 37 da Constituição da República Portuguesa. Contraditoriamente, o Acórdão 698/95, da relatoria do Conselheiro Bravo Serra contraria essa posição. Nesse último julgado citado, foi afirmado de que a liberdade de expressão e informação, incluindo na sua forma qualificada da liberdade de imprensa, não se esgota na narração de fatos, antes supõe o direito de exprimir e divulgar o pensamento, estendendo-se também ao “direito de opinião”, o qual se exerce mediante a exteriorização de juízos de valor.[17]

Esse pensar diferenciado do Tribunal Constitucional também veio a se proclamar posteriormente quando da análise da liberdade de imprensa. Agora, em relatoria do eminente Guilherme da Fonseca,  Juiz-Conselheiro, foi plasmado o entendimento de que o sentido finalístico da liberdade assegurada pela Constituição Portuguesa de 1976 era o de proteger os titulares dos órgãos de comunicação social, e não o cidadão. No seu particular escólio:

“Está em questão naturalmente a liberdade do titular dos órgãos de comunicação social na condução deles, que constitui elemento da liberdade de imprensa no seu sentido originário; liberdade da imprensa enquanto liberdade de gestão do jornal contra constrições externas, a começar pelas do Estado. De facto, a liberdade de imprensa compreende implicitamente a liberdade de determinação do conteúdo do jornal (liberdade editorial, autonomia editorial). Em princípio, o titular de um órgão de comunicação goza de total liberdade quanto à selecção do que há de publicar ou não publicar, sem ingerências do Estado ou de terceiros. Não pode ser impedido de publicar o que quiser (liberdade positiva, proibição de censura ou matérias vedadas), nem lhe pode ser imposta a publicação de material não desejado (liberdade negativa). Nas palavras de Rivero, a soberania dos titulares dos órgãos de comunicação social “exclui por um lado que se lhes possa negar o direito de difundir determinadas e por outro lado que se lhes possa impor a obrigação de publicar textos que eles não tenham escolhido.”

Tanto além-mar como por aqui, o exercício do direito à liberdade de expressão e informação, nomeadamente quando efetuado através da imprensa, tem limites, designadamente quando colide com outros direitos constitucionalmente consagrados, como o direito ao bom nome e reputação (artº 26º, nº 1, da C.R.P.).

Na doutrina dos constitucionalistas portugueses, esta necessidade duma ponderação casuística não impede, contudo, a formulação de critérios de valoração, aplicativos dos princípios constitucionais da necessidade, adequação e proporcionalidade, a que devem obedecer as leis restritivas dos direitos, liberdades e garantias, nos termos dos artº 18º, nº 2 e 3, da C.R.P. (nesse sentido, FIGUEIREDO DIAS, em “Direito de informação e tutela da honra no direito penal de imprensa português”, na R.L.J., Ano 115, pág. 102, e COSTA ANDRADE, na ob. cit., pág. 284-287).


6. A LIBERDADE DE EXPRESSÃO NA CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA E A SUA PLURISSIGNIFICAÇÃO DE LINGUAGEM NO TEXTO E NA INTERPRETAÇÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

No Brasil, a liberdade de expressão sempre foi confundida com a liberdade de imprensa. Embora sejam institutos diversos, sempre foram encapsulados no mesmo parágrafo ou artigo do texto constitucional. A história é longa...

Na Constituição de 1824, o artigo 179, inciso IV, garantia que “todos podem comunicar os seus pensamentos, por palavras, escritos, e publicá-los pela imprensa, sem dependência de censura; (...)”.

Seguidamente, a Constituição literária de 1891, por influência de Rui Barbosa, fez incluir dentre o rol da declaração de direitos encartada no artigo 72, o parágrafo 12, em que se preconizava: “em qualquer assunto é livre a manifestação do pensamento pela imprensa, ou pela tribuna, sem dependência de censura, respondendo cada um pelos abusos que cometer nos casos e pela forma que a lei determinar. (...)”

Ainda que confundida a liberdade de expressão como a de manifestação do pensamento “pela imprensa ou pela tribuna”, Rui Barbosa fazia questão de cobrir  a imprensa de mimos e proteção. Sendo sabido que o Águia de Haia se orgulhava de acumular as profissões de jornalista e advogado, chegou a dizer que a imprensa era a vista da nação, a “assuntora do órgão da opinião publica no regime presidencialista, e o mecanismo da responsabilidade ministerial nos paises parlamentaristas”.[18] (BARBOSA; 2004).

Em versão inspirada na Constituição de Weimar, de 1919, e na Constituição Republicana espanhola, de 1931, constituintes notáveis como Carlos Maximiliano, João Mangabeira  e Oswaldo Aranha gestaram uma Constituição que por sofrer ingerência getulista terminou por limitar a liberdade de expressão. No artigo 113, do Capítulo II – Dos Direitos e Garantias Individuais – o item 9 veio assegurar a “livre manifestação do pensamento, sem dependência de censura, salvo quanto a espetáculos e diversões públicas.”

Sob o grilhão da ditadura e o label da retórica, a Constituição de 1969 garantia eufemisticamente a liberdade de manifestação de pensamento, de convicção política ou filosófica, independentemente de censura. (Art. 153, §8°).

Finalmente, sob os auspícios da entrada em vigor da normalidade democrática, edita-se a Constituição de 1988. Agora, por princípio fundante contido no artigo 5°, incisos IV, “é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato”,  e IX, “é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”.

Outros dispositivos foram inseridos de forma genérica no artigo 220 da Carta Magna.   É crescente a visão, pelo menos dos órgãos e canais de comunicação no Brasil, de que a liberdade de expressão constitui-se um direito absoluto, avassalador, insuscetível de restrição ou limitação, principalmente quando se tratar de informação jornalística. Para dar anteparo a essa visão de totalitarismo e de irrestringibilidade na forma dessa liberdade, arrimam-se os seus defensores na cláusula contida no artigo 220, e em seu §1º, da Constituição Federal, segundo a qual “nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social, observado o disposto no art. 5º, IV, V, X, XIII e XIV.”

Pela dicção do artigo 220 da CF, a liberdade de expressão contém plurissignificação  lingüística nas seguintes ações verbais e adjetivas:

Art. 220. “A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição.”

O parágrafo 2º do artigo supramencionado reproduz o preceito constitucional ditado no artigo 5º, inciso IX, que proíbe toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística, sendo vedada toda e qualquer intervenção dos poderes públicos, cujo objetivo é a livre expressão das idéias.

Concretamente, a Constituição Federal de 88 estabeleceu ainda mais  que nenhuma lei poderá conter regras restritivas à liberdade de informação e expurga por completo a censura (Art. 220, §§1º e 2º). Contudo, essa liberdade é um poder que deve ser exercido com critério, com lealdade e boa-fé. Não pode ser espargido como se não houvesse limites, posto à disposição de maus intencionados, de maliciosos lesionantes dos direitos alheios, aptos a causarem danos gravíssimos e irreparáveis à personalidade dos seus desafetos escolhidos a cinzel.

A gravidade decorre, contudo, da vacilação do nosso Excelso Pretório na interpretação sistêmica desses preceptivos normativos.

Vejamos um caso exemplar: o Ministro Carlos Ayres de Britto, na Medida  Cautelar  em Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental n° 130-7 - Distrito Federal, da autoria do Partido Democrata Brasileiro – PDT, suspendeu a eficácia de 20 artigos da Lei de Imprensa (Lei n° 5.250/67), por reputá-la – a lei -  inconstitucional. É lapidar um trecho do seu despacho

"A imprensa e a democracia, na vigente ordem constitucional brasileira, são irmãs siamesas. Por isso que, em nosso país, a liberdade de expressão é a maior expressão da liberdade, porquanto o que quer que seja pode ser dito por quem quer que seja.”

O plenário do STF no dia 27 de fevereiro último referendou a liminar do Ministro Britto. Sendo o segundo a proferir voto, o Ministro Carlos Alberto Menezes Direito ampliou o entendimento de Britto e votou para revogar totalmente a lei. Ele sustentou que, “ao longo do tempo, tribunais superaram a aplicação da lei, sempre considerando a aplicação da CF de 1988”.

Se a Lei de Imprensa é inconstitucional e os artigos 20 a 22 idem, sendo inclusive suspensos, porque não foi esse o entendimento dado pelo mesmo Ministro Relator quando do julgamento do Inquérito 2.036-2 – Pará?  Nesse processo, julgado em 2004, o Ministro Ayres Britto admite a queixa formalizada pelo então prefeito do Município de Belém, Edmilson Brito Rodrigues, contra o deputado Wladmir Afonso da Costa Rabelo, imputando a este as penalidades dos artigos 21 e 22 da Lei de Imprensa, consistente nos delitos de difamação e injúria.

Condenado com trânsito em julgado e tendo cumprido a pena, que consolo restará ao deputado?

Situação ainda mais teratológica vivenciou o Jornal do Brasil. Em acórdão datado de 28 de novembro de 2006 (Recurso Extraordinário n° 447.584-7 – Rio de Janeiro), decidiu o Supremo Tribunal Federal em negar a existência de limites legais à indenização por danos morais, nos termos do artigo 52 da Lei de Imprensa, citado exaustivamente no voto do Ministro Relator Cezar Peluso, para condenar o órgão de imprensa a pagar ao ex-deputado José Paulo Bisol a quantia de R$ 300.000,00 (trezentos mil reais).  Disse o STF que a publicação de notícia inverídica ofensiva à honra e à boa fama ensejava o quantum reparatório.

Contrariamente do que foi decidido nesse excerto citado, a jornalista Renata Moura, igualmente do Jornal do Brasil, teve julgada extinta ação penal movida em seu desfavor pelo conhecido Yves Rublet[19]. No Inquérito n° 2.297-7 – Distrito Federal, julgado em 20 de setembro de 2007, a insigne Ministra Carmen Lúcia Rocha, relatora, firmou o entendimento de que a matéria da jornalista encetava “publicação do exercício da liberdade de expressão, própria da atividade de comunicação (art. 5°, inc. IX, da Constituição da República)”.

A matéria da jornalista trazia uma reportagem em que se afirmava que o Deputado Aldo Rebelo teria formulado frases depreciativas reativas a um pedido de impeachment feito por Yves Hublet contra o presidente Lula. Demonstrando desinteresse ao pedido do aposentado, o deputado teria dito que havia buscado na procuradoria processos contra o impetrante, e que sabia bem do seu passado, indigno de viver na democracia. O deputado negou as frases e mesmo assim a jornalista foi amparada pela liberdade de expressão, fato colidível com a outra circunstância do ex-deputado Bisol.

Poderiam ser citadas outras dezenas de decisões dúbias e demonstradoras de uma inconsistência metódica.


7. A NECESSIDADE DE UMA HERMENÊUTICA ESTABILIZANTE E EM CONFORMAÇÃO COM O TEXTO CONSTITUCIONAL

É certo que a dinamicidade da conduta normante é fato resultante da celeridade crescente dos processos de comunicação – que incrementam o contato entre os membros de diversas sociedades, e assim aumentam a difusão das formas culturais (fontes exógenas de mudança social) -, bem como às mudanças havidas no funcionamento das instituições sociais (fontes endógenas de mudança social).

Com efeito, a concepção do Direito, sob a forma de controle social, condicionador de comportamentos e gerador de estabilidade, está sempre sujeito a mudanças. Contudo, tais mudanças devem decorrer dos necessários ajustes do próprio sistema, quando necessários à superação das tensões e pressões que impulsionaram a transformação da sociedade.[20]

Nessa tarefa de compreender o estático, e fazer-se móvel e mutável, quando necessário, o jurista-juiz deve ser aquele que, acima de tudo, sabe eleger diretrizes supremas, notadamente as que compõem a tábua de critérios interpretativos aptos a presidir todo e qualquer trabalho de aplicação do Direito.

O melhor caminho, em termos contemporâneos, está em escolher, acertadamente, as premissas adequadas e necessárias ao longo da jornada de compreensão-decisão, processo que requer uma abordagem fiel ao mundo real. Recorde-se Juarez de Freitas, citando Hans Georg Gadamer[21], que na idéia de uma ordem jurídica, a sentença do juiz deve surgir de uma ponderação justa do todo. No contexto:

“A tarefa da interpretação consiste em concretizar a lei em cada caso, isto é, em sua aplicação. A complementação produtiva do Direito, que ocorre com isso, está obviamente reservada ao juiz, mas este se encontra, por sua vez, sujeito à lei, exatamente como qualquer outro membro da comunidade jurídica. Na idéia de uma ordem jurídica supõe-se o fato de que a sentença do juiz não surja de arbitrariedades imprevisíveis, mas de uma ponderação justa do todo.”

A atividade exegética do julgador há de ser amparada na Constituição. Em metafórica e feliz lembrança sobre a força vinculante da Constituição, professava Konrad Hesse  (1991:17):

“As Constituições não podem ser impostas aos homens tal como se enxertam rebentos em árvores. Se o tempo e a natureza não atuaram previamente, é como se se pretendesse coser pétalas com linhas. O primeiro sol do meio-dia haveria de chamuscá-las.”

Destarte, a Constituição conforma o estatuto jurídico fundamental de uma sociedade, consolidando toda a estrutura do respectivo Estado e seu processo de evolução, intrinsecamente relacionando as forças de transformação sociais.


8.  CONSIDERAÇÕES FINAIS.

Ao longo deste trabalho procurou se demonstrar que no direito constitucional comparado há uma correspondência normativa sobre a liberdade de expressão. O cotejamento, por microcomparação, entre as diversas normas constitucionais de referências indicam similaridade na proteção dos mesmos direitos fundamentais de liberdade.

A aproximação temática da liberdade de expressão em algumas constituições ocidentais, mesmo que dentro de uma unidade tipológica, não significa a adoção de uma hermenêutica transnacional.

As liberdades de expressão e de imprensa, tanto aqui como alhures, possuem uma dimensão dúplice, pois que se apresentam, simultaneamente, como garantias liberais defensivas (liberdades negativas protegidas contra intervenções externas) e como garantias democráticas positivas (liberdades positivas de participação nos processos coletivos de deliberação pública).

A Constituição Brasileira, a exemplo das outras constituições ocidentais citadas, fornece o arcabouço principiológico, com o devido espaço para conformações e adaptações, para que a experiência hermenêutica justa de aplicação do direito fundamental seja feita.

As Cortes Constitucionais, nelas incluindo o Supremo Tribunal Federal, devem resguardar a segurança jurídica, a estabilidade social  e a proteção ao cidadão, fixando como estamento a premissa de que a liberdade de expressão e o direito à informação aumentam e se desenvolvem nas sociedades quando não são esquecidos os princípios éticos da comunicação, tais como a preeminência da verdade e do bem do indivíduo, o respeito à dignidade humana e a promoção do bem comum.


9.  REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

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Notas

[1] HÄBERLE, Peter.  Zeit und Verfassung, in: Dreier/Schwegmann, Probleme der Verfassungsinterpretation, ct. p. 293.

[2] Sobre ponderações de interesse e conflitos envolvendo direitos fundamentais existe hoje fartíssima bibliografia, mas a obra clássica permanece sendo a de ALEXY, Robert. Teoria de los Derechos Fundamentales. Trad.  Ernesto Garzón Valdés: Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1993, p. 81-172.  Veja-se dentre outros, na doutrina brasileira,  SARMENTO, Daniel. A Ponderação de Interesses na Constituição Federal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2000; FARIAS, Edilsom Pereira de. Colisão de Direitos. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1996; e BARCELLOS, Ana Paula. “Alguns Parâmetros  Normativos para a Ponderação Constitucional”. In: BARROSO, Luis Roberto (Org.). A Nova Interpretação Constitucional: Ponderação, Direitos Fundamentais e Relações Privadas. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 49-118.   

[3] Tércio Sampaio Ferraz lembra os chamados “procedimentos interpretativos de bloqueio”, mais próprios ao Estado Liberal e às suas constituições estatutárias e limitadas, e os “procedimentos interpretativos de legitimação de aspirações sociais”, que se afiguram essenciais para a viabilização das constituições sociais da contemporaneidade, e que importariam na idéia de que “certas aspirações se tornariam metas privilegiadas até mesmo acima ou para além de uma conformidade constitucional estritamente formal. Elas fariam parte, por assim dizer, da pretensão de realização inerente à Constituição”. (“A Interpretação Constitucional na Atualidade”. In: FERRAZ Jr., Tércio Sampaio;  DINIZ, Maria Helena e GEORGAKILAS, Ritinha A. Stevenson. Constituição de 1988: Legitmidade, Vigência e Eficácia, Supremacia. São Paulo: Atlas, 1898, p. 11).

[4] Cf. Alberto Tripiccione, La Comparazione Giuridica, Padova, Cedam, 1961, p. 64.

[5] Cf. Léotin-Jean Constantinesco, Traité de Droit Comparé, vol. II, Paris, LGDJ, 1974, p. 22.

[6] Apud Direito Constitucional Brasileiro Concretizado. São Paulo : Editora Método,  2006, p. 102.

[7]  v. Do Espírito das Leis. São Paulo: Abril Cultural, 1973, p. 156.

[8]  John Stuar Mill. On Liberty. V. STEWART, Robert M., 1996, p. 112.

[9] Laurence H. Tribe. American constitutional law. 2ª. ed.. Mineola: The Foundation Press, 1988, p. 789. cit. por André Ramos Tavares,  op. cit. p. 106.

[10] Jonatas E. M. Machado. Liberdade de Expressão, dimensões constitucionais da esfera pública no sistema social. Coimbra : Coimbra Editora, 2002, p. 372..

[11] Op. cit. p. 279.

[12] V. Temas de Direito Administrativo e Constitucional, Editora Renovar, São Paulo, 2008, p. 245.

[13] ver Gustavo Binenbojm, op. cit., p. 248.

[14] O New York Times publicou, em 29 de março de 1960, um anúncio de página inteira intitulado “ouvi as vozes que se alteiam”, no qual se descrevia o tratamento dado pela polícia do Alabama a crianças negras que faziam um protesto. Dizia que alunos negros de Montgomery haviam sido expulsos da escola depois de cantar  “My country is of  thee” nos degraus da sede da assembléia legislativa estadual, ao passo que, na verdade, eles haviam sido expulsos depois de realizar um protesto pacífico no restaurante do tribunal; dizia ainda que o refeitório dos estudantes havia sido trancado para que fossem reduzidos à “submissão pela fome”.  L. B. Sullivan, chefe da guarda municipal, alegou que o anúncio seria uma crítica a ele e faria mal à sua reputação. Processou o Times num Tribunal do Alabama. Depois de um julgamento em que o juiz ordenou a segregação do público presente e louvou a “justiça do homem branco”, o Times foi condenado em uma indenização de 500.000 dólares. O Times, por fim, apelou à Suprema Corte. 

[15] in The Irony of Free Speech, 1996, p. 60.

[16] V. Cinqüenta Anos de Jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal Alemão. Uruguai : Konrad Adenauer Stiftung. 2005, p. 390.   

[17] Vide GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, em “Constituição da República Portuguesa anotada”, vol. I, pág. 572, da 4ª ed., da Coimbra Editora; COSTA ANDRADE, em “A liberdade de imprensa e a inviolabilidade pessoal. Uma perspectiva jurídico-criminal”, pág. 270, da ed. de 1996, da Almedina.

[18] BARBOSA, Rui. A Imprensa e o dever da verdade. São Paulo: Papagaio, 2004.

[19] Yves Hublet é o aposentado que agrediu o ex-ministro José Dirceu a bengaladas, na saída do Congresso, por ocasião do seu depoimento a respeito do mensalão.

[20] SOUTO, Cláudio. A explicação sociológica: uma introdução à Sociologia. São Paulo : EPU, 1985, p. 109.

[21] FREITAS,  Juarez et all. O interprete e o poder de dar vida à Constituição: preceitos de exegese constitucional.  Obra coletiva. Coordenadores Eros Roberto Grau e Willis Guerra Santiago Filho.  Estudos em homenagem a Paulo Bonavides.  São Paulo: Editora Malheiros,  2005,  p. 227.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ARAÚJO, Francisco Marcos de. A liberdade de expressão na jurisdição constitucional ocidental. Uma análise no Direito Comparado da liberdade de expressão. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4243, 12 fev. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/31449. Acesso em: 24 abr. 2024.