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As funções sociais da cidade e o direito ao meio ambiente equilibrado

As funções sociais da cidade e o direito ao meio ambiente equilibrado

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Analisa-se o art. 182 da Constituição, que trata das funções sociais da cidade, entendidas como concretização dos direitos sociais, especialmente os transindividuais, com enfoque no direito ao meio ambiente sustentável.

AS CIDADES

A forma de uma cidade muda mais rápido, infelizmente, do que um coração mortal."

Charles Baudelaire

 

CONCEITO E EVOLUÇÃO HISTÓRICA

Desde sua origem, o processo de desenvolvimento das cidades espelha o modo de vida, os sistemas de governo, as características econômicas e sociais e, sobretudo, a cultura específica de um povo. Tudo isso pode ser evidenciado pelo nível de complexidade de cada agrupamento urbano, refletido nos aspectos de estruturação de uma cidade.

Por exemplo, graças a uma peculiaridade histórica (a invasão mongólica), Veneza foi fundada por fugitivos em uma laguna pantanosa. E, devido à sua topografia inusitada, tornou-se uma cidade com arquitetura singular, cuja inacessibilidade permitiu que se tornasse uma potência marítima comercial e propiciou o desenvolvimento de um sistema político autocrático.

Versalhes retrata o apogeu do regime absolutista, com construções megalômanas, cuja luxuosidade arquitetônica foi concebida apenas para o deleite de um soberano e de sua corte, no contexto de uma sociedade estamental.

Já as grandes cidades contemporâneas nos dão conta de um mundo competitivo e agitado, em que as construções refletem a força da tecnologia e a preocupação em atender às necessidades de um grande número de pessoas.

As primeiras cidades surgiram na antiga Mesopotâmia (território que, na atualidade, engloba a Síria, o Kuwait e o Iraque) há cerca de dez mil anos, como decorrência do processo de sedentarização humana que, por sua vez, ocorreu graças ao domínio das técnicas agrícolas [1].

O homem, ao deixar de ser nômade, preferindo fixar-se em um determinado local para nele dedicar-se ao cultivo de grãos e ao pastoreio de animais, deu inicio à formação dos primeiros povoados.

Manuel CASTELLS assinala o surgimento das primeiras cidades densamente povoadas já no final do Período Neolítico, quando as técnicas e as condições sociais e naturais do trabalho permitiram aos agricultores produzir mais do que necessitavam para consumo próprio. Considera-se que tais excedentes devem ter propiciado as primeiras trocas comerciais, inicialmente por meio de escambos [2].

Na obra “A Cidade Antiga”, o historiador francês Fustel de COULANGES descreve o processo de formação da cidade por meio da reunião gradual de várias famílias. A esse fenômeno de agrupamento familiar os gregos chamavam fratria e os latinos, curia. A junção de diversas fratrias dava origem a uma tribo. As tribos que veneravam o mesmo deus acabavam, com o decorrer do tempo, por se unir e formar uma cidade. [3]

Etimologicamente, a palavra “cidade” provém do léxico latino civitas, que também originou a palavra “cidadão”. {4}

COULANGES assinala que, entre os povos gregos e romanos, existia uma clara diferenciação dos conceitos de urbe e de civitas. Esta última (também chamada polis) compreendia as regras compartilhadas que lhe conferiam organização política e moral.

Já a urbe correspondia ao território sagrado onde se instalava a cidade, abrangendo o aspecto religioso, relativo ao culto dos ancestrais comuns aos habitantes, o que consignava um caráter de unidade, conferindo um viés transcendental à existência da cidade, o qual se entrelaçava, por sua vez, com os costumes e com a moral então correntes.

Por conta dessa diferenciação, civitas compreendia as atividades referentes ao exercício da cidadania, assim entendida como a participação na deliberação de todas as questões importantes, relativas à vida comunitária.

Contudo, naquele período, tais práticas eram restritas àqueles denominados “homens de bem” ou “cidadãos”, assim considerados tão somente os descendentes dos fundadores da cidade.

Para conceituar ‘cidade’, diferenciando-a do meio rural, Max WEBER a definiu como sendo o local em que a maior parte dos moradores vive da indústria e do comércio, ao invés de se dedicarem à agricultura. {5}

A esse conceito, ele acrescentou a multiplicidade de atividades desempenhada pelos habitantes, o domínio de um terreno específico e a existência de alguma autonomia, destacando, sobretudo, o fundamental papel desempenhado pela atividade comercial, desde a origem dos primeiros agrupamentos urbanos.

Somente queremos falar de ‘cidade’ no sentido econômico, tratando-se de um lugar onde a população local satisfaz no mercado local uma parte economicamente essencial de suas necessidades cotidianas, e isto principalmente com produtos que a população local e dos arredores produziu ou adquiriu para a venda no mercado. Toda a cidade no sentido aqui adotado da palavra é ‘localidade de mercado’. {6}

 

Nesse sentido, CASTELLS sintetiza que[7]:

(...) a cidade é o lugar geográfico onde se instala a superestrutura político-administrativa de uma sociedade que chegou a um ponto de desenvolvimento técnico e social (natural e cultural) de tal ordem que existe uma diferenciação do produto em reprodução simples e ampliada da força de trabalho chegando a um sistema de distribuição e de troca, que supõe a existência:

1. de um sistema de classes sociais;

2. de um sistema político permitindo ao mesmo tempo o funcionamento do conjunto social;

3. de um sistema institucional de investimento, em particular no que concerne à cultura e à técnica; e

4. de um sistema de troca com o exterior.

Por fim, WEBER apontou os elementos históricos definidores da cidade: na formação da comunidade citadina, a existência de uma fortaleza; em sua expansão, a consolidação do comércio, dos cultos religiosos e do Direito.

Nesse aspecto, a cidade seria, ao mesmo tempo, o conjunto de seus aspectos geográficos e arquitetônicos e os preceitos organizacionais e ideológicos que a definem e a diferenciam das demais.

Também CASTELLS assinala que a cidade, além de constituir-se em uma “concentração espacial de uma população a partir de certos limites de dimensão e densidade”, também consiste em um espaço onde ocorre a “difusão de sistemas de valores, de atitudes e comportamentos denominados de ‘cultura urbana’”. E prossegue:

A cidade (...) se edifica pela reunião de uma fortaleza preexistente, em torno do qual se organizara um núcleo de habitação e serviços, e de um mercado, sobretudo a partir das novas rotas comerciais abertas pelas Cruzadas. Esta base permite a organização das instituições político-administrativas conferindo à cidade uma coerência interna e uma autonomia maior frente ao exterior. Esta especificidade política da cidade faz dela um mundo próprio, definindo suas fronteiras enquanto sistema social, encontrando seu fundamento histórico na ideologia de pertencer à cidade.{8}

 

Outros autores atribuíram, ainda, a dimensão sociológica ao conceito de cidade. O historiador francês Fernand BRAUDEL, por exemplo, destaca o papel da cidade como propulsora de mudanças na vida social e cultural:

(...) cidades existem desde a Pré-História. São estruturas multisseculares que fazem parte da vida comum. Mas são também multiplicadores, capazes não só de se adaptarem à mudança, como de contribuírem poderosamente para ela. {9}

No Brasil, adota-se a definição de cidade como sendo a área urbana onde se situa a sede municipal:

Do ponto de vista legal brasileiro, a definição institucional para designar a cidade é a de município, ente federado explicitamente definido pela Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1988). O município – criado por leis ordinárias das assembleias legislativas de cada Unidade da Federação sancionadas pelo governador (BRASIL, 2002) – é composto por sede e distrito(s). A área urbana é aquela contida no perímetro urbano, definido pela lei orgânica do município. [11]

Assim, em nosso ordenamento, a conceito de cidade, ao entrelaçar-se ao de município, contempla, indiretamente, exigências quantitativas: população estimada superior a dez mil habitantes ou não inferior a cinco milésimos da existente no Estado; eleitorado não inferior a dez por cento da população e centro urbano já constituído, com mais de duzentas casas, dentre outras exigências, consoante previsão do artigo 2° da Lei Complementar n° 1, de 09/11/1967, que dispõe acerca da criação de novos municípios. {12}

Trata-se, contudo, de requisitos mínimos, que podem ser ampliados pelos Estados ou Municípios, em suas Constituições ou Leis Orgânicas.

Entretanto, como bem observa DE PLÁCIDO E SILVA, o verbete ‘cidade’ possui significado muito mais amplo do que aquele em que é tido pela técnica administrativa. {13}

Também para Diógenes GASPARINI, {14} ‘cidade’ não significa apenas a sede do município, mas toda aglomeração de edificações, delimitada por um perímetro fixado mediante lei.

CARDOSO e ZVEIBIL ainda nos lembram que

(...) o lugar urbano pode ser definido como dependente de duas variáveis: 1. Setor do solo fisicamente urbanizado onde se situam edifícios e outros equipamentos; 2. Onde as pessoas realizam atividades que estão tipicamente relacionadas e dependentes entre si. {15}

Celso Antônio Pacheco FIORILLO, por sua vez, conceitua ‘cidade’ como sendo

o espaço territorial onde vivem seus habitantes, de modo que o direito de propriedade não é ilimitado, mas sim condicionado ao cumprimento de sua função social.{16}

 

Tendo como perspectiva a visão de Savigny de que o Direito é fruto dos costumes, que se expressam em normas e princípios que norteiam a aplicação jurídica, temos que a realidade social citadina pode ser entendida como fundamento institucional do Direito.

Pois é a partir dessa realidade social que a ciência jurídica estrutura seus paradigmas e se presta ao desenvolvimento de instrumentos regulatórios das relações intersubjetivas do contexto urbano, sob a perspectiva de promoção da justiça social.

Observa-se, desse modo, que, nos dias atuais, à luz do Direito, a dimensão social compõe o conceito de cidade.


AS FUNÇÕES SOCIAIS DA CIDADE

 

A expressão “função social da cidade” está contida no artigo 182 da Constituição Federal, que dispõe que “a política de desenvolvimento urbano tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade”.

Contudo, o alcance dessa expressão não é explicitado pelo texto constitucional, o que dá ensejo a diversas interpretações doutrinárias.

Oportuno ressaltar que tal expressão não é recente: seu surgimento remonta à terceira década do século passado, tendo sido cunhada no Congresso Internacional de Arquitetura Moderna, ocorrido em Atenas, no ano de 1933. 

Nele, foi definido que são quatro as funções sociais da cidade.

Assim, a cidade seria o local que deveria fornecer a adequada habitação, propiciar condições de trabalho e de circulação, além de recreação aos seus habitantes. Tudo isso ficou consignado em um documento que passou a ser conhecido como Carta de Atenas.  

Alguns doutrinadores pautam-se pelo disposto nesse documento para determinar as funções sociais da cidade. Hely Lopes MEIRELLES, por exemplo, considera que tais funções são, essencialmente, aquelas definidas na Carta de Atenas.O modelo de cidade nela previsto obedeceria às primordiais funções da vida humana, de sorte que, sob a égide da funcionalidade e do planejamento, haveria espaços bem definidos para a habitação, para o trabalho, para o lazer e para a circulação. 

Como nos conta BERNARDI, esse modelo ideal traduz a concepção de cidade idealizada por Corbusier, na qual o êxito das funções sociais poderia se traduzir em bem-estar aos habitantes e, além disso, minimizar os efeitos das distorções sociais e – por que não? – propiciar alegria de viver. 

Dentre as funções previstas na Carta de Atenas, destaca-se a de habitar. De fato, desde tempos imemoriais, a fixação a um local por meio da habitação tem sido considerada a mais importante função social. A cidade é, antes de tudo, o local de vivenda. Até porque, sem habitantes, inexiste cidade.

A função social ‘habitação’ concretiza-se no acesso à moradia digna a todos os habitantes da cidade, o que implica na implantação de políticas urbanas específicas para as populações de menor renda. Também está relacionada à minimização da ocorrência de assentamentos precários, em áreas de risco, por meio da institucionalização no Plano Diretor de Zonas Especiais de Interesse Social, conforme disposto no artigo 4º, inciso V, do Estatuto da Cidade.

Além de ser o local de condigna habitação, a cidade é também o local de trabalho. Isso porque a indústria, o comércio e os serviços constituem-se em atividades fundamentais para o desenvolvimento econômico de uma cidade. 

Portanto, o trabalho sempre será uma função primordial da vida urbana. Contudo, a forma de organização do trabalho e sua distribuição no ambiente urbano tende sempre a se modificar. E compete ao legislador acompanhar as mudanças históricas, de modo a prever garantias mínimas ao trabalhador.

Outra relevante função social da cidade é a mobilidade urbana, que diz respeito às formas de deslocamento no ambiente citadino (transporte público coletivo e individual, transporte rodoviário, ferroviário e hidroviário etc.). 

Oportuno ressaltar que a Constituição Federal, em seu artigo 30, inciso V, dispõe ser transporte coletivo um serviço público de caráter essencial. No entanto, para ser tal função efetiva, mister se faz garantir o direito ao acesso ao transporte coletivo urbano, disponibilizando-o a todos os moradores da cidade. Apenas a concreta acessibilidade por meio de transporte público permite a concretização dessa importante função social da cidade.

Por fim, há a não menos relevante função social da recreação. Com efeito, o lazer constitui-se em um dos direitos sociais, previsto no artigo 6º da Constituição Federal. Vale lembrar que os direitos sociais são prestações estatais positivas que têm por fulcro ensejar melhores condições de vida. Deste modo, incumbe ao Poder Público propiciar a toda comunidade os espaços adequados e propícios à recreação e ao lazer. 

Alguns doutrinadores, como José Afonso da SILVA, diferenciam o lazer da recreação: esta teria um caráter lúdico, de divertimento, ao passo que aquele seria uma entrega ao ócio, com conotação de descanso ou aprofundamento criativo e cultural.  

De toda forma, essa função implica na universalização dos ambientes de lazer e de cultura aos habitantes de qualquer segmento social, de sorte que todos possam desfrutá-los com segurança e em igualdade de condições.

No entanto, a dinâmica social transforma continuamente a cidade, de forma que, com o passar do tempo, novas funções foram agregadas à noção de função social urbana. 

Vale lembrar que, embora tenha balizado os paradigmas que até hoje norteiam a atuação do administrador publico, a Carta de Atenas foi idealizada nas primeiras décadas do século passado. 

Nos dias atuais, pela primeira vez na história, a população urbana já ultrapassa a rural, fenômeno esse que se acentua com o transcorrer do tempo, uma vez que a taxa de crescimento desta população tem sido significativamente inferior ao daquela.

Esse processo tem ocorrido desde meados do século passado na Europa, nos Estados Unidos e na América Latina e, nas décadas finais, também na Ásia e na África. 

Uma característica desse acentuado processo de urbanização, ocorrido, sobretudo no século 20, é a chamada ‘metropolização’, representada pela ocorrência de megacidades, que se tornaram um traço fundamental do mundo urbanizado hodierno e que desempenham o papel de arenas das complexas transformações por que passam hoje as sociedades.    

O espaço urbano, nos dias atuais, por conta de suas imensas dimensões, constitui-se em território complexo, formado por áreas centrais de alta densidade de construção e trechos periféricos de baixa densidade. 

São os chamados ‘subúrbios’, quase sempre habitados por pessoas socialmente desfavorecidas que, via de regra, trabalham nas zonas centrais da cidade. Além disso, essa situação propicia o fenômeno das chamadas ‘cidades-dormitório', em que a massa trabalhadora reside, por razões econômicas, em localidades adjacentes aos grandes centros urbanos, onde trabalham, e retornam ao final do dia a seus lares, que ficam distantes. Isso cria dificuldades específicas para habitação e a mobilidade de seus habitantes, por exemplo. 

Tal panorama ensejou diversas críticas por parte dos arquitetos e urbanistas. Nas palavras de João Gonçalo de Almeida LOPES:

As primeiras críticas à cidade moderna começaram a surgir com a observação dos resultados práticos dos novos bairros que eram fruto de uma generalização das regras da Carta de Atenas sem ter em conta o contexto nem o meio social a que se destinavam. A racionalidade moderna era prejudicial à vida das comunidades e desumanizava os espaços urbanos. A cidade tradicional servia de contraponto, exemplo positivo de qualidades sociais e espaciais que teriam sido abandonadas e esquecidas. 

Essas peculiaridades do processo de urbanização implicam em desafios ao planejamento e ao desenvolvimento urbanos. Em face de tão complexos desafios, foi necessário rever a visão das cidades e de seu papel no liminar do século 21. 

 


AS FUNÇÕES SOCIAIS DA CIDADE NA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA

 

Para atender às demandas da sociedade atual, o Conselho Europeu de Urbanistas – CEU reuniu-se em 1998 para propor uma nova visão da Carta de Atenas. 

Em 2003, houve a revisão desse documento, que passou a se chamar Carta Constitucional de Atenas 2003. Nela, foram estabelecidas, além das quatro funções sociais primordiais da cidade, outras dez, as quais vinculam-se à realidade urbana dos grandes centros, no atual mundo globalizado.

Na sociedade contemporânea, a noção ideal de cidade é aquela em que há a inclusão das diversas comunidades por meio da planificação espacial, bem como por meio de medidas de combate ao racismo, à criminalidade e à exclusão social, graças à disponibilização de espaços de participação pública. 

Para tanto, a cidade deve constituir-se em um espaço de produção, onde ocorrem negócios e prestação de serviços e, portanto, onde são criados postos de emprego. 

Cumprida tal função, acontece naturalmente um fortalecimento da economia local. 

Vale lembrar que, para tanto, é imprescindível o investimento em educação, de modo que a cidade é também local onde se obtém conhecimento. 

Sob essa ótica, a cidade precisa ser local de acesso às inovações em tecnologia de informação e comunicação, e tal acesso precisa ser universalizado.

Ademais, a cidade também é espaço de propulsão da cultura, que deve ser acessível a todos. 

Precisa ser um espaço salutar, em conformidade com as normas da Organização Mundial de Saúde, papel esse que, para ser eficientemente cumprido, demanda melhorias nas habitações e a conservação do meio ambiente, através de planejamento sustentável, o que implica em redução dos níveis de poluição e de lixo, tanto doméstico quanto industrial.

Ainda, é necessário propiciar a acessibilidade de seus habitantes, por meio de um sistema eficiente de transporte integrado. 

Além disso, a cidade também é entendida como um refúgio, de sorte a ser protegida pelos acordos internacionais para tornar-se área não combativa em caso de guerra. 

Por fim, deve ser um lugar adequado para o bem-estar e a solidariedade entre as gerações, e possuir um caráter de perenidade, para que possa proteger os elementos tradicionais, a memória, a identidade do meio ambiente urbano, os espaços verdes etc.

Sintetizando estas e outras funções, Jorge BERNARDI demonstra que as cidades devem desempenhar suas funções sociais em três esferas: a urbanística, de cidadania e de gestão.

 

AS FUNÇÕES SOCIAIS URBANÍSTICAS

 

As funções denominadas de urbanísticas são as quatro sistematizadas e definidas na Carta de Atenas: trabalho, habitação, recreação e circulação. O trabalho, o ambiente de trabalho, a indústria, o comércio, e os serviços, são atividades fundamentais para a sustentabilidade econômica de uma cidade. De fato, o trabalho sempre será uma função primordial da vida urbana.

A habitação é o principal refúgio do núcleo familiar. A existência de prédios para a habitação é uma das características primordiais do ambiente urbano, desde tempos imemoriais. 

A função social habitação concretiza-se com a ocorrência de acesso a uma moradia digna por todos os habitantes. Contudo, o alto custo da terra urbana, fruto da especulação imobiliária, é um dos fatores que tem dificultado o acesso das pessoas de menor renda à moradia. 

Para a concretização dessa importante função social importa que o Poder Público estabeleça políticas para que as populações de menor renda tenham acesso à moradia e a áreas urbanizadas. 

Além disso, é também necessária a atuação estatal para enfrentar as causas e os problemas decorrentes das áreas ocupadas por assentamentos humanos precários, o que pode ocorrer por meio da institucionalização no Plano Diretor de Zonas Especiais de Interesse Social, como prevê o artigo 4º, inciso V, alínea “f” do Estatuto da Cidade.

Outra função urbanística essencial da cidade é o lazer. Os espaços de recreação, do encontro, do contato social, entre os moradores do ambiente urbano, são importantes para a realização integral do ser humano. São geralmente nestes contatos que nascem os relacionamentos humanos em todas as esferas, de sorte a intensificar os laços familiares, de solidariedade e o sentimento de unidade, de grupo. 

Para isso, é preciso que haja a universalização dos ambientes de lazer, que precisam ser acessíveis a todos os segmentos sociais.

Por fim, a quarta função urbanística essencial é a mobilidade urbana. Mobilidade constitui-se em um processo integrado de fluxos de pessoas e bens que envolvem todas as formas de deslocamentos dentro do ambiente urbano, desde o transporte público coletivo e individual. O artigo 30, V dispõe ser o transporte um serviço público de caráter essencial.

A mobilidade consiste não apenas de alcançar pontos distantes, mas, sobretudo, de alcançar lugares específicos e atraentes para a população, uma vez que a rede urbana precisa unir lugares, e não apenas os pontos longínquos de uma cidade. Isso significa que, nas megalópoles, é necessário lidar com o complexo problema do trânsito urbano, bem como com a logística do deslocamento de grande número de pessoas.

Garantir o direito ao acesso ao transporte coletivo urbano, disponibilizá-lo a todos os moradores da cidade, sem nenhum tipo de exclusão, seja por falta de condições de acessibilidade física, econômico-financeira ou qualquer tipo de discriminação, por meio da universalização dos serviços, é a forma do Poder Público tornar viável esta função social da cidade.

 

AS FUNÇÕES SOCIAIS DE CIDADANIA

 

Tais funções se constituem na concretização dos direitos sociais previstos no artigo 6º da Constituição Federal, englobando, basicamente, a saúde, proteção, educação e segurança urbana.

Trata-se de direitos sociais que devem ser contemplados em todos os níveis de organização política, constituindo-se, por sinal, em competência comum da União, dos Estados e dos Municípios, conforme previsto no artigo 23 da Constituição Federal. 

O custeio da saúde e da educação incumbe a todos os entes federativos, que devem anualmente destinar um percentual de suas receitas tributárias para tal finalidade. 

Ademais, as ações e os serviços públicos de saúde integram uma rede hierarquizada, o Sistema Único de Saúde (SUS). Se necessário, alguns recursos podem ser repassados para a manutenção desse sistema diretamente aos municípios, através de outras esferas governamentais.

Quanto à segurança. Esta se constitui em um direito fundamental, de modo que goza da proteção estatal em todos os níveis (artigo 5, caput, CF).

De fato, as funções sociais de cidadania devem ser interpretadas de forma sistemática com outros direitos fundamentais positivados na Constituição Federal de 1988 para se contemplar, sobretudo, os grupos socialmente excluídos, de forma a proporcionar o primado constitucional da justiça social e ambiental. 

Para tanto, faz-se necessária a adoção de políticas públicas sustentáveis que proporcionem moradia digna, no intuito de se efetivar a cidadania para os indivíduos marginalizados, os quais são, por conseguinte, socialmente vulneráveis, de sorte a se almejar a democracia plena do Estado de Direito.

Vale lembrar que os direitos sociais são autoaplicáveis, na medida em que fazem parte dos chamados direitos fundamentais, necessários para a garantia de uma vida digna, daí a importância de serem concretizados. Nos dizeres do insígne Paulo BONAVIDES:  

(…) os direitos sociais, culturais e econômicos bem como os direitos coletivos ou de coletividade fazem parte da chamada segunda geração de direitos humanos. Estes direitos, portanto, foram introduzidos nos constitucionalismos das distintas formas de Estado Social face à reflexão antiliberal do século XX. Eles primam pelo princípio da igualdade, e possuem natureza de direitos que exigem do Estado determinadas prestações materiais que nem sempre são resgatáveis por exiguidade, carência ou limitação essencial de meios e recursos. A Constituição Federal de 1988, portanto, atribui aos Direitos Fundamentais, inclusive aos Sociais, uma autoaplicablidade imediata, não merecendo apoio o entendimento de que esses direitos possuem aplicabilidade mediata, por via do legislador.

Nesse diapasão, Alexandre de MORAES entende que: 

Os direitos sociais, como dimensão dos direitos fundamentais do homem, são prestações positivas estatais, enunciadas em normas constitucionais, que possibilitam melhores condições de vida aos mais fracos, direitos que tendem a realizar a igualização de situações sociais desiguais. 

Em termos históricos, os direitos fundamentais (que englobam os direitos sociais) surgiram para proteger o homem de arbitrariedades cometidas pelo poder estatal. 

Mas, além disso, os direitos fundamentais existem para compelir o Estado à tomada de um conjunto de medidas que impliquem em melhorias nas condições sociais dos cidadãos.

Didaticamente, tais direitos costumam ser divididos em gerações ou dimensões, de acordo com seu surgimento histórico e finalidade.

Assim, os direitos fundamentais de primeira dimensão estão presentes em todas as Constituições das sociedades democráticas e são integrados pelos direitos civis e políticos. Surgidos no século XVIII, constituem-se nas liberdades civis básicas e clássicas.

Como exemplos, é possível citar o direito à vida, à intimidade, à inviolabilidade de domicílio, à propriedade, a igualdade perante a lei etc. Já segunda dimensão dos direitos fundamentais reclama do Estado uma ação que possa proporcionar condições mínimas de vida com dignidade, são os direitos sociais, econômicos e culturais, como forma de diminuir as desigualdades sociais, proporcionando proteção aos setores mais vulneráveis da sociedade, por meio de prestações positivas.

Por causa disso, são também denominados de direitos positivos.

Os direitos de segunda geração foram conquistados no decorrer do século XIX e início do século XX. Configuram desdobramentos naturais da primeira geração dos direitos. São tidos também como direitos positivos, já que pressupõem a liberdade sob forma positiva, como autonomia e formação da vontade política. Englobam, dentre outros, o direito ao sufrágio universal, a constituir partido político, ao plebiscito, ao referendo e à iniciativa popular, etc.

A positivação constitucional dos direitos sociais, culturais e econômicos, no início do século XX, inaugura uma nova fase política: a fase do Estado do Bem-Estar Social, que pressupunha como sendo uma obrigação estatal a realização de políticas públicas interventivas, tendentes à melhoria das condições de vida da sociedade. Exigiu-se, pois, do Estado, o cumprimento de prestações positivas.

Já a terceira dimensão dos direitos fundamentais expande a noção de sujeito de direitos e do conceito de dignidade humana, constituindo-se em direitos coletivos em sentido amplo, sendo, por isso, também conhecidos como interesses transindividuais, eis que tutelam bens de caráter coletivo, como o meio ambiente, a comunicação, o patrimônio comum da humanidade, dentre outros. 

Esses direitos correspondem ao terceiro elemento preconizado na Revolução Francesa, a fraternidade, representando a evolução dos direitos fundamentais para alcançar e proteger aqueles direitos decorrentes de uma sociedade já modernamente organizada, que se encontra envolvida em relações de diversas naturezas, especialmente aquelas relativas à industrialização e densa urbanização. 

Nesta situação, outros direitos precisavam ser garantidos, além daqueles normalmente protegidos, uma vez que essas novas relações devem ser consideradas coletivamente. 

Nesta terceira geração de direitos fundamentais, podemos mencionar: o direito ao desenvolvimento, o direito à paz, o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, o direito à comunicação, os direitos dos consumidores e vários outros direitos especificamente aqueles que estão relacionados a grupos mais vulneráveis, tais como crianças, idosos, pessoas portadoras de deficiência física etc.

Sobre tais direitos, Alexandre de MORAES leciona que:

(...) protege-se, constitucionalmente, como direitos de terceira geração, os chamados direitos de solidariedade e fraternidade, que englobam o direito a um meio ambiente equilibrado, uma saudável qualidade de vida, ao progresso, a paz, a autodeterminação dos povos e a outros direitos. 

Há ainda autores que postulam a existência da quarta dimensão de direitos fundamentais que, segundo Paulo BONAVIDES, são:

(...) o direito à democracia, o direito à informação e o direito ao pluralismo. Deles depende a concretização da sociedade aberta para o futuro, em sua dimensão de máxima universalidade, para a qual parece o mundo inclinar-se no plano de todas as relações de convivência. 

Essa quarta dimensão de direitos fundamentais ligar-se-ia aos desdobramentos técnicos e éticos decorrentes dos complexos avanços da ciência contemporânea. 

Por fim, registre-se que Paulo BONAVIDES também reconhece uma quinta geração de direitos fundamentais, sintetizada em um direito à paz. 

Embora tenha o insigne mestre postulado, anteriormente, ser esse um direito a ser alojado na esfera dos direitos de terceira dimensão, atualmente, seu entendimento é de que a paz constitui-se na essência dos direitos de quinta geração.

Nos últimos anos, em especial após o período de ocorrência mundial de ataques terroristas, especialmente o 11 de Setembro, os doutrinadores passaram a conferir destaque ao direito à paz no âmbito da proteção dos direitos fundamentais.

Nossa Magna Carta determina o dever estatal de garantir os direitos fundamentais ao considerando-os invioláveis, obrigando sua observância a todos, tanto particulares quanto pessoas jurídicas de direito público e de direito privado. 

E, uma vez estabelecidas as normas que garantem a aplicabilidade dos direitos fundamentais, o Estado não pode anular, revogar ou extinguir tais direitos. Isso porque as normas atinentes aos direitos fundamentais são de eficácia plena e aplicação imediata, conforme prevê o texto constitucional, em seu artigo 5°, § 1°.

Destarte, o Estado está vinculado às tarefas de melhoria, distribuição e redistribuição dos recursos existentes, como forma de garantir e de aplicar os direitos fundamentais.

Em suma, é cristalina a importância dos direitos sociais como pressupostos à dignidade humana, precipuamente, para aqueles indivíduos que não usufruem dos serviços públicos necessários para viver dignamente, por estarem à margem da sociedade.

AS FUNÇÕES SOCIAIS DE GESTÃO

 

De acordo com o mestre Jorge Luiz BERNARDI, o terceiro grupo de funções sociais engloba, dentre outras, aquelas relativas à prestação de serviços públicos. 

Tal prestação, que implica no gerenciamento dos recursos tributários arrecadados, tem o objetivo de fornecer serviços essenciais à população do ambiente urbano, tais como iluminação, pavimentação de ruas, abastecimento de água, coleta de lixo, esgotamento sanitário, transporte coletivo, serviço funerário etc.

Estes serviços devem ser oferecidos em caráter universal, pois não se constituem num privilégio. Ao contrário: essa prestação é um dever imputado ao Estado. 

Além dessas prestações, as funções sociais de gestão englobam a promoção do planejamento territorial, econômico e social da cidade. O Estatuto da Cidade prevê, em seu artigo 4º, incisos I e II tal promoção como sendo de grande valia, eis que se constitui em um dos principais instrumentos da política urbana.

Vale lembrar que existe uma gradação nesse planejamento, que prevê planos em âmbito nacional, regional e estadual, englobando o planejamento das microrregiões e de aglomerações urbanas.

No âmbito municipal, a promoção do planejamento territorial, econômico e social tem como principal instrumento jurídico o Plano Diretor, que disciplina, dentre outras coisas, o uso, a ocupação e o parcelamento do solo urbano, o zoneamento ambiental, as orientações do Plano Plurianual, além das diretrizes orçamentárias e o próprio orçamento anual.

Contudo, para que tal função seja efetiva, é imprescindível a participação da comunidade e a inclusão de programas e de projetos setoriais, com vistas à correção das distorções sociais que ocorrem no ambiente urbano.

Isso porque o Planejamento Participativo constitui-se num imperativo para o exercício de governança, consistindo em importante mecanismo de resolução dos problemas sociais, motivo pelo qual, aliás, o Plano Diretor possui, ele próprio, mecanismos que lhe permitem ser democrático e participativo.

Outra relevante função de gestão urbana é a preservação do patrimônio natural e cultural. Tal patrimônio engloba, dentre outros, sítios arqueológicos, paisagens naturais e edificações históricas e artísticas da cidade. Em resumo, tal função consiste na preservação da memória histórica, natural e cultural do ambiente urbano.

Tal obrigatoriedade de preservação constitui-se em competência comum da União e dos demais entes federativos, a teor do que dispõe a própria Constituição Federal, em seu artigo 23, inciso III, e em seu artigo 216, inciso V, parágrafo 5º. 

Essa proteção constitucional justifica-se porque tal patrimônio pertence tanto às gerações passadas quanto à geração presente e deve ser mantido intacto para as próximas gerações, como, aliás, determina o artigo 225 de nossa Magna Carta. 

Em suma, trata-se de bens que pertencem a todos, constituindo-se num dever geral a sua proteção. 

Nesse aspecto, a preservação do patrimônio histórico, natural e cultural transcende a esfera jurídica, por consistir em um direito fundamental que pertence a toda humanidade e, sobretudo, às futuras gerações.

Por fim, a última e não menos importante função social de gestão é a promoção da sustentabilidade urbana, que significa uma síntese de todas as demais funções de gestão.

A sustentabilidade é contemplada em diversas facetas, não somente na ambiental que, embora seja um importante aspecto dessa função social de gestão, não é o único. 

A promoção da sustentabilidade, além de buscar a minimização dos impactos produzidos pela ação humana, também possui o objetivo de promover um equilíbrio social, por meio de medidas que visem à melhoria da qualidade de vida em caráter igualitário. Nesse sentido, trata-se de função atinente à utilização igualitária dos bens sociais e de redução de mecanismos sociais de exclusão dos setores que são socialmente desfavorecidos.

Sobretudo, essa função possui um foco ecológico, uma vez que a cidade se constitui, é importante lembrar, em um ambiente artificial, o que demanda medidas de redução do impacto que a atuação humana promove no meio natural onde se situa.

Tais medidas visam, por exemplo, a diminuição de emissão de gases poluentes e a preservação de bolsões verdes, para a promoção da boa qualidade do ar; o planejamento da construção em solo urbano e a política de ocupação desse solo, dentre outras finalidades, tudo isso com o intuito de preservação da qualidade de vida dos habitantes da cidade.

Contudo, essa melhoria pressupõe a mantença de um meio ambiente ecologicamente equilibrado, que se constitui, em última análise, em componente do direito fundamental à vida.

 


O DIREITO AO MEIO AMBIENTE EQUILIBRADO

 

O conceito jurídico de meio ambiente está contido no artigo 3º, inciso I, da Lei 6.938/81, que instituiu a Política Nacional do Meio Ambiente, e que dispõe que:

entende-se por meio ambiente, o conjunto de condições, leis, influencias e interações de ordem física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas. 

Leciona o Professor José Afonso da SILVA que o meio ambiente pode ser entendido como sendo a interação do conjunto de elementos naturais, artificiais e culturais que propiciem o desenvolvimento equilibrado da vida em todas as suas formas. 

O direito a um meio ambiente equilibrado foi trazido à baila no ano de 1972 quando, na Conferencia das Nações Unidas de Estocolmo foi elaborada a Declaração do Meio Ambiente, que foi então reconhecida como um prolongamento da Declaração Universal dos Direitos do Homem. 

A referida Declaração enfatiza a importância do meio ambiente para o bem-estar do homem, consignando que o equilíbrio do meio ambiente é essencial para que a humanidade usufrua dos direitos fundamentais.

O direito à integridade do meio ambiente constitui-se em um típico direito de terceira geração, dada sua prerrogativa jurídica de titularidade coletiva. 

Trata-se de direito que reflete, no contexto do processo de consolidação dos direitos humanos, a afirmação positiva de um poder atribuído em caráter mais abrangente, visto que diz respeito à coletividade social.

Os direitos de terceira geração, historicamente, consagram o princípio da solidariedade e se constituem um momento importante no processo de expansão e reconhecimento dos direitos humanos, caracterizados, segundo o insígne Celso de Mello, Ministro de nossa Suprema Corte, enquanto valores fundamentais indisponíveis, pela nota de uma essencial inexauribilidade .

Reconhece-se, ademais, que o direito ao meio ambiente constitui-se em direito fundamental pelo fato de ser corolário lógico do direito à vida.

Nesse diapasão, afirma o eminente José Afonso da SILVA que:

O que é importante – escrevemos de outra feita – é que se tenha a consciência de que o direito à vida, como matriz de todos os demais direitos fundamentais do Homem, é que há de orientar todas as formas de atuação no campo da tutela do meio ambiente. Cumpre compreender que ele é um fator preponderante, que há de estar acima de quaisquer outras considerações como as de desenvolvimento, como as de respeito ao direito de propriedade, como as da iniciativa privada.

Também estes são garantidos no texto constitucional, mas, a toda evidência, não podem primar sobre o direito fundamental à vida, que está em jogo quando se discute a tutela da qualidade do meio ambiente. É que a tutela da qualidade do meio ambiente é instrumental no sentido de que, através dela, o que se protege é um valor maior: a qualidade da vida.

Assim, o insigne mestre, ao qualificar como fundamental o direito ao meio ambiente equilibrado, consigna que se trata de situações jurídicas sem as quais o ser humano não é capaz de se realizar, de conviver e, por vezes, nem mesmo sobreviver. 

E vai além ao lhe conferir o status de direito fundamental, por ser um direito que a todos deve ser reconhecido, e não somente no plano formal, mas concreta e materialmente. 

Nessa condição se encontra o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, diante da sua essencialidade à manutenção da vida no planeta.

É, pois, inadmissível que, no atual Estado democrático em que hoje vivemos, não haja a adequada proteção a esses direitos fundamentais, em especial, ao direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. 

Até porque tal previsão encontra guarida no artigo 225, da Constituição, que expressamente dispõe que:

Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.

A análise do artigo supracitado deve ser feita em conformidade com os princípios fundamentais inseridos nos artigos 1º a 4º de nossa Carta Maior, que fazem da tutela ao meio ambiente um instrumento de realização da cidadania e da dignidade da pessoa humana.

Contudo, o dilema que na atualidade se apresenta é o de conciliar o desenvolvimento econômico com a manutenção de um meio ambiente equilibrado.

Nas décadas finais do século passado, no contexto de iminência de uma crise mundial de abastecimento, que enfim desaguou nas chamadas crises do petróleo (1973), a dicotomia desenvolvimento versus preservação ambiental veio à tona e, na Conferencia de Estocolmo de 1970, a noção de sustentabilidade foi enfim colocada na pauta de discussões mundiais.Nos dias atuais, trata-se de matéria largamente veiculada na mídia e debatida em diversos fóruns globais sobre sustentabilidade.

 


CONCLUSÕES

 

No decorrer da história humana, a cidade tem sido o ambiente do convívio social por excelência. Trata-se do local onde ocorre a vida laboral, o mercado de trocas, a política, o exercício da cidadania. A civilização floresceu no meio urbano como um ambiente de trocas econômicas, sociais e culturais.

A par disso, a cidade também constituiu-se em palco de conflito de classes, motivo pelo qual as políticas urbanas, em cada momento histórico, tinham por finalidade assegurar os interesses do poder dominante.

Mas, a partir das revoluções burguesas, germinaram as primeiras noções dos chamados direitos fundamentais, cuja essência escorava-se nos ideais basilares da Revolução Francesa (liberdade, igualdade e fraternidade). No decorrer do século 19, estas noções se desenvolveram e, durante o século 20, consolidaram-se, de tal sorte que hoje, no inicio do século 21, integram o arcabouço legal da maior parte dos ordenamentos jurídicos, norteando as atividades desenvolvidas pelos Estados.

No Brasil, a Constituição Federal prevê que o Estado, por qualquer de seus Poderes, deve reconhecer e garantir os direitos fundamentais, considerando-os invioláveis, fazendo com que sejam por todos respeitados, obrigatoriedade essa que se estende tanto as pessoas jurídicas de direito público e privado quanto aos particulares. 

Também assegura que, em caso de violação ou ameaça de direito, possam ser tomadas medidas jurídicas a fim de restabelecer o ato infrator.

Por força do texto constitucional, o direito ao meio ambiente hígido passou a ser considerado direito fundamental de terceira geração, ou seja, direito de titularidade coletiva e difusa. 

A esse tipo de direito, associa-se um poder que se atribui não ao indivíduo, identificado em sua singularidade, mas, em sentido mais abrangente, ou seja, à coletividade, posto que se constitui em elemento essencial à manutenção das condições de existência humana.

Com o advento do Estatuto da Cidade, foram introduzidas inovações ao ordenamento jurídico pátrio, com a previsão, por exemplo, mecanismos jurídicos de aplicabilidade não só dos direitos e garantias fundamentais mas de aplicabilidade de conceitos urbanísticos modernos, como a noção de cidade sustentável, como meio de nortear as políticas urbanas.

Não por outro motivo, teve o legislador a incessante preocupação de tratar, no Estatuto da Cidade, de aspectos ligados ao meio ambiente, seja ele natural ou construído, dispondo acerca de seus mecanismos jurídicos de proteção.

De fato, as disposições contidas no Estatuto da Cidade afirmam a possibilidade de efetivação dos princípios da democracia participativa, da gestão democrática e da função social da propriedade urbana.

Entretanto, o alcance dos objetivos fundamentais desta política urbana estabelecidos pelo artigo 182 da Constituição Federal - ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar dos seus habitantes - está diretamente condicionado à gestão municipal democrática e em consonância com os interesses coletivos.

Os sistemas de gestão democráticos passam, com o Estatuto a se constituírem em diretrizes da Administração Pública, o que inclui, por exemplo, o planejamento participativo como preceito a ser observado pelos municípios.

Mais importante, explicita o principio da participação popular política, especialmente em relação à gestão orçamentária como condição para a aprovação dos orçamentos públicos.

Nesse sentido, os dispositivos do Estatuto da Cidade constituem-se em instrumentos notáveis para democratizar e conferir eficiência social para a administração das cidades, além de permitir pleno exercício da cidadania. Incumbe, para tanto, às comunidades e ao Ministério Público, em especial, o papel de fiscalizar e de dar efetividade a essa importante lei.


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(2) CASTELLS, Manuel. A questão urbana. São Paulo: Editora Paz e Terra, 1983.

(3) COULANGES, Fustel de. A Cidade Antiga: um estudo sobre o culto, o direito e as instituições da Grecia e de Roma. Livro III. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1975. P.183.

{4} Site Online Etymology Dictionary (Dicionário Online de Etimologia). Disponível no sítio eletrônico: http://www.etymonline.com/index.php?allowed_in_frame=0&search=city&searchmode=phrase. Acesso em 01 de maio às 9 h.

{5}              FREUND, Julien. Sociologia de Max Weber. Tradução de Luís Cláudio de Castro e Costa. Rio de Janeiro: Editora Forense Universitária, 1987. 4ª edição. P. 04.

{6}              WEBER, Max. Economia e Sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. Brasília: Editora UnB, v. 2, 1999. P. 409.

{7}              CASTELLS, Manuel. A questão urbana. São Paulo: Editora Paz e Terra, 1983.

 

{8}               CASTELLS, Manuel. A questão urbana. São Paulo: Editora Paz e Terra, 1983. P. 16/17

{9}                 BRAUDEL, Fernand opus cit. OLIVA, Jaime. Texto: “A cidade como ator social: a força da urbanidade”. Disponível em: www.ieb.usp.br/.../texto__a_cidade_como_ator_social_1328888614. Fonte: Universidade de São Paulo – Instituto de Estudos Brasileiros (IEB/USP). Texto “A cidade como ator social: a força da urbanidade”. Acesso em 11 de agosto de 2012 as 10 h.

{10}              Site do IPEA - Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas. Texto para discussão nº. 1498: “Olhares sobre a cidade e a região – por que importam? Enfoques e metodologias disciplinares e contraditórias de análise do território para políticas públicas.” Disponível no sítio eletrônico: http://www.ipea.gov.br/pub/td/1994/td_0329.pdf. Acesso em 10 de junho de 2012 as 8 h.

 

{11}              Site do Planalto. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/Lcp01.htm. Acesso em 20 de maio de 2012 as 22 h.

 

{12}              SILVA, De Plácido e. Vocabulário Jurídico. 10' ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 1987. T.1, P. 427/428.

 

{13}              GASPARINI, Diógenes. O Estatuto da Cidade, São Paulo: Editora NDJ, 2002.

 

{14}              CARDOSO, Elizabeth Dezuzart, ZVEIBIL, Victor Zular (Orgs). Gestão Metropolitana. Experiências e Novas Perspectivas. Rio de Janeiro: IBAM, 1996 apud REBELLO, Adriano Muniz. Direito à cidade: legislação brasileira e instrumentos de gestão. P. 09. Dissertação de Mestrado apresentada à Pontifícia Universidade Católica do Paraná - PUCPR. 2007. Disponível no sítio eletrônico: http://www.biblioteca.pucpr.br/tede/tde_arquivos/15/TDE-2008-02-08T073428Z-711/Publico/Adriano.pdf. Acesso em 15 de julho de 2011 as 14 h.

 

{15}              FIORILLO, Celso Antônio Pacheco. Curso de Direito Ambiental Brasileiro. São Paulo. Ed. Saraiva, 2002. P. 251.


Autor

  • Amelia Perche

    Bacharelado em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (2005). Especialização em Direito e Processo do Trabalho pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (2009), em Direito Público pela Escola Paulista de Magistratura (2012) e em Direito Ambiental na Universidade Federal do Paraná (2016). Escrevente judiciária do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo desde 2006 e conciliadora judicial formada na Escola Paulista da Magisrtatura (2016).

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Informações sobre o texto

Excerto do Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à Escola Paulista de Magistratura de São Paulo para a obtenção do título de especialista em Direito Público, em 2012.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PERCHE, Amelia. As funções sociais da cidade e o direito ao meio ambiente equilibrado. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4643, 18 mar. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/34259. Acesso em: 19 abr. 2024.