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Monopólio e regulação da propriedade dos meios de comunicação na Venezuela

Monopólio e regulação da propriedade dos meios de comunicação na Venezuela

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O artigo objetiva analisar as leis venezuelanas que regulam os meios de comunicação e os critérios utilizados pelo Estado para outorgar concessões às emissoras.

1. A mídia venezuelana

Até 2002 a Venezuela contava com apenas um canal de televisão aberta - a Venezoelana de Televisión - VTV. Hoje, o país conta com mais um canal aberto de cobertura nacional – a Televisora Venezoelana Social - TVES (que se propaga pelo espectro radioelétrico antes utilizado pela RCTV); e com mais 4 canais abertos de alcance restrito a Caracas, porém que também são oferecidos nos serviços de TV a cabo e a satélite – Ávila TV (antiga Alcadia Metropolitana de Caracas e agora propriedade do Poder Executivo), Asamblea Nacional de Televisón – ANTV (propriedade do parlamento), Vive TV, e Telesur (que ganhou seu sinal após a compra do canal privado CMT)[1].

Na rádio conta com a Radio Nacional de Venezuela (RNV) e YVKE Mundial, possuindo cada uma quatro estações, além de uma emissora de propriedade das Forças Armadas Nacional, Radio Tuna, e outra que está em mãos da Assembleia Nacional[2].

No âmbito dos jornais impressos o Ministério de Comunicación e Información (Minci) publica o El Correo de Orinoco, que chega a todo o país, e o município Libertador de la capital publica o jornal local gratuito Ciudad Caracas[3].

Conta ainda com a Agencia Venezolana de Noticias (AVN), com o serviço de notícias VenNews, que publica em inglês e espanhol, além do satlélite Simón Bolívar e das páginas web correspondentes aos distintos meios que possui[4].

Apesar do significativo número de meios de comunicação de propriedade do estatal, conforme dados da Comición Nacional de Telecomunicaciones (CONATEL) publicados no El Libro Blanco sobre RCTV em 2007, 78% das estações de TV VHF e 82% das estações de TV UHF estavam em mãos do setor privado. Dentre estas emissoras privadas, RCTV e Venevisión, as principais opositoras ao governo chavista, são as que mais recebiam publicidade no país, detinham juntas 66% do poder de transmissão e difusão de sinal, e ainda controlavam 80% da produção e elaboração de mensagens, informações e conteúdos que difundiam em Venezuela. As duas ainda são responsáveis por 85% da renda bruta do setor, ficando as outras 97 emissoras de televisão com os outros 25%[5].

Conforme explicitado no livro do Minci o cenário midiático na Venezuela estava conformado por seis grandes grupos midiáticos: o Grupo Diego Cisneros (ODC), proprietário do canal Venevisión; as Empresas 1BC, donas do canal RCTV; Grupo Núñez, Zuloaga, Mezerhane & Ravell, proprietários do canal Globovisión; o Bloque de Armas, donos do canal Meridiano TV; o Grupo Imagen, proprietário do canal La Tele; e o Grupo Camaro, proprietário do canal Televen[6].


2. Quadro normativo da comunicação na Venezuela

Em 2000 foi promulgada na Venezuela a Ley Orgánica de Telecomunicaciones, que buscou proteger os direitos dos usuários, promover e incentivar os meios comunitários, garantir condições justas de concorrência entre os operadores de serviços, dentre outros objetivos voltados a regular as telecomunicações. Infelizmente, dita lei não chegou a regular a propriedade dos meios de comunicação, permitindo que monopólios midiáticos continuassem a se conformar.

Em 2004 foi promulgada a Ley de Responsabilidad Social en Radio y Televisión, que buscou identificar quais elementos de linguagem, saúde, sexo e violência poderiam ser transmitidos em determinados horários; estabeleceu igualmente um mínimo de 50% de produção nacional nas novelas a serem transmitidas em canal aberto; incluiu dois representantes indígenas no Directorio de Responsabilidad Social, com a função de discutir e aprovar normas técnicas referentes à lei; e também proibiu mensagens que promovam ou façam apologia ao crime, à intolerância e ao ódio por razões religiosas, políticas, diferenças de gênero, racismo ou xenofobia[7]. Mais uma vez, uma lei voltada a regular os meios de comunicação não previu dispositivos antimonopolíticos.

Embora desprovida de uma legislação que regule a propriedade dos meios de comunicação, na Venezuela há uma lei voltada a proteger a livre concorrência. É a “Ley para promover y proteger el ejercício de la libre competencia”, que em seu artigo 1º proíbe expressamente condutas e práticas monopólicas e oligopólicas, ou que possam vir a impedir a liberdade econômica, estando aí incluídos, conforme seu artigo 3º, bens e prestação de serviços dirigidos a obtenção de benefícios econômicos[8].

Dita lei nunca foi utilizada para combater a concentração da propriedade dos meios. O critério para concessão de licenças para a utilização do espectro radioelétrico não se dá, na Venezuela, levando-se em consideração a existência de monopólios. Quando um oligopólio é pró-governo, ele tem permissão para continuar operando, como é o caso do conglomerado Venevisión, de propriedade de Diego Cisneros, que teve sua concessão renovada, enquanto a da RCTV, que era o principal meio crítico ao governo, não foi renovada, embora ambas emissoras se encontrassem em igual situação à época da renovação das concessões. O critério político-ideológico à hora de conceder as concessões já foi praticamente institucionalizado, tanto que altas autoridades do governo venezuelano chegaram a declarar que algumas emissoras haviam mudado a sua linha editorial e por isso poderiam ter suas licenças renovadas, já outras que não a corrigiram, não teriam nova concessão[9].


3. O caso da emissora RCTV

Dia 27 de março de 2007 o canal de TV aberto intitulado RCTV foi notificado de que não teria a sua concessão renovada, após um trâmite processual marcado pela falta de imparcialidade e transparência, em que até o próprio canal de TV, que era parte, teve o seu direito de intervir para ser ouvido e oferecer provas negado, violando as regras processuais em vigência na Venezuela[10]. Em decorrência das violações ao direito de defesa, ao devido processo legal, à liberdade de expressão, à igualdade perante a lei, dentre outros direitos alegados pela emissora postulante, foi o caso levado à Comissão Interamericana de Direitos Humanos.

Alegou a RCTV ante a CIDH que o motivo da não renovação da concessão se deu devido à linha editorial do canal. O Estado, por sua vez, alegou que a não renovação da concessão nada tinha a ver com a linha editorial do canal, sendo que se deu para que o governo venezuelano pudesse por em prática o “Plan Nacional de Telecomunicaiones” e para que pudesse ser criado um canal público de televisão aberta[11].

Ocorre que, em 2006, o presidente Hugo Chávez e o ministro a cargo do Ministerio de Comunicación e Información passaram a declarar expressamente que não iriam renovar a concessão da RCTV. O presidente Chávez chegou a alegar que não se iria “tolerar nenhuma meio que estivesse a serviço do golpismo, contra o povo, contra a nação, contra a independência, contra a dignidade da república”, e o MINCI chegou a realizar uma campanha oficial para justificar o porquê de não renovar a concessão do canal, com mensagens como “não renovar a mentira”[12]. Contrariamente, o governo venezuelano não logrou provar que o Plan Nacional de Telecomunicaciones havia sido implantado antes da emissão do comunicado que declarou a não renovação da concessão (Comunicación nº 0424). E também não soube explicar por que para cumprir o plano era necessário não renovar a frequência da RCTV, já que haviam outras frequências disponíveis[13].

Também não explicou o porquê de outras concessões que se venciam no mesmo dia terem sido renovadas (como a da Venevisión) e a da RCTV não. Nesse caso, se era estritamente necessário não renovar uma frequência, que se abrisse um concurso para que os distintos interessados em explorar uma concessão pudessem competir em condições de igualdade, como prevê a Ley Orgánica de Telecomunicaciones. Porém, “enquanto na época dos fatos a RCTV mantinha uma linha editorial crítica ao governo, Venevisión mantinha uma linha favorável”. A CIDH então reiterou que existem provas suficientes do motivo político da decisão de não renovar a concessão da RCTV e da consequente diferenciação de tratamento outorgada a duas emissoras que se encontravam em condições similares[14].

A RCTV também não teve direito a acessar o expediente administrativo sobre seu processo quando o solicitou à CONATEL, além de não ter tido o seu pedido de apresentar provas respondido até a decisão de não renovação, momento em que as provas foram rechaçadas por improcedentes e impertinentes. Neste processo, a emissora não teve a possibilidade de intervir para ser ouvida, para produzir provas e nem para responder às afirmações do Ministro de Comunicación e Información, que alegou que o canal havia violado as leis de rádio e televisão[15].

Por fim, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos concluiu que a o Estado venezuelano não renovou a licença da RCTV por motivos de opinião política, restringindo o direito à liberdade de expressão dos diretores, acionistas e funcionários da emissora, violando também o direito de igualdade perante a lei[16]. A Comissão também concluiu que o Estado violou as garantias judiciais e o direito à proteção judicial da emissora em inúmeros momentos do processo, dentre eles no próprio processo administrativo que negou a renovação da concessão, posto que este “se realizou em segredo, fora de um marco legal claro, e não permitiu em nenhum momento o direito da RCTV de ser ouvida e de apresentar provas”, violando as regras do processo administrativo venezuelano[17].

A título de curiosidade, segundo pesquisa realizada por Bernardino Herrera e Gustavo Hernández em 2007, 60% da programação de TVES - a televisão que hoje usa a frequência que antes pertencia à RCTV - é estrangeira, não havendo nenhum tipo de espaço educativo e as propagandas em favor do socialismo do século XXI aparecem em uma média de 50 vezes ao dia[18].


4. Conclusões

A Venezuela possui duas leis que regulam os meios de comunicação, mas nenhuma regula a questão do monopólio. O Estado venezuelano outorga as concessões conforme a linha editorial da emissora, e a autarquia responsável pela aplicação das leis de telecomunicação tramita seus processos administrativos no seio de uma insegurança jurídica muito grande e sem respeitar as garantias judiciais e constitucionais das partes. Se em um futuro o Estado venezuelano pretender regular a propriedade dos meios de comunicação através da edição de lei antimonopólio, para que dita lei sirva para fins democráticos e imparciais, é necessário que se garanta um Estado de direito capaz de promover a segurança jurídica e que respeite o devido processo legal, assim como a igualdade perante a lei. Só dessa maneira se garantirá que a restrição à concentração da propriedade dos meios que porventura for instituída por lei não será guiada por critérios puramente ideológicos, e sim por critérios estritamente legais.


REFERÊNCIAS

CIDH. Informe No. 112/12. Caso 12.828. Fondo Marcel Granier y otros Venezuela. 2012, p. 5. Disponível em: http://search.oas.org/en/default.aspx?k=Informe+No.+112%2f12.+Caso+12.828&s=All+Sites. Acesso em: 02 de dez. 2013.

CONATEL. Marco Legal. Disponível em: http://www.conatel.gob.ve/#http://www.conatel.gob.ve/index.php/principal/marcolegal. Acesso em: 02 de dez. 2013.

MINISTERIO DE COMUNICACIÓN E INFORMACIÓN. El libro blanco sobre RCTV. 2007, p. 17/19/27. Disponible en: http://www.minci.gob.ve/publicaciones/6/p--12/tp--25/. Acesso em: 25 de ago. 2013.

PIÑA, Elsa. Intolerancia a la crítica y hegemonia comunicacional menoscaban libertad de expresión.  ¿Por que nos odian tanto? Estado y medios de comunicación en América Latina. Centro de Competencia en Comunicación para América Latina: Bogotá, 2010. p. 150.

VENEZUELA. Ley para promover y proteger el ejercício de la libre competencia. Gaceta Oficial nº 34.880. Caracas, 13 de janeiro de 1992. Disponível em: http://www.sice.oas.org/compol/natleg/Venezuela/34880.asp. Acesso em: 21 de abr. 2014.


Notas

[1] PIÑA, Elsa. Intolerancia a la crítica y hegemonia comunicacional menoscaban libertad de expresión.  ¿Por que nos odian tanto? Estado y medios de comunicación en América Latina. Centro de Competencia en Comunicación para América Latina: Bogotá, 2010. p. 150.

[2] Ibid., p. 150.

[3] Ibid., p. 150-151.

[4] Ibid., p. 151.

[5] Ministerio de Comunicación e Información. El libro blanco sobre RCTV. 2007, p. 17/19/27. Disponible en: http://www.minci.gob.ve/publicaciones/6/p--12/tp--25/. Acesso em: 25 de ago. 2013.

[6] Ibid, p. 20-26.

[7] CONATEL. Marco Legal. Disponível em: http://www.conatel.gob.ve/#http://www.conatel.gob.ve/index.php/principal/marcolegal. Acesso em: 02 de dez. 2013.

[8] VENEZUELA. Ley para promover y proteger el ejercício de la libre competencia. Gaceta Oficial nº 34.880. Caracas, 13 de janeiro de 1992. Disponível em: http://www.sice.oas.org/compol/natleg/Venezuela/34880.asp. Acesso em: 21 de abr. 2014.

[9] CIDH. Informe No. 112/12. Caso 12.828. Fondo Marcel Granier y otros Venezuela. 2012, p. 5. Disponível em: http://search.oas.org/en/default.aspx?k=Informe+No.+112%2f12.+Caso+12.828&s=All+Sites. Acesso em: 02 de dez. 2013.

[10] Ibid., p. 46.

[11] CIDH, 2012, p. 47.

[12] Tradução própria. Ibid., p. 48.

[13] Ibid., p. 48-49.

[14] Tradução própria. Ibid., p. 49-51.

[15] CIDH, 2012, p. 45-46.

[16] Ibid., p. 53.

[17] Ibid., p. 60.

[18] Apud PIÑA, 2010, p. 152-153.


Autor


Informações sobre o texto

O trabalho foi resultado de pesquisa de iniciação científica (PIBIC) realizada junto à Universidade Católica de Pernambuco, sob a orientação do Prof. Dr. Gustavo Ferreira Santos.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BARROS, Ana Tereza Duarte Lima de. Monopólio e regulação da propriedade dos meios de comunicação na Venezuela. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4506, 2 nov. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/36227. Acesso em: 26 abr. 2024.