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Jurisdição voluntária e Justiça Trabalhista

incompatibilidade ou solução?

Jurisdição voluntária e Justiça Trabalhista: incompatibilidade ou solução?

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A possibilidade de submissão de acordos extrajudiciais referentes a indenizações do art. 114, VI, da CF à homologação pela Justiça do Trabalho é medida que traria celeridade e composições mais adequadas aos interesses das partes.

Sumário: 1) Delimitando a questão. 2) A Jurisdição em perspectiva: Instrumentalidade x Formalidade. 3) Argumento restritivo e sua consequência. 4) Alternativa do Juízo Cível. 5) Importância da possibilidade de homologação. 6) Alteração Legislativa: uma proposta compatibilizadora. 7) Solução de lege lata: Interpretação conforme a Constituição. 8) Procedimento. 9) Conclusões


1) Delimitando a questão

Desde os bancos acadêmicos somos instados a compreender a Justiça Trabalhista como um microssistema diferenciado dentro do Direito, com suas regras e princípios bem nítidos e distintos.

Salta a vista neste contexto o realce conferido à indisponibilidade relativa de direitos trabalhistas, o que impede que acordos extrajudiciais sejam homologados em juízo sem uma demanda já ajuizada em regra.

Dita cautela apresenta-se, em linha de princípio, justificada diante das características das relações trabalhistas, onde, em regra, o trabalhador está, em tese, em situação de desvantagem[1]. Logo, a inexistência de jurisdição voluntária na Justiça do Trabalho tinha motivo de ser.

Ocorre que, com o advento da Emenda Constitucional nº 45, a competência da Justiça do Trabalho ampliou-se para abarcar demandas antes afetas à competência da Justiça Comum cível.

De especial realce a situação do artigo 114, inciso VI, da CF/88, o qual, após dissenso, tem-se por dispositivo que carreou à alçada da Justiça Trabalhista as demandas de danos materiais e morais que se originem de relação de trabalho. Boa parte destas demandas resulta de acidentes de trabalho, inclusive com morte, de forma que são os herdeiros a demandar.

Sua causa de pedir não se reporta a direitos de natureza trabalhista, se não que invoca causa de pedir nitidamente cível. Por outras palavras, o direito em voga não é direito trabalhista stricto sensu, em vista do qual se pudesse irrogar indisponibilidade relativa. Ao revés, se tem direitos de cunho patrimonial eminentemente disponíveis, tanto que, quando processados pela justiça comum, tinham indiscutivelmente esta condição.

Neste passo, dada a natureza do direito que materializa uma potencial causa de pedir, estar-se-ia diante de situação onde seria plenamente possível a composição extrajudicial das partes. Mas aí surge dúvida pertinente: Uma vez que a demanda estaria sob a jurisdição trabalhista, tem plena valia quitatória a composição extrajudicial?

A solução seria submeter a composição à homologação judicial, nos termos do que dispõe o artigo 475-N, inciso V, do CPC. Ocorre que a Justiça Trabalhista desconsidera esta possibilidade, visto que a função não caberia a esta Justiça especializada por ausente litígio.

Será esta solução a mais consentânea à instrumentalidade e efetividade da jurisdição? Quais alternativas se põem as partes que, entabulando acordo extrajudicial, pretendam agregar mais segurança ao título?

Estas as questões que nos propomos a responder.


2) A Jurisdição em perspectiva: Instrumentalidade x Formalidade

O argumento que torna a Justiça Trabalhista infensa à tarefa de homologação de acordos extrajudiciais é de ordem formal, escudando-se na falta de contencioso, o que afastaria a hipótese do gabarito do artigo 114, inciso IX, da CF/88.

Para a precisa abordagem da questão específica que versamos, torna-se imperativo que façamos uma reflexão acerca do papel da Jurisdição no Estado Moderno.

A Jurisdição foi a função-poder do Estado cujo delineamento mais tardou a ocorrer como função independente. Porém, ainda assim ela herdou um exacerbado formalismo que se reflete ainda hoje na sua praxis, indo até os pormenores dos ritos e da simbologia envolvida nos atos estatais desta espécie. Esta simbologia e esta ritualística podem ser vistas ainda no tratamento formal e até mesmo na distribuição física dos espaços em salas de audiência. A praxis consolidada se repete continuamente e afasta uma reflexão profunda acerca do motivo mesmo da existência de uma Jurisdição.[2] Para que ela existe? O que ela é? Qual sua essência?

Ai é que reside o grande problema. O papel da jurisdição como um serviço estatal com finalidades práticas ainda não é bem compreendido, mesmo pelos operadores jurídicos. Ela, a jurisdição, não é um fim em si mesma. É um meio para que alguns fins sejam atingidos. Sua existência e sua institucionalização dependem do grau de eficácia com que logre atingir estes fins.

Com o crescimento da gama de direitos subjetivos reconhecidos e a difusão da informação, as demandas cresceram exponencialmente. Certos ritos e formalismos historicamente cultuados e toleráveis em outros tempos, hoje se materializam em verdadeiros entraves a uma jurisdição efetiva[3]. Apesar disso, são repetidos irreflexivamente, assim como certos dogmas cuja razão de ser de há muito não mais existe.  

Não somente ritos e hábitos desta praxe têm de ser revistos, mas também a forma de interpretar e pensar a finalidade da jurisdição. Aliás, como serviço estatal, a Jurisdição não refoge à imperativa observância do artigo 37, caput, da CF/88, no que concerne à eficiência.

Como uma das três funções do Estado, a Jurisdição somente se torna efetiva quando sua atuação se torna abrangente ao máximo. Isso é a essência da eficácia, o máximo resultado com o mínimo comprometimento de recursos. Os operadores do Direito sub especie jurisdicionis, especialmente os magistrados, devem se por em uma postura interpretativa que amplie ao máximo seu espectro de atuação. Cada vez que a Jurisdição declina de atuar, resta um conflito, efetivo ou potencial, sem resolução, e resulta descumprido seu escopo.

Logo, devem ser relegadas ao passado interpretações que prestigiem em demasia a formalidade, sobretudo quando esta não é essencial à preservação de um direito constitucional correlato.

De fato, enquanto que outrora a formalidade decorria de condicionantes históricas e culturais, hoje ela somente se justifica quando imprescindível à preservação de direitos e prerrogativas das partes ou do Estado Juiz.

Fora destas hipóteses, a restrição interpretativa e o formalismo se afiguram contrários aos interesses últimos e finalísticos da atividade jurisdicional enquanto função-poder-dever de aplicação do Direito ao caso concreto e produção da pacificação social.


3) Argumento restritivo e sua conseqUência

O argumento que restringe a possibilidade de homologação de acordos extrajudiciais fora das hipóteses de reclamatórias trabalhistas ajuizadas escuda-se na ausência de conflito de interesses. A homologação não estaria prevista no artigo 114 da CF/88. Exemplo de julgado sufragando este escólio, temos no Agravo de Instrumento cuja ementa segue: 

“AGRAVO DE INSTRUMENTO. ACORDO EXTRAJUDICIAL. HOMOLOGAÇÃO. INCOMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO. NÃO PROVIMENTO. 1. Não compete à Justiça do Trabalho homologar acordo extrajudicial, dada a ausência de previsão legal a respeito. Violação do artigo 114, IX, da Constituição Federal não configurada. 2. Agravo de instrumento a que se nega provimento. (TST - AIRR: 2448409120045020034, Relator: Guilherme Augusto Caputo Bastos, Data de Julgamento: 26/08/2009, 7ª Turma,, Data de Publicação: 04/09/2009) 

Outro exemplo pode ser visto no seguinte aresto:

“AGRAVO DE INSTRUMENTO. RECURSO DE REVISTA. ACORDO EXTRAJUDICIAL PARA HOMOLOGAÇÃO NA JUSTIÇA DO TRABALHO. AUSÊNCIA DE LIDE EFETIVA (PRETENSÃO RESISTIDA). TRABALHO INFORMAL. INVIABILIDADE. DECISÃO DENEGATÓRIA. MANUTENÇÃO. A Justiça do Trabalho não é simples órgão homologador de acordos extrajudiciais que denotam ausência de lide efetiva no processo judicial utilizado, ainda mais quando tendo por substrato prestações informais de serviços por pessoa natural a entes empresariais, sem as proteções legais trabalhistas. A ampliação da competência judicial pela EC n. 45/2004 não foi veículo para a descaracterização desse segmento especializado do Poder Judiciário, muito menos para a institucionalização do trabalho precário na sociedade e na ordem jurídica. A lide simulada deve ser repelida pelo Judiciário Trabalhista. Correta a sentença que extinguiu o processo, sem resolução do mérito, já em Primeiro Grau; correto, por consequência, o respectivo acórdão ratificador. Manutenção da decisão denegatória de seguimento do recurso de revista. Agravo de instrumento desprovido. (TST - AIRR: 2857401820055020023  Relator: Mauricio Godinho Delgado, Data de Julgamento: 01/04/2009, 6ª Turma,, Data de Publicação: 17/04/2009)”

Qual a consequência pratica deste posicionamento? Há o completo desestímulo à composição extrajudicial e as partes são compelidas a judicialização do conflito. Não raro, a demanda acaba sendo proposta somente “pro forma”, ou seja, não há um conflito real, mas as partes acabam sendo compelidas a afirmar a presença de um para poderem ver a chancela do Poder Judiciário à composição. Tem-se assim a famigerada “lide simulada”, não tão incomum no processo do trabalho. 

Será mais uma demanda, mais, gastos, mobilização de servidores e recursos.

Ainda que a Justiça Trabalhista tenha um índice de demora bem inferior ao das outras Justiças, é de se perguntar: Será que está tudo tão bem que se possa prescindir de soluções extrajudiciais mais céleres? Será que a Justiça Trabalhista está prestando uma jurisdição a contento da sociedade de forma a lhe ser lícito forçar a judicialização contenciosa de conflitos que poderiam ser decididos de outras formas?


4) Alternativa do Juízo Cível

Que alternativa restaria às partes que pretendam conferir maior segurança ao acordo extrajudicial envolvendo causa enquadrável no artigo 114, inciso VI, da CF/88? O juízo cível seria uma alternativa válida?

Em que pese o artigo 475-N, inciso V, do CPC, preconizar que é título executivo judicial “o acordo extrajudicial de qualquer natureza homologado em juízo”, certamente isso não autoriza desconsiderar regras de competência, notadamente o artigo 114, inciso VI, da CF/88, que tornou da competência da justiça especializada as demandas sobre danos materiais ou morais decorrentes de relações de trabalho.

Ora, é cediço que a competência em questão é funcional, ou seja, absoluta. Logo, a submissão de acordo à homologação da justiça comum esbarraria em violação à regra cogente de competência. Por outras palavras, ter-se-ia, a priori, sentença nula[4].

De outro lado, de que valerá se ter em mãos acordo não homologado que poderá ser a qualquer momento desconsiderado com ajuizamento de demanda? Terá ele validade não formalizado em juízo?

Neste caso, que vantagem haverá em se fazer um acordo extrajudicial sob o ponto de vista, sobretudo, do empregador, se a segurança jurídica, que é o principal escopo, não é obtida?

Acaba a empregadora deixando de tentar conciliação extrajudicial e aguardando o ajuizamento demanda, ao passo que o empregado ou seus familiares acabam tendo de promover a judicialização da questão, com todas as vicissitudes que isso traz.

Mais demandas, mais demora, mais gastos.


5) Importância da possibilidade de homologação

Neste contexto é que se pode bem aferir a importância da inserção da possibilidade de homologação de acordos extrajudiciais em demandas de dano moral ou material “puras”, vale dizer, as decorrentes especialmente de acidentes de trabalho.

Não raro, a empregadora tem pleno interesse em compor o litígio o mais rápido possível, inclusive, por exemplo, para poder se valer de seguros. O trabalhador ou sua família, de outro lado, certamente tem o maior interesse em receber o mais rápido possível a indenização a que fizer jus.

Diante deste quadro, havendo consenso quanto ao fato de que a demora é prejudicial a ambas as partes, e que para ambas é o bem da segurança jurídica importante, e mesmo fundamental, a composição extrajudicial é medida que atende, se dotada da almejada segurança, aos interesses de ambas as partes.

A implicação primeira e imediata seria favorecer o rápido acerto da questão e evitar a via crucis do processo judicial, que pode, mesmo considerando-se a relativa celeridade da Justiça Trabalhista, estender-se por anos.

Imediatamente teríamos a diminuição de processos acompanhada da celeridade da pacificação social, a qual ainda se daria da melhor forma possível, qual seja, a autocompositiva. A forma heterocompositiva ordinariamente sempre traz algum grau de frustração para ambas as partes.[5]   

Devemos recordar que uma das maiores mazelas da tutela jurisdicional é a morosidade, a qual não se justifica somente pela relação de processos por julgador, mas muito também pelo tipo de condução que se dá aos processos. Em alguns casos esta condução reflete o impulso particular que o julgador dá à tramitação; em outros, está condicionada pela legislação ou pela interpretação usual dela.

No caso em apreço, é a interpretação que grassou acolhida que condiciona a jurisdição trabalhista a repelir a possibilidade de homologação de acordos extrajudiciais sem demanda litigiosa proposta. 

No meu ver esta postura exegética é retrógrada e contraproducente, e fulmina um dos objetivos da jurisdição, talvez o seu escopo magno: produzir a pacificação e conceder a segurança jurídica no mais breve tempo possível.[6]

Abaixo, descreverei como pode ser viável a compatibilização da jurisdição trabalhista com a jurisdição voluntária, resguardando-se todas as garantias que lhe são inerentes.  


6) Alteração Legislativa: uma proposta compatibilizadora

Como visto, dogmas mantidos por mera praxe consolidada e comodismo, formalismos exacerbados, e, principalmente, exegeses restritivas e literais não podem servir de arrimo para posturas que restrinjam o acesso à tutela jurisdicional.

Toda vez que isso ocorre, sem uma justificativa útil acaba sendo subtraída parte da eficácia da função jurisdicional em apaziguar conflitos. Sem que nenhum ganho advenha ao Estado ou a sociedade, uma parte dos escopos da jurisdição (quiçá a mais importante) acaba não sendo atingida.

E o prejuízo não se limita ao caso concreto. Toda vez que a Jurisdição declina de atuar e uma solução adequada não é obtida, há uma perda no coeficiente de institucionalização dela na sociedade. Por outras palavras, cada incidente propicia a aferição da Jurisdição como uma alternativa ineficiente e que deve ser evitada a todo custo. Com isso é ela menos procurada ou evitada ao máximo em um processo que só tende a se ampliar cada vez mais até que se chega ao descrédito. Neste caso, os conflitos e as violações de direitos subjetivos que em tese subjazem acabam ou sem resolução ou sendo resolvidos por formas insatisfatórias e prejudiciais.  

O reverso disso, ou seja, a Jurisdição se consolidando como alternativa primeira e natural somente ocorre quando ela atinge a máxima abrangência e eficácia.

Posta esta premissa, pergunta-se: O que de fato impede termos jurisdição voluntária para o fim de homologar acordos extrajudiciais na Justiça Trabalhista, ainda mais em demandas que não tratam de direitos trabalhistas em sentido estrito?

Ora, na conformação dos seus órgãos jurisdicionais nada há que o impeça. No que concerne às características do processo trabalhista, igualmente inexiste qualquer incompatibilidade ontológica e intransponível.

Os únicos argumentos que se podem esgrimir seriam a falta de previsão legislativa e a natureza dos direitos em voga. Comecemos pelo primeiro que é de mais simples resolução.

Se o problema é falta de previsão legislativa a solução é singela, bastando produzi-la, a nível infraconstitucional, na CLT. Deveras, nenhuma limitação implícita ou expressa na CF/88 veda que tal modificação se opere. Tornaremos ao tema mais tarde, com sugestão concreta.

A segunda questão é a da pretensa indisponibilidade decorrente da natureza dos direitos. Aqui o que se tem é uma falsa questão. A alegada indisponibilidade relativa dos direitos abarca os direitos trabalhistas stricto sensu. Mas o direito material que escuda a pretensão nem natureza trabalhista tem. Não só não está no rol do artigo 7º (ao menos não explícito), como, ainda, a causa de pedir em tais demandas do artigo 114, inciso VI, da CF/88, potenciais ou efetivas, é, em esmagadora maioria, declaradamente de natureza cível, sendo invocados os artigos 5º, inciso X, da CF/88, e 186 e 927 do CC.

Tanto há disponibilidade dos direitos em liça que anteriormente à Emenda Constitucional nº 45, que alterou a competência da Justiça Trabalhista passando estas demandas para sua abrangência, era plenamente possível a aplicação do artigo 475-N, inciso V, do CPC a elas.

Ora, é axiomático que a mera mudança da competência para julgamento não altera a natureza, a substância do direito material base da pretensão. 

O que era disponível, e, portanto, passível de acordo extrajudicial homologável assim continua.

Postas estas premissas, qual a sugestão de modificação legislativa?

O dispositivo a ser inserido tem melhor topologia no artigo 764 da CLT, onde se versa sobre conciliação e possibilidade de acordo. A redação teria duas possibilidades conforme a amplitude a ser dada à possibilidade aqui defendida.

Na primeira, mais ampla, seria a seguinte, figurando como parágrafo quinto do artigo:

“Nas causas previstas no artigo 114, inciso VI da CF/88, em havendo composição extrajudicial, aplicar-se há o artigo 475-N, inciso III, podendo o acordo ser submetido a homologação judicial ainda que inexiste demanda em curso”.

Uma segunda possibilidade com interpretação mais restritiva, teria a seguinte redação:

Nas causas previstas no artigo 114, inciso VI da CF/88 que decorram de acidentes de trabalho, em havendo composição extrajudicial, aplicar-se há o artigo 475-N, inciso V, podendo o acordo ser submetido a homologação judicial ainda que inexiste demanda em curso”.

Estas as propostas de lege ferenda. Mas e de lege lata, é possível alvitrar a solução da homologação?   


7) Solução de lege lata: Interpretação conforme a Constituição

Resta uma questão a ser solvida: Seria possível de lege lata, sustentar o cabimento das homologações de acordo em vista das demandas de danos morais e materiais hoje afetas à Justiça do Trabalho?

Parece-me que a solução positiva é perfeitamente lícita e recomendável à luz de uma interpretação funcional da Jurisdição e da busca de maximização de sua eficácia como instância de pacificação social.

A aplicação subsidiária do CPC ao processo trabalhista é inquestionável.

A inexistência de um “conflito”, de uma lide no sentido “carnelutiano”[7], é um argumento por demais fraco a ser esgrimido para inviabilizar a possibilidade.

Antes de resolver conflitos, a Jurisdição, assim como as demais funções do Estado, deve é evitá-los.

A negativa de homologação de acordo extrajudicial implica no contrário, ou seja, em, paradoxalmente, exigir-se um conflito, simulado ou real, para que  ai possa o Estado atuar.

Isto é contraproducente e pouco inteligente.

Se o conflito teria de ser solvido pela Justiça Trabalhista, nada mais lógico seja ela a homologar a composição extrajudicial, dando-lhe o status de título judicial, e, portanto, segurança e garantia as partes.

Uma simples interpretação fulcrada na busca da eficiência e da ampla abrangência da Jurisdição, priorizando os meios autocompositivos e a prevenção, permite concluir, com sólidos argumentos, pela possibilidade de homologação de acordos extrajudiciais nestes casos.  

Esta é uma solução consentânea à inafastabilidade do controle jurisdicional (art. 5º, inciso XXXV, da CF/88) e aos princípios da eficiência (art. 37, caput, da CF/88), que também deve nortear a atuação jurisdicional, além de dar materialidade a uma solução que prestigia a celeridade (art. 5º, inciso LXXVIII, da CF/88), estando, por conseguinte, em conformidade à Constituição.            


8) Procedimento

Um dos argumentos que pode ser invocado contra a homologação de acordos extrajudiciais é o de que seria subtraída parcela de proteção que o ajuizamento da reclamatória traz ao trabalhador, uma vez que submete eventuais acordos ao crivo judicial.

Este óbice, contudo, é fictício. A uma porque, a presença do magistrado não inibe as conhecidas lides simuladas. Ela não é segurança que evite pressões ou fraudes de forma absoluta. A duas, se a presença fiscalizadora do juiz é necessária, o problema é facilmente contornável.

Ora, se o crivo judicial é necessário no sentido de evitar fraudes e pressões, pois que se faça a homologação em audiência.

Para tanto um sexto parágrafo do artigo 764 da CLT estipularia que:

“No caso do parágrafo anterior, as partes apresentarão em secretaria o acordo assinado por si e por seus advogados, solicitando audiência de homologação, onde será realizada mediante ratificação pelas partes na presença de seus procuradores e juiz”.             

Resolvido o problema. Veja-se que a solução celeriza o procedimento mantendo as mesmas garantias que hoje se obtém com ajuizamento de uma demanda reclamatória, real ou simulada.

De fato, se ajuizada demanda, a composição poderia ocorrer em qualquer das audiências, com cada parte abrindo mão de parcela dos seus alegados direitos e o acordo teria plena validade.

Por que então não pode ter a mesma validade um acordo onde as partes igualmente transigem e o ratificam perante o Juiz? Não é a mesma coisa em termos práticos do que se tivesse em curso demanda reclamatória?

A vantagem é que não haveria toda a tramitação da demanda ordinária, tudo de forma mais simplificada. A audiência seria apenas para ratificação e homologação.          


9) Conclusões

Em todas as Justiças e instâncias, os processos se avolumam. Em cada qual deles um conflito a ser dirimido, seja ele real ou não.

Esta tendência de judicialização cada vez maior de situações somente tende a aumentar. Aumenta a gama de direitos subjetivos e o grau de informação a respeito de sua existência, o que, naturalmente, irá fazer aumentar o número de lides e de processos.

A consequência imediata disso é uma postergação cada vez maior na solução das demandas, comprometendo a celeridade que foi alçada a direito constitucional.

Neste contexto, o Judiciário, em todas as suas vertentes, deve recordar que a prioridade é a solução de conflitos e não a simples eliminação de processos.[8] 

Sob esta perspectiva, soluções que valorizam formalismos, ou sofismas interpretativos para o fim de afastar a atuação jurisdicional de forma a mais célere possível, não se mostram consentâneas e conformes à realidade e a busca de uma atuação efetiva e eficaz de um serviço estatal. 

A formalidade, a restrição, a rigidez procedimental, somente são legítimas quando verdadeiramente vocacionadas à proteção de direitos e garantias. Quando desvinculadas desta finalidade, ao revés, tornam-se entraves, obstáculos a que se atinja a finalidade para a qual em princípio foram concebidas.

Embalados por esta premissa e dando um golpe de vista na questão da resistência de certos e majoritários setores da Justiça Trabalhista à possibilidade de homologação de acordos extrajudiciais, especialmente no tocante às demandas que não envolvem direitos trabalhistas em senso estrito, vemos que esta posição não encontra fundamento sólido, e embasa-se em formalismo que não alcança sustentação finalística plausível, e nada preserva ou resguarda.

Se há um potencial conflito, por que não resolver com a segurança que a chancela jurisdicional confere enquanto esta ainda como tal, ou seja, in potentia? Não é muito melhor do que apanhar uma lide já em curso com todos os desgastes que isso causa de parte a parte e tentar um acordo?

O fato é que hoje muitos casos deixam de ser resolvidos extrajudicialmente, da forma que é a melhor para ambas as partes porque uma ou as duas ficam com receio de estar fazendo acordo inócuo, que poderá ser amplamente desconsiderado em demanda trabalhista, o que é válido especialmente a quem em que pagar a indenização.

A chancela jurisdicional confere uma segurança que é muito cara à cultura latina, ou seja, aos sistemas de descendência romano-canônica.[9]

Como alhures visto, seja por uma interpretação conforme a Constituição, valorizando a celeridade e a eficiência como notas fundamentais; seja através de alteração legislativa, a possibilidade de submissão de acordos extrajudiciais nas situações que se enquadram no figurino do artigo 114, inciso VI, da CF/88, é medida que iria trazer celerização, a formação de composições mais adequadas aos interesses das partes (porque obtidas diretamente por elas), e tudo sem prejuízo de nenhuma garantia aos direitos fundamentais, notadamente do empregado ou seus familiares, se adotada a audiência homologatória como supra sugerido.

Esta a sugestão de alteração legislativa e mesmo de solução hermenêutica que deixo para reflexão.           


Notas

[1] Com a devida vênia, mas esta premissa se mostra a cada dia menos real. Hoje há ampla atuação dos sindicatos e o acesso à informação é amplo. Ademais, o nível educacional ampliou-se significativamente desde o advento da CLT. Se de fato em algumas regiões do país a situação de hipossuficiência do trabalhador ainda é real, isso de modo algum pode ser tomado como regra geral, pelo contrário, é, hoje, a exceção. Está mais do que na hora desta premissa ser revista. 

[2] A presença de ritos formais tem por principal consequência justamente afastar a reflexão sobre o seu porquê. A ritualística é a antítese da reflexão. Em nenhum dos outros poderes a ritualística se faz ainda tão presente como no Judiciário, e isso muito tem contribuído para atravancar sua adaptação as realidades e finalidades para as quais ele se destina.    

[3] Sob outras condicionantes históricas e culturais, algumas praxes e formalismos poderiam até cumprir finalidades úteis, especialmente de afirmação da autoridade do Estado. Hoje, a aceitação do Estado, sua institucionalização pela sociedade é uma realidade muito mais palpável e concreta. A jurisdição é vista como instância natural de resolução de conflitos. Em qualquer ponderação razoável que se faça, a manutenção de certos ritos e simbologias não mais se justifica, e, ao contrário, acaba por funcionar como um mecanismo de entrave, dificultando o acesso ao Judiciário. As pessoas não podem ter medo de ir ao Fórum.    

[4] Inclusive rescindível a teor do artigo 485, inciso II, do CPC.  

[5] Qualquer pessoa que tenha alguma experiência nas lides forenses sabe que não raro, se não que comumente, a sentença acaba descontentando a ambas as partes. Quanto maior a criação de expectativas maiores as frustrações. 

[6] Ainda que hoje se reconheçam outras funções que promove a tutela jurisdicional, o certo é que a concessão da segurança jurídica em vista de um conflito é de longe a mais saliente e importante finalidade que se lhe pode atribuir. A parte que busca o judiciário procura por antes de tudo fim à incerteza. É visível para quem labuta algum tempo com prática judiciária que o que a parte quer é uma posição definitiva sobre seu conflito, bem como os efeitos de mitigação do conflito que decorrem de uma decisão chancelada pelo Estado, ainda que desfavorável. Uma sentença contrária é tida como menor danosa do que a incerteza. 

[7] Segundo célebre lição do processualista italiano a lide é um conflito de interesses qualificado por uma pretensão resistida.

[8] Muitos parecem ter olvidado que a função jurisdicional somente atinge seu escopo magno quando conflito é solucionado, quando é pacificada a lide, quando a certeza e a estabilidade são concedidas as partes como bem especialmente almejado. Sente-se em certas parcelas do Judiciário a tendência a priorizar a extinção dos processos como uma angustia permanente, olvidando que, se o conflito continua, novas demandas dele poderão surgir e a Jurisdição foi ineficaz e apenas desperdiçou  recursos. Nesta sanha de extinguir a qualquer custo o processo para “baixar o mapa”, as soluções de formalismo destacam-se como alavanca. 

[9] Ao contrário do que ocorre com o sistema do common law, profligado na América do Norte e paises da Comunidade Britânica, onde a autocomposição e a arbitragem são valorizadas, os sistemas do civil law, de origem romano-germânica ou peninsulares tendem a exigir a chancela estatal com ampla participação do agente estatal em todo o processo. É por isso que a arbitragem não vingou no Brasil.      


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MEZZOMO, Marcelo Colombelli. Jurisdição voluntária e Justiça Trabalhista: incompatibilidade ou solução?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4395, 14 jul. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/37435. Acesso em: 28 abr. 2024.