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A vedação do retrocesso em matéria de direitos humanos e a inconstitucionalidade da redução da maioridade penal no Brasil

A vedação do retrocesso em matéria de direitos humanos e a inconstitucionalidade da redução da maioridade penal no Brasil

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A Constituição não pode ser emendada para reduzir-se a maioridade penal no Brasil por dois motivos: por contrariar cláusula pétrea e por contrariar princípio de direito internacional, que é o de vedação ao retrocesso em matéria de direitos humanos.

1. Introdução.

Alguns temas permeiam a discussão entre o que seria “direita” e “esquerda” no Brasil moderno, dentre eles as questões sobre aborto, criminalização da homofobia, liberação do porte de arma por parte da população civil e intervenção do Estado na Economia. Mas o tema mais palpitante, sem sombra de dúvidas, é a redução da maioridade penal.

Sem entrar em aspectos políticos e ideológicos, que estão por trás dos debates sempre acalorados em relação ao tema, passaremos a tecer alguns comentários de ordem jurídica sobre a questão da redução da maioridade penal. 

O tema voltou à discussão com grande latência, depois da aprovação pela Comissão de Constituição de Justiça da Câmara dos Deputados, de proposta de redução da maioridade penal, de 18 anos para 16 anos[1]. A proposta, em projeto de Emenda à Constituição, foi considerada Constitucional, por não ser o dispositivo do artigo Art. 228, da CF, cláusula pétrea, e, portanto, imutável.

Em regra, o Parlamento Brasileiro é movido por discussões de momento. Esse não é o caso da matéria em questão, já que há propostas em discussão a mais de 23 anos. Entretanto, apenas com o atual quadro da Câmara dos Deputados, de viés eminentemente conservador, é que o projeto passou pela Comissão de Constituição e Justiça, estando pronto para ser votado em Plenário. Levando-se em conta que, historicamente, a Câmara tem viés mais liberal e o Senado viés mais conservador, fica evidente que, a possível aprovação por parte dos deputados em dois turnos, será confirmada pelo Senado, havendo, portanto, a mudança legislativa da Constituição.

O que cabe aos operadores de direito é discutir se a mudança é ou não constitucional, pois nem sempre a mera mudança de texto da Carta Maior é capaz de mudar o espírito impregnado nessa, de matriz de carta de direitos.


2. Imputabilidade penal. Tratamento constitucional e legal.

a) Imputabilidade penal. Natureza jurídica.

Imputabilidade é a capacidade de atribuir culpa a alguém, e, no caso do direito penal, é atribuir a alguém capaz de sentir culpa fato tipificado como crime, ou, como define Delmanto, “imputabilidade é a capacidade de a pessoa entender que o fato é ilícito e de agir de acordo com esse entendimento[2]”.

Para se definir o que é “ter capacidade de sentir culpa”, a teoria penalista definiu três critérios:

a) Sistema biológico ou etiológico: Leva em conta a doença mental, isto é, o estado anormal do agente. Este sistema é de inspiração francesa e considera a inimputabilidade apenas do ponto de vista das causas biológicas. Dessa maneira, ele peca em não indagar se essa anomalia causou alguma perturbação que limitou a inteligência ou a vontade do agente, deixando impune aquele que, embora portador de doença mental, possua discernimento e capacidade de determinação;

b) Sistema psicológico: este sistema tem em conta apenas as condições psicológicas do agente à época do fato. Aqui, não há necessidade de demonstração de insanidade mental ou de distúrbio psíquico patológico. Trata-se de um critério pouco cientifico e de difícil averiguação; e

c) Sistema biopsicológico: é um sistema híbrido, misto, uma combinação dos dois sistemas anteriores. Exige, de um lado, a presença de anomalias mentais, e de outro, a completa incapacidade de entendimento. Dessa forma, o agente só será considerado inimputável se em função de enfermidade ou retardamento mental era, no momento da ação, incapaz de entender o caráter criminoso do fato e de se comportar conforme essa compreensão[3].

O Brasil adotou o terceiro sistema.

Exclui-se a imputabilidade, ou a “capacidade de sentir culpa”, em razão de doença mental e desenvolvimento mental incompleto ou retardado, conforme o artigo 26, do Código Penal, em caso de menoridade (18 anos, nos termos do artigo 228, da CF) e de embriaguez fortuita completa (art. 28, parágrafo primeiro).

Em relação ao menor de dezoito anos, esse é presumido incapaz penalmente. Não se perquire se esse tem ou não capacidade de entender o caráter ilícito do fato criminoso, pois a Lei Penal não lhe é aplicável. Por técnica jurídica, segundo a teoria finalista, adotada na reforma penal de 1984, o crime é fato típico, ilícito e culpável. O fato típico, por sua vez, é dividido em quatro partes: conduta, nexo de causalidade, resultado e tipicidade estrita. O crime, portanto, é como um quebra-cabeça. Faltando algum dos requisitos ou peças a serem juntados, não há punição. É isso o que ocorre em relação ao menor. Em relação a esse, fica excluída a conduta, seja dolosa ou culposa. Não pode, portanto, ser punido criminalmente.

O que levou a essa “ficção jurídica” foi uma opção de política criminal adotada pelo Legislador Constituinte de 1988. A tese dos que defendem a mutação constitucional e legal, é a de que, sendo opção de política criminal, essa poderia ser modificada a qualquer tempo. Entretanto esse é um erro de duas ordens: uma, por haver a impossibilidade de exclusão de cláusula pétrea por reforma constitucional, e outra, por ser vedado o retrocesso em matéria de direitos humanos, princípio reconhecido pelo direito internacional.

b) A inimputabilidade penal. Previsão normativa.

A Constituição Federal, em seu artigo 228, o Código Penal, no artigo 27, e o próprio Estatuto da Criança e do Adolescente, no artigo 104, preveem que são penalmente inimputáveis os menores de 18 anos. Os artigos são de clareza indiscutível, deixando claro que o legislador adotou o critério de absoluta presunção de incapacidade de o menor entender o caráter ilícito do fato criminoso. Naturalmente essa foi uma decisão em sede de política criminal.

No entanto, a própria Constituição deixou claro que o menor de dezoito anos pode ser punido, ou melhor, reeducado, nos termos de legislação especial, nos termos do próprio artigo 228. A Lei Especial em questão é o Estatuto da Criança e Adolescente, no qual há a previsão da prática de atos infracionais, praticados por menores quando as condutas forem tipificadas como crime ou contravenção penal.

Frise-se que o ato infracional só pode ser praticado por adolescente, entendido como aquele que tem doze anos completos, sendo-lhe aplicável as medidas previstas no artigo 112 do ECA, sendo a mais gravosa a internação do menor infrator por até três anos – limite fixado pelo artigo 122, § 1º, daquele mesmo diploma legal.

Portanto, podemos sintetizar três idades e seus consectários legais, em relação à prática de atos previstos como tipos penais: a) dezoito anos completos, a plena imputabilidade penal, ressalvando-se os casos previstos no artigo 26, do Código Penal; b) entre doze anos completos até a data limite de dezoito anos, o adolescente pratica ato infracional, aplicando-se as medidas previstas no artigo 112, do ECA; e c) o menor de doze anos, no qual a criança pode até praticar atos infracionais, mas apenas lhe são aplicadas medidas protetivas, descritas no artigo 101, do ECA.

Essa é a legislação aplicável ao menor de dezoito anos.


3. Propostas de redução da maioridade penal. Clamor popular. Teoria da proteção integral e vedação de retrocesso em matéria de direitos humanos.

a) Clamor popular e teoria da proteção integral.

O inconsciente coletivo, no Brasil, tem na lei uma espécie de panaceia, o “remédio para todos os males”. Para o cidadão comum, basta mudar a lei ou criar uma nova lei, que o problema posto está resolvido. Isso criou uma poluição jurídica. Tem-se lei para tudo, deixando pouca margem de atuação por parte dos operadores do direito. Parafraseamos uma citação clássica: O Brasil tem um sistema legal quase perfeito. Falta só uma Lei, a que diga que todas as outras devem ser cumpridas. Em suma, mudar a Lei ou a Constituição muda o sistema legal, mas não muda o país.

O maior problema na seara jurídica são as leis feitas às pressas, muitas vezes para aplacar o clamor social, ressentido com algum acontecimento atual, que ainda “queima”. Diversas leis a-técnicas foram elaboradas dessa forma, criando mais problemas que soluções.

O legislador é eleito, e busca dar respostas ao seu eleitorado elaborando leis, principalmente leis populares. Move-se, na maioria das vezes, não por técnica legislativa, mas pelo clamor popular. “Faço a lei, o operador que se vire em aplicá-la”, é o que tem movido o Poder Legislativo no Brasil. E, sem dúvida nenhuma, o tema REDUÇÃO DA MAIORIDADE PENAL é o tema que mais se adéqua ao CLAMOR POPULAR.

Pesquisa do IBOPE demonstra que 83% dos brasileiros são a favor da redução da maioridade penal no Brasil[4]. O legislador, eleito pelos seus pares, naturalmente é movido pela opinião pública, e tenta aplacá-la com a lei, de preferência lei dura, repressiva. Sed Lex dura Lex. O porquê de o brasileiro adotar essa posição cabe mais à sociologia que ao direito. Mas podemos sintetizar tudo no fracasso da Teoria da Proteção Integral ao menor, adotada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente.

As duas doutrinas em relação ao menor no Brasil são a teoria do MENOR INFRATOR, adotada antes do ECA, na qual o menor só é objeto de preocupação jurídica quando pratica ato infracional, e a teoria da Proteção Integral, adotada pelo ECA, que vê o menor como sujeito de direitos, devendo ser protegido antes de praticar ou ser vítima de crimes.

O que estamos vendo, pelo clamor popular, é uma volta ao passado, com a readoção da teoria do menor infrator. O adolescente deixa de ser sujeito de direitos, passando a ser visto como o “inimigo”, característica comum das modernas teorias repressivas da Lei e Ordem (direito Penal do Inimigo, teoria da Vidraças Quebradas, Tolerância Zero etc).

Decorre dos dispositivos constitucionais aplicáveis a crianças e adolescentes a Teoria da Proteção Integral, que protege a própria dignidade daquele que ainda não tem a capacidade de se autodeterminar. Para Vilas-Bôas[5]:

Quando se trata das crianças e dos adolescentes o nosso sistema jurídico pode ser analisado em duas fases distintas: a primeira que denominamos de situação irregular, no qual a criança e adolescente só eram percebidos quando estavam em situação irregular, ou seja, não estavam inseridos dentro de uma família, ou teriam atentado contra o ordenamento jurídico; já a segunda fase denominada de Doutrina da proteção integral, teve como marco definitivo a Constituição Federal de 1988, onde encontramos no art. 227, o entendimento da absoluta prioridade. Assim rompemos com a doutrina da situação irregular existente até então para abarcarmos a doutrina da proteção integral consubstanciada em nossa Carta Magna.

A autora informa também que o Brasil está atrasado em relação a esse tema, já que, “em âmbito internacional não era uma novidade, ao contrário já estávamos atrasados várias décadas. A Declaração dos Direitos das Crianças foi publicada em 20 de novembro de 1959 pela ONU. E no cenário internacional, essa Declaração acabou originando a doutrina da Proteção Integral, que somente entrou em nosso ordenamento jurídico com o advento da Constituição Federal de 1988”.

Desta forma, o clamor popular, ouvido pela Câmara dos Deputados na Proposta de Emenda à Constituição Federal, tende a jogar o Brasil de volta a 1959, antes do direito internacional reconhecer o adolescente e a criança como sujeitos de direitos.

b) Vedação ao retrocesso em tema de direitos humanos.

O direito internacional tem como uma de suas balizas a proteção aos direitos humanos, que para a maioria dos autores, decorre do jusnaturalismo, ou seja, são direitos inerentes ao ser humano pelo simples fato de terem nascido com vida. A ONU foi instituída com o princípio básico de proteger os direitos da pessoa humana, e todos os órgãos internacionais tem nesse princípio a sua razão de ser.

Os direitos humanos vão se consolidando, depois de lutas e pequenas conquistas em cada entidade, país ou civilização. Para se citar como exemplo, a União Europeia, proíbe que seus membros adotem a pena de morte, abolida em todo o Continente, pelo menos nos países signatários da União. A vedação ao retrocesso em matéria de direitos humanos impede que algum país europeu passe a adotar a pena de morte, sob a pena de ser excluído da União Europeia.

O preclaro Ministro Celso de Melo já tratou sobre esse tema[6]:

Registre-se que a vedação ao retrocesso impõe ao Estado o impedimento de abolir, restringir ou inviabilizar sua concretização por inércia ou omissão, conforme tem se posicionado o Supremo Tribunal Federal “- A PROIBIÇÃO DO RETROCESSO SOCIAL COMO OBSTÁCULO CONSTITUCIONAL À FRUSTRAÇÃO E AO INADIMPLEMENTO, PELO PODER PÚBLICO, DE DIREITOS PRESTACIONAIS. – O princípio da proibição do retrocesso impede, em tema de direitos fundamentais de caráter social, que sejam desconstituídas as conquistas já alcançadas pelo cidadão ou pela formação social em que ele vive. – A cláusula que veda o retrocesso em matéria de direitos a prestações positivas do Estado (como o direito à educação, o direito à saúde ou o direito à segurança pública, v.g.) traduz, no processo de efetivação desses direitos fundamentais individuais ou coletivos, obstáculo a que os níveis de concretização de tais prerrogativas, uma vez atingidos, venham a ser ulteriormente reduzidos ou suprimidos pelo Estado. Doutrina. Em consequência desse princípio, o Estado, após haver reconhecido os direitos prestacionais, assume o dever não só de torná-los efetivos, mas, também, se obriga, sob pena de transgressão ao texto constitucional, a preservá-los, abstendo-se de frustrar – mediante supressão total ou parcial – os direitos sociais já concretizados.” (ARE-639337- Relator(a):  Min. CELSO DE MELLO).

A Constituição Federal, em seu artigo 5º, § 2º, dispõe que “os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”.

A vedação de retrocesso em matéria de direitos humanos é um dos princípios internacionais adotados pela Constituição Federal do Brasil, decorrendo do artigo 4º, II, sendo um dos princípios que regem as suas relações internacionais.

A ONU reconhece os direitos da criança e do adolescente, como direitos humanos, elaborando a CONVENÇÃO SOBRE OS DIREITOS DA CRIANÇA, de 1959, adotada pelo Brasil através do Decreto 99.710/90, prevendo, em seu artigo 19 que[7]:

1. Os Estados Partes adotarão todas as medidas legislativas, administrativas, sociais e educacionais apropriadas para proteger a criança contra todas as formas de violência física ou mental, abuso ou tratamento negligente, maus tratos ou exploração, inclusive abuso sexual, enquanto a criança estiver sob a custódia dos pais, do representante legal ou de qualquer outra pessoa responsável por ela.

2. Essas medidas de proteção deveriam incluir, conforme apropriado, procedimentos eficazes para a elaboração de programas sociais capazes de proporcionar uma assistência adequada à criança e às pessoas encarregadas de seu cuidado, bem como para outras formas de prevenção, para a identificação, notificação, transferência a uma instituição, investigação, tratamento e acompanhamento posterior dos casos acima mencionados de maus tratos à criança e, conforme o caso, para a intervenção judiciária.

A Convenção considera criança “todo ser humano com menos de dezoito anos de idade”, nos termos de seu artigo 1º.

Portanto, a Convenção proíbe todas as formas de violência física ou mental. O Brasil, como signatário desse dispositivo internacional, não pode simplesmente desconsiderá-lo, já que não há possibilidade de um país voltar atrás em matéria de direitos humanos.

Podemos sintetizar a questão da seguinte forma: a) prender crianças e adolescentes é submetê-las a violência tanto física quanto mental, o que não é possível no direito nacional e internacional, adotado pelo Brasil; b) como o país é signatário dessa Convenção, e adota dos princípios do direito internacional, especialmente a vedação ao retrocesso em matéria de direitos humanos, não pode, de uma hora para outra, usar de violência estatal contra suas crianças e adolescentes.

Antes que alguém alegue que o país é soberano, lembremos que após a Segunda Guerra Mundial o conceito de soberania foi relativizado. O país integrado na ordem internacional deve se reger pelos princípios civilizatórios, mormente se foi o próprio país quem voluntariamente adotou a Convenção.


4. Inconstitucionalidade material da PEC de redução da maioridade penal: cláusula pétrea.

O tema central desse artigo não é a inconstitucionalidade da redução da maioridade penal no Brasil, tema amplamente discutido após a aprovação da matéria pela CCJ da Câmara dos Deputados. Mas a questão deve ser também citada.

Luiz Flávio Gomes ensina que[8]:

“[...] do ponto de vista jurídico é muito questionável que se possa alterar a Constituição brasileira para o fim de reduzir a maioridade penal. A inimputabilidade do menor de dezoito anos foi constitucionalizada (CF, art. 228). Há discussão sobre tratar-se (ou não) de cláusula pétrea (CF, art. 60, § 4.º). Pensamos positivamente, tendo em vista o disposto no art. 5.º, § 2.º, da CF, c/c arts. 60, § 4.º e 228. O art. 60, § 4º, antes citado, veda a deliberação de qualquer emenda constitucional tendente a abolir direito ou garantia individual. Com o advento da Convenção da ONU sobre os direitos da criança (Convenção Sobre os Direitos da Criança, adotada pela Resolução I.44 (XLIV), da Assembléia Geral das Nações Unidas, em 20.11.1989. Aprovada pelo Decreto Legislativo 28, de 14;09.1990, e promulgada pela Decreto 99.710, de 21.11.1990. Ratificada pelo Brasil em 24.09.1990), que foi ratificada pelo Brasil em 1990, não há dúvida que a idade de 18 anos passou a ser referência mundial para a imputabilidade penal, salvo disposição em contrário adotada por algum país. Na data em que o Brasil ratificou essa Convenção a idade então fixada era de dezoito anos (isso consta tanto do Código Penal como da Constituição Federal - art. 228). Por força do § 2º do art. 5º da CF esse direito está incorporado na Constituição. Também por esse motivo é uma cláusula pétrea” (apud ANDRADE, 2013).

Os defensores da possibilidade de modificação da Constituição Federal afirmam que as cláusulas pétreas são taxativas, e que os direitos fundamentais protegidos não abrangem outros previstos fora do artigo 5º, da CF. Essa questão foi afastada pelo STF, através da ADI nº 939/DF, da relatoria do Min. Sydney Sanches, decidida em 15/11/1995. Nesta ocasião, o tribunal declarou como cláusulas pétreas, com incidência do art. 60, § 4º, I e IV CF/88, o disposto nos arts. 150, III, ‘a’ e ‘b’, e VI CF/88: o princípio da anterioridade, que é garantia individual do contribuinte; o princípio da imunidade tributária recíproca, que veda aos Entes a instituição de impostos uns dos outros, o que é garantia da Federação; e as imunidades tributárias religiosa, política/educacional e cultural.

Outros defendem a possibilidade da modificação do artigo 228, da CF, por “questão de política criminal”. Cito expressamente Maurício Rangel[9]:

Assim, não há que se falar que o art. 228 da CF/88 é uma cláusula pétrea, com fulcro no art. 60, § 4º, IV CF/88. A razão é que sequer se vislumbra na disposição resquícios de um direito que se possa dizer imanente à natureza humana ou que vise protegê-la, e que lhe faltam características essenciais como a universalidade e a indivisibilidade. Não se trata de direito fundamental individual, e sua defesa como pertencente a qualquer outra geração mostra-se, por questão conceitual, inviável. Logo, não é um direito fundamental de qualquer espécie. Os defensores desta posição, malgrado a boa intenção com que a advogam por julgarem ineficaz a redução da maioridade penal, carecem de embasamento teórico e tentam, através da incidência da não supressão das cláusulas pétreas, evitar que haja tal mudança. Infelizmente ou não, não é este o caso. A discussão acerca de tal redução deve se dar, exclusivamente, no âmbito da política criminal.

Com respeito a essa argumentação, que é admirável, diga-se de passagem, não se pode excluir a possibilidade de ser processado, julgado e punido, do rol dos direitos fundamentais. O menor de dezoito anos hoje tem o direito de ser tratado como inimputável, não podendo ser preso preventivamente, denunciado, ter seu rosto estampado em jornais e condenado a penas longas. Não conseguimos deixar de colocar esses direitos como fundamentais, por uma questão lógica.

Quanto à argumentação de política criminal, entendemos que essa argumentação é perigosa. Como os ventos da política brasileira estão soprando em direção a um conservadorismo quase fundamentalista, o conceito de “política criminal” poderá embasar no futuro a criminalização de homossexuais, ateus, ciganos, dentre outras minorias. Esse conceito foi utilizado na Alemanha Nazista, é sempre é bom lembrar.

O Supremo Tribunal Federal certamente será acionado para tratar sobre a Proposta de Emenda à Constituição, podendo delimitar os temas que serão discutidos:

a) Se o rol do artigo 5º da CF é fechado;

b) Se o artigo 228 é cláusula pétrea;

c) Se é aplicável ao tema o princípio da vedação ao retrocesso em matéria de direitos humanos.

Aguardaremos que os Ministros do Supremo tratem a questão com a técnica necessária, não julgando segundo o clamor popular, pois, mesmo ciente que o poder emana do povo, nem sempre o povo tem as melhores informações para formar sua posição sobre determinado tema, como é o caso.


5. Impossibilidade da redução da maioridade penal mesmo com uma nova Constituição.

A Constituição Federal, tomando-se por base a pirâmide normativa de Kelsen, é o ápice do sistema hierárquico de normas. A Constituição inaugura o direito de determinado país, sendo complementada pelas demais disposições legais. Muitas vezes a Constituição pode ser emendada, mas o poder inaugural da ordem jurídica pode determinar que algumas matérias não possam ser modificadas. No caso da nossa Constituição, as matérias imutáveis dizem respeito a direitos fundamentais, decorrente dos direitos humanos lato senso, incluindo a impossibilidade de redução da maioridade penal. Sob o ponto de vista jurídico, portanto, mantendo-se a atual Constituição, a inimputabilidade será mantida nos patamares atuais, e certamente o Supremo Tribunal Federal declarará isso assim que provocado.

Passaremos então, a um exercício hipotético.

Caso os defensores da redução da maioridade penal mantenham essa sanha punitiva, essa verdadeira fixação em jogar os adolescentes em presídios, deverão se mobilizar para convocar uma nova Assembleia Constituinte. A Assembleia então elaboraria uma nova Constituição, excluindo o direito fundamental em debate, e, infelizmente, outros direitos seriam extirpados também, já que, em regra quem defende a redução da maioridade penal defende a pena de morte, a liberação de porte de arma para o cidadão, intolerância com os movimentos LGBT e imposição da fé cristã como religião oficial do Estado. A Nova Constituição, portanto, seria um retrocesso na história evolutiva do Estado brasileiro.

Segundo lição clássica, o PODER CONSTITUINTE é ilimitado e autônomo, por não estar subordinado a qualquer limitação material. Segundo os adeptos do positivismo (aqueles que negam a existência do direito natural), o poder constituinte, quanto à matéria, é soberano (ilimitado), pois não se submete a nenhuma regra do direito positivo. Para os adeptos do jus naturalismo (aqueles que afirmam a existência de direitos inerentes à condição humana), o poder constituinte originário é limitado em razão do direito natural. Assim, sempre haverá limites decorrentes de uma consciência ética ou de direito natural. Ser ilimitado significa autônomo em razão do direito positivo[10].

Filiamo-nos à segunda teoria. O positivismo decorre de uma visão estática do direito, tentando converter essa ciência social em ciência exata. Sem fugir do tema, podemos afirmar que nenhum constitucionalista moderno adota o positivismo puro, tendo, até mesmo Hans Kelsen, um de seus baluartes, atenuado a pureza do positivismo.

Alguns direitos são inerentes ao ser humano, como a vida, a liberdade, a dignidade, a privacidade e a segurança, parâmetros a serem utilizados pelo país na elaboração de sua Constituição. O jusnaturalismo, portanto, limita o Poder Constituinte Originário.

Voltando ao tema, podemos sintetizar a matéria da seguinte forma: mesmo com uma nova Constituição, não é possível haver a redução da maioridade penal no Brasil. Primeiro, porque a inimputabilidade penal de menores de dezoito anos é um direito natural, decorrente do direito à vida e ao desenvolvimento sadio e livre de violências, principalmente a estatal. Segundo, porque o direito positivo brasileiro se submete aos princípios do direito internacional, mormente àqueles ao qual tenha manifestado adesão. Aplica-se, nesse último caso, a vedação do retrocesso em matéria de direitos humanos para modificar a matéria.

O Brasil, pelas razões acima, mesmo com uma nova Constituição, não pode reduzir a maioridade penal.


6. Conclusão.

Ao fim desse artigo, sintetizamos nosso pensamento.

O operador do direito não pode se deixar levar pelo clamor popular. O operador do direito deve agir de acordo com a razão jurídica e o conceito de bem comum de todos.

A redução da maioridade penal não vai solucionar o problema da marginalidade juvenil. Os jovens precisam de esporte e educação, além de integração ao mercado de trabalho. As razões utilizadas para o convencimento da população dessa aberração jurídica, não se sustentam com o uso de critérios objetivos. Afirma-se que o menor já tem plena capacidade de entender o fato delituoso como um adulto. Isso é falso. Até os dezenove anos[11], o jovem ainda não teve definitivamente formado a sua capacidade de compreender o mundo à sua volta. Pode agir como adulto, mais ainda não o é. É um ser em maturação. Outro argumento é o uso por parte de adultos de adolescentes para “assumir a culpa”. Ora, se alguém utiliza inimputável para cometer crimes, deve ser punido mais gravosamente, bastando aumentar a pena daqueles que utilizam menores em suas práticas delitivas.

Da mesma forma, a lei não vai mudar o país.

O que vai mudar o país é o investimento maciço em educação, esporte e lazer, criando políticas efetivas para a integração de menores, estejam ou não em situação de risco.

Caso o Brasil adote essa teratologia jurídica, que é a redução da maioridade penal, estará descumprindo formalmente a Convenção Internacional do Direito da Criança, e dizendo ao mundo que estamos regredindo ao passado, e, certamente, o país deixará de ser visto como o PAÍS DO FUTURO, e começará a ser visto como um país que não consegue se livrar do passado aristocrático, conservador e arcaico.


Notas

[1] Vide: http://brasil.estadao.com.br/noticias/geral,ccj-aprova-pec-que-reduz-maioridade-penal-de-18-para-16-anos,1661469.

[2] DELMANTO. Celso Delmanto et al. Código Penal Comentado. 5.ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2000.

[3] BATISTA ALMEIDA, Francieli. Direito Penal da Loucura. Disponível in: http://jus.com.br/artigos/21476/direito-penal-da-loucura/2#ixzz3W67lhEOy.

[4] http://www.ibope.com.br/pt-br/noticias/paginas/83-da-populacao-e-a-favor-da-reducao-da-maioridade-penal.aspx.

[5] Vilas-Boas, Renata Malta. www.ambitojuridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=10588&revista_caderno=12

[6] http://blog.ebeji.com.br/direitos-humanos-principio-da-vedacao-do-retrocesso-ou-proibicao-de-regresso/

[7] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/D99710.htm

[8] http://jus.com.br/artigos/32603/comentarios-sobre-as-propostas-legislativas-de-reducao-da-maioridade-penal

[9] http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=8036.

[10] http://www.webjur.com.br/doutrina/Direito_Constitucional/Poder_Constituinte.htm

[11] http://www.unicef.org/brazil/sowc2011/foco1.html.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LUZ, José William Pereira. A vedação do retrocesso em matéria de direitos humanos e a inconstitucionalidade da redução da maioridade penal no Brasil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4736, 19 jun. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/37796. Acesso em: 27 abr. 2024.