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Desafios à proteção da posse constitucional de terras indígenas

Desafios à proteção da posse constitucional de terras indígenas

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O presente artigo busca ressaltar o paradigma inaugurado pela Constituição de 1988, apontando os caminhos por ela indicados quanto à não hierarquização dos grupos que compõem a sociedade brasileira.


1. INTRODUÇÃO: A HOMOGENEIZAÇÃO COMO ESTRATÉGIA DE SUBTRAÇÃO DE DIREITOS DOS POVOS INDÍGENAS ÀS SUAS TERRAS

O regime jurídico delineado na Constituição de 1988 representa a superação de um modelo apegado à homogeneização e à descaraterização de povos indígenas, o qual imiscuía esses grupos no ideal da mestiçagem para anular as diferenças ou qualquer tratamento jurídico especial.

O discurso da mestiçagem ou da descaracterização dos grupos indígenas como aculturados/civilizados sempre se relacionou, por um lado, a uma maneira de diluir a presença dos indígenas dentro de uma sociedade homogênea nacional1. Por outro, o esvaziamento da etnicidade e o não reconhecimento de grupos como indígenas, por meio da desqualificação e das sentenças “sujeito X é índio” e “sujeito Y não é índio” possuía uma forte relação com o interesse nas terras desses povos e na sua apropriação por não-indígenas.

A tentativa de desqualificar ou de promover uma dissociação entre indígenas “autênticos” e indígenas “aculturados” - logo não-índios e, por conseguinte, não merecedores do reconhecimento às terras que ocupam – sempre possuiu, ainda, forte ligação com a consolidação de um projeto específico de desenvolvimento que não contemplava a diferença nem as razões da proteção especial a grupos culturalmente diferenciados.

O embate permeia a história, podendo ser citados momentos emblemáticos, como foram a corrida por registros nos espaços tradicionais ocupados pelos indígenas após a lei de terras2 e a consolidação do projeto de ocupação territorial durante a ditadura civil-militar.


2. HISTÓRICO DO TRATAMENTO DA LEGISLAÇÃO INDIGENISTA

2.1 DO PERÍODO COLONIAL À DITADURA CIVIL-MILITAR. O PARADIGMA ASSIMILACIONISTA.

O tratamento dos povos indígenas no Brasil é marcado por um longo período de leis esparsas durante o período colonial e o império, as quais representam a política de submissão dos então “silvícolas”, com um caráter discriminatório do ponto de vista religioso e cultural.
 
O projeto colonial buscava implantar a cultura europeia, as suas instituições e suas ideias numa extensa área, com condições naturais estranhas àquelas verificadas na Europa, em situações muitas vezes  desfavoráveis e hostis, o que levou Sérgio Buarque de Holanda a considerar que éramos – e ainda somos - desterrados em nossa própria terra3

O tratamento do tema no período colonial é reflexo de uma concepção economicamente voltada ao encaminhamento das riquezas do Brasil à metrópole e a uma instrumentalização religiosa, sobretudo por meio da ação dos jesuítas.

No caso português, foram produzidas leis que trataram de formas e políticas para promover a integração e incorporação desses povos, a fim de que adotassem um novo modo de vida, tido como civilizado4.
 
O viés evangelizador esteve presente por todo o período, salvo durante a gestão do Marquês de Pombal (1750-1777). Sob esta concepção religiosa, reforçou-se a política de submissão e discriminação dos povos indígenas, bem como de seus modos de vida e manifestações culturais. A aglutinação desses grupos em aldeias próximas às missões, os chamados aldeamentos, combatendo-se a forma nômade de vida, e o estabelecimento da adoção de uma língua geral para as etnias – diferente do português - são exemplos dessa atuação homogeneizante.

A falta de atuação religiosa no período pombalino não significou, porém, que houvesse uma política voltada à defesa dos povos indígenas. Ao contrário, durante essa gestão é o próprio Estado que promove a miscigenação com o fim de sepultar as diferenças e permitir o assédio aos territórios indígenas. Estabelece-se, por exemplo, a obrigatoriedade da língua portuguesa e a transformação das aldeias em vilas5. Manuela Carneiro da Cunha aponta que essa política de miscigenação tinha a expressa intenção de criar uma população homogênea livre, o que acabou servindo, cem anos mais tarde, como pretexto à espoliação das terras dos aldeamentos em que os índios haviam sido instalados6.

Representativo dessa política é o alvará de 1755, que estimula casamentos interétnicos, determinando que os cônjuges, nesses casos, “não fiquem com infâmia alguma, (...), os quais até terão preferência para qualquer emprego, honra ou dignidade, sem dependência de dispensa alguma, ficando outrossim proibido, sob pena de procedimento, dar-lhes o nome de caboclos, ou outros semelhantes, que se possam reputar injuriosos”7.

Paralelamente a esse processo, houve, contudo, o reconhecimento da propriedade indígena da terra. Por meio do instituto do Indigenato - Alvará de 01/04/1680, confirmado pela Lei de nº 06/06/1755 – firmou-se o princípio de que “nas terras outorgadas a particulares seria sempre reservado o direito dos índios, primários e naturais senhores delas”.

O indigenato representa, em meio a um momento histórico em que o tratamento da questão possuía enfoque religioso e de alianças táticas com os grupos amistosos, um importante instrumento para o reconhecimento - até os dias atuais - do regime jurídico favorável de terras indígenas8. Apesar disso, o reconhecimento das terras ocupadas pelos povos indígenas não levava em consideração a sua relação diferenciada com esses espaços, estando mais relacionada ao confinamento desses grupos em pequenas áreas que permitissem mais facilmente a dominação, a catequese e adoção de práticas similares às dos colonizadores.

Após a independência, a Lei de Terras (Lei nº 601/1850) representa um marco no tratamento jurídico da questão fundiária. Após a sua promulgação, há um processo desenfreado de busca por terras, o que acaba por atingir as terras indígenas, já que a produção de registro sobre aquelas “propriedades” é colocada em confronto com a ocupação tradicional. Chega-se ao ponto de exigir-se registro de posse aos indígenas para comprovarem a “legalidade” de sua ocupação.

É neste momento que haverá todo o esforço possível para descaracterizar populações de diversas etnias, sob o argumento de que haviam deixado de ser indígenas. Segundo Manuela Carneiro da Cunha, “a partir da Lei das Terras haverá, ao contrário, esforço explícito de usar a mestiçagem para descaracterizar como índios aqueles de quem se cobiçavam terras9”. Após a lei de terras, várias aldeias são declaradas extintas, sob a alegação de ser sua população apenas mestiça10.

Na República, verifica-se um intenso debate sobre o tema, sobretudo no século XX, tendo em vista a expansão do território nacional e a necessidade de organização e arregimentação de trabalhadores livres para o novo ciclo econômico que surgia. Além disso, o ideal positivista, agora dominante, preconizará a necessidade de que a incorporação daqueles povos à comunhão nacional se dê de forma gradual.

Embora a Constituição de 1891 não trate da questão expressamente – a Constituição de 1824 tampouco o havia feito -, passa-se a discutir no início do século acerca da posição do Estado brasileiro quanto ao “destino” desses povos. Contrapunham-se nesse ponto o ideal positivista e o ideal discriminatório. Este último, que preconizava o extermínio dos índios, sofreu forte reação humanitária no começo do século XX11.

O pressuposto positivista baseava-se na constatação de que os povos indígenas se situavam num estágio inferior no processo civilizatório, dotados de um “primitivismo” que os impedia de ter uma capacidade jurídica plena para a prática de todos os atos. Ao mesmo tempo, sendo a sociedade brasileira uma só, impunha-se a gradual incorporação desses povos ao processo tido como “civilizatório”, integrando-os à comunhão nacional e despindo-os de suas características singulares.

Segundo a perspectiva assimilacionista – que ainda é muito presente no senso comum, inclusive em nosso sistema de justiça, e que norteou a criação do Serviço de Proteção ao Índio (SPI), em 1910 -, os povos indígenas deveriam ser atraídos, de forma pacífica, e integrados à dinâmica da sociedade envolvente, na qualidade de trabalhadores, permitindo-se o contato e a absorção daqueles modos de vida.

A atuação do SPI estava fundada na criação de reservas de espaços aos indígenas, sem a preocupação com a noção de território, caraterizando-se pela  indiferença quanto à necessária compreensão de que esses grupos se relacionam com a terra como espaços de pertencimento. O resultado dessa atuação consistia no confinamento dos indígenas em reservas administrativas, em espaços reduzidos para o exercício do trabalho de cultivo e atividades típicas dos trabalhadores rurais. Por meio dessa prática, criava-se um isolamento entre indígenas e “sociedade nacional”, para dar cabo à integração paulatina12. Ao final desse processo, plenamente Integrados, poderiam ser considerados capazes, pois já estariam em condições de igualdade com a sociedade envolvente13.

O SPI promoveu sua atuação em diversas áreas, inclusive na Amazônia, e gerou a desfiguração de inúmeros grupos, seja por meio das frentes pacíficas de atração, seja por meio da combinação de grupos diversos e até inimigos entre si.

No campo constitucional, a Constituição de 1934 foi a primeira a enfrentar questões indígenas, tratando das terras e da incorporação paulatina à comunhão nacional. Fala-se em proteção das terras onde esses povos estejam permanentemente localizados, da qual se depreende uma compreensão da ocupação meramente física, ligada à ideia de fixação no solo14. Por outro lado, o texto aponta claramente o objetivo de “incorporação dos silvícolas na comunhão nacional”, inserido nas competências da União (art. 5º, XIX, m). A Constituição ditatorial de 37 limitou-se a apenas a prever o dispositivo sobre o respeito à posse indígena. Com a Constituição de 1946 são resgatadas as previsões de 1937.

Na Constituição de 67 e na Emenda Constitucional nº 01/69, além das previsões da CF 1946, há a definição de que as terras ocupadas pelos “silvícolas” se incluem entre os bens da União. Além disso, há previsão de nulidade e extinção dos efeitos jurídicos que tenham por objeto o domínio, a posse da terra ou a ocupação das terras habitadas pelos “silvícolas”; exclusão de qualquer possibilidade de indenização ou ação contra a União ou a FUNAI15 (art. 198). É durante essa ordem constitucional que será editado o Estatuto do Índio, que representa para a época alguns avanços, embora cultive muito da concepção positivista idealizada desde o início do século.

Até 1988, os direitos indígenas não eram encarados sob o prisma dos direitos fundamentais das comunidades. Havia, em verdade, a preocupação com a atribuição da propriedade sobre aquelas terras à União e com a garantia de que aquele regime não gerava qualquer autonomia sobre o território.

2.2 ESTATUTO DO ÍNDIO: CONCEPÇÃO TUTELAR NÃO RECEPCIONADA PELA CONSTITUIÇÃO DE 1988

O Estatuto do Índio (Lei nº 6.001/73) incorpora o regime tutelar, fruto da visão assimilacionista da época (presente também na Convenção nº 107/OIT, de 05 de junho de 1957). Dividiu os povos indígenas em categorias: integrados (capazes do exercício dos seus direitos), em vias de integração ou isolados (que deveriam ser tutelados, ou assistidos e representados, pela União, por meio do órgão de assistência)16. Essa diferenciação, não recepcionada pela Constituição de 1988, ainda vigora no senso comum, inclusive entre operadores do direito.

Sob a concepção de estágios diferentes de integração residia uma tentativa de desqualificar o índio “integrado”, retirando-lhe a sua condição de indígena. Uma vez encarado o indígena como aquele ser “primitivo”, “silvícola”, a integração à civilização representaria colocá-lo em igualdade com os demais sujeitos da sociedade envolvente, deixando até de ser considerado índio. Se deixa de ser índio, não haveria razão para ter direito às terras, o que permitiria um avanço sobre elas.

Por um lado, o Estatuto reforça a concepção de que os índios podem ser classificados de forma diferenciada conforme o grau de integração, o que geraria tratamentos distintos por parte da legislação. Prevê ainda que os índios tidos como “aculturados”17, isoladamente ou não, poderiam requerer sua “emancipação” do regime tutelar, oportunidade em que se igualariam aos demais não indígenas.

No regime autoritário, a própria ideia de emancipação é tratada como a mudança de estágio entre uma categoria e outra, dentro da lógica de aquisição da capacidade civil.

Segundo o art. 9º da Lei nº 6001/73, se observados determinados requisitos, como o conhecimento da língua portuguesa, poderia ser declarada a emancipação da comunidade e de seus membros desde que requerida pela maioria e comprovada, em inquérito realizado pelo órgão federal competente, a sua plena integração na comunhão nacional. Note-se que a emancipação afastava o regime tutelar e colocava o indígena e a comunidade indígena sob a condição de integrado e, por conseguinte, capaz.

Pairava sobre essa diferenciação o afã classificatório de um indígena por parte de um sujeito externo a ele ou ao grupo (heterodefinição da identidade), a despeito do que previa o art. 3º do próprio Estatuto18. Essa ânsia de dizer que um grupo que não se enquadra no estereótipo do silvícola19 ou do bom selvagem, embora se reconheça como indígena, serve ao discurso de que ele deixou de ser índio e, logo, não precisa de terra ou de um regime especial quanto à terra ocupada. Nesse ponto, o regime tutelar  teria cumprido sua missão civilizadora, como diz Manuela Carneiro da Cunha: respeita-se o índio como homem, mas exige-se que se despoje de sua condição étnica específica20.

Em resumo, durante o século XX o tema foi enfrentado de forma bastante específica, oportunidade em que se cristalizou a concepção de que:

- os índios podem ser classificados de três maneiras, sendo que a falta de caracterização como “silvícola” ou como “primitivo” lhe retira essa condição;

- os índios “aldeados” não seriam capazes juridicamente para a prática de seus atos da vida civil;

- os índios devem ser integrados paulatinamente à comunhão nacional, abrindo mão de sua cultura e de seus modos de vida.


3. A CONSTITUIÇÃO DE 1988 E O PARADIGMA DA AUTONOMIA.  NOVO HORIZONTE NA PROTEÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS DOS POVOS INDÍGENAS

O processo de discussão de uma nova Constituição e o documento que a consolida são um marco na luta dos povos indígenas no Brasil. Apesar dos embates entre conservadores e progressistas, o texto produzido apresenta diversas conquistas, sendo prova disso a quantidade de dispositivos que tratam da matéria.

A razão dessa euforia com a constituição reside no paradigma pluralista e multicultural que a rege. Ao contrário das diretrizes homogeneizantes dos regimes constitucionais anteriores, a Constituição de 88 se abre à diversidade sociocultural dos diferentes grupos que compõem a sociedade brasileira, ressaltando um aspecto do princípio da igualdade que vai além da mera isonomia formal e material.

Foi o primeiro documento a romper com uma tradição integracionista no continente latino-americano, em processo que se aprofundou em outros países, como Bolívia e Colômbia21.

A igualdade como reconhecimento ou o direito à diferença emerge do documento que estabelece como objetivos da sociedade brasileira o fim da discriminação (art. 3º, IV) e que tem como fundamento da República o pluralismo político (art. 1º, V).

Abandona-se, assim, a ideia de que há estágios superiores de civilização. Ao contrário, valorizam-se todas as formas de manifestações étnicas e culturais, protegendo-as e reconhecendo seu valor para a formação das múltiplas identidades que compõem a sociedade brasileira. Nesse campo se incluirão não apenas os povos indígenas, mas também as minorias estigmatizadas e outros grupos, como os quilombolas e as demais comunidades tradicionais (ribeirinhos, seringueiros, extrativistas, quebradeiras de babaçu etc).

A observação de Deborah Duprat é precisa acerca dessa nova realidade constitucional:

A noção central, comum a esse conjunto de atos normativos, é a de que, no seio da comunidade nacional, há grupos portadores de identidades específicas e que cabe ao direito assegurar-lhes o controle de suas próprias instituições e formas de vida e seu desenvolvimento econômico, e manter e fortalecer suas entidades, línguas e religiões, dentro do âmbito dos Estados onde moram. Assim, a defesa da diversidade cultural passa a ser, para os Estados nacionais, um imperativo ético, inseparável do respeito à dignidade da pessoa humana.22.

Ao reconhecer-se aos povos indígenas o direito às suas terras, costumes e modos de vida, a Constituição os protege de qualquer tentativa de anular, em nome de uma suposta unidade nacional, o direito desses povos de viverem como bem entenderem. A autonomia é a pedra de toque do novo regime constitucional, em contraponto à perspectiva assimilacionista antes vigente.

Após a Constituição de 1988, não se tolera mais falar em “paulatina integração à comunhão nacional” para ditar a capacidade civil dos indígenas. Não cabe falar, a priori, em inferioridade, e sim em grupos diferenciados, que têm modos próprios de vida e que devem ser respeitados como tais.

Não se tolera tampouco hierarquizar os povos indígenas em integrados ou não integrados. Há o direito de viverem a prática de seus costumes, mas não se subtrai a possibilidade de o indígena buscar outros modos de vida, e isso não lhe retirará a sua condição23. O que se proíbe é a tentativa de impor um modo de vida a esses grupos, vedando-se o não respeito às suas práticas tradicionais.

A identidade não pode ser definida por um terceiro, e sim pelo próprio grupo (autodefinição da própria identidade), num contexto em que as ideias de autenticidade ou de classificação de indígenas por um terceiro devem ruir juntamente com o regime tutelar24.

A propósito, os índios não perdem sua condição étnica pelo fato de se dirigirem à cidade, falarem português ou usarem vestimentas dos demais integrantes da sociedade envolvente. É a etnicidade que os distingue dos demais grupos, por meio da qual entendem a si mesmos como pertencentes a determinadas origens e tradições25.

A única tutela a ser admitida será aquela revestida de direito público, que tenha por objetivo garantir a proteção dos povos indígenas, como minorias étnicas, sem perspectiva integracionista26.

A Constituição possui onze disposições expressas sobre a situação jurídica das populações indígenas27. Há previsões sobre direitos coletivos referentes à cultura, a direitos processuais e à repartição de competências entre o Legislativo, Executivo e Judiciário. A elas devem ser somados outros dispositivos que fundamentam o reconhecimento de uma sociedade plural multicultural (art. 1º, V, 215, 216).


4. PROTEÇÃO DAS TERRAS INDÍGENAS COMO ESPAÇO PARA A SOBREVIVÊNCIA FÍSICA E CULTURAL

Antes de 1988, as Constituições – a partir de 1934 - se limitavam a falar em respeito à posse das terras dos “silvícolas” e no tratamento como bem da União (a partir da CF 67/69). A lei fundamental vigente vai entrelaçar essa proteção ao reconhecimento de direitos fundamentais desses povos, buscando-se o seu fundamento no princípio da dignidade da pessoa humana.

O art. 231 não se limitará a decretar uma proteção da posse, mas a relacionar claramente os direitos sobre as terras ocupadas pelos índios aos seus modos próprios de organização social, costumes, línguas e crenças.

Embora não tenha usado o termo “territórios”, tendo em vista a preocupação com a utilização dessa terminologia no direito internacional, a Constituição qualifica a compreensão de terras indígenas de maneira distinta da noção de propriedade privada e de forma bem relacionada à manutenção da vida de determinado povo, os seus costumes e as suas formas próprias de organização social. Quando menciona terras tradicionalmente ocupadas, a Constituição se aproxima da noção de territórios, da mesma forma que faz a Convenção nº 169 da OIT, e supera a visão corrente desde a Constituição de 1934, que falava em terras onde os índios se localizassem de forma permanente.

O art. 14 da Convenção 169 possui uma previsão que sintetiza essa forma diferenciada de esses povos lidarem com a terra, ao dizer que deverão ser adotadas medidas pelos direito dos povos interessados de utilizar terras que não estejam exclusivamente ocupadas por eles, mas às quais, tradicionalmente, tenham tido acesso para suas atividades tradicionais e de subsistência.

A posse dos índios de suas terras não se relaciona a uma questão física de mera apreensão de um bem, pois se trata de espaço de sobrevivência cultural e de reprodução de seus modos de vida. Por isso se invoca a expressão território, que vai além da ocupação física contida no termo “terras”. Há lugares sagrados, de manutenção da vida social e de organização econômica a serem considerados. O território é um espaço em torno do qual gravitarão os outros direitos, inclusive à saúde e à educação diferenciadas.

Além do artigo 231, os artigos 215 e 216 buscam garantir o respeito aos modos de vida e às manifestações próprias desses grupos, promovendo uma proteção qualificada dessas ocupações tradicionais, tendo em vista as peculiaridades dos povos indígenas em sua relação com a terra.

Pode-se falar ainda em territorialidades específicas, que vão além da ideia de origem e imemorialidade na ocupação, voltando-se à situação presente para constatar que a identidade se constrói em embates, como decorrência dos conflitos na luta pela terra. Esse processo de territorialização se apresentaria como resultado da combinação de vários fatores, que envolvem a capacidade de mobilização em torno de uma política de identidade e os espaços políticos de enfrentamento para reivindicar direitos junto ao Estado.

Alfredo Wagner Berna de Almeida explica28:

Assim, juntamente com os processos diferenciados de territorialização, tem-se a construção de uma nova 'fisionomia étnica', através da autodeclaração do recenseado, e de um redesenho da sociedade civil, pelo advento de centenas de movimentos sociais, através da autodefinição coletiva e de formas organizativas intrínsecas. Todos estes fatores concorrem para compor o campo de significados do que se define como 'terras tradicionalmente ocupadas', em que o tradicional não se reduz ao histórico e incorpora principalmente reivindicações do presente com identidades coletivas redefinidas situacionalmente numa mobilização continuada.

Nesse contexto, as formas de organização social não atendem a uma fórmula pré-estabelecida, porquanto cada grupo étnico vai se organizar de acordo com os seus próprios modos de vida, dentro de um momento histórico e conforme a realidade política e social que se apresentar, notadamente em razão dos embates que serão travados e da opressão de que muitas vezes será vítima.

Como consequência direta desse dinamismo cultural de um grupo e da autoidentificação, prender-se a uma visão estática, essencialista ou simplificadora da realidade dos povos indígenas conduzirá o ente estatal a equívocos e a uma postura não cumpridora da Constituição quanto ao respeito à organização desses grupos.

Como afirma Carlos Frederico Marés, a Constituição reconhece como legítima uma ordem que ela mesma desconhece, uma vez que a organização social dos povos indígenas se baseia nos usos, costumes e tradições29. Diante disso, a lei não é capaz de enquadrar aquela realidade dinâmica ou mesmo dar conta, sob parâmetros já estabelecidos (social e juridicamente), dos novos paradigmas apresentados. Cabe, portanto, ao operador do direito lidar com os conflitos que surgem do embate entre a tradição registral e a tradição oral de povos indígenas nas disputas de terras, conferindo iguais pesos a essas formas de vida e não hierarquizando as provas a serem analisadas.


5. CARÁTER ORIGINÁRIO DO DIREITO ÀS TERRAS TRADICIONALMENTE OCUPADAS

O traço da originalidade do direito dos índios às terras que ocupam está previsto na Constituição e denota sua precedência sobre qualquer outro direito. Essa perspectiva impede o afã registral de possuidores e supostos proprietários, que pretendem invocar a titularidade de bens imóveis em face dos índios ou uma cadeia dominial que comprovaria sua precedência nessas terras.

Impede-se também que Estados cogitem encarar as terras indígenas como um fator limitador de sua autonomia, pois, como disse o Ministro Carlos Ayres Britto30, “as unidades federadas pós-Constituição de 1988 já nascem com seu território jungido ao regime constitucional de preexistência dos direitos originários dos índios sobre as terras por eles 'tradicionalmente ocupadas'".

Os direitos são originários, portanto, porque foram reconhecidos, e não meramente declarados. São pré-existentes a qualquer escritura, não cabendo sequer indenização sobre esses títulos.

Tampouco cabe falar em intervenção federal quando a atuação demarcatória incide sobre terras estaduais ou inseridas num Estado. A garantia de propriedade da União sobre esses territórios é feita de forma a garantir a posse dos índios, grupo vulnerável, a partir de direitos originários declarados pela Constituição, não se confundindo com aquele instituto. A atuação da União no processo demarcatório se dá em favor de um interesse nacional. Ademais, as terras não deixam de estar localizadas no Estado-membro31.

No julgamento do Caso Raposa Serra do Sol, o Supremo Tribunal Federal estabeleceu a data de promulgação da Constituição de 1988 (05 de outubro de 1988) como o marco temporal que serve de referência à ocupação de um determinado espaço geográfico por determinada etnia da ocupação do território pelos indígenas. Ao lado deste marco temporal, destacou o marco da tradicionalidade, segundo o qual “é preciso que esse estar coletivamente situado em certo espaço fundiário também ostente o caráter da perdurabilidade, no sentido anímico e psíquico de continuidade etnográfica. Tal tradicionalidade não se perde “onde, ao tempo da promulgação da Lei Maior de 1988, a reocupação apenas não ocorreu por efeito de renitente esbulho por parte de não-índios”.

Considerando o histórico de violações dos direitos indígenas, não é difícil depreender que a ocupação do território, na forma apresentada no acórdão acima, nem sempre poderá ser cristalinamente aferida. Em muitos casos, pode apresentar-se como um dado a ser profundamente analisado, em oposição às certezas supostamente transmitidas por documentos registrais, à luz da trajetória e das formas de organização de um grupo, sobretudo em razão das ameaças e pressões que o seu território pode ter sofrido.

Diante disso, o renitente esbulho em fase anterior à promulgação da Constituição de 1988, época em que a remoção de grupos era legitimada pelo paradigma assimilacionista então vigente, é um fato que deve ser compreendido dentro da estratégia de subtração da identidade e de avanço sobre terras, devendo ser investigada a forma como esse grupo resistiu e adotou mecanismos para vincular-se àquela terra, a despeito das limitações que tenha sofrido.

Caminha ao lado da originalidade o caráter declaratório desse direito. Significa dizer que o reconhecimento de uma terra indígena prescinde de qualquer ato instaurador de processo administrativo de demarcação. O reconhecimento dos direitos dos indígenas sobre as terras que tradicionalmente ocupam é feito por um comando constitucional que garante, de imediato, a sua proteção.

É evidente que a demarcação, também determinada pela Constituição, é muito importante para a efetivação desse direito, pois delineia o espaço de proteção e garante segurança jurídica às comunidades e a terceiros, além de permitir uma atuação mais definida dos órgãos que atuam em defesa da questão indígena, nos vários campos das políticas públicas.

Não se pode perder de vista, porém, que a demarcação não é um requisito essencial para a observância dos direitos dos indígenas sobre essas terras, ainda mais diante das dificuldades inerentes ao processo demarcatório, estando a FUNAI em flagrante mora quanto ao prazo de 5 anos previsto no art. 67 do ADCT para a regularização das terras.

Assim, não se pode olvidar que, ausente o processo demarcatório ou quando ele ainda está em curso, o Judiciário pode ser provocado a reconhecer ocupações tradicionais e assegurar direitos fundamentais de povos indígenas.

A relevância deste debate está na desmistificação da demarcação como constitutiva de direitos. Os povos indígenas foram e são vítimas de um processo avassalador de contato e de desestruturação justamente em razão da falta de demarcação, com a ocupação de suas terras por grandes fazendeiros, pela atuação de empreendimentos e por medidas que os deixam confinados em espaços de onde sequer podem retirar o sustento. Foram também removidos injustamente por diversos atos ilegais. Ainda assim, é curioso constatar que os adversários das demarcações se utilizam justamente das consequências dessas ilegalidades – desestruturação étnica (perda da identidade, mestiçagem), não ocupação de um território, grilagem de terras – para afastar o direito ao seu território num processo demarcatório.

Nas ações possessórias, o Judiciário é chamado a intervir para garantir aos indígenas a afirmação sobre o espaço em que vivem e reproduzem seus modos de vida, de forma a garantir, no futuro, a utilidade do processo demarcatório.


6. DESAFIOS AO RECONHECIMENTO DA POSSE CONSTITUCIONAL.

A questão da posse em matéria indígena gera muitas dúvidas e questionamentos, com os quais os órgãos julgadores frequentemente se deparam. Isso se deve ao fato de que a relação dos povos indígenas com os seus territórios é diferenciada, merecendo proteção especial por parte da Constituição, não se confundindo com a noção meramente civilista/privatista de posse.

As terras indígenas não podem ser estudadas pela lente da propriedade privada. Como se viu acima, as terras tradicionalmente ocupadas merecem tratamento de igual peso ao conferido à perspectiva registral.

Não só a Constituição, como também a Convenção nº 169/OIT, de 07/06/1989, que ingressou no ordenamento brasileiro em 2002, asseguram o respeito à “ importância especial que para as culturas e valores espirituais dos povos interessados possui a sua relação com as terras ou territórios” (art. 13), sobretudo os aspectos coletivos desta relação.

A Declaração das Nações Unidas sobre os direitos dos povos indígenas não faz diferente. Destaca que os povos indígenas têm direito às terras, territórios e recursos que tradicionalmente possuem e ocupam, sublinhando ainda a possibilidade de proteção em caso de utilização ou aquisição por outra forma (art. 26).

Na prática, o cenário muitas vezes se repete. Grupos são pressionados a desocupar seus territórios ou acuados em espaços cada vez menores. Há invasões de não indígenas “devidamente amparadas” por registros locais, retiradas dos índios de seus territórios e desintegração do grupo, atingindo fortemente a noção de território como espaço de pertencimento e reduzindo-os a espaços de moradia em condições de extrema vulnerabilidade.

Diante de conflitos como esses, os conceitos de posse velha e posse nova e a própria análise dos documentos comprobatórios da posse devem ceder a uma perspectiva mais ampla da questão, que deve levar em conta aspectos antropológicos e históricos.

É comum o ajuizamento de demandas civis e a tentativa de tratar a matéria de maneira alinhada à visão da sociedade envolvente, sem qualquer abertura à noção de território para aqueles povos. A perspectiva da propriedade privada é transportada para o caso, valorizando-se o registro em detrimento de uma abordagem que respeite a diretriz constitucional na matéria, baseada nos usos, costumes e tradições.

Mais: a desestruturação da vida comunitária provocada pela ocupação do território acaba sendo vista como um fator legitimador de uma falsa constatação de que já não subsiste a presença indígena. Desconsideram-se o esbulho possessório e as diversas estratégias de sobrevivência desses grupos, de permanência junto ao seu território, como forma de manutenção de vínculos e de sua identidade.

Certas demandas sequer são ajuizadas perante a Justiça Federal32, pois os autores intencionalmente não cogitam da existência de povos indígenas naquele local, mas meros “mestiços”, “caboclos”33, sem qualquer direito, dentro daquela lógica, sobre as terras tradicionalmente ocupadas.

 Uma leitura apressada do julgador pode levar ao uso dos institutos correntes de forma legalista e desatenta ao que preceitua a Constituição. Os esquemas tradicionais de resolução de conflitos interindividuais não servem à resolução deste problema, impondo aos órgãos do sistema de justiça que reconheçam as limitações do conhecimento jurídico para procurar entender a realidade que os cerca.

Em primeiro lugar, diante de conflitos de terras que envolvem grupos culturalmente diferenciados, é fundamental tomar contato com a realidade exposta, a fim de verificar “in loco” os anseios das comunidades envolvidas e entender sua história e como vivem.

Instrumentos tradicionais do processo civil como as audiências e as inspeções judiciais são medidas imprescindíveis para uma melhor instrução de um processo que envolve essas demandas. Permitem a proximidade do juízo com aquela realidade diferenciada e garantem um melhor equilíbrio entre as partes, já que colocam modos de vida distintos em evidência, possibilitando ao julgador que afaste pré-compreensões baseadas no senso comum e tome contato com tradições orais e com relações especiais com a terra, distintas daquelas da sociedade envolvente.

Para assegurar esses mecanismos, apesar de o Código de Processo Civil em vigor já ser plenamente aplicável, o código de processo civil recentemente aprovado dá ainda maior importância ao tema, ao indicar, de forma contundente, a obrigatoriedade de convocação de uma audiência em caso de “litígio coletivo” em ação possessória quando a ocupação possuir prazo superior a um ano e dia (art. 565), bem como sustentar, no mesmo capítulo, a viabilidade das inspeções (art. 565, § 3º), o que representa passos importantes para a superação de uma tradição documental ou demasiadamente pró-”proprietário” na análise desses casos. Trata-se de diretrizes importantes que se alinham a uma compreensão constitucional do procedimento das ações possessórias, podendo desde já ser aplicadas.

Da mesma forma, deve ser afastada a utilização de procedimentos de cognição exauriente “secundum eventum probationis”, como o do mandado de segurança (geralmente impetrado contra decisões administrativas no curso do processo de demarcação), para a análise específica de aspectos relacionados à ocupação territorial, tendo em vista a imprescindibilidade de uma ampla dilação probatória que leve em consideração os anseios dos povos diretamente afetados e de suas formas de representação.

Em segundo lugar, a complexidade da questão leva a uma necessidade de examiná-la com uma maior abertura às outras áreas do conhecimento. Mostra-se, ainda, imprescindível, nesse processo, levar em consideração as diversas formas de organização social, amparadas pela Constituição, e procurar entendê-las. Os operadores do sistema de justiça têm o dever de procurar entender como funcionam os espaços de pertencimento de determinada etnia – cada etnia desenvolve-se e atua de uma maneira própria – para procurar garantir aquele direito originário reconhecido pela Constituição em face da suposta verdade registral que se coloca nos autos.

A matéria, por pressupor a inexistência de uma visão hegemônica, passa por considerar a relevância de várias áreas do conhecimento, sobretudo da antropologia, a fim de identificar como se organiza o povo que pleiteia um reconhecimento, a sua história e suas dificuldades. Além disso, no caso específico colocado pela ação possessória, a antropologia fornecerá subsídios para entender como aquele grupo se relaciona com aquelas terras e o que é essencial para a sua sobrevivência física e cultural, sobretudo levando em conta o histórico de pressões sobre suas terras e os esbulhos que eventualmente tenham ocorrido ao longo de seu desenvolvimento.


7. PERÍCIA ANTROPOLÓGICA

A perícia antropológica confere elementos ao juiz para entender aquela ocupação / reivindicação e caminhos para o julgador distanciar-se de uma verdade oficial, absoluta, e cumprir o comando constitucional contido no art. 231, dentro de uma lógica que respeita as várias leituras dos diversos grupos que compõem a sociedade brasileira.

Permite, também, o desfazimento de mal-entendidos que muitas vezes são levados ao Judiciário em decorrência do anseio de fazer plantar no julgador a dúvida a respeito de uma “autenticidade” de uma comunidade, como se ela devesse observar padrões de organização estáveis ao longo do tempo.

O antropólogo ajudará a explicar o ressurgimento de elementos culturais, ainda que modificados em contextos distintos, reivindicados por determinadas pessoas. Mostrará que a cultura não se mantém “in vitro”34, atualizando-se conforme os embates sociais e confrontos com outras culturas.

É comum que se tente a todo momento descaracterizar a “tradicionalidade” daquele grupo ou colocar a sua “autenticidade” em risco. As práticas discriminatórias vão se assemelhar àquelas já feitas na história – e aqui relatadas - e ainda presentes no senso comum, de que o sujeito que adota determinado comportamento visto como “civilizado” não seria mais índio, logo não teria mais direito à terra.

Por exemplo, tenta-se atribuir a um grupo a condição de não-índio em razão de certos hábitos – falar português, usar telefone celular – e direitos – possuir título de eleitor - ou mesmo apontar que o grupo não pratica tradições ancestrais daquela etnia. Essas questões, afora não terem nada a ver com a ideia de ser ou não ser indígena, passam por perceber as formas de organização daquela etnia, o dinamismo de sua cultura e as formas como eles as reproduzem interna e externamente.

Ao mesmo tempo, tenta-se acusar os indígenas de “aproveitadores”, que tentam obter terras por meio do artifício étnico. Sobre isso observa João Pacheco de Oliveira35:

O que essas coletividades demandam primariamente é o reconhecimento étnico, o direito de referir-se a uma identidade diferenciada e originária. Se essa identidade lhes faculta algum benefício, devem, obviamente, mobilizar-se para obtê-lo. Isso não desqualifica ou põe em suspeição a demanda identitária, pois se trata de algo absolutamente legítimo.

Com o auxílio da antropologia, o juiz dispõe de meios para entender os comportamentos do grupo e, respeitado o critério da autoidentificação, partir para uma análise da ocupação tradicional do grupo, sua evolução e sua história. Não cabe ao operador do direito enveredar pela sentença de que “não é índio” ou “é índio”, mas sim analisar, para aquele grupo que se identifica como uma determinada etnia, e a partir da análise concreta e singular de suas características, quais seus espaços de pertencimento e qual o âmbito de proteção de seus direitos fundamentais.

Não se pode esperar objetividade e certeza do trabalho antropológico. Trata-se de um trabalho de ciências humanas, e não de um exame de DNA, com critérios e procedimentos específicos. Mais uma vez cabe a citação de João Pacheco de Oliveira36:

Trabalhar com os fenômenos humanos comporta dimensões valorativas, bem como vínculos e predileções. Para estabelecer a verdade, antropólogos e juízes aplicam métodos hermenêuticos, pelos quais confrontam fatos e afirmações, assim como realizam a exegese de documentos, contextualizando-os e comparando-os, de modo a estabelecer a positividade de cada depoimento ouvido. É pela análise da consistência lógica e da verificação empírica que chegam aos resultados de sua investigação.

Assim, pode haver laudos bons ou ruins, assim como existem petições e sentenças boas ou ruins. O que não pode é deixar de buscar essa mediação com a antropologia para entender e permitir que os indígenas tenham, de fato, voz no processo.

 Ao final, ainda que não se concorde totalmente com as conclusões da perícia antropológica, diante do quadro de indefinição dos rumos do processo demarcatório, é essencial, de qualquer forma, que sejam assegurados espaços adequados à sobrevivência cultural daquele povo, um mínimo existencial em favor daquele grupo que permita o acesso a recursos naturais e a reprodução de seus modos de vida, não se limitando a uma noção meramente física da ocupação, sob pena de legitimar-se o avanço e a pressão sobre o território indígena até a conclusão do processo demarcatório, garantindo-se, assim, a observância dos direitos fundamentais assegurados no art. 231 da Constituição.


8. CONCLUSÃO

Passados mais de vinte e cinco anos da promulgação da Constituição de 1988, ainda existe um longo caminho a percorrer na superação do discurso homogeneizante no tratamento dos direitos dos povos indígenas.

A história mostra como a dominação exercida sobre esses povos, às vezes sutil, às vezes sangrenta, procurou incorporá-los à comunhão nacional a ponto de anular a sua própria identidade. O esvaziamento da etnicidade desses grupos foi a tônica da política estatal por quase quinhentos anos, tendo sido este projeto barrado pela Constituição de 1988.

A lei fundamental em vigor permitiu que os indígenas afirmassem sua identidade e fizessem jus, por isso, na qualidade de minorias estigmatizadas, à proteção de suas terras e de seus modos de vida. Como consequência dessa nova diretriz, diversos grupos que haviam sido sufocados pelas generalizações na classificação estatal como mestiços ou caboclos puderam invocar livremente a sua identidade, a fim de fazer valer esses direitos.

Tanto a afirmação desses grupos como a reação se aprofundam nos contextos de conflitos por terras. A tentativa de esvaziamento da etnicidade, que já fora prática corrente em outros tempos, em especial após a Lei de Terras, se apresenta com todas as forças nos embates judiciais, legislativos e administrativos.

Dada a conjuntura de sucateamento da autarquia responsável pela condução da política indigenista, as demarcações de terras indígenas se tornam um processo lento e penoso, cheios de obstáculos impostos pelo agronegócio e sua bancada cada vez mais volumosa no Congresso Nacional. O caráter originário do direito, contudo, realça a necessária proteção desses espaços de pertencimento dos povos indígenas.

Em meio a esse embate por terras, o conflito muda de arena e o Judiciário é chamado a intervir. Neste momento, é necessário que o julgador tenha, de antemão, a ciência de que o conflito pressupõe modos de vidas distintos, que contempla de um lado a visão hegemônica dos não-indígenas, calcada numa “verdade” registral e pouco ou nada atenta à diversidade sociocultural, e, de outro, a compreensão diferenciada dos povos indígenas acerca daquela realidade, bem como a sua relação peculiar com a terra.

Colocar em igualdade os lados do conflito se mostra imprescindível para um julgamento justo. Para tanto, deve-se procurar ir a fundo na compreensão da realidade da etnia envolvida, promover o diálogo em espaços que sejam mais familiares ao grupo e promover a leitura da questão com o apoio de outras áreas do conhecimento.

A antropologia poderá, nesse sentido, oferecer subsídios para o juiz conferir a adequada proteção da posse constitucional dos indígenas, pois dará voz ao grupo e permitirá que sejam equilibradas as armas para a solução do conflito.


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