Este texto foi publicado no Jus no endereço https://jus.com.br/artigos/41617
Para ver outras publicações como esta, acesse https://jus.com.br

Aspectos relevantes acerca da (in)constitucionalidade da Lei Complementar 97

Aspectos relevantes acerca da (in)constitucionalidade da Lei Complementar 97

|

Publicado em . Elaborado em .

A leitura da legislação complementar deve contemplar uma interpretação conforme a constituição a fim de legitimar, sob o ponto de vista jurídico, as ações das instituições militares. O texto foi inspirado nas atuações constantes das Forças Armadas nas comunidades do Rio de Janeiro diante da fragilidade do aparelho de segurança pública. Questiona-se a legalidade dessas operações e remete a uma saída constitucionalmente adequada.

     RESUMO:A missão constitucional das Forças Armadas depende, sobremaneira, de um arcabouço normativo a servir de base legal a sustentar suas ações. Atualmente, as operações de garantia da lei e da ordem se tornam mais comuns diante da proliferação de um estado de insegurança, de modo particular nas grandes cidades. A Constituição confere instrumentos que mantenham a normalidade institucional, podendo-se citar o instituto da intervenção federal. Para tanto, a leitura da legislação complementar deve contemplar uma interpretação conforme a constituição a fim de legitimar sob o ponto de vista jurídico as ações das instituições militares.

Palavras chaves: Constituição – Forças Armadas – Intervenção Federal – Garantia da Lei e da Ordem.


INTRODUÇÃO

            Verifica-se na atualidade um agravamento importante do quadro conjuntural caracterizado por um inegável clima de insegurança e um abalo institucional. E é neste cenário que surgem iniciativas diversas com a finalidade de buscar soluções para minimizar a crise de segurança. Medidas como a diminuição da maioridade penal, o recrudescimento da legislação penal e a mitigação de garantias fundamentais figuram dentre as medidas apresentadas como possíveis soluções. No entanto, o emprego de tropas federais, particularmente do Exército Brasileiro, mostra-se como fato recorrente bem como controvertido sob a perspectiva jurídica, considerando o paradigma do Estado Democrático de Direito instaurado pela Constituição de 1988.

            A missão constitucional das Forças Armadas será abordada como meio de definir os diferentes ramos de emprego, assim como explorada a legislação complementar que estabelece diretrizes para o preparo e emprego das tropas federais e seu poder de polícia eventual. Também convém salientar as atribuições dos Estados federados, que com suas forças policiais devem manter a ordem e reprimir os que buscam comprometê-la.

            Entretanto, fica destacado a conformação federalista de Estado adotado pelo Brasil durante praticamente todo período republicano e que é adequado ao Brasil em virtude da sua extensão territorial de dimensões continentais e da complexidade que se constitui o planejamento e execução das diferentes políticas públicas. As práticas atualmente adotadas na cidade do Rio de Janeiro devem provocar uma reflexão acerca das limitações jurídicas impostas pelo emprego de tropa federal e as prerrogativas que seriam conferidas no caso de adoção de medidas políticas excepcionais.

            É certo que a leitura de todo conjunto de normas afetas ao tema deve ser feita visando uma integração sistêmica, a luz da Constituição Federal. Por ser um texto que traz um rol de direitos fundamentais, bem como organiza o Estado sob um paradigma, a Constituição deve ser dotada de força normativa. Apresentar-se-á a técnica da interpretação conforme a Constituição como meio mais eficaz de dar concretude aos dispositivos da legislação complementar que norteiam o preparo e o emprego das Forças Armadas.

            A amplitude temática induz, muitas vezes, a críticas de ordem política, que certamente não são objeto deste trabalho que se limita a abordar um conteúdo eminentemente jurídico. Para tanto, traz entendimentos doutrinários, jurisprudenciais e do direito comparado. Aos militares cabe, tão somente, agir acatando as diversas ordens sob a égide dos princípios basilares da hierarquia e disciplina, sem o prejuízo de poder contribuir para a melhoria do sistema.


1.A MISSÃO DAS FORÇAS ARMADAS

As Forças Armadas possuem relevância no contexto da defesa territorial, como instrumento de política internacional e de garantia de estabilidade institucional. Para tanto, a própria Constituição estabelece, no seu Título V, as disposições acerca da defesa do Estado e das instituições democráticas definindo instrumentos e excepcionalidades que assegurem segurança e estabilidade.

Ademais, nesse mesmo título, em seu Capítulo II, a missão das Forças Armadas é definida, por meio de três ações distintas. Numa primeira destinação, cabe a defesa da Pátria, entendida como uma vocação à defesa externa. É a responsabilidade constitucionalmente conferida que evoca a integridade territorial e a garantia da soberania nacional. Também é conferida às Forças Armadas a missão de garantia dos poderes constitucionais, que revela importante função de equilíbrio institucional e de harmonia próprios do regime republicano. E, finalmente, a garantia da lei e da ordem cujo entendimento refere-se à manutenção da normalidade no plano interno, o que merece um tratamento com reservas diante do que dispõe o atual regime constitucional. Tamanha é a relevância das Forças Armadas na estrutura político-institucional que todas as constituições fizeram referência à sua destinação, incluindo-se a do Império outorgada em 1824 [1], assim como as do período republicano.

A fim de regulamentar o preparo e o emprego das Forças Armadas, o próprio constituinte estabeleceu que tais peculiaridades se dariam por meio de lei complementar. Para tanto, a fim de cumprir disposição constitucional, sobreveio as Leis Complementares nº 97, 117 e 136. Tratar-se-á tão somente da primeira com intuito de se delimitar a temática. A Lei Complementar nº 97, em seu artigo 15, § 2º traz a seguinte redação:

A atuação das Forças Armadas, na garantia da lei e da ordem, por iniciativa de quaisquer dos poderes constitucionais, ocorrerá de acordo com as diretrizes baixadas em ato do Presidente da República, após esgotados os instrumentos destinados à preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, relacionados no artigo 144 da Constituição Federal.

Deste modo, a Presidência da República pode empregar as Forças Armadas para garantir a lei e a ordem diante da insuficiência, inexistência ou indisponibilidade dos meios de destinados à segurança pública, devidamente reconhecida pelo Chefe do Poder Executivo Federal ou Estadual. Contudo, é importante destacar a atribuição de cada órgão relacionado no artigo 144 da Constituição. Enfatizar-se-á das polícias militares e as polícias civis para o presente estudo. A missão das polícias militares, segundo o artigo 144, § 5º, é a execução dos trabalhos de polícia ostensiva e a para a preservação da ordem pública. Já às polícias civis cabe a função de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, ressalvada a competência da União assim como os crimes militares.

Importa destacar que ambas as corporações são subordinadas aos respectivos Governadores dos Estados federados, o que gera controvérsias importantes frente à forma federativa adotada pelo presente sistema constitucional. Assim, verificada a inoperância destes órgãos de segurança pública (mantidas pelos Estados e subordinadas aos seus respectivos Governadores), podem as Forças Armadas (forças federais) atuarem para a garantia da incolumidade pública, da lei e da ordem.

Verifica-se, neste rumo, que o espectro de atuação das Forças Armadas é amplo, o que requer uma grande capacidade e preocupação no tocante ao preparo da tropa para todos os segmentos de atuação. Porém a diversidade de emprego não se constitui obstáculo a ser superado. A barreira a ser vencida é de natureza institucional e jurídica cujos reflexos põem a legitimidade e a legalidade em evidência. Ou seja, a grande problemática reside no fato de que se saber como atuará as Forças Armadas no contexto de operações de garantia da lei e da ordem diante da atribuição das polícias estaduais adotando-se uma federação como regime. Como ficaria a autonomia dos entes federados diante desta susposta interferência. Para tanto, é imprescindível o entendimento de aspectos relevantes sobre a federação para o entendimento da temática.


2.O FEDERALISMO

A forma federativa é, nos dias atuais, muito recorrente, estando presente em vinte e oito países que abrigam cerca de 40% da população mundial.[2][3]

A consolidação do federalismo, sob uma ótica pragmática, se dá com a declaração de independência das treze colônias ocorrida em 1776. Extremamente influenciada pelas ideias liberais, os estados recentemente independentes se unem como forma de se contrapor às represálias da antiga metrópole.

Como elemento essencial para o federalismo, constata-se a existência de dois níveis de governo constitucionalmente instituídos com responsabilidades e competências próprias e autonomia perante os seus cidadãos. Num primeiro nível, encontra-se o governo da União, que engloba o país como um todo. Já num segundo nível encontra-se o governo regional, autônomo para condução de políticas que sejam da sua competência constitucional. Neste rumo, nos arranjos institucionais das federações, é comum a existência de um legislativo bicameral, cuja câmara alta é composta das representações dos diferentes entes federados, como o fito de maior participação nas decisões do governo central.[7]

No Brasil, o federalismo surge com a Constituição de 1891, ou seja, com a proclamação da República. O modelo federativo substituía o Estado unitário descentralizado da época do Império.

Todavia, a característica mais importante do federalismo é a autonomia dos seus entes, que se evidencia pelas capacidades de auto-organização, de autogoverno e de autolegislação. Todas unidas e indispensáveis para o empreendimento do modelo federativo.

No que se refere à competência para promoção e gestão de políticas de segurança pública, cabe privativamente aos governadores dos Estados-membros a sua consecução. Ademais, o Supremo Tribunal Federal já pacificou tal entendimento em controle abstrato de constitucionalidade:

“O Pleno desta Corte pacificou jurisprudência no sentido de que os Estados-membros devem obediência às regras de iniciativa legislativa reservada, fixadas constitucionalmente. A gestão da segurança pública, como parte integrante da administração pública, é atribuição privativa do governador de Estado.” (ADI 2.819, Rel. Min. Eros Grau, julgamento em 6-4-2005, Plenário, DJ de 2-12-2005.) [11]

Para corroborar o entendimento do Supremo Tribunal Federal, convém mencionar o ensinamento do professor José Afonso da Silva que se refere às polícias federais (Polícia Rodoviária Federal, Polícia Ferroviária Federal e a Polícia Federal, propriamente dita) compete a apuração e repressão de infrações penais contra a ordem política e social, não contra a ordem pública. Já às polícias estaduais (Polícias Civis e Polícias Militares) cabe a responsabilidade pelo exercício de atribuições de segurança pública e de polícia judiciária.

Percebe-se que na federação a responsabilidade de cada ente se caracteriza por ser revestida de autonomia, o que pressupõe um respeito com as diversas iniciativas na gestão de políticas públicas. Qualquer interferência da União nos Estados e nos Municípios deve seguir o fiel acatamento das normas que a própria Constituição estabelece diante da incapacidade para a gestão num determinado aspecto de sua competência.


3.A INTERVENÇÃO FEDERAL COMO MEDIDA EXCEPCIONAL

 No sistema constitucional brasileiro, a intervenção federal caracteriza-se por ser medida excepcional e é carregada por considerável conteúdo político. A regra geral estabelecida pelo texto constitucional é a de que os entes federados, notadamente Estados e Municípios, são dotados de autonomia administrativa para desempenhar as suas respectivas competências[13]. Para tanto, o artigo 34 da Constituição estabelece um rol taxativo de situações que ensejam a adoção da intervenção federal tendo em vista situações que comprometem o pacto estruturante da federação, de modo particular o comprometimento da ordem pública e o comprometimento das finanças públicas.

Segundo José Afonso da Silva, a intervenção federal constitui “ato político que consiste na incursão da entidade interventora nos negócios da entidade que a suporta”.[14] De modo mais detido, ao tratar-se da intervenção da União nos Estados federados, vislumbra-se quatro finalidades gerais principais legitimar a intervenção: a. defesa do Estado; b. defesa do princípio federativo; c. defesa das finanças estaduais; e d. defesa da ordem constitucional. A presente abordagem se detém a este último e se revela tendente ao entendimento, de modo genérico, de grave comprometimento da aplicação de leis de natureza penal (de competência legislativa da União), o que provoca, sobremaneira, o abalo de garantias e direitos fundamentais. Para exemplificar a aludida hipótese, convém citar a decisão do Supremo Tribunal Federal na Intervenção Federal 114, cujo relator foi o Ministro Neri da Silveira.[16] Percebe-se que a jurisprudência da Suprema Corte ainda se mostra conservadora para adoção de uma postura mais heterodoxa no que diz respeito à intervenção nos entes federados. Todavia, a intervenção federal se mostra um eficiente instrumento de defesa da federação.

Cabe destacar que por ser medida excepcional, a intervenção federal deve seguir aspectos formais rígidos que se prestam a conferir limites no tempo, no espaço e relacionados à determinada matéria que a própria Constituição taxativamente elenca. A medida se consolida mediante decreto da Presidência da República no qual se determina prazo, condições amplitude e designa o interventor.

Para fomentar uma reflexão a respeito da temática, a atuação das Forças Armadas na garantia da lei e da ordem, segundo dispositivo da Lei Complementar 97, se dá quando “esgotados os instrumentos destinados à preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, relacionados no art. 144 da Constituição Federal”.

A atuação recente das Forças Armadas na cidade do Rio de Janeiro se dá num contexto em que as forças policiais já se mostram incapazes de, por iniciativa própria, cumprir a competência constitucional que é atribuída ao Estado federado. É importante revisitar o artigo 144, §§ 5º e 6º, da Constituição da República, nos quais são estabelecidas as competências e subordinação das Polícias Militares e das Polícias Civis. Havendo incapacidade de cumprir as suas atribuições, vislumbra-se, no plano constitucional, um grave comprometimento da ordem pública, nos termos do artigo 34, inciso III, da Constituição, hipótese que levaria a uma situação de intervenção federal. Não se está a colocar em dúvida as competências próprias da Polícia Federal, que está claramente estabelecida no próprio texto constitucional.

Contudo, é importante destacar que a legislação infraconstitucional merece uma interpretação que seja adequada ao texto da Constituição e que confira às Forças Armadas maior legitimidade, seja por parte da população (que já detém) como também do aparelho de Estado que mantém uma conformação federativa e necessita de meios para defender e garantir a integridade dos diversos entes.


4.ASPECTOS CONTROVERTIDOS DA LEGISLAÇÃO INFRACONSTITUCIONAL

Mais uma vez convém destacar o que dispõe o texto legal, notadamente a Lei Complementar, que se refere ao emprego das Forças Armadas na Garantia da Lei e da Ordem.

Art. 15. [...]

§ 2o A atuação das Forças Armadas, na garantia da lei e da ordem, por iniciativa de quaisquer dos poderes constitucionais, ocorrerá de acordo com as diretrizes baixadas em ato do Presidente da República, após esgotados os instrumentos destinados à preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, relacionados no art. 144 da Constituição Federal.

            Atribuindo-se a competência de segurança pública aos Estados e estes não sendo capazes de cumprir esta finalidade, convém, para a manutenção da federação, a intervenção da União para manutenção da ordem pública. É bem verdade que esta é uma decisão muito mais política do que jurídica, o que não é objeto a ser apreciado, sendo relevante, nesta abordagem, realizar um exercício de hermenêutica para dar concretude ao texto da Constituição, levando-se em consideração a realidade histórica. [18] A realidade mostra que a situação da segurança pública no nosso país é grave e merece um esforço das autoridades para uma adoção de políticas que vão além de uma maior destinação de recursos. Para tanto, a relação cooperativa que o constituinte idealizou para atender a estas demandas.

                A respeito da interpretação da Constituição a respeito e da legislação infraconstitucional, é legítimo que os militares o façam na condição, como referido por Peter Häberle, de pré-interpretes (Vorinterpreten) do complexo normativo constitucional. Aliás, segundo o próprio Häberle, não existe norma jurídica, senão norma interpretada (Es gibt keine Rechtsnormen, es gibt nur interpretierte Rechtsnormen). [19]

            Desta forma, o texto da legislação infraconstitucional deve ser interpretado em conformidade com a Constituição. Não se pode adotar o emprego de tropa federal em uma situação de garantia da lei e da ordem (que por si só se mostra grave diante da incapacidade do Estado-membro) sem realizá-la dentro de balizas normativas que definam amplitude, prazo e espaço físico.

            Todavia, antes de explorar a interpretação de forma mais esmiuçada, cabe destacar aspectos conceituais da técnica denominada “interpretação conforme a constituição”. Esta prática desenvolveu-se na doutrina e na jurisprudência constitucional alemãs e buscam dar sentido às normas infraconstitucionais para que estas empreendem maior efetividade aos princípios constitucionais. Vale-se, também, para preservar a validade de determinadas normas suspeitas de inconstitucionalidade. Realiza-se, simultaneamente, a interpretação da norma e o seu controle de constitucionalidade. [20]

            É evidente que o quadro normativo que integra o ordenamento jurídico brasileiro vislumbra a atuação das Forças Armadas na Garantia da Lei e da Ordem dentro de um quadro de tamanha gravidade que as forças estaduais se mostram incapazes de garantir a ordem pública. As atuações no Rio de Janeiro vão muito além da mera atuação como força de segurança pública. Os serviços públicos mais elementares, como coleta de lixo, fornecimento de energia elétrica, de água e captação de esgoto, por muito tempo não foi disponibilizado pelo Poder Público às populações das favelas. Ou seja, a complexidade da atuação merece ainda mais o respaldo da intervenção, por parte da União, no Estado federado para que os instrumentos de segurança (e também de cidadania) sejam utilizados e ofereçam resultados à população.

            Neste rumo, a norma prevista no artigo 15, § 2º, da Lei Complementar 97, deve ser interpretada conforme a Constituição. Ou seja, não se pode glosar a norma em razão de sua (suposta) inconstitucionalidade. Mas a sua interpretação deve levar em consideração a Constituição que prevê a excepcionalidade da intervenção federal, o que mereceria o controle da jurisdição, seja do Supremo Tribunal Federal ou do Superior Tribunal de Justiça.

            Relevante destacar que o artigo 15, § 7º, estabelece como sendo competência da Justiça Militar as infrações penais que ocorrerem dentro de um contexto de garantia da lei e da ordem, tamanha a relevância da matéria. Sobre esta matéria, tramita no Supremo Tribunal Federal uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 5032), cujo relator é o Ministro Marco Aurélio, na qual o Procurador-Geral da República questiona a ampliação da competência da Justiça Militar. Os fundamentos que o Ministério Público traz ao debate é que a jurisdição penal militar deve ser restrita e pontual.

            Em decisão no caso Durand y Ugarte vs. Perú, a Corte Interamericana de Direitos Humanos, cuja jurisdição o Brasil se submete, assentou que a jurisdição castrense cabe somente para julgamento de militares. Eis parte do aresto:

117. Num Estado Democrático de Direito, a jurisdição penal militar deve ter um alcance restritivo, excepcional e estar voltada à proteção de interesses jurídicos especiais, vinculados com as funções que a lei confere às forças militares. Assim, deve ser excluído do âmbito da jurisdição militar o julgamento de civis e só deve julgar militares pelo cometimento de delitos que por sua própria natureza atentem contra bens jurídicos próprios da ordem militar. (Tradução livre) [21]

            Outros casos sobre apreciação da Corte Interamericana de Direitos Humanos podem ser citados. No caso brasileiro, em função do status constitucional (ou supralegal) atribuído aos tratados internacionais sobre direitos humanos, estes também devem ser levados em consideração no momento de se estabelecer uma interpretação da norma legal. No entanto, quando são estabelecidas situações excepcionais (e a intervenção federal é uma delas) voltadas à defesa do Estado Democrático e da ordem pública, fica evidente que os fundamentos para o emprego de tropa federal e a ação da jurisdição militar apresentam-se mais robustos e sólidos.

            Portanto, não há que se falar em inconstitucionalidade dos dispositivos da Lei Complementar 97, mas de que estes devem ser interpretados conforme a constituição a fim de darem uma maior efetividade e legitimidade e o que facilitaria os planejamentos e as ações propiciadas por uma unidade de comando. Não se está aviando uma impossibilidade de atuação em operações de garantia da lei e da ordem, mas, sim, buscando saídas que estejam de acordo com o modelo federativo e dentro de um contexto de proteção de direitos e garantias fundamentais.


CONSIDERAÇÕES FINAIS

            Fica patente na presente exposição que a missão das Forças Armadas, por imperativo constitucional, constitui um plexo de atribuições que se voltam precipuamente para as atividades de defesa do Estado brasileiro, seja externa ou internamente. Ademais, as instituições militares vêm, ao longo do tempo, desempenhando suas missões com excelência, o que é reconhecido pela sociedade como um todo. Mas não cabe realizar uma análise política da temática, mas interpretar os diferentes diplomas legais a partir da Constituição da República que possam subsidiar e conferir maior legitimidade a ações de garantia da lei e da ordem.

            É incontroversa a situação grave pela qual passa o país na área de segurança pública, o que leva as autoridades a repensar o modelo de gestão e as práticas de combate à criminalidade. Contudo, nunca é demais destacar que o emprego das tropas federais não pode ser uma regra, mas medida de cunho excepcional, a atuar de forma pontual e temporária diante de uma incapacidade das forças policiais. Desta forma, sob uma perspectiva jurídica, as operações de garantia da lei e da ordem devem receber uma especial atenção de modo a preservar a higidez do modelo federativo e garantir a intangibilidade dos direitos fundamentais.

            A interpretação das normas infraconstitucionais que tratam do preparo e emprego das Forças Armadas, notadamente os pontos a respeito da garantia da lei e da ordem, devem ser lidos e interpretados sob a ótica da atribuição de autonomia e estabelecimento de competências por parte do constituinte. A Constituição implementa um sistema de repartição de competências entre os diversos entes e estabelece mecanismos voltados à preservação desta estrutura.

            Vislumbra-se da leitura do texto constitucional que o próprio sistema propicia mecanismos aptos a salvaguardar as estruturas de Estado como a Federação constituída pela União de Estados e Municípios. Para tanto, diante do comprometimento da ordem pública e da garantia da incolumidade, fica patente que a saída mais adequada sob o ponto de vista jurídico é o instituto da intervenção federal para atuação de forma episódica e pontual. É bem verdade que tal medida, em razão de seu caráter excepcional, traz consequências importantes de cunho político e entre as relações entre os entes federados. Aliás, as decisões do Supremo Tribunal Federal revelam esta preocupação.

            Todavia, reitera-se que a análise deste texto se adstringe a aspectos jurídicos, descabendo qualquer tratativa política. O que se busca é fomentar o debate para uma melhoria da atuação das instituições militares nas referidas operações, que resguardadas pelo manto da intervenção, teriam facilitadas suas ações e planejamentos. As ideias que são apresentadas se prestam a uma submissão e a um debate na busca do melhor argumento. Tem-se um “mundo vivido”, que é apresentado pela linguagem relacionando-se pragmaticamente com um mundo objetivo, com um mundo social e com um mundo subjetivo. [22]

            Diante de todos os argumentos expostos, não se pode considerar, de forma peremptória, que o emprego das Forças Armadas na garantia da lei e da ordem se reveste de flagrante inconstitucionalidade. Mas certamente o emprego deve ser judicioso, medicante intervenção da União e com mecanismos que confiram jurisdição própria à Justiça Militar, de conformidade com a Constituição e com os acordos internacionais os quais o Brasil é signatário.


REFERÊNCIAS

ANDERSON, George. Federalismo: uma introdução. Trad. Ewandro Magalhães Jr, Fátima Guerreiro. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2009.

BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2011.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal (STF). A Constituição e o Supremo. 4. ed. Brasília: Secretaria de Documentação, 2011.

CHAGAS, Magno Guedes. Federalismo no Brasil: o poder constituinte decorrente na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 2006.

HÄBERLE, Peter. Hermenêutica constitucional – a sociedade aberta dos interprétes da constituição: contribuição para a interpretação pluralista e “procedimental” da constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 1997.

HABERMAS, Jürgen. Teoria do agir comunicativo: sobre a crítica da razão funcionalista. Vol. 2. São Paulo: Martins Fontes, 2012.

HESSE, Konrad. A força normativa da constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 1991.

MONTESQUIEU, Barão de. Do espírito das leis. São Paulo: Martin Claret, 2007.

REVERBEL, Carlos Eduardo Dieder. O federalismo numa visão tridimensional do direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012.

SILVA, José Afonso da. Direito constitucional positivo. 15. ed. rev. São Paulo: Malheiros Editores, 1998.

VARGAS, Denise. Manual de direito constitucional.  São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010.


Notas

[1] Ao Poder Executivo compete privativamente empregar a Força Armada de Mar, e Terra, como bem lhe parecer conveniente á Segurança, e defesa do Imperio. Cf. BRASIL. Constituicão politica do imperio do Brazil. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao24.htm. Acesso em 16 set. 2014.

[2] ANDERSON, George. Federalismo: uma introdução. Trad. Ewandro Magalhães Jr, Fátima Guerreiro. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2009, p. 17.

[3] REVERBEL, Carlos Eduardo Dieder. O federalismo numa visão tridimensional do direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012, p. 85.

[4] MONTESQUIEU, Barão de. Do espírito das leis. São Paulo: Martin Claret, 2007, p. 142-143.

[5] REVERBEL, Carlos Eduardo Dieder. O federalismo numa visão tridimensional do direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012, p. 82.

[6] REVERBEL, Carlos Eduardo Dieder. O federalismo numa visão tridimensional do direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012, p. 87-88.

[7] ANDERSON, George. Federalismo: uma introdução. Trad. Ewandro Magalhães Jr, Fátima Guerreiro. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2009, p. 19-20.

[8] CHAGAS, Magno Guedes. Federalismo no Brasil: o poder constituinte decorrente na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 2006, p. 59.

[9] CHAGAS, Magno Guedes. Federalismo no Brasil: o poder constituinte decorrente na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 2006, p. 63.

[10] CHAGAS, Magno Guedes. Federalismo no Brasil: o poder constituinte decorrente na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 2006, p. 67.

[11] BRASIL. Supremo Tribunal Federal (STF). A Constituição e o Supremo. 4. ed. Brasília: Secretaria de Documentação, 2011, p. 1622.

[12] SILVA, José Afonso da. Direito constitucional positivo. 15. ed. rev. São Paulo: Malheiros Editores, 1998, p. 745-746.

[13] SILVA, José Afonso da. Direito constitucional positivo. 15. ed. rev. São Paulo: Malheiros Editores, 1998, p. 483.

[14] SILVA, José Afonso da. Direito constitucional positivo. 15. ed. rev. São Paulo: Malheiros Editores, 1998, p. 483.

[15] SILVA, José Afonso da. Direito constitucional positivo. 15. ed. rev. São Paulo: Malheiros Editores, 1998, p. 484-485.

[16] “Representação do PGR pleiteando intervenção federal no Estado de Mato Grosso, para assegurar a observância dos ‘direitos da pessoa humana’, em face de fato criminoso praticado com extrema crueldade a indicar a inexistência de ‘condição mínima’, no Estado, ‘para assegurar o respeito ao primordial direito da pessoa humana, que é o direito à vida’. (...) Representação que merece conhecida, por seu fundamento: alegação de inobservância pelo Estado‑membro do princípio constitucional sensível previsto no art. 34, VII, b, da Constituição de 1988, quanto aos ‘direitos da pessoa humana’. (...) Hipótese em que estão em causa ‘direitos da pessoa humana’, em sua compreensão mais ampla, revelando‑se impo­tentes as autoridades policiais locais para manter a segurança de três presos que acabaram subtraídos de sua proteção, por populares revoltados pelo crime que lhes era imputado, sendo mortos com requintes de crueldade. Intervenção federal e restrição à autonomia do Estado‑membro. Princípio federativo. Excepcionalidade da medida interventiva. No caso concreto, o Estado de Mato Grosso, segundo as informações, está procedendo à apuração do crime. Instaurou‑se, de imediato, inquérito policial, cujos autos foram encaminhados à autoridade judiciária estadual competente que os devolveu, a pedido do delegado de polícia, para o prosseguimento das diligências e averiguações. Embora a extrema gravidade dos fatos e o repúdio que sempre merecem atos de violência e crueldade, não se trata, porém, de situação concreta que, por si só, possa configurar causa bastante a decretar‑se intervenção federal no Estado, tendo em conta, também, as providências já adotadas pelas autoridades locais para a apuração do ilícito. Hipótese em que não é, por igual, de determinar‑se intervenha a Polícia Federal, na apuração dos fatos, em substituição à Polícia Civil de Mato Grosso. Autonomia do Estado‑membro na organização dos serviços de justiça e segurança, de sua competência (Constituição, arts. 25, § 1º; 125 e 144, § 4º).” (IF 114, Rel. Min. Presidente Néri da Silveira, julgamento em 13‑3‑1991, Plenário, DJ de 27‑9‑1996.). Cf. BRASIL. Supremo Tribunal Federal (STF). A Constituição e o Supremo. 4. ed. Brasília: Secretaria de Documentação, 2011, p. 788-789.

[17] VARGAS, Denise. Manual de direito constitucional.  São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 496.

[18] HESSE, Konrad. A força normativa da constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 1991, p. 24.

[19] HÄBERLE, Peter. Hermenêutica constitucional – a sociedade aberta dos interprétes da constituição: contribuição para a interpretação pluralista e “procedimental” da constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 1997, p. 9.

[20] BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 325.

[21] 117. En un Estado democrático de Derecho la jurisdicción penal militar ha de tener un alcance restrictivo y excepcional y estar encaminada a la protección de intereses jurídicos especiales, vinculados con las funciones que la ley asigna a las fuerzas militares. Así, debe estar excluido del ámbito de la jurisdicción militar el juzgamiento de civiles y sólo debe juzgar a militares por la comisión de delitos o faltas que por su propia naturaleza atenten contra bienes jurídicos propios del orden militar. Cf. http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/Seriec_68_esp.pdf. Acesso em 18 nov. 2014.

[22] HABERMAS, Jürgen. Teoria do agir comunicativo: sobre a crítica da razão funcionalista. Vol. 2 . São Paulo: Martins Fontes, 2012, p. 220.



Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi.