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O lugar dos direitos humanos na escola: novas possibilidades na rede pública de ensino no Município de Fortaleza

O lugar dos direitos humanos na escola: novas possibilidades na rede pública de ensino no Município de Fortaleza

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A intenção deste artigo é relatar nossa experiência como coordenadora pedagógica em uma escola da Rede Pública do município de Fortaleza no primeiro semestre de 2014, ao inserirmos a temática de Direitos Humanos na disciplina "Projetos Especiais", nova no currículo do ensino fundamental.

                                                                                                                                                   

Vem, vamos embora

Que esperar não é saber

Quem sabe faz a hora

Não espera acontecer

(Geraldo Vandré,1968)

Resumo: A intenção deste artigo é relatar nossa experiência como coordenadora pedagógica em uma escola da Rede Pública do município de Fortaleza no primeiro semestre de 2014, diante de uma disciplina nova no currículo do ensino fundamental: Projetos Especiais. Este relato detalha sua estrutura, apresenta o lugar dos Direitos Humanos nessa Disciplina e a possibilidade de incluir temas sobre valores humanos no cotidiano escolar.

Palavras-chave: Experiência- Direitos Humanos- Currículo Escolar.


Introdução

Há mais de quinze anos trabalhando com adolescente de escolas de periferia presenciamos inúmeros casos de discriminações étnicas[2], culturais, religiosas, sociais, sexuais, físicas, dentre outros.  Nos incomodava a questão de nossos alunos não refletirem os valores, os direitos e deveres individuais tanto individuais, como coletivos e não terem uma compreensão do termo cidadania.

E o que mais chamava atenção era o fato de eles não refletirem sobre as consequências que seus atos poderiam acarretar. Como auxiliá-los a respeitar seus companheiros se eles mesmos não são respeitados em seus direitos básicos como moradia, saúde, onde muitos são vítimas de marginalidade social? Como facilitar no âmbito escolar o diálogo e ajudar no combate do racismo, sexismo, discriminação social, cultural e religiosa sem uma preparação teórica adequada? Como abordar a sexualidade e religiosidade, por exemplo, sem banalizar o tema e sem impor uma lição de moral ou nossa cultura? A escola estaria preparada para abrir espaço para dialogar sobre esses temas? O que poderíamos fazer enquanto educadores?

A provocação dessas ideias aliada ao conhecimento teórico obtido no curso de Direitos Humanos (DH) oferecido pela Universidade Federal do Ceará (UFC) através da Universidade Aberta do Brasil (UAB), nos conscientizou que só proporcionar acesso à informação não é suficiente. Dessa forma, o grande desafio era debater sobre as diferentes abordagens desses temas de tratamento por vezes difíceis, partindo das vivências dos próprios educandos, suas dúvidas e anseios. Mas em que espaço? Como colocar esse tema em prejudicar a carga horária e programa de cada disciplina?

Foi então que em 2014, o município de Fortaleza incluiu em seu currículo a disciplina Projetos Especiais que oportunizavam a interdisciplinaridade dos conteúdos envolvendo todas as áreas do conhecimento, incluindo os temas transversais, sugeridos nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN).  Com sua inserção no currículo foi solicitado aos educadores que ao selecionarem os conteúdos a serem abordados na referida disciplina expusessem intenções claras de ensino que permitisse novas aprendizagens relacionadas a todas as disciplinas envolvidas.

Dessa forma, foi possível incluir não só os temas que os alunos sentiam a necessidade de abordá-los, mas também outros sugeridos pela Equipe da Secretaria Municipal de Educação (SME). A disciplina foi trabalhada considerando a realidade e contexto de cada sala de aula, tendo como ponto de partida narrativas sobre a história de vida de cada aluno. A proposta metodológica constou de aulas dialogadas, leitura e discussão de textos.

Por tratar-se de uma experiência de uma disciplina nova no currículo do ensino fundamental, este relato detém-se sobre sua estrutura, o lugar dos DH nessa Disciplina, temas abordados no primeiro semestre de 2014 na escola e considerações relevantes sobre a continuidade desse componente curricular no ensino básico.


A disciplina de Projetos Especiais e a Matriz Curricular do Ensino Fundamental II

A matriz escolar de Fortaleza segundo divulgação da SMEF tem por objetivo nortear a montagem e organização do currículo a fim de cumprir as exigências culturais e a própria formação do educando. Segundo essa secretaria, essa matriz é composta por matérias e assuntos que devem ser transmitidos para a formação acadêmico-cultural do educando. São assuntos modernizados e adaptados às exigências da interdisciplinaridade e da multidisciplinariedade. (SMEF, 2014).

De acordo com a matriz, em cada ano/ série foi incluída em seu currículo a disciplina de uma hora/aula de Projetos Especiais (PE) que segundo a SMEF, deviam oportunizar ao educando o desenvolvimento de um trabalho interdisciplinar com temas diversos que poderiam ser sugeridos pela SME ou escolhidos pela própria escola. Vale ressaltar que a inclusão da PE visava fomentar o interesse do aluno para assuntos relacionados ao seu cotidiano, atividades sociais ou acontecimentos históricos e dar abertura à grade curricular para introduzir conhecimentos que vão além da base comum do currículo.

  A PE surgiu como uma disciplina obrigatória que deveria ser aplicada a interdisciplinaridade e que envolvesse todas as áreas do conhecimento, incluindo os temas transversais, sugeridos nos PCN. A escola iria produzir seus projetos e os professores de diversas disciplinas iriam trabalhar em sala de aula. A orientação era que permitisse novas aprendizagens.

Quadro das disciplinas da Matriz curricular do Ensino Fundamental II

Tabela.1

BASE NACIONAL COMUM

DISCIPLINAS

CARGA HORÁRIA SEMANAL E ANUAL

ANOS/SÉRIES

S

A

S

A

S

A

S

A

LINGUA PORTUGUESA I

03

120

03

120

03

120

03

120

LINGUA PORTUGUESA II

01

40

01

40

01

40

01

40

ARTE/LITERATURA

01

40

01

40

01

40

01

40

EDUCAÇÃO FISICA

02

80

02

80

02

80

02

80

HISTÓRIA

02

80

02

80

02

80

02

80

GEOGRAFIA

02

80

02

80

02

80

02

80

ENSINO RELIGIOSO

01

40

01

40

01

40

01

40

CIÊNCIAS NATURAIS

02

80

02

80

02

80

02

80

MATEMÁTICA I

03

120

03

120

03

120

03

120

MATEMÁTICA II

01

40

01

40

01

40

01

40

PARTE DIVERSIFICADA

LÍNGUA ESTRANGEIRA MODERNA

02

80

02

80

02

80

02

80

PROJETOS ESPECIAIS

01

40

01

40

01

40

01

40

TOTAL DA CARGA HORÁRIA

21

840

21

840

21

840

21

840

O(A) professor(a) lotado(a) na disciplina PE teria uma aula por semana com a turma para o desenvolvimento do Projeto, que abordaria temas interdisciplinares e reuniam uma série de ações educativas em todas as áreas do conhecimento.


O Lugar dos Direitos Humanos nas Escolas Públicas de Fortaleza

Começamos refletindo sobre o que é direito. Segundo Rabenhorst [200-], direitos são o reconhecimento de que algo nos é devido. Para o autor “direitos não são favores, súplicas ou gentilezas. Se existe um direito é porque há um débito e uma obrigação correlata”. Dessa forma, não se pede um direito, luta-se por ele. Quando se reivindica algo que é devido, não se estar rogando um favor, mas exigindo que justiça seja feita.

E o que são direitos humanos? Conforme Rabenhorst [200-], o que se convencionou chamar “direitos humanos” são exatamente os direitos que correspondem à dignidade humana. São direitos que se possui não porque o Estado assim decidiu, através de suas leis ou por intermédio de acordos. Direitos humanos são direitos que possuímos pelo simples fato de que somos humanos.

Corroborando com o mesmo pensamento Benevides (2000) afirma:

Os direitos humanos são naturais e universais, pois estão profundamente ligados à essência do ser humano, independentemente de qualquer ato normativo, e valem para todos; são interdependentes e indivisíveis, pois não podemos separá-los, aceitando apenas os direitos individuais, ou só os sociais, ou só os de defesa ambiental.

 Para a autora essa indivisibilidade é importante porque se tem exemplos históricos de regimes políticos que valorizaram exclusivamente os direitos sociais[3] em detrimento da liberdade; assim como vários regimes liberais que pregavam a liberdade, mas não davam a devida atenção aos direitos sociais.

E o que vem a ser Educação em Direitos Humanos?

Segundo Candau (2013), a questão da conceitualização, na América Latina, do que venha a ser Educação em Direitos Humanos (EDH) está sendo bastante debatida e ainda não há consenso entre os especialistas. Há vários enfoques, as aproximações, as propostas feitas pelos educadores e educadoras nos diferentes países do continente. No entanto, apoiamos em Benevides (2000), Rodrigues (2001), Candau (1995, 2000, 2013), Fritzsche (2004) para direcionar nosso trabalho no interior da escola.

 Benevides (2000), acredita que EDH é também educação para a cidadania, ou seja, as duas propostas andam muito juntas, mesmo não sendo sinônimas. Educação para cidadania, de acordo com a autora, não é uma educação moral e cívica que fomenta um nacionalismo ora ingênuo ora agressivo, sem a percepção de que a nação não é um todo homogêneo, mas sim a percepção de um todo heterogêneo, com conflitos, classes sociais, grupos e interesses diferenciados.

Nessa perspectiva, educação para a cidadania é a formação do cidadão participativo e solidário, consciente de seus deveres e direitos e é sob esse aspecto que se assemelha e se junta à educação em direitos humanos.  É com essa educação para a cidadania que se tem uma base para uma visão mais global do que seja uma educação democrática[4], que é o que se almeja com a EDH. Benevides (2000). Segundo a autora supracitada:

Não existe democracia sem direitos humanos, assim como não existe direitos humanos sem a prática da democracia. (...) Existem casos de regimes políticos que levaram ao extremo a educação para a cidadania, em termos de mobilização cívica, mas não em termos de cidadania democrática. Regimes totalitários levaram ao extremo a formação do cidadão ligado à pátria, à nação, ao seu passado histórico, ao projeto do futuro. (BENEVIDES, 2000).        

Benevides (2000) afirma que regimes totalitários são os que mais mobilizam cidadãos para um tipo de educação cívica que não tem nada a ver com educação em direitos humanos, com educação democrática. Regimes totalitários formaram cidadãos participantes, conscientes de uma missão cívica, porém cidadãos fascistas, nazistas, Para ela a ideia de cidadania insere-se exclusivamente no quadro da democracia.

Rodrigues (2001), coloca que o exercício de cidadania compreende duas ações interdependentes:

  1. a  participação lúcida dos indivíduos em todos os aspectos da organização e da condução da vida privada e coletiva;
  2.  a  capacidade que estes indivíduos adquirem para operar escolhas. Ambos os aspectos caracterizam o sujeito identificável como cidadão.

Dessa forma, o exercício da cidadania pressupõe a liberdade, a autonomia e a responsabilidade, onde se constitui um dever dos cidadãos participarem na organização da vida social. Essa organização deve assegurar a todos o exercício da liberdade e da responsabilidade. Rodrigues (2001).

Nessa perspectiva, Benevides (2013), afirma que a educação em direitos humanos pressupõe uma formação que leve em conta alguns princípios:

  1. O aprendizado deve estar ligado à vivência do valor da igualdade em dignidade e direitos para todos;
  2.  deve propiciar o desenvolvimento de sentimentos e atitudes de cooperação e solidariedade;
  3. a educação para a tolerância deve se impor como um valor ativo vinculado à solidariedade e não apenas como tolerância passiva da mera aceitação do outro, com o qual pode-se não estar solidário.  
  4. o aprendizado deve levar ao desenvolvimento da capacidade de se perceber as consequências pessoais e sociais de cada escolha. Ou seja, deve levar ao senso de responsabilidade;
  5. o processo educativo deve visar à formação do cidadão participante, crítico, responsável e comprometido com a mudança daquelas práticas e condições da sociedade que violam ou negam os direitos humanos;
  6.  deve visar à formação de personalidades autônomas, intelectual e afetivamente, sujeitos de deveres e de direitos, capazes de julgar, escolher, tomar decisões, serem responsáveis e prontos para exigir que não apenas seus direitos, mas também os direitos dos outros sejam respeitados e cumpridos.

Rabenhorst [200-], expõe que a importância EDH no âmbito escolar está  não como a simples introdução de conteúdos temáticos sobre tais direitos nos programas escolares ou universitários, mas essencialmente por ser um meio capaz de proporcionar a construção de uma cidadania ativa no país. Para ele, isso é um desafio que se impõe ao conjunto da sociedade brasileira, principalmente aos mais jovens.

Sobre o desafio que a escola enfrenta em educar um sujeito ético, cidadão, Rodrigues (2001) afirma: “cada vez mais a escola exercerá ou poderá exercer um papel que a ela jamais foi atribuído em tempos passados: o de ser a instituição formadora dos seres humanos”.

Segundo esse autor cada vez mais as crianças são enviadas para a escola cada vez mais cedo e nela irão permanecer por mais tempo. Isso porque essa instituição tem exercido o tradicional papel das famílias, das comunidades, da Igreja. Nesse contexto, além de proporcionar o desenvolvimento de conhecimentos e habilidades, ela deverá se ocupar com a formação integral do ser humano e terá como missão suprema a formação do sujeito ético.

Partindo desse pressuposto, Rodrigues (2001) impõe a necessidade de entender a educação como o processo de formação humana que atua sobre os meios para a reprodução da vida. Trata-se de compreender que essa instituição

coopera para o homem olhar, perceber e compreender as coisas, para se reconhecer na percepção do outro, constituir sua própria identidade, distinguir as semelhanças e diferenças entre si  entre si e outros sujeitos. A Educação envolve todo esse instrumental de formas de percepção do mundo, de comunicação e de intercomunicação, de autoconhecimento, e de conhecimento das necessidades humanas. (RODRIGUES,2001)

Para o autor supracitado a escola tem uma nova responsabilidade que é mudar sua forma de compreender educação. Para ele, “educar requer o preparo eficiente dos educandos para que se capacitem, intelectual e materialmente, para acionar, julgar e usufruir esse complexo de experiências com o mundo da vida. Esta é uma responsabilidade a ser atribuída ao Educador.” (RODRIGUES, 2001).

Voltando ao que venha ser EDH. Candau apud Fritzsche assinala alguns aspectos que o autor alemão considera ser o significado de EDH. Para o autor:

  1. A EDH é indispensável para o desenvolvimento dos DH. Ela não é um adendo pedagógico, mas um componente genuíno dos DH. A educação em Direitos Humanos constitui um dos DH.
  2. EDH precisa ser trabalhada para que ela ocupe um lugar central no ensino e na educação, sendo planejada como uma temática interdisciplinar e transversal, fundamentada numa teoria educacional, sendo apoiada com as novas tecnologias e sendo avaliadas suas práticas.
  3. EDH se assenta num tripé: conhecer e defender seus direitos; respeitar a igualdade de direitos dos outros; e estar tão comprometido quanto possível com a defesa da EDH dos outros.
  4. Supõe a comunicação de saberes e valores e desenvolve uma compreensão das dimensões jurídica e política.
  5. No âmbito da educação formal, não se reduz a alguns temas do currículo, mas constitui uma questão da filosofia e da cultura da escola.
  6. E por fim,  A EDH está orientada à mudança social.

Fritzsche (2004) apud Candau (2013), diz que este autor defende a EDH numa perspectiva abrangente e multidimensional levanta questões como a articulação entre igualdade e diferença, a EDH para a construção democrática, os DH na educação formal e a multiplicidade de sujeitos destinatários da educação em DH.

A mesma autora evita definir a EDH, no entanto acredita que alguns elementos são relevantes na sua constituição, os quais concordamos. São eles:

  1. processo sistemático e multidimensional orientado à formação de sujeitos de direitos e à promoção de uma cidadania ativa e participativa;
  2. a articulação de diferentes atividades que desenvolvam conhecimentos, atitudes, sentimentos;
  3.  práticas sociais que afirmem uma cultura de DH na escola e na sociedade.

Para Sérgio Haddad[5] (2012), o estudo dos DH nas escolas modifica a formação geral do educando e é uma maneira de despertá-lo para a cidadania. Para tanto, o professor deve estimular esse aprendizado aos poucos, durante as aulas com exemplos do cotidiano.

Nas escolas municipais de Fortaleza ainda não dispomos como componente Curricular: Direitos Humanos e Cidadania, no entanto, enquanto isso não acontece, encontramos na disciplina PE o momento oportuno de propiciarmos um espaço de reflexão, análise e compreensão dos princípios, valores e direitos que caracterizam a dignidade humana, a democracia e o pluralismo político que fundamentam uma sociedade livre, justa e solidária. Portanto, corroboramos com a letra da música[6] a qual nos convida não esperar, precisamos fazer acontecer.

A SMEF sugeriu, semestralmente, ideias para projetos a serem desenvolvidos na escola na disciplina de PE, mas também, deixou a cargo da escola, desenvolver os projetos considerados pertinentes para a realidade escolar. Alguns temas sugeridos foram:

  • PROJETO CULTURA DE PAZ E VALORES HUMANOS – com temáticas a serem desenvolvidas bimestralmente durante todo o ano letivo

1º Bimestre:

  • Valor: PAZ
  • Valores associados: Serenidade, Tolerância, Simplicidade, Humildade, Flexibilidade.

2º Bimestre:

  • Valor: RESPEITO
  • Valores associados: Ética, Lealdade, Honestidade, Integridade, Cooperação.

3º Bimestre:

  • Valor: RESPONSABILIDADE
  • Valores associados: Justiça, Liberdade, Compromisso, Verdade, Lealdade

4º Bimestre:

  • Valor: AMOR
  • Valores associados: Altruísmo, Benevolência, Doçura, Gentileza, União, Solidariedade, Fraternidade.

Outros temas sugeridos:

  • Lixo: o exemplo começa na escola;
  • Resgatando o prazer de ler e escrever através da arte e do lúdico;
  • Indisciplina, bullying e violência escolar;
  • Cyberbullying;
  • O som e o cérebro;
  • Menos violência, notas melhores;
  • Preconceito e violência;
  • Diversidade, espaço e construções históricas em Fortaleza;
  • Reciclagem;
  • Resgatando valores: uma parceria entre a família e a escola;

Ao analisarmos as sugestões da SMEF percebemos que a inclusão da PE foi uma forma para nós educadores da Escola Municipal Deinizard Macêdo disseminarmos os valores de cidadania e direitos humanos no âmbito escolar. Consideramos um avanço, embora que tímido.

Não queremos, neste relato, avaliar o fracasso ou êxito dessas sugestões de conteúdo. Mas, refletir sobre possibilidades das escolas produzirem nessa disciplina, ações pedagógicas mais eficazes em ED. Não podemos mais esperar, pois como coloca Candau (2013), a problemática dos DH é um dos componentes fundamentais das sociedades atuais, uma vez que os DH atravessam as preocupações, projetos e sonhos. Afirmados ou negados, exaltados ou violados, eles fazem parte da vida pessoal e coletiva.

Benevides coloca (2000) os pontos principais do conteúdo da educação em DH decorrente da própria definição de direitos humanos e do conhecimento sobre as dimensões históricas, sobre as possibilidades de reivindicação e de garantias:

1.Noção de direitos mas também de deveres, estes decorrentes das obrigações do cidadão e de seu compromisso com a solidariedade.

2. As razões e as consequências da obediência a normas e regras de convivência.

3.Discussão – para a vivência – dos grandes valores da ética republicana e da ética democrática. Os valores da ética republicana incluem o respeito às leis legitimamente elaboradas, a prioridade do bem público acima dos interesses pessoais ou grupais, e a noção da responsabilidade, ou seja, de prestação de contas de nossos atos como cidadãos.

4. Valores democráticos estão profundamente vinculados ao conjunto dos DH, os quais se resumem no valor da igualdade, no valor da liberdade e no valor da solidariedade.


Temas abordados na disciplina de Projetos Especiais

A provocação das ideias de Candau (2005) ao destacar que é importante promover processos de EDH em que se trabalhe a sensibilização, a consciência da dignidade de toda pessoa humana, a promoção de uma cultura dos DH e o estudo do material desenvolvido para os professores no curso de Formação Continuada em DH[7] Foram fundamentais para a elaboração do nosso trabalho e nos ajudou a orientar os demais professores.

 Toda essa abordagem teórica nos fez trabalhar DH na escola partindo das próprias narrativas dos educandos. Portanto, buscamos processos de ensino aprendizagem abrangendo os aspectos pessoal e social, ético e político, bem como o desenvolvimento da consciência da dignidade humana de cada pessoa (CANDAU,2013).

Junto com esses elementos foram reunidos os professores e discutido como iniciaríamos nosso trabalho, quais eram as dificuldades encontradas por eles. Foi unânime a constatação: os educandos estavam muito indisciplinados, não estavam se respeitando mutualmente e que primeiro teríamos que fazer um trabalho de sensibilização, pois muitas agressões eram vistas como naturais entre eles.

A EMEIF Denizard Macedo de Alcântara está situada à Rua Deputado Matoso Filho, nº 450, bairro Quintino Cunha, no Município de Fortaleza, Estado do Ceará. A Escola está localizada em um bairro popular situado na Secretaria Executiva Regional III (SER III) da cidade de Fortaleza, capital do Ceará. O bairro Quintino Cunha, segundo o IBGE, é um dos cinco bairros da SER III que possui um Índice de Desenvolvimento Humano Municipal-Bairro (IDHM-B) - ou seja, entre 0 e 0,499. É o segundo maior da SER III com 50.289 habitantes e considerado como um dos mais violentos, principalmente com relação a homicídios[8].

Considerando todo o contexto desses educandos, foi elaborado o primeiro projeto que teve como objetivo geral resgatar o convívio pacífico entre a comunidade escolar, incentivando os alunos ao respeito ao ser humano, bem como, às normas estabelecidas nas salas de aulas e no regimento escolar (CANDAU, 1995).

O projeto teve as seguintes estratégias:

1-Construir consolidado de direitos e deveres dos alunos;

2- Agendar palestras com os temas: respeito mútuo, violência, intolerância;

3-Valorizar e divulgar os dons artísticos apresentados pelos alunos.

As metas principais foram: atingir ao final do bimestre um nível satisfatório nas relações interpessoais e realizar todas as ações propostas com qualidade e eficiência.

Tabela. 2

Ações

Período

Responsável

Tornar público a toda comunidade escolar as regras de convivência;

março

Professores da disciplina projeto

Possibilitar um ambiente limpo e organizado;

março

Professores da disciplina projeto

Registrar as angústias e as sugestões apresentadas pelos alunos para a melhoria da escola e do convívio;

março

Professores da disciplina projeto

Trabalhar os valores éticos, respeito às diferenças raciais, sexuais, religiosas e à inclusão;

abril

Professores da disciplina projeto

Tornar as aulas mais agradáveis, dinâmicas e vídeos;

março

Professores da disciplina projeto

Começamos em expor para os educandos a seguinte afirmação “O desrespeito e a desvalorização do com ser humano nos últimos anos tem sido um grave e angustiante problema nas escolas e sociedades da maior parte do mundo. O que fazer? De quem é a culpa? Não adianta transferir responsabilidades, é necessário mudar de postura diante essa situação e buscar coletivamente a resposta para as questões abordadas.”

A avaliação foi feita durante os planejamentos no mês de abril, onde os professores constataram uma significativa melhora no convívio em sala.

Depois desse projeto inicial, foi abordado outro tema na disciplina de PE: sexualidade. Esse tema foi sugerido inicialmente pelo professor de matemática, pois o referido professor sentiu a necessidade de trabalhar esse tema a partir das colocações dos próprios alunos. Outra observação feita foi que na escola havia muitas adolescentes grávidas. Gravidez ora desejada, ora não. Concluímos que esse assunto seria pertinente no momento.

Trabalhos acadêmicos resultantes da pesquisa sobre comportamento sexual têm apontado para uma revisão da compreensão de uma nova abordagem por parte dos professores no que diz respeito a orientação sexual de crianças e adolescentes. (VILELA, 2014). Buscamos não estigmatizar, nem tão pouco impor nossa cultura, mas esclarecer e refletir sobre as consequências de uma relação sexual sem segurança.

Os próprios Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) colocam a orientação sexual para ser abordada como tema transversal, no caderno de “Pluralidade Cultural e Orientação Sexual” (1997) desde as séries iniciais.  O grande desafio era debater sobre as diferentes dimensões da sexualidade partindo das experiências dos próprios educandos, suas dúvidas e anseios.

A disciplina de PE abriu esse espaço para problematizar essa questão e descobrir quais direcionamentos a escola tem dado aos temas da sexualidade, bem como, transformar a sala de aula um espaço reflexivo e participativo.

De acordo com informação divulgada pelo estudo Juventudes e Sexualidades, feito pela UNESCO em 2004, meninas e meninos costumam buscar a ajuda de seus professores quando descobrem a gravidez. Dessa forma, os professores se veem forçados a orientar temas que muitas vezes não são aprofundados nos cursos de licenciaturas.

Por um lado os alunos necessitam de profissionais dentro das escolas capacitados para dar-lhes uma orientação adequada e, por outro, o professor, em especial, o do ensino fundamental precisa refletir sobre a importância da orientação sexual desses estudantes, perder o medo e enfim, mudar sua mente. (BRITZMAN, 2001).

  Vale salientar que segundo estudos, a gravidez na adolescência é um dos fatores que levam os jovens brasileiros a abandonarem os estudos. Na maioria dos casos, por serem de famílias de baixa renda, os adolescentes, deixam a escola em busca de trabalho e novas formas de sustento. De acordo com o estudo Juventudes Brasileiras, realizado pela UNESCO em 2006, 25% das meninas que engravidam na adolescência abandonam a escola (BRASIL,2007).

   Segundo dados publicados nos relatórios mundiais, cerca de 700 mil adolescentes (10 a 19 anos de idade) tornam-se mães a cada ano no Brasil. De 1980 a 2000, houve um aumento de 15% no índice de gravidez na adolescência na faixa etária de 15 a 19 anos (UNICEF, 2004). O assunto, portanto, é motivo de preocupação para toda a sociedade, especialmente para pais, jovens e professores.


Considerações finais

Na atual conjuntura, a responsabilidade da escola vai muito mais além que ensinar os conteúdos da base comum nacional. As unidades de ensino, a cada dia sentem a necessidade de educar e de cuidar para a vida social. Esse papel tem se ampliado, principalmente, nas escolas públicas porque muitos alunos não têm, por diversos fatores, o acompanhamento e/ou uma orientação adequada por parte da família.

A disciplina de PE tem proporcionado o trabalho DH nas escolas, porém não exclui a necessidade de incluir na matriz curricular do ensino fundamental a EDH. Não porque a EDH está em uma situação privilegiada para a disseminação destes valores entre os educandos, mas para direcionar o trabalho pedagógico e a formação continuada desses profissionais.

Acreditamos que a inclusão da EDH na grade curricular irá garantir ao professor a oportunidade de construção de conhecimento e de profissionalização da carreira docente aplicando o saber construído no próprio ambiente de trabalho, visto que muitos não obtiveram esses conhecimentos em suas licenciaturas. Logo, acreditamos que a formação inicial do docente precisa ser acrescentada por outros saberes, principalmente, saberes atuais sobre como trabalhar os DH no âmbito escolar.

Dessa forma, concluímos que educar significa uma reflexão constante sobre o ato de ensinar. Este por sua vez é permeado por contradição entre o discurso e a prática, numa tensão permanente, pois não há fórmula a aplicar, mas um sentido coletivo a construir (FRANCO apud MEIRIEU, 2002). Corroboramos com Rodrigues (2001), que compreende que a Ação Educativa, enquanto Ação Formativa, é uma atividade complexa e de alta responsabilidade. Segue um percurso não espontâneo e casual e deve ser conduzido por pessoas qualificadas para exercer a função de Educar.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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SANTANA, A.A, ARAÚJO, J. J. P, et al. O Contexto e o Intertexto na Música Pra Não Dizer Que Não Falei das Flores. Revista Graduando nº2 jan./jun. 2011.

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ-COVIO-UECE, Laboratório de Estudos da Violência da Universidade Federal do Ceará-LEV-UFC, 2011.Disponível em: www.uece.br/labvida/dmdocuments/regional_III.pdf. Acesso em: 26/02/ 2014.

VILELA, Maria Helena. Educação sexual se faz a cada dia. Disponível em: revistaescola.abril.com.br/.../educacao-sexual-cada-dia-432338.shtml. Acesso em: 02/2/2014.


Notas

[2] Aqui fazemos referência aos 10 anos que passamos lecionando no município de Caucaia, onde presenciamos o termo Tapeba sendo usado pelos alunos com sentidos pejorativos, falta de higiene, roubo ou alcoolismo.

[3]  A autora cita como exemplo o regime soviético.

[4]  Benevides entende “democracia” no sentido mais radical – radical no sentido de raízes – ou seja, como o regime da soberania popular com pleno respeito aos direitos humanos.

[5] Em entrevista como presidente do Fundo Brasil de Direitos Humanos e coordenador da ONG Ação Educativa. (REDE BRASIL,2012).

[6] A música "Pra Não Dizer Que Não Falei Das Flores", tem grande importância na história político-social do Brasil e suas contribuições para a transformação da sociedade brasileira perduram até os dias atuais. A letra de uma música traz consigo pensamentos de uma época, ideologias e características da cultura de um povo. (SANTANA, A.A,et al,2011).

[7] Cf. Material desenvolvido pela UFC Virtual e distribuído para os alunos do Curso de Formação Continuada  em Direitos Humanos- 2012.

[8] Cf. CARTILHA DA REGIONAL III. Mapa da Criminalidade e da Violência em Fortaleza – Perfil da SER III, Laboratório de Direitos Humanos, Cidadania e Ética da Universidade Estadual do Ceará-LabVida-UECE, Laboratório  de Estudos da Conflitualidade da Universidade Estadual do Ceará-COVIO-UECE, Laboratório de Estudos da Violência da Universidade Federal do Ceará-LEV-UFC, 2011.


Abstract:The intent of this paper is to report our experience as coordinator teacher at a public school in the city of Fortaleza in the first semester of 2014, in front of a new course in the curriculum for Junior High School: Especial Projects. This report detail its structure, present a locus of Human Rights this Course and the possibility to include matters about human values in daily school.

Key words: Experience- Human Rights- School Curriculum.


Autor

  • Erineuda do Amaral Soares

    Mestra em Gestão Educacional ( UNISINOS), Especialista em Metodologia do Ensino fundamental e Médio (UVA), Especialista em Gestão Escolar e Coordenação Pedagógica (FGF), Licenciada em Letras/Português (UFC) e Pedagogia( UVA). Coordenadora Pedagógica da Rede Municipal de Ensino de Fortaleza | [email protected]

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SOARES, Erineuda do Amaral. O lugar dos direitos humanos na escola: novas possibilidades na rede pública de ensino no Município de Fortaleza. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4456, 13 set. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/42211. Acesso em: 19 abr. 2024.