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Conflitos de interesses dos administradores das sociedades anônimas

Conflitos de interesses dos administradores das sociedades anônimas

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Aquele que se encontra em conflito de interesses deve cientificar os demais administradores (ou sócios) de sua existência na reunião do órgão administrativo.

Conflito de Interesses nada mais é do que a relação entre dois interesses, na qual a satisfação de um importa necessariamente em sacrifício do outro.

Conforme bem asseverado por Carnelutti: “O elemento econômico do direito é o conflito de interesses. Onde o conflito de interesses não há, não tem razão de ser o direito; não existe um fenômeno jurídico na raiz do qual a análise não encontre tal conflito.”[1]

Luis Felipe Spinelli trata do assunto da seguinte forma:

Todavia, interesses de diferentes indivíduos podem entrelaçar-se, formando as denominadas relações intersubjetivas, as quais também podem ser (i) de indiferença (quando a satisfação dos interesses de um sujeito não afeta a satisfação do interesse de outro), (ii) de solidariedade (quando os interesses de diversos indivíduos convergem, na qual a satisfação de um interesse depende da satisfação do de outrem – como acontece, por exemplo, no seio de uma sociedade empresária ou do próprio ente estatal) ou (iii) de conflito (na qual há verdadeiro choque entre interesses de indivíduos distintos diante da insuficiência de bens para a satisfação de todas as necessidades – confronto, este, que pode ser total ou parcial, ocorrendo este ultimo quando possível a satisfação, apesar de incompleta, das necessidades de ambos os indivíduos: nesse sentido, se dois sujeitos têm necessidades de se alimentar e não há comida para ambos, estamos perante um conflito de interesses intersubjetivo).[2]

Para Robert Clark, o conflito de interesses se divide em quatro categorias e decorrem do dever de lealdade:

a) Atos dos administradores com conflito de interesse por falta de independência (basic self-dealing); b) Decisões sobre a remuneração dos membros da administração, quando administradores decidem o quanto e quando ganhar, em verdadeira advocacia em causa própria (Executive compensation); c) Usurpação de negócio da companhia, quando há atos ilícitos que causam danos patrimoniais aos sócios (the talking of corporate of shareholder property); d) Administração da companhia com propósitos conflitantes entre si (Corporate action with mixed motives).[3]

O conflito de interesses dos administradores é um tipo de classificação dos conflitos de interesses no plano societário. Isso porque os administradores são aqueles que possuem poderes para exercer a vontade da companhia.

O conflito de interesses está diretamente ligado com o dever de informar, conforme leciona Luis Felipe Spinelli:

Todavia – e adentrando, agora, a segunda fase do procedimento estabelecido pelo art. 156 -, para que se ocorra uma correta deliberação por parte dos acionistas ou por administradores desinteressados é essencial que sejam corretamente informados – esta exigência é, pois, imprescindível. Deste modo, aquele que se encontra em conflito de interesses deve cientificar os demais administradores (ou sócios) de sua existência na reunião do órgão administrativo (mesmo que esteja a decisão fora da esfera se competência do gestor interessado, nos termos do caput do art. 156, como foi abordado acima), além de fazer consignar em ata as informações (o que é historicamente determinado em nosso País, aparecendo de modo expresso no caput do referido dispositivo) – o que demonstra toda cautela do legislador ao trabalhar o tema.[4]

O artigo 156 da Lei 6.404/76 disciplina de forma cristalina os conflitos de interesses, contendo algumas vedações e proibições aos administradores.

Igualmente, Nelson Eizirik assim se posiciona:

A matéria está expressamente disciplinada no art. 156 da Lei das S.A, que assim dispõe: ‘Art. 156. É vedado ao administrador intervir em qualquer operação social em que tiver interesse conflitante com o da companhia, bem como na deliberação que a respeito tomarem os demais administradores, cumprindo-lhe cientificá-los do seu impedimento e fazer consignar, em ata de reunião do conselho de administração ou da diretoria, a natureza e extensão do seu interesse.’ Ou seja, o administrador está proibido de intervir em operação social em que tiver interesse conflitante com o da companhia, sendo considerados conflitantes os interesses quando o atendimento de um importa o sacrifício total ou parcial do outro. Dessa forma, de acordo com a legislação societária, quando o interesse do administrador conflita com o da companhia, deve ele se abster de participar da deliberação que for tomada, cientificar os demais administradores e fazer constar da ata o seu impedimento.[5]

Desta forma, na esfera do direito societário pode-se constatar a existência de algumas normas que regulam o conflito de interesses. Todavia, existem dois tipos de conflitos, o denominado substancial e o formal.

Julian Fonseca Peña Chadiak explicita seu conhecimento, afirmado haver as duas correntes, no seguinte sentido:

“Com isso, surgem as duas correntes que vêm, com mérito, dominando a discussão sobre a matéria. Os que adotam o critério formal, afirmam que existiria um conflito a priori, derivado da mera posição do agente (administrador ou acionista), permitindo-se definir, independentemente do conteúdo da manifestação, que haveria uma situação de conflito. Criticando essa posição, temos os que adotam o critério substancial, afirmando que o conflito apenas de caracteriza a posteriori, havendo a necessidade de se verificar o conteúdo da manifestação, para apenas então se saber se houve conflito. [6]

Neste passo, discorreremos sobre ambas as espécies de conflitos de interesses dos administradores nos tópicos seguintes.


1 Formal (a priori)

O denominado conflito de interesses formal se caracteriza pela presença de um impedimento a priori do administrador, o qual se encontra em posição que poderia haver um interesse conflitante com o da empresa.

Julian Fonseca Peña Chadiak tem a seguinte posição:

Os que adotam a posição formal creem que se pode apurar o conflito diante da mera posição do agente, de sua situação, não importando o que ele pretende fazer. Se o agente não está agindo de forma desinteressada, se ele tem mais de um interesse, ele deve se abster de realizar o ato ou de participar da deliberação que vise a alcançá-lo, uma vez que a mera possibilidade de ocorrência do conflito já caracterizaria a existência do conflito.[7]

Neste passo, o administrador deverá se declarar impedido para tomar parte na deliberação previamente, para evitar qualquer duplo interesse deste, evitando qualquer situação prejudicial à companhia.

Nelson Eizirik entende:

Segundo o direito italiano, apenas para exemplificar, o administrador que, em certas operações, tiver interesse em conflito com a sociedade deve dar notícia do fato aos demais administradores e ao conselho fiscal, além de abster-se de participar nas deliberações concernentes à mesma operação, respondendo pelos prejuízos que causar em virtude do descumprimento dessa regra.[8]

Marcelo Vieira Von Adamek ensina:

De modo genérico, dispõe a lei acionária que o administrador não pode intervir em qualquer operação social em que tiver interesse conflitante com o da companhia e, na deliberação que a respeito tomarem os demais administradores, deve-se abster-se de votar; mais do que isso, necessita ainda (i) cientificar os demais membros do seu impedimento e (ii) fazer consignar em ata de reunião do conselho de administração ou da diretoria, a natureza e a extensão do seu interesse (LSA, art. 156, caput). Ainda que observadas essas formalidade, o administrador somente poderá contratar com a companhia em condições razoáveis ou equitativas, idênticas ás que prevalecem no mercado ou em que a companhia contrataria com terceiros (LSA, art. 156, § 1º), sob pena de o negócio ser anulável e o administrador ser obrigado a transferir para companhia as vantagens que dela tiver auferido (LSA, art. 156, § 2º), sem prejuízo de responder civilmente pela reparação dos prejuízos causados à sociedade.[9]

Entretanto, podem existir situações em que o administrador não se declara impedido e mesmo assim não se verifica qualquer prejuízo à empresa, oportunidade em que não haverá qualquer alegação de anulabilidade.

Ou seja, caso o negócio seja realizado de forma equitativa, obedecendo a norma estipulada no caput e § 1º, do artigo 156, da Lei 6.404/76, mesmo sem a declaração de impedimento do administrador, não resulta em negócio anulável.

Assim, se concluído o negócio em condições justas, não teria razões para a sociedade buscar a anulação do negócio, também porque não haveria descumprimento do parágrafo primeiro acima citado.

Caso haja impedimento por parte do administrador, mas o negócio não seja realizado de forma equitativa, terá de ser anulado e o administrador deverá devolver qualquer vantagem que auferiu, conforme dispõe o parágrafo segundo do artigo 156 da Lei das S.A. Note que neste caso é explicita a teoria formal.

Sendo assim, o administrador não será responsabilizado por qualquer ato, uma vez que declarou-se impedido, salvo situações em que agir com má-fé, em sentido amplo, conforme entendimento de Julian Fonseca Peña Chediak:

Se o administrador deu-se por impedido, ou seja, não participou da formação da vontade da companhia, não vejo como responsabilizá-lo por eventuais danos que porventura tenham sido causados à companhia e que sejam superiores às vantagens que o administrador tenha recebido como contraparte do negócio. Por tais danos respondem apenas os demais administradores, aqueles responsáveis pela formação de vontade da companhia, e deles se haverá de exigir o padrão de diligência do art. 153; ou seja, eles poderão ser escusados se tiverem agido com diligência, como em qualquer outro negócio. Para que o administrador que se deu por impedido se veja na situação de estar obrigado a indenizar a companhia para além das vantagens que tiver auferido será necessário demonstrar que ele de alguma forma agiu em conluio com os demais administradores, que os influenciou indevidamente. E é claro que o ônus de tal prova recairia sobre quem estivesse pretendendo a indenização.[10]

Modesto Carvalhosa entende que o conflito de interesses tem dupla natureza, de representação e de deliberação. Vejamos:

O impedimento imposto pela Lei aos administradores é de dupla natureza: de representação e de deliberação. Evidentemente que este último é mais abrangente do que o primeiro, incluindo-se nele todos os administradores, mesmo aqueles que, por serem membros do conselho de administração, não têm representação da companhia (art. 138). O impedimento de representação restringe-se, portanto, aos diretores com poderes derivados do estatuto e da própria Lei (art. 144). O exercício do poder de representação, na espécie, é legítimo, não pelas consequências patrimoniais do ato, mas pela confusão de pessoas como partes da avença. Ainda uma vez reitere-se que o conflito formal de representação não pressupõe dano ou ilicitude. Mesmo que o negócio venha a ser altamente vantajoso para a companhia, o impedimento subsiste. Trata-se de impedimento que objetivamente leva em conta a finalidade da representação orgânica da sociedade.[11]

Concluindo, no conflito de interesses formal, o administrador pode de declarar impedido de participar de qualquer deliberação que exista possibilidade de conflito, ou seja, trata-se risco a priori de se caracterizar uma contratação não equitativa.


2 Substancial (a posteriori)

Conforme a classificação em comento, o conflito de interesses substancial se caracteriza a posteriori, havendo de ser caracterizado por uma deliberação ou ato que resulte o conflito.

Julian Fonseca Peña Chadiak também assevera:

Já, a corrente que adota a posição substancial acredita que o conflito não pose ser caracterizado potencialmente, apenas diante da deliberação ou de atos concretos. A mera duplicidade de interesses não impediria o agente; há necessidade de que os interesses sejam inconciliáveis, que de fato o agente aja no interesse próprio, e não no interesse da companhia, a fim de que se verifique a ocorrência do conflito. A mera possibilidade de conflito não caracteriza a existência do conflito.[12]

Assim, evidenciado o conflito, o ato ou deliberação deverá ser anulado, visando evitar qualquer prejuízo à companhia. Neste caso, o administrador deverá transferir à companhia todos os benefícios que tiver auferido, bem como responder por qualquer prejuízo que a companhia tiver suportado. Para não haver responsabilização, o administrador deverá provar que inexistiu culpa.

Para Marcelo Vieira Von Adamek, o conflito de interesses  dos administradores será sempre substancial, in verbis:

Entre nós, o conflito, se existente, será sempre substancial (isto é, efetivo), dependente da prova do prejuízo. Note-se que a Lei das S/A não proclama a invalidade do ato pelo só fato de o administrador haver deixado de ressalvar o seu interesse no ato ou de ter tomado parte da deliberação societária; pelo contrário, a invalidade somente resultará, se ficar provado o prejuízo concreto da companhia, isto é, se provar que o ato foi realizado em condições não-equitativas.[13]

Compartilhando da mesma ideia, Luis Felipe Spinelli afirma:

Entretanto, historicamente, a doutrina normalmente rejeita o caráter meramente formal do conflito de interesses (como a singela oposição de partes contratantes, a qual é existente em todo negócio jurídico bilateral), afirmando-se que a questão deve ser apreciada de acordo com o caso concreto – fazendo-se, então, a análise ex post factum. Esta é, sem dúvida, a posição majoritária (e que vai ao encontro da prevalecente interpretação dada para o art. 115, § 1º). [...] E, efetivamente, é afastada de imediato a impressão de que o conflito de interesses é formal quando se questiona o que seja interesse conflitante. Assim, conclui-se que não há critério prévio para evidenciá-lo, sendo sua constatação uma questão de fato, como ficou demonstrado (no item 2.2) ao conceituarmos o confronto entre o interesse pessoal do gestor e o interesse patrimonial da companhia e ao analisarmos os mais diversos exemplos. Não há como arrolar ex ante todas as hipóteses em que o gestor está em conflito de interesses (porque as situações em que o efetivo confronto de interesses pode ocorrer são incontáveis e, muitas vezes, as mais surpreendentes, não se restringindo a algumas hipóteses de contrato entre sociedade e gestor).[14]

Em contrapartida, não há no que se falar em ato anulável se não houve conflito, já que não resultará em prejuízo algum.

Entretanto, no que diz respeito à responsabilidade, como o administrador não se deu por impedido, e participou da deliberação, não teria seguido a norma estipulada no artigo 153, ou seja, não cumpriu com o dever de diligência. Deste modo, o ônus da prova inverte-se, cabendo ao administrador provar que cumpriu com o dever de diligência, bem como que não teria havido qualquer prejuízo à companhia.

Concluindo, o conflito de interesses substancial traz maiores riscos aos administradores, já que poderá ser responsabilizado por participar da deliberação e pela dificuldade em produzir provas excluindo eventual culpa.


Notas

[1] CASTRO, Rodrigo R. Monteiro de & ARAGÃO, Leando Santos de (coord.) – Sociedade Anônima – 30 anos da Lei 6.404/76 – São Paulo : Quartier Latin, 2007. p. 344. APUD, CARNELUTTI, Francesco. Teoria genérale del diritto. Rma: Foro Italiano, 1946.

[2] SPINELLI, Luis Felipe. O conflito de interesses na administração da sociedade anônima. / Luis Felipe Spinelli. – São Paulo: Malheiros, 2012. p. 133/134.

[3] CASTRO, Rodrigo R. Monteiro de & ARAGÃO, Leando Santos de (coord.). p. 346. APUD, CLARK, Robert. Corporate Law. New York: Aspen Publishers, 1986; e CLARK, Robert. Agency Costs versus fiduciary duties. In: PRATT. J. et alii. Principals and agentes: the structure os business Boston : Harvard University Press, 1985.

[4] CASTRO, Rodrigo R. Monteiro de & ARAGÃO, Leando Santos de (coord.) – Sociedade Anônima – 30 anos da Lei 6.404/76 – São Paulo : Quartier Latin, 2007. p. 3227/228.

[5] NELSON, Eizirik. Temas de direito societário / Nelson Eizirik. – Rio de Janeiro: Renovar, 2005. p. 73.

[6] Temas de Direito Societário e Empresarial Contemporâneos. Marcelo Vieira von Adamek (Coord.). São Paulo, Malheiros, 2011, p. 410.

[7] Temas de Direito Societário e Empresarial Contemporâneos. Marcelo Vieira von Adamek (Coord.). São Paulo, Malheiros, 2011, p. 411.

[8] EIZIRIK, Op. Cit. p. 359.

[9] ADAMEK, Marcelo Vieira Von. Op. Cit. p. 161 – 163.

[10] Temas de Direito Societário e Empresarial Contemporâneos. Marcelo Vieira von Adamek (Coord.). São Paulo, Malheiros, 2011, p. 415/416.

[11] CARVALHOSA, Modesto. Op. Cit. p. 451.

[12] Temas de Direito Societário e Empresarial Contemporâneos. Marcelo Vieira von Adamek (Coord.). São Paulo, Malheiros, 2011, p. 411.

[13] ADAMEK, Marcelo Vieira Von. Op. Cit. p. 165/166.

[14] SPINELLI, Luis Felipe. Op. Cit. p. 250/251.



Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GERBER, Philippa. Conflitos de interesses dos administradores das sociedades anônimas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5235, 31 out. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/43856. Acesso em: 26 abr. 2024.