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A crise do superendividamento do consumidor de boa-fé

A crise do superendividamento do consumidor de boa-fé

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O superendividamento é instituto frequente em nossa sociedade, tronando-se assim, um problema social. Vejamos o seu significado, como acontece em outros países e de que forma é tratado aqui no Brasil.

1 Introdução

O presente trabalho faz análise do fenômeno famoso chamado de Superendividamento, onde será conceituado o mesmo, definindo quem são os consumidores superendividados, de que forma são caracterizados, seus requisitos, como poderão tentar sanar a insolvência civil dos mais vulneráveis e seu tratamento adequado. Objetivou também, realizar o estudo do direito comparado, buscando compreender de que forma este instituto é tratado, com ênfase na União Europeia e nos Estados Unidos. Evidenciam-se também, quais atitudes estão sendo tomadas pelo Poder Público em função desta relação de crédito, para tentar solucionar a crise que assola a população mundial e também, que há uma necessidade de legislação especial que venha tratar do assunto. Ademais, ainda é disposto o Projeto Piloto do Poder Judiciário gaúcho, reconhecendo o quão indispensável é a reeducação dos consumidores e fornecedores, fazendo-os analisar quais seus direitos e deveres, com o fim de recoloca-los na relação de mercado.

2 Conceito de Superendividamento

Vivemos na era do imediatismo e da facilidade de contrair créditos, o que propiciou um aumento significativo no número de pessoas físicas que encontram-se superendividadas, gerando um problema não só econômico, mas também jurídico e social, pois os mesmos não conseguem adimplir suas obrigações, levando-os à insolvência civil e assim, consequentemente, excluindo-os do mercado de consumo.

O superendividamento trata-se da situação em que o consumidor, de boa-fé, verifica que sua renda e seu patrimônio (ativo) não suporta adimplir suas obrigações (passivo) e para reverter a situação, necessita de auxílio para reconstruir sua vida econômica.

A professora Cláudia Lima Marques (2010, p. 20) define superendividamento como: “a impossibilidade global de o devedor, pessoa física, consumidor, leigo, de boa-fé, pagar todas as suas dividas atuais e futuras de consumo”.

Desta forma, para considera-lo como superendividado, o indivíduo deve ser, pessoa física, consumidor (não pode decorrer de atividade profissional), de boa-fé (requisito essencial) e ter o passivo maior que o ativo, onde a impossibilidade de pagamento deve ser manifesta, visto que a falta de liquidez momentânea não caracteriza o superendividamento.

Para Schmidt Neto, (2009), podemos ainda, caracteriza-lo da seguinte forma:

1) Superendividamento ativo: o consumidor se endivida voluntariamente, em virtude de má gestão do orçamento familiar, contraindo dívidas maiores do que ele pode pagar, por mero impulso ou apelo comercial. Subdivide-se em ativo consciente e ativo inconsciente.

A) Ativo consciente: o consumidor age de má-fé, pois sabe que não tem recursos para adimplir e sua intenção é não pagá-las, visando ludibriar o credor. O mesmo não receberá proteção do Estado para recuperar-se, pelo simples fato da ausência da boa-fé, que é requisito essencial.

B) Ativo inconsciente: age de forma irresponsável e impulsiva, deixando de controlar seus gastos. Pode ser chamado também de pródigo, pois se deixa seduzir pelo mercado, adquirindo produtos supérfluos. Nesse caso, o Estado o auxilia pelo fato de haver onerosidade e vulnerabilidade.

2) Superendividamento passivo: ocorre quando o devedor fica nessa situação por motivos externos e imprevistos, os chamados “acidentes da vida”. Não age de má-fé e não ocorre má gestão. Somente encontra-se nesta situação por motivos alheios, tornando-se vulnerável. Por isso, o Estado tem desejo de ajuda-lo, dando maior dignidade à sua vida.

Necessário ressaltar, que pesquisas feitas em 2006, relatadas por Cláudia Lima Marques, mostram que o superendividamento passivo é mais frequente, devido as mudanças bruscas de rendimento. “Os dados que levantamos nessa pesquisa piloto de 100 casos, comprovam que os consumidores do Rio Grande do Sul não são “endividados ativos”. Ao contrário, mais de 70% deles são superendividados passivos, que se endividaram em face de um “acidente de vida”, desemprego, morte de algum parente, divórcio, doença na família, nascimento de filhos, etc. (desemprego 36,2%, doença e acidentes 19,5%, divórcio 7,9%, morte 5,1% e outros, como nascimento de filhos, 9,4%. (MARQUES, C., 2006, p. 302).

2.1 Tratamento adequado do Superendividamento

Sabemos que o sistema jurídico tem abrangência de princípios e regras para que o mesmo seja equilibrado e aberto, facilitando o surgimento de interpretação das mais diversas situações jurídicas cotidianas, mas ainda mantendo o sistema seguro e de poucas falhas. Além disso, contamos com análises doutrinárias e jurisprudenciais (princípios) que colaboram na aplicação do direito e dão norte as decisões judiciais. Estes princípios regulam o superendividamento, visto que, não há legislação específica vigente e assim, visam a proteção ao consumidor, que é indispensável.

Destaca-se aqui, quão insuficiente se tornou o Código de Defesa do Consumidorfrente à matéria do superendividamento, pois dedicou apenas o seu art. 52 com previsão de um rol mínimo de informações, ainda de maneira geral e principiológicas, sem medidas e normas detalhadas, tornando-se baixa a proteção efetiva.

Os principais problemas que o superendividado enfrenta, são as altas taxas de juros, cláusulas abusivas nos contratos e sua dificuldade de conseguir cópia, além da falta de informação (diga-se, leigo) e clareza nas publicidades abusivas, que muitas vezes são até enganosas, visando ludibriar o consumidor, afundando-o em dívidas.

Diante da ausência de legislação específica, faz-se necessária a utilização do direito comparado, que veremos mais adiante e dos princípios que regem as relações consumeiras.

Para Marques (2010, p. 25), o Direito do Consumidor e O Código de Defesa e Proteção do Consumidor tem como finalidade proteger os consumidores, melhorando a qualidade e lealdade dos produtos e serviços, incluindo-os na sociedade, melhorando seu acesso, promovendo assim a proteção, educação e informação para trazer mais segurança e transparência ao mercado, combatendo as abusividades e conflitos.

Portanto, este instituto deve ser regido pelos princípios da transparência, equidade, confiança e boa-fé objetiva.

2.2 Direito Comparado

Como citado anteriormente, o Brasil não possui mecanismos específicos para enfrentar a grave situação do superendividamento, faz-se mister a utilização de outros elementos para auxiliar o consumidor frente a situação que enfrenta. Dessa forma, podemos nos basear no direito comparado, para assim, encontrarmos a solução para a resolução dos conflitos. Encontramos regulamentações específicas sobre esse tema, principalmente no direito americano e no francês.

A doutrina estrangeira admite que o fenômeno do superendividamento ultrapassa a esfera jurídica, atingindo as esferas sociais, econômicas e familiares, além de toda a sociedade e perante isso, não há nem mais questionamentos sobre adotar medidas de prevenção e tratamento, tornando-se assim, óbvio.

O sistema jurídico brasileiro, por não possuir regramento para tal tema, utiliza-se da conciliação, lógica e do direito comparado francês, no qual trata a informação como a mais importante ferramenta para a tutela do consumidor e assim, visa diminuir conflitos entre credores e consumidores, fazendo as partes chegarem a um acordo, tendo por base, assim, o direito francês, da ideologia da solidariedade.

Franco (2010, p. 238) destaca que: “[...] a legislação francesa reconhece que a situação de superendividamento merece ser beneficiada por um tratamento especial e específico... Mas sempre avaliando concretamente se o consumidor que se endividou, agiu de boa-fé ao contrair os débitos”.

Para isso, Sophie Gjidara (Op. Cit., p. 328) afirma que a informação e a decisão formam uma dupla inseparável, na medida em que o consumidor deve ter à sua disposição todos os elementos necessários para uma tomada de decisão que reflita sua vontade profunda, verificando a proteção do consentimento do consumidor. Assim, segundo a Diretiva Europeia e as legislações Bélgas e Francesas, deve-se utilizar a publicidade, a oferta, o consentimento refletido, o dever de conselho e o crédito responsável para reforçar as condições de um consentimento esclarecido pelo consumidor de crédito, tendo como ideia que deve haver a possibilidade de reflexão e debate sobre o mesmo.

Já os Estados Unidos, possuem uma resposta um pouco diferente para o superendividamento, fazendo com que o consumidor assuma as consequências, ao invés de fazê-lo recomeçar do zero, ao contrário do sistema europeu, que como vimos, dá aos consumidores um incentivo, para assim, modificar seus hábitos e gastar de forma consciente. Assim, o Congresso Americano queria que os consumidores entendessem que eles têm o dever moral de decidir responsavelmente sobre seus gastos e também fazer com que os mesmos ao menos tentassem quitar suas dívidas, criando o Ato de Prevenção ao Uso Abusivo da Falência e de Proteção do Consumidor (sigla americana: BAPCPA) e assim, evitando que os consumidores eximam-se de suas dívidas e somente peçam pela sua falência.

Desta forma, acreditam então que, a informação/educação dos consumidores, a regulação do superendividamento e a criação de normas específicas melhoram de forma significativa, ou até mesmo, resolvem, a atual crise do superendividamento.

No ordenamento jurídico de cada um dos Estados-membros do Mercosul não há lei especial que regule os contratos de crédito ao consumidores, ao contrário da União Europeia, com sua Diretiva 2008/48/CE que harmoniza as disposições relativas aos contratos de crédito aos consumidores. No Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai, as normas que fazem referência aos contratos de crédito não são especificas, tornando-se assim, sem proteção e ineficazes. Desta forma, fica margem para que os bancos europeus e americanos atuem com más práticas na America Latina, o que não é possível na União Europeia e nos Estados Unidos.

Portanto, temos aqui verificado que é necessário aperfeiçoar as legislações nacionais relacionadas ao contratos de crédito, inserindo o direito do consumidor na temática dos direitos humanos e proteção em que se deve conferir ao sujeito vulnerável e assim, garantindo que o consumidor de boa-fé seja amparado por órgãos responsáveis pela política de defesa do consumidor.

2.3 Projeto de Lei 283/2012 e Projeto Piloto de Tratamento de Superendividamento no Poder Judiciário gaúcho

Para beneficiar os consumidores pessoas físicas de boa-fé, o Senado lançou um projeto de lei em 2012, visando preparar o mercado e a sociedade para o superendividamento, reforçando as ideias existentes no Código de Defesa do Consumidor quanto à informação e transparência, regulando as relações de consumo. Fica estabelecida a questão da boa-fé e a função social dos contratos, garantindo ainda ao consumidor, a entrega de uma cópia do contrato firmado entre ele e o credor, além de existir regras para a propaganda. Tem como proposta, garantir de forma clara e precisa a defesa do consumidor nas relações creditícias, mecanizando a realização de acordos tanto em demandas já levadas à Justiça, como em conflitos ainda jurisdicionalizados.

Já o Poder Judiciário gaúcho possui o ‘Projeto Piloto de Tratamento das Situações de Superendividamento dos Consumidores” respaldado no Movimento “Conciliar é Legal” do CNJ, tornando-se pioneiro no país ao tratar do tema do superendividamento do consumidor brasileiro, baseado em auxiliar o consumidor por meio da conciliação com seus credores, possibilitando seu acesso à justiça para resolver suas dívidas, dando ênfase na renegociação do consumidor endividado de forma amigável e sem conflitos, além de reinseri-lo ao meio social. Esse projeto foi coordenado pela Dra. Cláudia Lima Marques, com colaboração das juízas de direito das comarcas de Sapiranga e Sapucaia do Sul, baseado no modelo europeu de reeducação, tendo como função o tratamento e a prevenção do superendividamento.

O procedimento do Projeto Piloto é consensual e pré-processual, e não é distribuído como ação judicial, com caráter voluntário e se encerra com a audiência de conciliação. Assim como no sistema francês, a iniciativa é exclusiva do devedor, que recorre ao Poder Judiciário quando acredita estar em situação de superendividamento.

O consumidor superendividado, munido ou não de advogado, deve preencher o formulário-padrão que está a disposição no Poder Judiciário e em outros órgãos parceiros dos projetos e declarar suas informações: dados de identificação, dados socioeconômicos, mapa dos credores, além de receberem uma cartilha com maneiras de prevenção frente ao superendividamento, prevenindo e educando-o. Com base nas informações do formulário, são colhidas as estatísticas acerca do perfil do consumidor e da conduta dos credores na hora da concessão do crédito. Após, será feita audiência de conciliação/renegociação na presença de todos os credores que comparecerem, para ser negociar todos as dívidas do consumidor, sempre respeitando a existência do mínimo legal para sua sobrevivência. A audiência será realizada por juiz de direito ou conciliador por ele nomeado, no máximo de 30 dias. A presença do superendividado na audiência de conciliação é de suma importância, visto que sem ele, a mesma não ocorre.

Se restar acordo, o mesmo é registrado em ata, onde se especificará o valor da dívida e a forma de pagamento para cada credor, sendo constituído como título executivo judicial, podendo somente ser modificado perante novo acordo entre credor e devedor. Se descumprido, poder-se-á exigir o cumprimento da sentença na forma prevista pelo Código de Processo Civil. Em caso de não haver acordo entre as partes, o procedimento é extinto.

Conclusão

O presente estudo abordou um problema social que vem provocando transtornos nas mais diversas áreas do país, que faz com que haja um grande desequilíbrio, tanto social, quanto econômico.

Desta forma, fica enfatizado que o superendividamento merece um tratamento específico e regulamentação especial, já que se trata de um fenômeno envolvendo pessoas de boa-fé, que possuem interesse em quitar suas dívidas, mas que não possuem condições para satisfazê-las.

Vimos que, mesmo ainda não havendo legislação específica sobre este instituto, fica verificado o uso do direito comparado para a resolução dos conflitos, sendo mais utilizado o método francês, onde há renegociação de dívidas do consumidor com o credor, sem prejudicar qualquer uma das partes e assim, combater este grande problema econômico e social, fazendo que esses indivíduos sejam reinseridos no mercado de consumo de forma educada do ponto de vista do consumo consciente, honrando assim, seus compromissos, de forma que não comprometam sua subsistência com dignidade, o que é o fim maior objetivado pelo texto constitucional.

Referências

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SCHMIDT NETO, André Perin. Superendividamento do consumidor: conceito, pressupostos e classificação. In: Revista do Direito do Consumidor, São Paulo, v. 18, n. 71, p. 9-33, jul./set. 2009.


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