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O amor como pecúnia: a responsabilidade civil pelo abandono afetivo parental no direito das famílias contemporâneo

O amor como pecúnia: a responsabilidade civil pelo abandono afetivo parental no direito das famílias contemporâneo

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A entidade familiar se modificou no tempo de acordo com os valores sociais. Sendo o afeto familiar de suma importância para o indivíduo, a sua privação pode gerar sequelas no âmbito pessoal, psicológico, moral e até na construção do indivíduo como cidadão

RESUMO:A entidade familiar se modificou no tempo de acordo com os valores sociais. Passando das relações hierarquizadas e patriarcais, para o modelo fundado no amor e afeto. Sendo o afeto familiar de suma importância para o indivíduo, a sua privação pode gerar sequelas no âmbito pessoal, psicológico, moral e até na construção do indivíduo como cidadão. Desta maneira, o Superior Tribunal de Justiça reconheceu que a inexistência de afeto nas relações paterno-filiais gera traumas irreparáveis à pessoa, cabendo indenização por dano moral. Essa decisão teve como premissa o aspecto normativo da responsabilidade civil pelo abandono e o descumprimento dos deveres e obrigações decorrentes do poder familiar. Entretanto, não se sabe ao certo se tratar o amor como pecúnia representa avanço ou retrocesso no Direito das Famílias na contemporaneidade. O presente trabalho tem por objetivo analisar, através de pesquisas bibliográficas e jurisprudenciais, o emprego da responsabilidade civil nos casos de abandono afetivo parental e a aplicação da indenização por dano moral. Observando as visões antagônicas sobre conceber as relações paterno-filiais apenas no campo patrimonial e todas as controvérsias que elas ensejam no universo jurídico. Visto que, não é pacifico se a “judicialização” do afeto alcança a função social do instituto.

Palavras-chave: Direito de família, abandono afetivo parental, responsabilidade civil.

ABSTRACT:The family entity has been modified along time according to the social values. Going through defined standards, with the father figure, building basis of love and affection. Family affection, being one of the most important things to a person, where it’s abcense may cause damage to the psychological, moral and in the construction of a reasonable citizen. Therefore, the federal supreme court recognized that the existence of affection in paternal  relationships generates irreversible trauma to the person, bringing the right of asking  for indemnification. This decision had as assumptions the normative aspect of civil liability abandonment and breach of the duties and obligations of family power. However, we don’t know for sure if treating love with pecunia represents the development or backspace in the modern family law. This study aims to analyze, through literature searches and jurisprudential, employment of civil liability in cases of abandonment and parental affective application of moral damages. Watching the opposing views about conceiving paternal relationship only in the assests and all the controversies wich give rise in the legal universe. Once the judicialization affection reaches its social function of the institute.

Key words: Family law, paternal abandonment, civil liability.


Introdução

A entidade familiar é a estrutura basilar da sociedade, e se transforma no tempo, de acordo com os valores sociais. A concepção de família se modificou, passando das relações hierarquizadas e patriarcais para o modelo fundado nos laços de amor e afeto.

O afeto familiar é dotado de importância aos indivíduos e a sua privação pode gerar sequelas que perdurarão por toda existência; seja no âmbito pessoal, psicológico, moral ou na construção do indivíduo como cidadão. A ausência do genitor na formação dos filhos quanto à falta de afeto podem ser encaradas como omissão danosa.

Na tentativa de minimizar os efeitos danosos do abandono afetivo, o Superior Tribunal de Justiça reconheceu que a inexistência de afeto nas relações paterno-filiais gera prejuízos irreparáveis à pessoa, cabendo indenização por dano. Essa decisão teve como premissa o aspecto normativo da responsabilidade civil e do descumprimento dos deveres e obrigações decorrentes do poder familiar.

O Art. 1.634, do Código Civil Brasileiro de 2002, dispõe que o dever dos pais não é restrito ao sustento material dos filhos, mas também, a obrigação se estende a  criação e  educação,  bem como o direito/dever de tê-los em sua companhia e guarda. Do preceito normativo em epígrafe se depreende que os elementos extras patrimoniais como: valores morais, convivência familiar, orientação educacional e a própria construção do indivíduo como cidadão são tão imperiosos ao filho quanto assistência material.

É inquestionável que a ausência do afeto, do carinho e da presença do genitor na vida da pessoa acarretará danos irremediáveis. Entretanto, a tentativa simplista de resolver na esfera patrimonial os danos decorrentes do abandono afetivo parental gera controvérsias no meio jurídico.

Não se sabe ao certo se seria possível solucionar no campo da responsabilidade civil a questão da ausência do afeto, e se uma indenização seria apta a sanar à falta de assistência dos pais. Além disso, a fixação de indenização pecuniária pela falta de afeto poderia ensejar maiores desavenças entre as partes, solidificando, desta maneira, o afastamento entre eles.

Ao longo do presente trabalho, pretende-se analisar as visões antagônicas sobre a indenização por abandono afetivo, buscando compreender se tratar o amor como pecúnia caracteriza um avanço ou retrocesso no Direito das famílias contemporâneo.


Família e afeto

O conceito de família, seus princípios fundamentais bem como a sua própria formação se modificaram no tempo de acordo com os preceitos sociais. A história da família é extensa, não linear e configurada por rupturas sucessivas, não sendo possível estabelecer um ideal de família estagnado ou imutável. Segundo Dias (2008), a família constitui um agrupamento informal, de formação espontânea no meio social, cuja estruturação se dá através do Direito, que se apresenta apenas como instrumento de concretização da realidade.

As relações familiares desde os primórdios eram estabelecidas segundo os modelos hierarquizados e patriarcais, tendo a necessidade do matrimônio para o reconhecimento jurídico. A família era vista como uma unidade de produção, que incentivava a procriação, com o intuito de fortalecer os laços patrimoniais. Farias e Rosenvald (2010, p. 4) afirmam que “as pessoas se uniam em família com vistas à formação de patrimônio, para sua posterior transmissão aos herdeiros, pouco importando os laços afetivos”.

Entretanto, como indica Dias (2009, p. 28) “a Revolução Industrial fez aumentar a necessidade de mão-de-obra, principalmente nas atividades terciarias”, assim, novas perspectivas sociais passaram vigorar. Houve a necessidade de as mulheres integrarem o mercado de trabalho, mitigando o império machista e patriarcal, acabando com a preponderância do caráter produtivo e reprodutivo da família.  

Sobre essa nova concepção da família, esclarecem Farias e Rosenvald (2010, p.4):

A arquitetura da sociedade moderna impõe um modelo familiar descentralizado, democrático, igualitário e desmatrimonializado. O escopo precípuo da família passa a ser a solidariedade social e demais condições necessárias ao aperfeiçoamento e progresso humano, regido o núcleo familiar pelo afeto, como mola propulsora.

A afetividade torna-se essencial nas relações familiares, Lobô (2009) afirma que a atual concepção familiar prioriza o laço de afetividade que une seus membros, o que propiciou uma reformulação do conceito de filiação que se desprendeu da verdade biológica e passou a valorar muito mais a realidade afetiva.

Sendo o afeto o laço que une as famílias na modernidade ele é tão elementar para as relações paterno-filiais quanto os laços biológicos, assim ensina Nogueira (2001, p.86):

Para a criança, sua simples origem fisiológica não a leva a ter vínculo com seus pais; a figura dos pais, para ela, são aqueles com que ela tem relações de sentimento, aqueles que se entregam ao seu bem, satisfazendo suas necessidades de carinho, alimentação, cuidado e atenção.

Segundo Cervany (2010), a presença do amor no convívio familiar possui grande importância para o ajustamento psicológico e afetivo dos filhos, e a privação do afeto pode gerar sequelas que perdurarão por toda a existência; seja no âmbito pessoal, psicológico, moral ou afetivo.

Nesse sentido, Winnicott (2008) afirma:

do lado psicológico, um bebê privado de algumas coisas correntes, mas necessárias, como um contato afetivo, está voltado, até certo ponto, a perturbações no seu desenvolvimento emocional que se revelarão através de dificuldades pessoais, à medida que crescer. Por outras palavras: à medida que a criança cresce e transita de fase para fase do complexo de desenvolvimento interno, até seguir finalmente uma capacidade de relacionação, os pais poderão verificar que a sua boa assistência constitui um ingrediente essencial.

Demonstrada a relevância do afeto para o desenvolvimento regular do indivíduo, bem como para as suas relações interpessoais, é possível inferir que privação desse afeto, pode ser encarada como omissão danosa à formação integral da pessoa humana.


O abandono afetivo parental no ordenamento jurídico brasileiro

Aceitar o abandono afetivo como premissa para dano moral e, consequentemente passível de indenização, tem gerado uma crescente procura pelo judiciário, a fim de que os filhos sejam ressarcidos de alguma maneira pela quebra dos deveres jurídicos dos pais em relação a seus filhos. Segundo Barros (2005, p. 886) “a afeição é um fato social jurígeno, que gera direitos e obrigações acerca de vários bens e valores, como alimentos, moradia, saúde, educação, etc.”, portanto, o afeto nas relações sociais é protegido por todo o ordenamento jurídico, seja: através dos princípios constitucionais,  ou princípios do direito privado.

O princípio da afetividade é decorrente dos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e da solidariedade familiar. A afetividade deixa de ser valor jurídico e torna-se princípio quando as relações familiares deixam de ser essencialmente para desenvolvimento patrimonial ou para a reprodução e passam a ser espaço para o desenvolvimento e crescimento pessoal. Pereira (2005) destaca que:

De simples valor jurídico a principio jurídico foi um outro passo, e historicamente, é recente. O principio da afetividade nos faz entender e considerar que o afeto pressupõe também o seu avesso, já que o amor e o ódio são complementos ou são dois lados de uma mesma moeda. Faltando o afeto, deve entrar a lei para colocar limites onde não foi possível pela via do afeto.

Segundo as premissas desse princípio, nas famílias modernas prevalece o afeto e não apenas os laços biológicos. Sendo o afeto princípio básico para as relações de parentabilidade, Lôbo (2003, p. 56) diz que  “o afeto não é fruto da biologia. Os laços de afeto e de solidariedade derivam da convivência familiar, não do sangue”, a afetividade é tão importante que Dias (2009) afirma que é o principio norteador de todo o Direito das Famílias.

A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, também elenca os deveres e obrigações decorrentes dos pais para com os filhos. O Art. 227, da CRFB/88, enumera os direitos e deveres da criança que devem ser assegurados pelo Estado, pela sociedade e pela família:

Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. 

O Art. 229, da CRFB/88 estabelece as obrigações dos pais para com os filhos, fixa “o dever de assistir, criar e educar os filhos”. Assim, a família, a sociedade e o Estado devem zelar pelo bem estar físico, psíquico e moral dos indivíduos. Assegura Lôbo (2009) que ela deve propiciar à criança e ao adolescente os meios de realização da dignidade pessoal, impondo a todas as entidades com fins afetivos, a natureza e o reconhecimento de família, fazendo-se cumprir as normas estabelecidas na legislação brasileira.

 Na seara do Direito Civil, o Código Civil Brasileiro de 2002, Lei 10.406, no seu Art. 1.634, determina que o dever dos pais não é restrito ao sustento material, mas também a obrigação de dirigir os filhos a sua criação e a educação, bem como tê-los em sua companhia e guarda, estabelecendo, nesse contexto, os elementos extra patrimoniais; como os valores morais, convivência familiar, orientação educacional e a própria construção do indivíduo como cidadão são tão significativos quanto a assistência material.

Inúmeros são os aspectos normativos que visam à proteção dos filhos quanto ao abandono físico, material ou afetivo pelos genitores, visto que a ausência do amor, do carinho e da presença dos pais acarretará danos irreparáveis à pessoa. Entretanto, quando essa omissão não é resolvida de maneira pacifica, alguns juristas e magistrados defendem a aplicação do instituto da responsabilidade civil e a reparação por dano moral.

A CRFB/88 eleva a reparação por dano moral ao patamar de direito fundamental, no Art. 5, incisos V e X, prevendo a reparação dos danos materiais, morais ou à imagem. Desta maneira afirma Gama (2010, p. 171):

A carga de sofrimento, de dor, de abalo psíquico recai sobre a pessoa da vítima, independentemente de qualquer perda material, é justificadora do direito à reparação do dano moral sofrido, devendo se observar a prevalência da tutela da personalidade humana diante da nova ordem de valores tutelados no campo existencial pela Constituição da República do Brasil.

O instituto da responsabilidade civil visa reparar o dano moral através da indenização, com o intuito de recomposição das situações jurídicas lesadas, com o escopo de compensar o abalo psíquico sofrido. Gagliano e Pamplona Filho (2011, p. 51) caracterizam a responsabilidade civil como “a agressão a um interesse eminentemente particular, sujeitando, assim o infrator, ao pagamento de uma compensação pecuniária a vítima, caso não possa repor o estado anterior das coisas”.

Venosa (2010) destaca que toda ação ou omissão que gera prejuízo a outrem, acarreta o dever de indenizar, se ausentes as causas excludentes de indenização. Assim, de acordo com o ordenamento jurídico, a responsabilidade civil impõe a reparação do dano causado, a quem, por ato ilícito, causar dano a outrem, segundo os preceitos do Artigo 186 , do CCB/02, que dispõem:  “Aquele, que por ação ou omissão voluntária negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.”.  O Artigo 927 , do CCB/02, por sua vez determina:  “ Aquele que, por ato ilícito ( arts. 186 e 187 ), causar dano a outrem fica obrigado a repará-lo.”

De acordo com os Art. 186 e 927, do CCB/02, para a aplicação da responsabilidade civil são necessários alguns requisitos que configuram a ilicitude, são eles: a conduta (negativa ou positiva), o dano e o nexo de causalidade.

Diniz (2006) ressalta que para a configuração da ilicitude é necessário que o fato  lesivo seja causado pelo agente, por ação ou omissão voluntária, decorrente da negligência ou imprudência;  que tenha produzido um dano moral ou patrimonial, além do que deve haver um nexo de causalidade entre o dano e o comportamento do agente. E, somente diante desses pressupostos é que o indivíduo pode buscar a indenização por responsabilidade civil.

No caso do abandono afetivo parental, os genitores deixam de cumprir com os elementos básicos para a funcionalidade das entidades familiares, uma vez que estas devem contribuir para a realização da personalidade dos indivíduos, em especial os filhos.

Hironaka (2006) analisa o dano, a culpa e o nexo de causalidade nos casos de abandono afetivo. Segundo a autora o dano causado pelo abandono é antes de tudo um dano à personalidade do individuo, visto que a família como primeiro grupo que o filho participa possui o dever de incitar na criança um sentimento de responsabilidade social, outra hipótese é que o dano seria causado pela ausência de afeto nas relações entre pais e filhos, prejudicando, assim, o desempenho integral do dever de educação e convivência decorrentes da responsabilidade dos genitores.

No caso de culpa deve ser evidenciado que o genitor tenha sido omisso na convivência com o filho, negando-se a participar do seu desenvolvimento, sendo negligente ou imprudente. Concomitantemente ao abandono, na maioria dos casos é possível existir a inobservância dos deveres e obrigações imateriais decorrentes do poder familiar.

Já para a analise do nexo de causalidade, Hironaka (2006, p.7) dispõe que é necessária “a fixação em caráter retrospectivo, da época em que os sintomas do dano sofrido pela criança começaram a se manifestar, pois não poderá imputar ao pai um dano que tenha manifestado em tempo anterior ao abandono”, ou seja, faz-se necessário observar se os danos observados são decorrentes do abandono.

Na atualidade há divergências sobre a valoração econômica conferida ao abandono afetivo, gerando opiniões e decisões contraditórias. Existem aqueles que defendem que o valor pecuniário não seria apto a sanar os problemas decorrentes do abandono e, em contrapartida, há os que entendem que o instituto da responsabilidade civil seria aplicável ao caso.

Os que defendem a indenização por abandono, como o Superior Tribunal de Justiça, afirmam que há uma violação grave dos deveres e obrigações dos pais para com os filhos. Compreendem também que o genitor comete ato ilícito ao descumprir com as suas obrigações, visto que a criança  necessita do carinho, amor, presença e afeto para sua formação, seja ela biológica, moral, psíquica, social, emocional e até como cidadão. A condenação pecuniária seria sanção aplicada ao indivíduo pela falta de carinho, apta a minimizar o sofrimento desse filho, além do caráter pedagógico, que  impediria outros pais de incidir em condutas semelhantes.

Nesse sentido o Superior Tribunal de Justiça, no dia 24 de Abril de 2012, em recurso especial de número 1.159.242- SP (2009/0193701-9), reconheceu o afeto como valor jurídico e concedeu indenização á filha pelo abandono afetivo do pai, nas palavras da Ministra Nancy Andrighi:

Amar é faculdade, cuidar é dever. (...) Sob esse aspecto, indiscutível o vínculo não apenas afetivo, mas também legal que une pais e filhos, sendo monótono o entendimento doutrinário de que, entre os deveres inerentes ao poder familiar, destacam-se o dever de convívio, de cuidado, de criação e educação dos filhos, vetores que, por óbvio, envolvem a necessária transmissão de atenção e o acompanhamento do desenvolvimento sócio-psicológico da criança.

Com esses pressupostos, a Ministra Nancy Andrighi asseverou que é possível exigir a indenização por dano moral decorrente de abandono afetivo pelos pais.

Já aqueles que são contrários à indenização pelo abandono afetivo, como o TJRS, alegam que o amor não é algo que possa ser imposto e a indenização imposta pela sua falta, não supre a real carência, a falta de assistência dos pais. Defendem que atribuir valor econômico à falta de afeto poderia aumentar as desavenças familiares, o que solidificaria o afastamento já existente entre as partes envolvidas na demanda.

Assim, é possível observar às divergências existentes entre as decisões dos tribunais referentes à responsabilidade civil por abandono afetivo. Visto que, alguns  magistrados e juristas compreendem que tratar o amor como simples patrimônio seria um retrocesso no Direito das Famílias, outros no entanto entendem que a indenização seria cabível para sanar os males causados pelo abandono.


Afeto e pecúnia

A família na atualidade é estabelecida segundo os preceitos do carinho, amor e do afeto. Os laços afetivos se sobrepõem aos biológicos e são eles que amarram a convivência familiar e a estrutura da sociedade. Dessa maneira, as relações afetivas devem ser estabelecidas de maneira livres e espontâneas. A ideia de afetividade deve ser construída, ela representa um processo dinâmico e dialético, em que o relacionamento entre pais e filhos é estabelecido com o decorrer da vida.

Nesse sentido a responsabilidade civil não seria apta a sanar os problemas decorrentes do abandono, como dispõe Farias e Rosenvald (2008) a indenização decorrente da negativa de afeto produziria uma verdadeira “patrimonialização” de algo que não possui característica econômica, seria subverter a evolução natural da ciência jurídica, retrocedendo a um período em que o ter valia mais que o ser.

Observa-se também que o medo da possível ação de responsabilidade civil por abandono, levaria os pais que não possuem qualquer tipo de relação afetiva com seus filhos, buscarem uma convivência forçada com receio de futuras sanções do judiciário.   Entretanto, a mera presença física, não é capaz de suprir os danos ocasionados pelo desinteresse demonstrado nesses encontros impostos pelo medo e poderiam ser muito mais danosos para os filhos, que esperam o apoio de seus pais e uma convivência afetiva espontânea.

Além desse aspecto, a busca judicial pelo “afeto”, ocasionará danos ao filho queixoso, visto que é uma situação humilhante, reclamar publicamente, por um amor negado, enquanto o pai ou mãe omisso declara também  publicamente a falta de amor.  

Com o posicionamento favorável a condenação pecuniária pelo abandono aos filhos, o judiciário terá uma quantidade exacerbada de ações indenizatórias com intuito meramente patrimonial, interesses visando apenas à vingança, o que descaracterizaria a relação familiar.

Outro aspecto a ser observado, é que a indenização não seria aplicável ao caso de abandono afetivo, visto a impossibilidade de comprovação do dano moral, como dispõe o desembargador relator José Flávio de Almeida, da 12ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, ao negar recurso n°70050203751 :

O tardio reconhecimento de paternidade, se não estabelecido vínculo e convivência entre pai biológico e filho, depois de muitos anos de vida distanciados no tempo e espaço, ainda que essa situação de fato possa ser cunhada de abandono afetivo, não configura ato ilícito passível de reparação por danos morais. Mesmo que possa ser moralmente reprovável a conduta do apelado.

O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, julgou improcedente a apelação civil N0 70050203751de responsabilidade por abandono afetivo, o relator da apelação do TJRS, o desembargador Alzir Felippe Schmitz afirmou que ‘‘mesmo os abalos ao psicológico, à moral, ao espírito e, de forma mais ampla, à dignidade da pessoa humana, em razão da falta de afetividade, não são indenizáveis por impossibilidade de aferição da culpa’’, requisito determinante para a fixação da responsabilidade civil.

Segundo o desembargador Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves, da 7 ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, no recurso n° 70029347036 , dispõe que a busca pelo perdão seria mais benéfica no desenvolvimento das relações afetivas entre filhos e pais, pois a reaproximação ou a cura dos danos decorrentes do abandono seriam impossíveis por meios exclusivamente patrimoniais: 

 Se tanto o pai quanto a filha tiverem a grandeza de perdoarem as faltas que um e outro possam ter cometido, se cada um conseguir superar as suas dificuldades pessoais e minimizar ou sublimar as mágoas porventura existentes, certamente terão ganhos afetivos e serão mais felizes. Mas o certo é que esse conflito, que ainda persiste, não poderá ser resolvido com qualquer indenização, pelo contrário.

Assim, é possível compreender que tratar o afeto segundo os preceitos pecuniários iria contra o próprio princípio da afetividade vigente no Direito das Famílias. Sendo possível dispor que a utilização da responsabilidade civil com escopo na indenização por abandono afetivo representa um verdadeiro atraso nas relações familiares. A intromissão do judiciário nas questões de carinho, afeto e amor de maneira coativa pode representar perigo ou abuso de poder, visto que o afeto é sentido, construído, não imposto.


Considerações finais  

De acordo com o exposto é possível inferir que a indenização por abandono afetivo parental representa um verdadeiro retrocesso no Direito das Famílias. Pois, admitir a aplicação do instituto da responsabilidade civil limitaria as relações subjetivas do afeto e amor ao campo patrimonial e, como disposto o direito evoluiu e não são as relações econômicas que o norteiam na atualidade.  

 A indenização pelo abandono não são aptas a sanar os danos causados ao filho e muito menos propiciaria melhora nas relações familiares. Poderia, no entanto, aumentar as desavenças e solidificar a ausência de relações salutares entre genitores e filhos.

 Tratar o amor como simples pecúnia não representaria nenhuma finalidade social benéfica. O afeto é que regula as famílias, é dele que decorrem todas as relações pessoais, não pode ser imposto.

Como dispõem os aspectos normativos, os pais possuem a obrigação de cumprir os deveres inerentes à maternidade e paternidade, entretanto buscar a obrigatoriedade do amor é algo perigoso e a monetarização do afeto pode levar a uma convivência forçada  não benéfica a qualquer das partes.

Pensar em Direito das Famílias contemporâneo é pensar em relações afetivas, portanto quando o amor é transformado em simples pecúnia é retroceder no tempo,  limitando a estagnação de reduzir as relações interpessoais ao campo do patrimônio. O afeto é algo que nasce naturalmente, fruto de aproximação espontânea, é recíproco e não pode ser criado pela força do Poder Judiciário.


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