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A contribuição dos sofistas para a democracia grega

A contribuição dos sofistas para a democracia grega

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Por meio do ensino da areté política, os sofistas possibilitaram aos demais cidadãos que participassem ativamente dos assuntos relacionados à pólis e ocupassem cargos de destaque, antes restritos à classe aristocrática.

INTRODUÇÃO

O escopo fundamental deste artigo é fazer uma análise sobre a contribuição dada pelos sofistas para a ampliação do conceito de democracia na Grécia Clássica, principalmente com relação ao exercício de fato do poder político.

Para melhor compreensão do tema, será feita, de início, uma contextualização histórica do período em questão e, posteriormente, será discutida a origem do termo sofista e os desdobramentos de seu significado ao longo do tempo. Em seguida será feita uma apreciação das ideias mais importantes dos dois principais sofistas da primeira geração (Protágoras e Górgias), bem como do método utilizado por ambos para difundirem seus conhecimentos.

Por fim, serão examinadas algumas das contribuições mais significativas da sofística – o deslocamento da filosofia da physis para o problema do homem, o ensino da retórica e da areté política – e de que maneira elas contribuíram para o alargamento dos horizontes democráticos na pólis grega.


CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA DA GRÉCIA CLÁSSICA

Para melhor compreensão da contribuição dos sofistas para a democratização do poder na Grécia Clássica, faz-se necessário, de inicio, tecer alguns comentários sobre o contexto histórico em que estavam inseridos os principais sofistas desse período. Para que esse intento seja alcançado será imperativo analisar alguns aspectos relacionados à pólis grega, ao cidadão grego, a religião, as leis e à democracia de então.

De início é importante enfatizar que é muito difícil estabelecer com precisão uma data para o surgimento da pólis. O próprio Platão já naquela época não se sentia seguro em tal empreitada como pode ser percebido no seguinte trecho de ‘As Leis’:

O ateniense: Diz-me o seguinte: achas que serias capaz de indicar a longa duração de tempo transcorrido desde que as cidades passaram a existir e os seres humanos vivem como cidadãos?

Clínias: Seguramente não seria uma fácil empresa.

O ateniense: De qualquer modo podemos perceber com facilidade que se trata de uma duração imensa e incomensurável?

Clínias: Isso posso perceber com toda certeza. (PLATÃO, 1999. p. 153, com adaptações).

Em ‘As Primeiras Civilizações’, Lévêque (2009) esclarece, entretanto, que muito provavelmente as poleis gregas nasceram por volta do ano de 800 a.C.. Esse autor embasa sua afirmação em um documento do século VIII a.C.: a Constituição de Esparta – também chamada de ‘Grande Retra’. Essa opinião de Lévêque tem prevalecido nos círculos acadêmicos, se não como totalmente verdadeira, ao menos como uma data aproximada do surgimento da pólis.

Ainda com relação à origem da pólis grega são bastante esclarecedores os juízos emitidos por Aristóteles (2012) em ‘Política’. Nesta obra o estagirita assegura que a civilização grega passou por dois estágios antes de chegar à polis: família e aldeia. Para Aristóteles uma cidade é uma daquelas coisas que existem por natureza e o homem é, também por natureza, um ser político. Isso vem corroborar a sua máxima de que um homem apolítico (que não vive em uma polis) ou é Deus ou é fera.

Fustel de Coulanges (2001) corrobora essa afirmação de Aristóteles e acrescenta mais um estágio entre a família e a aldeia (chamada por ele de tribo): a fratria. Para este autor a família, a fratria, a tribo e a pólis são sociedades perfeitamente equivalentes nascidas umas das outras e que se mantêm perfeitamente interdependentes. Apesar dessa interdependência todas elas conservam sua individualidade e suas próprias características.

Prosseguindo na contextualização histórica da pólis grega (cidade-estado) pode-se dizer que esse espaço (o espaço da pólis) era constituído pela cidade (casas, templos, edifícios públicos, ruas) e por seus arredores (campos, plantações, rios, mares). Era uma unidade política autônoma e estava subordinada apenas às leis elaboradas, na maioria das vezes, democraticamente pelos seus cidadãos.

Interessante notar que os gregos ainda não tinham a noção do Estado como uma Pessoa Jurídica de Direito Público, como se concebe hoje. A pólis na Grécia Clássica se confundia com o conjunto de seus cidadãos. Nesse sentido esclarece com bastante propriedade José Ribeiro Ferreira: “A pólis era o concreto dos cidadãos, todos [...] Para o grego, os cidadãos é que interessavam; eram eles que constituíam o cerne da pólis e não o aglomerado urbano [...] não são as muralhas que constituem a pólis, mas os homens” (FERREIRA, 2004, p. 14).

Como se pode perceber claramente: os cidadãos eram a pólis. O território era apenas o local onde estavam localizadas as edificações, as plantações e outras coisas de somenos importância. Daí ser naturalmente admitida entre os gregos a transferência da pólis (conjunto dos cidadãos) para outro local1.

Outra característica importante da pólis grega era sua íntima relação com a religião. Um Estado laico seria impensável para os gregos. A religião da pólis era tão importante para as cidades-estado gregas que o cidadão que desrespeitasse a religião oficial poderia ser condenado à morte por infidelidade aos deuses. Além do culto oficial (público) da pólis havia o culto doméstico (privado), ou seja, cada família tinha os seus próprios deuses (antepassados) a quem devia obediência e veneração.

Assim como a dedicação à religião os cidadãos deviam obediência absoluta às leis da pólis. Aliás, no pensamento de um grego o que o diferenciava de um bárbaro não era apenas a sua filosofia ou a sua religião, mas a submissão ao ordenamento jurídico de sua cidade. Nesse sentido:

A pólis estava baseada na aceitação absoluta das leis no sentido lato – incluindo nela o que nós chamamos a Constituição, o conjunto de regulamentações e normas que informam a vida da cidade – e de uma administração despersonalizada [...] esta (a pólis) dava primazia à lei e era o meio pelo qual esta se realizava e satisfazia (FERREIRA, 2004. p. 17, com adaptações).

Para os gregos todos os cidadãos (governantes e governados) deviam obediência às leis da pólis. Contrariamente aos bárbaros que estavam subordinados a um soberano (rei, imperador, sultão, sheik), os gregos se orgulhavam de terem como único senhor a lei.

Por essa razão os gregos eram tão avessos a tiranos e prezavam tanto a democracia. Para eles, a tirania ou qualquer outra forma de poder autoritário poderia vir a ser a ruína da pólis, pois, a vontade dos cidadãos seria substituída pela vontade de um único homem: o tirano.

Os gregos viam na obediência às leis e na participação da administração da pólis a expressão máxima de sua liberdade democrática. A esse respeito são expressivas as palavras de Sócrates, aqui citadas por Ferreira, na obra ‘Apologia de Sócrates’ de Platão, quando Críton propõe àquele filósofo que fuja: “Sócrates recusa com o argumento de que as leis o acusariam de, com tal ação, as deitar a perder, a elas e a toda a pólis, porque nenhum Estado pode subsistir quando as sentenças proferidas não têm poder” (FERREIRA, 2004, p. 23).

Pode-se perceber, daquilo que foi exposto até o momento, que falar sobre a pólis é falar sobre a vida do cidadão grego.

Desde que nasce o habitante habitua-se ao modo de vida da pólis, às suas leis e costumes, às normas que regulam os atos mais comezinhos, às cerimônias religiosas e crenças. Comunidade viva, nela o convívio com os outros, as atividades nas diversas instituições, a participação nos atos públicos e cerimônias religiosas aos poucos conformavam o jovem a uma maneira de ser e de viver. Desse modo a pólis educa o cidadão e modela-o, a ponto de ser um produto e escravo seu [...] A pólis era, portanto, uma entidade ativa, formativa que exercitava o espírito e formava o caráter do cidadão (FERREIRA, 2004, p. 24).

A vida do cidadão grego se fundia com a vida da pólis. O grego existia para a pólis tal como a pólis existia para o grego. Por essa razão os gregos sempre se opuseram a uma unificação total das cidades-estado da Grécia Clássica. A unidade política nunca foi algo desejado por eles, ao contrário, cada pólis lutava bravamente por sua autonomia.

O cidadão grego não aceitava delegar seus direitos civis a terceiros e tinha o dever de participar das decisões que conduziam o destino da sua pólis. “Era do temperamento do grego viver em pequenos Estados independentes, em cuja vida e organização fazia questão de participar. Só assim se considerava em plena liberdade” (FERREIRA, 2004, p. 34). Como se pode perceber, a democracia estava no cerne da vida do cidadão grego. Mas, como se verá na parte final deste artigo, a participação democrática estava restrita a uma minoria.

Dentre todas as cidades gregas uma merece maior destaque quando o tema é a democracia: Atenas. No século V a.C. esta cidade tornou-se o centro da cultura helênica e das liberdades democráticas (muito dessa ampliação democrática deveu-se, como se verá, aos sofistas).

Estes foram, portanto, alguns dos aspectos históricos mais importantes da Grécia Clássica. Foi neste contexto de vida e sociedade que os sofistas surgiram e contribuíram para o desenvolvimento da democracia.

Antes de considerar especificamente este tema que é a essência desse artigo (ou seja, a contribuição dos sofistas para a democratização do poder na Grécia Clássica) é imprescindível avaliar a figura dos sofistas e as principais características desse movimento.


OS SOFISTAS

Como visto acima, no século V a.C. a cidade de Atenas passou a ser o centro cultural, filosófico, econômico e político da Grécia Clássica e para lá acorriam intelectuais de todas as partes e dos mais variados talentos: filósofos, artistas, historiadores, astrônomos, médicos, e claro, sofistas.

Mas afinal, quem eram esses sofistas? Qual o método de ensino utilizado por eles? Qual era o objetivo deles com a difusão desse método? Essas e outras questões serão analisadas a partir de agora.

Vale ressaltar de início o significado da palavra sofista. De acordo com Guthrie (2007), sofista vem da palavra grega sophistes que por sua vez é derivada das palavras sophia, e sophos, que significam “sabedoria” ou “sábio”. Desde os tempos mais antigos essas palavras vêm sendo utilizadas pelos gregos para designar uma grande qualidade intelectual, espiritual ou técnica de alguém. Elas denotam, assim, uma perícia em determinado assunto ou atividade.

Um construtor de navios em Homero é “experimentado em toda sophia”, um cocheiro, um piloto de navio, um áugure, um escultor são sophoi cada um em sua ocupação. Apolo é sophos na lira, Tersistes um caráter desprezível, mas sophos em sua língua. (GUTHRIE, 2007, p. 31).

Outro grande estudioso do movimento sofista Kerferd (2003), destaca igualmente que nos primórdios da Grécia Clássica o sofista era conhecido por sua habilidade em determinada profissão, especialmente artesanal; também era experimentado por ser um homem sábio e prudente em questões gerais e, por fim, também era notório por seu conhecimento científico e filosófico.

Como se pode perceber, os sofistas (em suas origens mais remotas) eram homens que dispunham de conhecimentos e experiências especiais em determinado tema. Isto é, eram peritos em alguma matéria. Pode-se concluir, portanto, que o significado originário da palavra sofista é altamente positivo.

Na linguagem prosaica, porém, o termo sofista assumiu um significado muito negativo. Nesse sentido esclarece Reale (2009, p. 23): “sofista é chamado aquele que, fazendo uso de raciocínios capciosos, busca, por um lado, enfraquecer e ofuscar o verdadeiro e, por outro, reforçar o falso, revestindo-o das aparências de verdadeiro”.

Essa conotação pejorativa da palavra e do sofista deve-se muito à implicância de Platão, Xenofonte e Aristóteles. Platão afirma o seguinte sobre o sofista em seu diálogo homônimo, colocando na boca do Estrangeiro essas palavras:

Em primeiro lugar, o sofista era um caçador remunerado no encalço dos jovens e ricos [...] em segundo lugar, uma espécie de comerciante atacadista de artigos do conhecimento para a alma [...] em terceiro lugar, não se revelou como um varejista desses mesmos artigos do conhecimento? [...] em quarto lugar, um vendedor de sua produção pessoal de conhecimento [...] em quinto lugar era um atleta nas competições verbais que tomara para si e si distinguira na arte da disputa [...] em sexto lugar era controvertido (PLATÃO, 2007, p. 182).

Xenofonte é ainda mais agressivo em seus comentários sobre os sofistas como pode ser percebido no seguinte trecho: “Se alguém vende a sua beleza por dinheiro a qualquer que a deseje, chamam-no prostituto [...] analogamente, os que vendem por dinheiro a sabedoria a qualquer um, são chamados sofistas, que é o mesmo que dizer prostitutos” (REALE, 2009, p. 24). Ainda de acordo com Reale (2009, p. 25), Aristóteles afirma que “o sofista é um mercador de sabedoria aparente, não real”.

Tendo em vista que Platão e Aristóteles foram dois dos maiores filósofos de todos os tempos, fica fácil compreender porque a sofística e os sofistas foram tão marginalizados ao longo da história. Somente a partir do final do século XIX os sofistas começaram a ser resgatados do limbo filosófico em que se encontravam, possibilitando assim, sua justa inclusão no campo das ideias. Um dos maiores estudiosos da Grécia Antiga, Jaeger (2013), chega a afirmar que do ponto de vista histórico, a sofistica é um fenômeno tão importante como Sócrates ou Platão. Além disso, não é possível concebê-los sem ela.

Os sofistas em sua maioria, ao contrário do que muitos pensam, não eram atenienses. De todas as partes do mundo grego acorriam esses indivíduos que viajavam por toda Grécia exercendo sua atividade profissional, mas sempre passavam por Atenas que se tornou o centro desse movimento. Tanto é verdade que sem essa cidade, dificilmente a sofística teria existido. Corroborando esta afirmação elucida Kerferd (2003, p. 38):

Não foi por acaso que sofistas de todo canto do mundo grego vieram para Atenas. [...] Primeiro porque a cidade oferecia excelentes oportunidades para um sofista ganhar muito dinheiro e, segundo, em nível mais elevado, porque, sob muitos aspectos, ela estava em processo de se tornar um verdadeiro centro intelectual e artístico para toda a Grécia.

Ainda de acordo com Kerferd (2003), no auge da atividade dos sofistas (período compreendido entre os anos de 460 a 380 a.C.) eram conhecidos cerca de vinte seis desses profissionais. Poucos, entretanto, se destacaram a ponto de se tornarem conhecidos nas principais cidades-estado da Grécia como Atenas, Esparta, Tebas e também em suas colônias. Além disso, é preciso distinguir entre sofistas e sofistas, sem colocá-los em pé de igualdade.

É preciso, portanto, distinguir pelo menos três grupos de sofistas: 1) os grandes e famosos mestres da primeira geração, de modo algum privados de discrição moral e, antes, como Platão reconhece, substancialmente dignos de respeito; 2) os “eristas”, isto é, aqueles que, explorando o método sofistico e exaltando o seu aspecto formal sem qualquer interesse pelos conteúdos e sem a discrição moral dos mestres, transformaram a dialética sofística numa estéril arte de contendas através de discursos e numa verdadeira arte de logomaquia; 3) enfim os “políticos sofistas”, homens políticos e aspirantes ao poder político, que, desprovidos de qualquer discrição moral, usaram ou melhor, abusaram de certos princípios sofísticos para teorizar um verdadeiro imoralismo, que desembocou no desprezo da “assim chamada justiça”, de toda lei constituída, de todo princípio moral: mas estes, mais que o espírito autêntico da sofística, representam a excrescência patológica da própria sofística (REALE, 2009, p. 33, aspas no original).

Os sofistas que interessam neste estudo são os da primeira geração. Mais especificamente os dois principais: Protágoras (480 - 411 a.C.) e Górgias (485 - 380 a.C.). Por isso, serão aqui analisadas as ideias basilares desses sofistas para o aprimoramento da democracia na Grécia clássica.

Protágoras, sem dúvida, foi o mais célebre de todos os sofistas e dentre suas obras se destacavam ‘As Antilogias’ e ‘A Verdade’. Sua assertiva mais famosa é "o homem é a medida de todas as coisas, das coisas que são, enquanto são e das coisas que não são, enquanto não são” (SEXTO EMPÍRICO apud REALE, p. 34). Ainda segundo Reale (2009), através do princípio do homem-medida, Protágoras pretendia, indiscutivelmente, negar a existência de um critério absoluto que discriminasse o ser e o não-ser, o verdadeiro e o falso e, em geral, todos os valores; isto é, para Protágoras, o critério é apenas relativo, e o homem, o homem individual.

A declaração de que o homem é a medida de todas as coisas enfatiza que a verdade não é algo posto e acabado; “ela consiste, pelo contrário, numa reação dialética com os fatos, com a realidade, que cada homem em particular instaura vez por vez, segundo sua idade, suas disposições, sua situação histórica” (CASERTANO, 2010, p. 51).

Por essa razão Protágoras defendia que para cada coisa há duas concepções contraditórias. Segundo ele, a absurdidade da lógica presente no eleatismo2 pode provar que algo “é” ou que “não é” ao mesmo tempo. Esse argumento de Protágoras se mostrou de grande valia para o desenvolvimento da retórica sofista e, posteriormente, aristotélica.

Górgias, por sua vez, “foi para os sofistas um mestre de ímpeto oratório, de audaciosa e inovadora expressão, de dinamismo inspirador, de tom sublime para coisas sublimes, de frases de efeito, de inícios imprevistos, todas essas coisas que tornam o discurso mais harmonioso e solene” (FILOSTRATO apud HELFERICH, 2006, p. 17).

Dentre as obras desse sofista destaca-se o ‘Tratado sobre o não-ser’ ou ‘Sobre a natureza’. Nesta obra – que é um manifesto do niilismo ético – Górgias sustenta suas três teses principais: a) não existe o ser; b) mesmo que existisse o ser, ele não seria compreensível; c) mesmo admitindo que fosse compreensível, ele não seria comunicável nem explicável aos outros (REALE, 2009, p. 44). Essas três teses tinham como objetivo eliminar radicalmente a possibilidade da existência ou de se alcançar ou de demonstrar uma verdade objetiva e elevaram a crise da filosofia da “physis” ao extremo. O sofista Protágoras ainda entendia como possível a existência de uma verdade relativa (o homem é a medida de todas as coisas) Górgias, porém, afirmava cabalmente que a verdade não existia.

Para concluir esta parte do artigo vale destacar, ainda que brevemente, como era o método sofístico. Enquanto os filósofos da natureza (physis) utilizavam prioritariamente o método dedutivo (estabelecimento do primeiro princípio e, posteriormente, a dedução de várias conclusões), os sofistas utilizavam do procedimento empírico-indutivo.

A sofística tem seu ponto de partida na experiência e tenta ganhar o maior número possível de conhecimento em todos os campos da vida, dos quais, depois, extrai algumas conclusões, em parte de natureza teórica, como por exemplo, sobre a possibilidade do saber, sobre as origens, o progresso e o fim da cultura humana, sobre a origem e a constituição da língua, sobre a origem e a essência da religião, sobre a diferença ente livres e escravos, helenos e bárbaros; em parte, ao invés de natureza prática, sobre a configuração da vida do indivíduo e da sociedade. Ela procede, portanto, segundo o método empírico-indutivo (NESTLE apud REALE, 2009, p. 28).

Nesse sentido esclarece Kerferd (2003) que o método de ensino empírico-indutivo utilizado por Protágoras e que também pode ser estendido aos demais sofistas (ao menos os da primeira geração) consistia em primeiro lugar em uma exposição oral formal utilizando-se de manuais previamente elaborados. Em seguida eram feitas discussões em pequenos grupos de estudantes sobre os temas tratados na preleção. Por fim, os discípulos faziam formulações antitéticas e apresentações públicas para os demais a fim de aprimorarem sua retórica.

Esse tipo de treinamento era essencial para o aperfeiçoamento dos futuros oradores nas assembleias e nos tribunais da Grécia Clássica. Havia também uma variação desse método que era comumente utilizada pelos sofistas, qual seja: perguntas e respostas. Através desse método os estudantes aprimoravam sua habilidade de falar de maneira concisa e objetiva. Como se pode ver, esse método tinha certa semelhança com o método dialético utilizado por Sócrates em suas preleções.

Percebe-se, destarte, que os sofistas sempre foram vanguardistas em tudo aquilo que realizavam. Faz-se necessário salientar, entretanto, que foi feito aqui apenas um esboço sobre as ideias principais desses autores. Na parte sobre a contribuição dos sofistas para a democracia grega o pensamento deles será examinado com mais amplitude.


A CONTRIBUIÇÃO DOS SOFISTAS PARA A DEMOCRATIZAÇÃO DO PODER POLÍTICO NA GRÉCIA CLÁSSICA

Durante todo o século VI e parte do século V a.C. prevaleceu a filosofia da natureza (physis) que tinha como escopo encontrar o princípio de todas as coisas. A água em Tales, o ar em Anaxímenes ou o ápeíron em Anaximandro foram tentativas de se estabelecer uma compreensão racional do cosmo. A verdade é que o surgimento da filosofia da physis foi um passo gigantesco na evolução da humanidade, porém, ela se perdeu em suas próprias contradições3 e descuidou do mais importante: o ser humano.

A maior contribuição dos sofistas foi, certamente, utilizarem-se da razão para ajudar a colocar o ser humano em seu devido lugar, ou seja, no centro das atenções. “De fato, no âmbito da na filosofia da physis, não se atribuía ao homem lugar privilegiado, ou melhor, não se compreendia nem se justificava esse lugar privilegiado” (REALE, 2009, p. 11).

A sofística veio, exatamente, resgatar o ser humano das sombras da filosofia da physis e colocá-lo em total evidência.

Para os sofistas o homem e suas criações espirituais estão no centro da reflexão. Também para eles vale aquilo que Cícero diz de Sócrates: ’Ele fez descer a filosofia do céu sobre a terra e introduziu-a nas cidades e nas casas e obrigou-a a refletir sobre a vida e os costumes, sobre o bem e o mal’. Para o homem como ente individual e como membro da sociedade é que se volta a atenção da sofística. E por isso compreende-se que os temas dominantes da especulação sofística tenham se tornado a ética, a política, a retórica, a arte, a língua, a religião, a educação, tudo aquilo que nós hoje chamamos de cultura humanística. Com os sofistas, em suma, começa aquele que, com expressão correta, foi chamado de período humanista da filosofia antiga (NESTLE apud REALE, 2009, p. 26, grifos no original).

Por humanismo não se deve entender, entretanto, algo contrário ao “naturalismo” ou à filosofia da natureza, como acontece no pensamento platônico, mas um entendimento que conecta estreitamente os termos natureza e cultura (CASERTANO, 2010). Também Jaeger (2013, p. 351) esclarece que o termo humanismo não pode ser usado apenas como um exemplo histórico meramente aproximado, mas como “plena reflexão, para designarmos o ideal de formação humana que com a sofística penetra nas profundezas da evolução do espírito grego e no seu sentido mais essencial”.

Essa guinada em direção ao homem se deve em grande medida ao espírito pan-helênico dos sofistas. Ao contrário da maioria – para não dizer a totalidade – dos cidadãos gregos que estavam intimamente ligados à sua cidade, os sofistas não se sentiam aprisionados aos limites das polis e se consideravam cidadãos do mundo. “Não tinham cidadania fixa, devido à sua vida constantemente andarilha [...] Os seus contemporâneos tinham razão, quando os consideravam autênticos representantes do espírito do tempo” (JAEGER, 2013 p. 347).

Destarte, tornaram-se verdadeiros enciclopedistas, pois, conheciam a fundo o que existia de bom e de ruim dentro dos muros das cidades por onde passavam; as formas de governo, as leis, os assuntos da guerra, da religião, da educação, enfim, de todas as questões que estavam intimamente ligadas ao cotidiano das pessoas. De cidade em cidade esses andarilhos do saber exerciam sua atividade educativa ensinando seu ofício sempre vinculado à prática política.

Esse interesse cada vez maior da filosofia pelos problemas do homem se deve em parte, também, à lenta e implacável crise da aristocracia grega em geral e à ateniense em particular. Os valores e tradições que essa classe sempre prezou foram colocados em xeque por outros seguimentos da sociedade que a cada dia ganhavam mais espaço nas decisões políticas das poleis.

A nova classe emergente queria participar ativamente das deliberações que se apresentavam perante os tribunais e às assembléias, ampliando, assim, os limites democráticos da cidade. Para se ter uma ideia, Casertano (2010, p 35) citando Morgan, enfatiza que em Atenas, por exemplo:

A “democracia” dizia respeito apenas a um fechado grupo de pessoas, aquelas que desfrutavam da plena cidadania, e elas constituíam exígua minoria. Calcula-se que no tempo de seu máximo florescimento, a livre cidadania ateniense (incluída mulheres e crianças, mas que não participavam da vida política) se compusesse de mais ou menos 90.000 pessoas, ao lado das quais havia cerca de 365.000 escravos de ambos os sexos e 45.000 “protegidos”, isto é, estrangeiros e escravos libertos (aspas no original).

Percebe-se, portanto, que a democracia ateniense estava apoiada sobre a escravidão e que não era, nem de longe, um regime comandado pelas massas. Além disso, a velha aristocracia – que mantinha rigidamente o princípio da raça – era a detentora do poder político, sobrando assim, pouco espaço para os demais cidadãos.

Fica claro, por conseguinte, que os aristocratas não aceitariam de bom grado repartir o poder com a classe de cidadãos emergentes e para isso tentavam argumentar de todas as formas contra essa possibilidade. Para eles, desde os tempos homéricos, a areté4 estava acessível apenas às linhagens nobres, deste modo, somente a nobreza poderia exercer os altos cargos nas assembleias e nos tribunais.

Segundo Jaeger (2013), para a aristocracia, o ideal de areté sempre esteve ligado à questão educativa e, por essa razão, a sua transmissão estava restrita às pessoas de sangue nobre. Os demais cidadãos não estavam capacitados a absorver esses ensinamentos e, portanto, não estavam qualificados para exercer o poder nas mais altas instâncias.

Nesse sentido:

A nova sociedade civil e urbana tinha uma grande desvantagem em relação à aristocracia, porque, embora possuísse um ideal de Homem e cidadão e o julgasse, em princípio, muito superior ao da nobreza, carecia de um sistema superior de educação para atingir aquele ideal. A educação profissional, herdada do pai pelo filho que lhe seguia o ofício ou a indústria, não se podia comparar à educação total de espírito e de corpo do nobre, baseada numa concepção total do Homem. Cedo se fez sentir a necessidade de uma nova educação capaz de satisfazer os ideais do homem da polis (JAEGER, 2013, p. 336).

Ao longo do século V a.C., destarte, sugiram diversas condições históricas, sociais, econômicas, culturais, filosóficas e políticas que propiciaram o aparecimento da sofística. Os sofistas estavam preparados para responder a essas novas questões e contradições surgidas no seio da sociedade grega de então. Uma sociedade economicamente mais forte, mais esclarecida intelectualmente e que almejava ampliar seu espaço também na política. A educação sofística nasceu, portanto, de uma necessidade prática.

Os altos cargos diretivos da pólis restritos apenas a algumas pessoas de determinadas linhagens de sangue causavam inquietação em uma classe emergente que ambicionava o poder. E essa classe viu na educação a melhor maneira de se obter o poder. Bastava, para isso, que seus membros adquirissem a areté política. Segundo Jaeger (2013, p. 337), a finalidade da nova pedagogia grega era “a superação dos privilégios da antiga educação para a qual a areté só era acessível aos que tinham sangue divino”.

A areté política5 ou excelência política, antes limitada aos aristocratas, poderia agora ser adquirida pelos demais cidadãos com o auxílio dos sofistas. Os grandes mestres da sofística (Protágoras, Górgias, entre outros) surgiram exatamente para suprir essa demanda cada vez mais crescente de jovens (especialmente atenienses) que desejam ardentemente o conhecimento da virtude política para alcançarem o poder diretivo da pólis.

Mas, o que vem a ser a ‘virtude política’? Para melhor entendimento deste termo faz-se necessário, de início, tecer alguns comentários sobre outro tema bastante caro aos sofistas e que certamente irá contribuir para a compreensão do movimento sofístico. Esse tema é a retórica.

Em primeiro lugar é bom deixar claro que o conceito sofístico de virtude não deve ser entendido aqui como o conceito cristão de virtude, mas como habilidade e astúcia6. Ora, essa virtude ou astúcia é principalmente a habilidade de falar em público nas assembleias e nos tribunais (REALE, 2009).

De acordo com Kerferd (2003), o poder da retórica não foi uma descoberta dos sofistas, pois, sua importância já era conhecida desde os tempos homéricos. Porém, essa arte foi, em grande parte, desenvolvida pelos sofistas.

Nesse sentido Protágoras, na obra homônima de Platão, afirma que o que ele ensina é:

Ter bom discernimento e bem deliberar seja nos assuntos privados, mostrando como administrar com excelência os negócios domésticos, seja nos assuntos do Estado, mostrando como pode exercer máxima influência nos negócios públicos tanto através do discurso quanto através da ação (PLATÃO, 2007, p. 263).

Também Górgias destaca o poder da palavra para tratar dos assuntos relacionados às questões particulares e do Estado. Para ele, a retórica é a arte de explorar vastamente as nuances da palavra, por isso ela deve ser entendida como a arte da persuasão.

Isso pode ser claramente compreendido através deste excerto no diálogo ‘Górgias’ de Platão (2007, p. 50), em que o sofista tece considerações sobre o que vem a ser a retórica: “Refiro-me à capacidade de persuadir mediante discursos juízes nos Tribunais, políticos nas reuniões do Conselho, o povo na Assembleia ou um auditório em qualquer outra reunião política que possa realizar-se para tratar de assuntos públicos”.

Em seu ‘Tratado sobre o não-ser’ Górgias afirma, como visto anteriormente, que não existe verdade (nem absoluta, nem relativa). Se a verdade não existe a palavra passa a ter um poder quase infinito, pois, tudo pode ser afirmado ou negado através do discurso. Na douta lição de Jaeger (2013, p. 340) a palavra na Idade Clássica “não tinha o sentido puramente formal que mais tarde adquiriu, mas abrangia também o próprio conteúdo. Entendia-se sem mais que o conteúdo dos discursos era o Estado e os seus assuntos”.

Isso fica ainda mais evidente, por conseguinte, nos assuntos relativos à coisa pública, pois, para que o discurso de um cidadão (nas assembleias, nos tribunais, nos conselhos) fosse realmente persuasivo e pudesse convencer os demais seria necessário que esse indivíduo possuísse o poder da retórica.

A esse respeito Reale (2009, p. 51) ressalta o seguinte:

O significado e a importância desta arte são claros: mais do que nunca na Atenas do século V a.C., nos tribunais e nas assembleias, a retórica podia garantir, a quem a possuísse, o sucesso; ela devia até mesmo se tornar, como justamente se disse, “o verdadeiro timão nas mãos do homem de Estado” (aspas no original).

Em grande medida isso explica a proeminência alcançada pelos sofistas entre aqueles que almejavam o poder político nas cidades gregas. Pois, a retórica ensinada por esses sábios era um instrumento imprescindível para a persuasão e domínio das pessoas. Logo, aqueles que dominassem a arte da retórica certamente teriam muito mais chances de terem sucesso em suas carreiras profissionais.

Por essa razão não faltavam aqueles que desejavam fazer mau uso da palavra e transformar a arte da retórica em um elemento de opressão dos demais cidadãos. Tanto Górgias quanto Protágoras, entretanto, censuravam aqueles discípulos que se utilizavam da retórica apenas para seus interesses pessoais e desconsideravam os valores éticos e morais tão caros à sociedade grega.

Nesse sentido, esclarece Górgias na obra homônima de Platão (2007, p. 57):

É minha opinião que se alguém se torna um orador e passa a usar injustamente essa arte e o poder dela advindo, não devemos voltar ódio ao seu mestre e expulsá-lo de nossos Estados. Ele distribui sua arte para ser empregada com plena justiça, ao passo que esse indivíduo, seu discípulo, a emprega da maneira oposta. A conclusão é que quem merece ser odiado, expulso e punido com a morte é ele que a usa incorretamente e não seu mestre.

Percebe-se disso que, para os sofistas (da primeira geração), a retórica deve ser usada sempre objetivando o bem da coletividade e nunca para interesses escusos. A virtude política, portanto, deve estar intimamente ligada ao que é bom e útil para a pólis. Se o homem, como afirma Protágoras, é a medida de todas as coisas, também o é do que é útil e inútil. Assim como o agricultor sabe o que é útil para as plantas e o médico sabe o que é útil para os pacientes, o governante precisa saber o que é útil para a pólis.

Logo, se um agricultor pode ser ensinado na virtude (habilidade, astúcia) de como lidar com as plantas e o médico de como lidar com seus pacientes, também o governante pode ser ensinado em como administrar uma cidade, seja através do discurso, seja através da ação. “Que a ‘virtude’ se podia ensinar era a base da pretensão dos sofistas [...] e sua justificação se acha na estreita conexão no pensamento grego entre areté e as especiais habilidades e perícias (technai)” (GUTHRIE, 2007, p. 237, grifos no original).

É essencialmente essa, portanto, a missão do sofista: ensinar a areté política. Ao ensinar a areté política o sofista não está interessado em saber o que é a verdade em si ou o que é o bem em si, mas o que é melhor e mais útil para a pólis. A filosofia sofística, destarte, é uma verdadeira filosofia da praxe política. Afirma Jaeger (2013, p. 345): “A exigência que eles [os sofistas] vêm satisfazer não é de ordem teórica e científica, mas sim de ordem estritamente prática”.

Nesse sentido enfatiza Casertano (2010, p. 79 e 80):

Bem e útil são conceitos certamente relativos, porque não existe o bem nem o útil, mas aquilo que pode ser bem para alguns pode também ser mal para outros: assim, os discursos que os homens fazem, contrapostos uns com os outros, são também eles relativos, pois não existe um discurso mais verdadeiro que o outro. Mas um discurso mais útil, sim: se cada indivíduo, ou cada grupo de indivíduos tem a sua verdade, nem todas as verdades, são, porém, úteis do mesmo modo à vida associada. O “discurso melhor”, pois, não é o discurso lógico, mas o político, que se demonstra mais idôneo a um entendimento, a um pacto de aceitação por parte da coletividade, porque melhor que os outros consegue considerar – embora provisoriamente, ou seja, até que não apareça e se afirme um outro discurso ainda melhor – uma pluralidade de aspectos úteis à cidade: o discurso melhor é o nomos, a lei, a realização dinâmica de um consenso humano procurado e imposto com a persuasão à cidade pelo sábio, pelo sofista, que é como o médico da sociedade. Ao sofista cabe, portanto, uma alta tarefa, a de realizar um estado de civilização que ponha em ato a “sociedade” do homem, isto é, harmonizar as diferentes e irredutíveis individualidades num “corpo” social que seja o melhor possível (grifos e aspas no original).

Para harmonizar essas diferentes individualidades no melhor corpo social possível é preciso que o indivíduo esteja bem preparado. Por essa razão Protágoras dá tanta ênfase ao processo educativo, pois, segundo ele, esta é a melhor maneira dos discursos individuais serem expressos, compreendidos e assimilados pelos demais membros da sociedade. Esse sofista acredita, portanto, que a educação é a chave para todos os problemas sociais e políticos da cidade (KERFERD, 2003). “Segundo Protágoras, a educação para o Estado significa educação para a justiça” (JAEGER, 2013, p. 374).

Protágoras propõe, assim, um novo modelo pedagógico. Isto é, o antigo modelo educativo que privilegiava a formação do guerreiro, belo e corajoso deve ser substituído pelo novo modelo educativo que privilegia a formação do bom cidadão e do bom governante da pólis. “É na política e na ética que mergulham as raízes dessa forma de educação sofística” (JAEGER, 2013, p. 342).

O escopo desse sofista, por conseguinte, é mostrar que através do processo educativo e de algumas técnicas específicas – tais como a retórica – é possível ensinar alguém a ser bom e justo e que isso não é exclusividade apenas de uma elite aristocrática. Significa dizer que a areté política não depende de nascimento nobre e que todos os cidadãos que quiserem adquiri-la poderão fazê-lo. Ou seja, Protágoras concorda que nem todos os homens têm igual mérito, porém, o mérito não deve estar relacionado com a linhagem de sangue nobre.

Corroborando esta afirmação enfatiza Reale (2003, p. 24) que:

Os aristocratas em particular não perdoaram os sofistas por terem contribuído para sua perda de poder e por terem dado forte incentivo à formação de uma nova classe, que não se valia mais da nobreza de nascimento, mas dos dotes e habilidades pessoais, e que era, justamente, aquela classe que os sofistas pretendiam criar, ou pelo menos, educar sistematicamente.

Dessa forma os sofistas estabelecem um novo paradigma para a representação democrática. Agora todos os cidadãos, na medida de suas capacidades, poderão dar a sua parcela de contribuição para o aprimoramento da vida política da cidade. E o princípio fundamental da democracia se assenta exatamente na possibilidade que todos os cidadãos têm de deliberar e de agir sobre as questões da pólis (JAEGER, 2013).

O que Protágoras (em particular) e os demais sofistas da primeira geração (em geral) fazem é ampliar significativamente o leque de opções antes restrito à classe aristocrática. Assim, o que se deve levar em consideração ao escolher os governantes da pólis não é o bom berço, mas a habilidade/astúcia no trato da coisa pública. A sociedade ideal para Protágoras, portanto, deverá ser guiada sempre pelos mais sábios na arte da política, isto é, o sophos político.

Enquanto seus rivais intelectuais – especialmente Platão e Xenofonte – representavam a velha política aristocrática ateniense, os sofistas representavam o novo modelo democrático onde todos os cidadãos tinham o direito de opinarem sobre todos os assuntos relativos à pólis. Percebe-se, destarte, que com o auxílio dos sofistas os cidadãos gregos puderam ampliar significativa e democraticamente seu poder político passando a ser julgados e avaliados não por sua origem nobre, mas por seu mérito individual.


CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante de tudo o que foi exposto, ficou evidente que o movimento sofístico representou um tipo de pensamento novo em diversos aspectos. Foi uma novidade para a época que a pesquisa filosófica dos sofistas deixasse em segundo plano a reflexão da physis e desse uma guinada em direção à problemática do ser humano. Também foi algo inédito o fato desses sábios itinerantes não terem uma cidadania fixa e a consequência mais extraordinária desse acontecimento foi a total liberdade de pensamento expressa em suas obras. Além disso, através do ensino da retórica esses homens de conhecimento enciclopédico possibilitaram aos seus discípulos discutirem assuntos diversos nas assembleias e nos tribunais sempre de maneira magistral.

Mas, o mais importante contributo dos sofistas foi, certamente, auxiliarem na ampliação do poder político nas cidades-estado gregas. Por meio do ensino da areté política, os sofistas possibilitaram aos demais cidadãos que participassem ativamente dos assuntos relacionados à pólis e ocupassem cargos de destaque, antes restritos à classe aristocrática. Por essa razão os sofistas são considerados os verdadeiros representantes do espírito democrático da Grécia Clássica.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

ARISTÓTELES. Política. São Paulo: Martin Claret, 2012.

CASERTANO, Giovanni. Sofista. São Paulo: Paulus, 2010.

COULANGES, Fustel. A cidade antiga. São Paulo: Martin Claret, 2001.

FERREIRA, José Ribeiro. A Grécia antiga. Lisboa: Edições 70, 2004.

GUTHRIE, William Keith Chambers. Os sofistas. São Paulo: Paulus, 2012.

HELFERICH, Christoph. História da filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

JAEGER, Werner. Paidéia: a formação do homem grego. São Paulo: Martins Fontes, 2013. 

KERFERD, George. O movimento sofista. São Paulo: Edições Loyola, 2003.

LEVEQUE, Pierre. As primeiras civilizações: da idade da pedra aos povos semitas. Lisboa: Edições 70, 2009.

PLATÃO. Diálogos I: Teeteto, sofista, Protágoras. São Paulo: Edipro, 2007.

________. Diálogos II: Górgias, Eutidemo, Hípias maior, Hípias nenor. São Paulo: Edipro, 2007.

________. As Leis. São Paulo: Edipro, 1999.

REALE, Giovanni. Sofistas, Sócrates e socráticos menores. São Paulo: Edições Loyola, 2011. v. II.


NOTAS

1 De acordo com Ferreira (2004, p. 15), Heródoto conta um episódio esclarecedor a tal respeito. Quando da segunda invasão persa a maioria dos Estados gregos discutiam a possibilidade dos cidadãos abandonarem suas cidades e se retirarem para o Peloponeso onde construiriam uma cidade fortificada para impedirem o avanço do poderoso exército do rei Xerxes.

2 De acordo com a douta lição de Nicola Abbagnano (2007) em sua grandiosa obra Dicionário de Filosofia, eleatismo foi uma doutrina que floresceu em Eléia (Magna Grécia) entre os séculos VI e V a.C.. A doutrina eleática tinha como fundamentos principais: a) a unidade, imutabilidade e necessidade do ser, expressa pela frase: ‘Só o ser é e não pode não ser’; b) acessibilidade do ser só para o pensamento racional e condenação do mundo sensível como aparência.

3As especulações naturalistas chegaram ao ponto de se anularem mutuamente. O eleatismo contradizia o heraclitismo, os pluralistas contradiziam os monistas. Para alguns o princípio era uno, para outros múltiplos, para outros infinitos, para outros inexistia um princípio. Para uma corrente tudo era móvel, para outra tudo era imóvel.

4 Para Jaeger (2013) a areté está relacionada com o ideal de homem que se quer formar, devendo ser entendida, portanto, como sinônimo de excelência humana. Ele enfatiza ainda que a areté na Grécia Clássica deve ser entendida também como areté política, isto é, como aptidão intelectual e oratória.

5 Segundo Jaeger (2013), os sofistas chamavam a areté política de techne política. Eles utilizavam esse termo para exprimir o poder e o saber que o político adquire por meio da ação.

6 Assim como na obra ‘O Príncipe’ de Nicolau Maquiavel.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GONÇALVES, Aroldo Arley Severo. A contribuição dos sofistas para a democracia grega. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4579, 14 jan. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/45663. Acesso em: 28 mar. 2024.