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Autonomia privada da vontade e os limites do Estado

Autonomia privada da vontade e os limites do Estado

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Autonomia da vontade e os limites do Estado, quais os limites para o Estado e para a autonomia privada? O artigo não se esgota em si, mas levanta discussões atuais.

Pela filosofia libertária, cada ser humano é propriedade de si mesmo, ou seja, pode o próprio ser fazer o que bem quiser com sua vida: vender-se como trabalhador escravo até se prostituir. Alguns libertários dizem que não há nenhuma moral que possa nortear as relações humanas, ou seja, pode até negociar o "canibalismo consentido". Se não há moral, e tudo depende da liberdade de escolha, então, um pedófilo poderia negociar algumas balas sortidas com uma criança para, em troca, ter sexo com a criança. Nesse diapasão, uma empresa de água mineral poderia, sem qualquer ação estatal, superfaturar o galão de água para uma população que fora acometida por desastre ambiental, e não há qualquer água para ser consumida.

Discute-se, contemporaneamente, o direito ao aborto pela autonomia da vontade. Nesse caso, a mulher é proprietária de seu corpo, e a gestação é possível quando a mulher entender possível, como em questões econômicas, em caso de estupro, na gravidez indesejada quando ocorre falha contraceptiva. É possível a autonomia da vontade feminina mesmo que o marido queira um filho, já que quem gestará é a mulher, a não ser que a mulher e o homem façam previamente um "contrato gestacional": a mulher fica obrigada a gestar e a dar à luz.

A medicina tem evoluído de tal forma, que os suportes de vida garantem sobrevida, e nisto está, atualmente, o impasse. Discute-se o direito de morrer em paz em caso de doença terminal, como câncer em sua pior fase. Pela autonomia da vontade, o doente poderia exigir a prática da eutanásia para proporcionar-lhe uma morte digna, isto é, morte consonância com a noção de dignidade humana pelo doente terminal. De um lado temos, não todos, profissionais de saúde que são peremptoriamente contra a eutanásia, já que, com os medicamentos diversos tipos de tratamento, é possível minorar o sofrimento do paciente. No Brasil, por exemplo, a administração de morfina é burocrática. Na dor cruciante do doente terminal, a morfina, na maioria da vez, não é administrada. Para demais profissionais da área de saúde, a vida tem seu começo (nascimento) e fim (o fim natural da vida, que e a morte orgânica).

Para uma pessoa que não seja profissional de saúde, principalmente familiares, a agonia de um paciente deve ser logo extirpada, com uma morte digna. A morte digna seria em casos como câncer, tetraplegia, coma, por exemplo. Se as técnicas médicas e se os medicamentos evoluíram de forma a prolongar a vida humana, por outro, as diminuições das desigualdades sociais não acompanharam os avanços científicos. Tratamento médico custa dinheiro — que digam os milhões de brasileiros que não podem pagar por plano médico particular —, o que coloca em xeque questões como morte e vida.

Analisando os milhões de brasileiros que agonizam com os péssimos serviços prestados pelo Sistema Único de Saúde (SUS), o Estado tortura como um carrasco enlouquecido. Poder-se-ia falar em "justiça" do Estado ao dar a autonomia da vontade aos pacientes com câncer? Contemporaneamente, brasileiros que possuem algum tipo de câncer devem suportar os precaríssimos atendimentos nas unidades públicas de saúde. O câncer se desenvolve, as complicações aumentam. Cânceres diagnosticados precocemente, e com o devido tratamento eficiente, têm chances de cura.

Analisando fatos recentes como o aborto de fetos anencéfalos. Pela decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) — ADPF 54 — não é mais possível tipificar crime (artigos 124, 126, 128, incisos I e II, do CP) o aborto de feto anencéfalo. Na época, a Igreja Católica, assim como as Igrejas Evangélicas, não concordaram com a decisão do STF. Muito menos as mulheres conservadoras, pois nenhuma mulher tem direito ao aborto. Já as feministas, congratularam, com louvores, a decisão do STF. Outro assunto em voga é quanto ao aborto de crianças que contraíram Zica. Algumas mães dizem que os custos — financeiros e emocionais — vão além das possibilidades de cuidar de suas proles. A maioria dos pais acaba deixando suas companheiras, o que sobrecarrega, ainda mais, as mães. Muitas dessas mães são desprovidas de boa situação financeira. Se pensarmos nas precárias situações do SUS, o aborto de feto com Zica é "justificável". Seria demasiadamente cruel às mulheres a obrigatoriedade de gestarem, pois o aborto é crime — e cuidarem de suas proles após o parto. Se as desigualdades sociais, abissais, são frutos de políticas estatais discriminatórias, cruel é o Estado exigir demasiadamente forças extras das mães. Se as mães não têm condições econômicas para cuidar de suas proles, e o SUS viola o mínimo dos direitos humanos, o direito à vida digna, tanto da mãe quanto da criança com os efeitos da Zica, o Estado cria uma situação de sofrimento desnecessário para mães e criança.

Elástico é para as mães abandonadas pelos maridos cujos fetos possuem Síndrome de Down. Se essas mães não desfrutam de condições financeiras para cuidar de suas proles, se o Estado não dá assistência, eficiente, com equipes de terapeutas e professores especiais, como a mãe suportará, dentro do conceito de dignidade humana, as provas duras pela frente? E quanto à criança, quais as probabilidades de certa emancipação, já que não tem equipes de terapeutas e professores especiais, na vida adulta? É necessário proficientes profissionais — terapeutas e professores especiais — para o desenvolvimento da criança.

Admitindo a plena autonomia da vontade da mulher, de interromper quando quiser a gestação, também é elástica essa autonomia para demais acontecimentos da vida humana. Por exemplo, os presos brasileiros. Enquanto sob guarda do Estado, os presos devem ter suas vidas (dignidade humana) preservadas e garantidas pelo Estado. As prisões brasileiras, salvo algumas, em raríssimos casos, representam o que de mais cruel existe na vida humana. Não estou falando de Bangu, o qual tem um mínimo de infraestrutura para garantir a dignidade humana, mas demais presídios cujos esgotos estão brotando do chão. Na maioria dos presídios falta água potável, esgoto canalizado, colchão; além da superlotação. As rebeliões são constantes, o que geram homicídios. Ora, o Estado, pelas condições mencionadas, não deveria impedir o suicídio coletivo de prisioneiros que se sentem ameaçados por outros prisioneiros — em muitos casos, disputas entre facções.

O mesmo desdobramento é para os moradores de rua. Sem qualquer ação eficiente do Estado, e ainda pelas corruptelas provocadas por agentes políticos ímprobos, a miséria na vida do morador de rua justificaria, pela autonomia da vontade, o seu suicídio.

Há discussões doutrinárias e filosóficas sobre o direito de morrer. E isso precisa ser muito bem analisado pelos operadores de Direito, pelos sociólogos e pelos cidadãos comuns. No meu entendimento, o direito de morrer, pela autonomia privada, nas condições mesológicas brasileiras — desigualdades sociais, crimes contra a Administração Pública, darwinismo social e eugenia — consentimentos amplos do Estado podem criar uma seletividade artificial social. Quem não tem condições econômicas, por exemplo, para pagar plano privado de saúde, não terá uma escolha livre para o direito de morrer. Muito diferente é a pessoa que desfruta de boa condição econômica: esgotados os vários tipos de tratamentos médicos, a escolha é livre.

E o que dizer ao crescente, já que também é do interesse do Direito — direito à vida —, número de adolescentes que praticam a automutilação por questões emocionais, como separação dos pais, bullying etc. Como explicar aos adolescentes sobre a proibição de automutilação, pelo ângulo moral, se existe a autonomia da vontade para a eutanásia? Dizer que a dor de um canceroso é muito pior do que a dor do adolescente que sofreu bullying é sem lógica, pois não há como medir dor. A Organização Mundial de Saúde (OMS) alertou os Estados sobre o número crescente de suicídios provocados por depressão, e que os Estados deveriam aperfeiçoar suas políticas de saúde. Ora, como julgar o discernimento pleno para a prática do suicídio em vários episódios humanos? Eis um grande desafio para os Direitos Humanos, neste e nas próximas décadas.

O que presencio no meio acadêmico, e entre os operadores de Direito, não são discussões amplas sobre autonomia da vontade e os limites do Estado. Vejo muito condecorar decisões judiciais em relação da autonomia da vontade, em certos casos. Contudo, tais decisões abrem caminhos para exigências sociais. É preciso esclarecimentos quanto às decisões judiciais, não apenas louvores aos apelos de certos grupos sociais. Pelo princípio da isonomia, qualquer ser humano pode exigir os mesmo direitos concedidos aos demais, mesmo que sejam de diferentes grupos sociais ou étnicos.

Se a autonomia da vontade a eutanásia for possível, entre outras práticas, como ortotanásia, a autonomia da vontade poderia também ser aplicada no "canibalismo consentido".


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